sábado, 8 de maio de 2010

Pequenas alegrias urbanas (91) -- Os moinhos

Era escritor fazia trinta anos, embora só ele ainda acreditasse nisso. Tinha uma dezena de livros publicados, nenhum recente, e o pouco sucesso que havia conseguido estava tão distante, era tão antigo que, nas suas fotos estampadas nessas edições, ninguém, a não ser ele e os parentes, o reconheceria. Continuava escrevendo, com uma obstinação que já beirava a insanidade. Durante algum tempo, ainda seguiu o roteiro antigo: acabava um romance, mandava-o a uma editora; terminava mais um, enviava-o a outra; e acabava e mandava, e terminava e enviava. Quando pedia resposta, ela era sempre "não". Não parou de escrever romances e de encaminhá-los. Mas a certa altura já não pedia respostas, nem as esperava mais. Se por acaso via na rua algum editor a quem tivesse mandado um original, encolhia-se, ocultava-se, alterava o rumo dos seus passos. Bastava-lhe agora escrever, e escrevia mais e mais, varando madrugadas. De manhã, na hora do café com a família, começou a imaginar quem -- se a mulher, se os filhos -- ligaria para que viessem buscá-lo com a camisa de força. Uma tarde, ao sair da agência de publicidade da qual era redator, foi chamado por uma senhora. "O senhor não é escritor?" Ele sorriu: "Sou." A mulher, que tinha lido um livro dele, fez elogios à história e ao estilo e, antes de se despedir com um beijo, comentou que A Sombra na Escada era um de seus romances preferidos. Ele não disse que seu livro era Um Vulto no Corredor. Acenou para a mulher que se afastava e, olhando para a outra calçada, viu mais um dos moinhos que ultimamente o atormentavam.

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