quarta-feira, 30 de junho de 2010

Lírica (136) - Tarde demais

Esperou tanto pelo amor, tantos dias, tantos meses, tantos anos, que, quando o amor chegou, ele não tinha mais tempo para fruí-lo e, embora as próprias lágrimas lhe implorassem que sim, e os soluços que sim, e o coração, e a alma, e o útimo alento de vida que sim, que sim, que sim, não abriu a porta.

Lírica (135) - A caneta

Perturbava-o ainda, muitos anos depois, ver a insistência com a qual certos objetos o induziam a lembrar o amor que o havia feito sofrer tanto, como uma caneta refratária e rebelde a tudo que não fosse a tarefa de compor versos incendiados de paixão.

Lírica (134) - Efêmero

Efêmero. Sentiu a contundente verdade dessa palavra e, a partir daí, lhe afligiu estar onde estava, fazer o que fazia, pensar o que pensava. Não sorriu mais, não chorou, desdenhou dos projetos e das ambições, das mulheres e dos amores, e anos depois, quando o médico lhe diagnosticou apenas mais seis meses de vida, foi-lhe finalmente oferecida a ventura dos que se acham diante das coisas definitivas e inelutáveis.

Lírica (133) - Momento

Encostar a cabeça no teu ombro e ficar assim dez segundos, vinte, sentindo que esse é um dos momentos pelos quais vale a pena viver e morrer.

Lírica (132) - Bilhete

"Que, quando meu último sol vier me ver, ele tenha passado por tua casa e venha trazendo um dos teus sorrisos e, tomara, um sentido adeus."

Lírica (131) - Gratidão

Tão grato estava ao seu recente amor, porque lhe vinha abrindo os olhos para as minúcias do mundo, que certa manhã, escancarando a janela para o jardim, onde durante anos não tinha distinguido nada além de árvores, ao ver um bem-te-vi que o saudou, disse uma vez, e duas, e três: obrigado.

Lírica (130) - Recordações

Seu rosto parecia uma superfície de terra seca cortada por profundos sulcos. Respirava com dificuldade e já não falava. Sorria às vezes, um sorriso que requeria esforço para ser notado, e mexia-se um pouco no sofá, do qual agora quase não se levantava mais, quando alguém da família dizia uma palavra que podia ser Sandra, Norma e, especialmente, Sueli.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Lírica (129) - Compensação

Chegou um dia em que o amor, tendo imposto por muito tempo uma sede atroz e chagas profundas à alma, compensou tudo com uma água tão límpida e lenitiva que, enquanto a bebiam, os lábios que haviam lastimado tão grande sofrimento gostariam de ter sofrido mais, e bem mais se queixado, para que ainda mais doce fosse a compensação.

Lírica (128) - Laissez passer

Deixar a vida correr,
Deixar o tempo passar,
Me diga, é mesmo viver
Ou simplesmente adiar?

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Lírica (127) - Tamanha ventura

Quando conheceu o amado, pareceu-lhe que era tarde já e lamentou o pouco tempo que teria para viver tamanha ventura. Mas, com o correr dos dias, cada um mais doce que o anterior, exauriu-se tanto que sua maior aspiração era morrer num daqueles êxtases que agora lhe davam a impressão de ser muitos, sucessivos e tão intensos que já quase chegavam a tornar insuportável aquela doçura.

Lírica (126) - Crença

Não sabia que seria traída, nem que trairia, e o amor para ela ainda era a mais crível de todas as verdades.

Lírica (125) - Predestinação

Tinha dezoito anos e, sem haver conhecido nenhum, havia enlouquecido de amor uma dezena de homens, quando uma tarde, passeando num parque, viu um jovem que devia ter a mesma idade, ou um pouco menos, e era tão esplendidamente belo que ela, paralisada pelo espanto, não percebeu que rumo ele tomou e não o viu mais nesse dia nem em nenhum outro dos cinco anos em que, suspirando e chorando, viveu com uma única esperança, a de revê-lo, anseio que, quanto mais passava o tempo, mais se acendia em sua alma e mais lhe afligia o corpo. Dizia a todos que encontraria ainda aquele jovem, mesmo que só uma vez mais. No dia em que, não suportando mais a vida, sentiu que a entregaria antes de vir a noite, teve enfim realizado o desejo de revê-lo. Quando o padre chegou para lhe ministrar a extrema-unção, o quarto foi subitamente iluminado pela mesma beleza que a extasiara cinco anos antes, e ela, sorrindo, fechou os olhos.

