quinta-feira, 13 de maio de 2010

Pequenas alegrias urbanas (108) -- Fuga

Durante muito tempo, sua carreira de romancista não conseguiu superar uma dificuldade prosaica: a falta de assunto. Tinha publicado um livro que as resenhas haviam considerado um dos mais importantes da década. Um ano se passara, dois, três, e ele sentia diariamente que estava apto a fazer um romance melhor e mais brilhante que o primeiro, se tivesse sobre o que escrever. Vinha-lhe um tema, era fraco; surgia-lhe outro, e era ainda pior. Chegava sempre até a décima página, no máximo, e desistia, porque nada conduzia a nada. Aflito, sob o pavor crescente de que lessem no seu rosto que era um escritor a quem os temas perversamente evitavam, passou a instigar o cérebro com leituras (dez, doze, catorze horas diárias), com álcool, com drogas, com disparates de todo tipo, com imprecações, com rezas, mas continuava sem ser recompensado por uma trama, um enredo, um arremedo sequer de história que o fizesse passar da maldição da décima página. Soube, nesses dias e noites de tormento, como era verdadeira a frase segundo a qual tudo já havia sido escrito e os escritores eram gente supérflua e repetitiva. Isso o agoniou ainda mais, ao invés de tranquilizá-lo. Queria agora não mais, como no início, o tema único, reservado para ele desde a primeira juventude do mundo, mas um tema qualquer, um tema mil vezes batido e rebatido, com o qual pudesse escrever o segundo livro e depois, apaziguado, ir trabalhar na empresa do pai, como este pretendia. Numa noite em que misturou álcool e drogas com uma exacerbação que parecia destinada a terminar em suicídio, ele apagou todas as luzes do apartamento e acendeu uma vela diante da qual pronunciou palavras que ninguém entenderia, nem mesmo ele, porque eram ditadas pela insanidade que o sufocava. Deitou-se no tapete, disse frases jamais registradas por nenhuma algaravia e dormiu assombrado por visões de seres rubros que gargalhavam ao redor de uma fogueira e lhe prometiam todos os enredos do mundo. Sorriu para eles e disse algo que poderia ser entendido como um agradecimento. No dia seguinte, começou a ser perseguido na rua por esses entes da noite anterior e por centenas de outros, todos rubros e febris, que lhe narravam histórias e situações com tal rapidez e vertigem que nem a mais hábil taquigrafia seria capaz de anotar. Correu de volta para casa, mas lá não lhe deram também descanso, nem mesmo no sono. Durou isso um mês, depois do qual, certa madrugada, ele saiu furtivamente do apartamento e embrenhou-se na escuridão, para executar seu plano: mudaria de nome e tentaria atingir um lugar remoto e só a ele acessível, onde esperava não sentir novamente as tentações da literatura, não precisar mais jurar, minuto a minuto, que não era escritor e jamais havia sido, nem se desvencilhar penosamente da multidão de personagens que insistiam em segurá-lo pelo paletó e puxá-lo para dizer-lhe que estavam ali para lhe contar a história das histórias.

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