quinta-feira, 13 de maio de 2010

Pequenas alegrias urbanas (107) -- Libertação

Ao transpor os sessenta anos de uma vida quase impecavelmente pragmática, ele resvalou de repente por um sentimentalismo que em certas horas lhe trazia, além da surpresa, um profundo desassossego. Não se entregava mais com a mesma concentração ao trabalho e às vezes se apanhava tão desligado que necessitava de cinco ou dez segundos para se reassumir e ver onde estava. Buscando a origem dessa alienação, voltou aos seus catorze ou quinze anos e a uma garota, Jênifer, que por uma quinzena o havia feito tentar ser poeta, para conquistá-la. Num domingo, assediado de novo por essa sensibilidade que a cada dia se tornava mais intensa, resolveu mexer nuns cadernos antigos. No de português, da oitava série, encontrou na última folha um poema escrito naquela longínqua quinzena marcada pela paixão, não correspondida, por Jênifer. A leitura dos primeiros versos lhe provocou um sorriso, satisfação que se manteve até o final, quando ele sentiu estar liberto da inquietação que ultimamente o tomara. O poema era ridículo, como ele vingativamente esperava que fosse, já que dedicado a quem não lhe tinha dado atenção. Falava de um rouxinol que cantava para celebrar um grande amor e morria na nota mais sublime e aguda. Além disso, ele notou, e o considerou o definitivo sinal de que estava salvo, o fato de que a homenageada nos catorze mambembes versos do soneto não se chamava Jênifer, mas Juliana.

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