sábado, 26 de junho de 2010

Lírica (124) - Transformação

O silêncio antes, o silêncio depois, e no meio aquele instante no qual a voz transformou um homem numa estátua que, depois do espanto, sorriu agradecidamente como nenhuma estátua jamais havia ousado sorrir.

Lírica (123) - Carrossel

Aquele momento, aquele, tu pedirás, e a memória benevolente trará sempre de volta aquela manhã, e a viverás de novo, de novo, de novo, porque naquela manhã descobriste que viver era simples como jamais havias imaginado e que o segredo de tudo consistia apenas em estar vivo, estar vivo, estar vivo, como naquele momento estiveste.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Lírica (122) - 2011? 2012? 2013?

Você estará andando pela avenida, naquele ponto que um dia uma memória ingênua e pretensiosa imaginou ser possível sacralizar. Haverá um sol, o de sempre (porque, dizem, o sol não muda), mas justamente por ser o mesmo você não pensará em olhar para cima. Porém ele, se é lícito crer na poesia, lhe perguntará, com aquela clareza cintilante de sol e com uma simpatia que não mereço: "E ele?"

Lírica (121) - As frases

Aprendeu as palavras que nomeavam todas as coisas do mundo, todas as sensações, todos os alvoroços do coração e da alma. Para melhor pintá-las em seus infindáveis matizes e intensidades, para vê-las em sua inteira verdade, aprendeu também os adjetivos e obstinou-se em procurar a exata maneira de juntá-los a cada uma das palavras, para completá-las. E, sabendo que os verbos é que insuflavam vida a todas as palavras, empreendeu a alquimia de fazê-los ir de uma a outra, e a todas, para que revelassem o que cada uma delas havia vindo fazer na Terra. Nesse trabalho de descobrir a significação do mundo, foi registrando todas as combinações em cadernos que acabaram tomando de alto a baixo toda a sua casa e que, um dia, num incêndio ateado por ele, se extinguiram sem deixar nada além de cinzas. Ele ardeu com suas palavras, e lamentou-se que, depois de tanto labor, houvesse sido negado aos homens o fruto de sua pesquisa, na qual haviam sido consumidos quase cinquenta anos. Numa única folha, salva pela vontade ou por descuido do homem, ou mais certamente pela intromissão do vento, foram encontradas duas frases, uma em cada linha. Uma era "A vida é", a outra era "O amor é". Não haver nenhum adjetivo em nenhuma das frases foi entendido de maneira oposta por dois grupos de intérpretes. Os primeiros lastimaram a falta de um, que possivelmente tornaria perfeita tanto uma quanto a outra frase. Aos segundos parecia legítima a hipótese segundo a qual a pureza das duas frases seria maculada por qualquer adjetivo, fosse qual fosse.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Lírica (120) - Desditosa ventura

Dia após dia, ele se debateu com uma dúvida que durante anos constituiu sua única e grande questão filosófica: por que - tendo-lhe sido concedida a ventura de viver na mesma época e a dois quarteirões da mulher que o havia levado a refazer sua opinião sobre o amor e a poesia - ela parecia vê-lo sempre como um homem ou de um tempo já pretérito, ou de um tempo ainda por vir e, por isso, de tempo nenhum?

Lírica (119) - Estátua

Esperando o sinal verde para pedestres diante da grande avenida, foi tocado repentinamente pela lembrança da mulher amada e por uma ternura tão morna, tão doce, tão suave, tão fluida, tão melíflua, e também tão incisiva, tão aguda, tão imperiosa, tão impositiva e tão pungente que, enquanto esses adjetivos todos agiam nele com uma força que nem imaginavam ter, o sinal se abriu duas vezes e ele continuou ali, com a boca aberta num sorriso que era genuíno deleite, indiferente a tudo que não fosse aquela sensação marejando seus olhos, aguçando seu olfato para a recente primavera, descendo sensualmente por sua espinha de homem transformado em uma estátua do êxtase dourada pelo sol maduro da tarde.

