segunda-feira, 26 de abril de 2010

Pequenas alegrias urbanas (65) -- O amigo

O escritor ligou furioso para o amigo: "Custava você ter dito que não prestava?" O amigo estranhou: "Não prestava o quê?" O escritor estava com um original aberto numa página em que havia diversas assinalações em vermelho. "O meu romance, o que mais podia ser?", irritou-se ainda mais o escritor. "E, como se fosse uma rosa de fogo, o crepúsculo desfolhou-se sobre a cidade", o escritor leu, com o dedo em cima de um dos trechos marcados. "O que é isso?", perguntou o amigo. "É um dos horrores que você deixou passar", disse o escritor. "Eu gostei da frase", comentou o amigo. "Liga então para o editor e diz isso", provocou o escritor. "O beijo, dado de surpresa no rosto da jovem, estalou como um chicote na sala vazia", leu o escritor. "Bonito, muito bonito", avaliou o amigo. "O editor botou mais de dez exclamações e interrogações aqui." Enquanto o amigo esperava uma pausa para confessar que não tinha lido o original, o escritor continuou lendo alguns dos trechos estigmatizados, sentindo-se a cada instante um pouco menos infeliz, como se o amigo fosse coautor.

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