sábado, 8 de maio de 2010

Pequenas alegrias urbanas (90) -- O rio

Foi no terceiro dia de uma chuva diluviana, que o jornal consideraria a maior do século, que a menina Ísis notou como era belo o rio. Ele havia transbordado e, como se todos os demônios da destruição o tivessem instigado, começou a engolir tudo que ousasse ficar à sua frente. Derrubara já dois casebres no início da rua e sacudia agora aquele onde Ísis morava. A família toda, com baldes, bacias e panelas, apelando a Deus e praguejando, tentava devolver ao rio o que ele continuava despejando sem descanso, mas todos sentiam que era inútil. Mesmo assim, concentravam o esforço nos fundos da minúscula casa, onde o rio atacava com maior fúria. Ísis não participava desse esforço. Era considerada meio boba, apática, metida a devaneios. Ela, na frente da casa, acompanhava o maravilhoso fluxo da corrente desatinada e, feliz por poder ver tanta beleza assim de perto, se encantou ainda mais quando observou que, no meio de uma porção de objetos indistinguíveis, o rio vinha trazendo, para lhe ofertar, uma boneca nua e cabeçuda. Ísis deu três passos para fora da casa e colocou a boneca no colo antes de ser puxada para o meio das águas.

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