Lírica (118) - ???

Que paz haverá, que calma,
Se o amor e a rubra paixão
Te açoitam o coração
E te martirizam a alma?

Lírica (117) - Pragmático

Fascinado desde menino com a física, a matemática, as coisas que se podiam pesar, medir e avaliar, tornou-se um executivo zeloso, preocupado com as quantidades e os números, as porcentagens e as frações, e quando, durante um mês de férias, certa mulher lhe inspirou o susto e o arrepio da poesia, ele, descobrindo o encanto do sol, das flores e da lua, espantou-se, mas logo conseguiu organizar-se e mobilizar o coração em três turnos diários de oito horas de dedicação plena à novidade, abandonada porém na véspera de seu regresso ao escritório e às excitantes curvas de seus gráficos e de suas estatísticas.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Lírica (116) - O sopro

Da outra calçada, a mulher soprou um beijo para ele e sorriu. Era meio-dia, como o sol e as doze badaladas da catedral anunciaram. Ele quis atravessar logo para o outro lado, mas por dois minutos os ônibus todos, e os carros, e as motos obstinaram-se em impedir que pusesse os pés na rua. Esses dois minutos bastaram para que ele não falasse com ela, não lhe conhecesse o nome e não a visse, nem naquele dia nem nos cinquenta anos seguintes. E em todo esse tempo não houve um dia sequer em que ele não reconstruísse laboriosa e dolorosamente aquela cena: o sol pleno, o alarido grave dos sinos sacudindo a catedral, a furiosa balbúrdia do trânsito, incitada pelo destino, e aquele beijo, aquele sopro que arrepiou todos os seus sentidos por cinquenta anos, até seu último suspiro.

Lírica (115) - Feitiço

Sempre, quando ia ao encontro daquela voz rouca que o enfeitiçava, ele dizia consigo mesmo que, se na primeira vez pressentisse a prodigiosa força daquele feitiço, teria suplicado a Deus que o acorrentasse a todos os mastros, mas, conhecendo agora esse poder, imploraria a todos os deuses que derrubassem os mastros, se preciso, para deixá-lo ir, correr, se atirar nos braços do doce sortilégio.

Lírica (114) - Arco-íris

Protegidos da chuva sob um toldo de farmácia, ele e ela, esperando o ônibus, retomaram uma conversa que tinham iniciado ali mesmo, meses antes, e à qual diariamente acrescentavam novas descobertas, e sorrisos, e risos, intuindo um futuro de bem-aventuranças. Nesse dia, as mãos já quase se tocavam e as palavras saíam da boca de cada um com algo que se poderia chamar de açúcar. Houve um daqueles silêncios que costumam preceder as frases decisivas e, quando elas iam finalmente aflorar, apareceu no céu um arco-íris tão bem desenhado que ele e ela, aturdidos com aquela beleza que não admitia réplica, deixaram a revelação mútua se calar nos lábios, à espera de um dia que talvez fosse o seguinte.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Lírica (113) - O passarinho

Então, certo dia, um passarinho diferente, exótico, que jamais alguém tinha visto por ali, pousou numa das árvores do jardim da casa amarela. Toda manhã uma mulher jovem, quase menina, dava-lhe, na mão em concha, água e comida. As pessoas perguntavam-lhe de que espécie o passarinho era e se ele não cantava. Ela respondia dizendo um nome estranho, que ninguém sabia reproduzir, e com um sorriso completava: "Logo ele vai cantar." E, uma semana depois de chegar, o passarinho fascinou a vizinhança com um canto sem igual, majestoso, celestial, um canto prometido à jovem mulher por seu amado, que, de um lugar longínquo do planeta, havia mandado aquele presente único que, agora, depois de atravessar um oceano, e enfim livre da fadiga da viagem, dizia o que o enamorado lhe pedira para transmitir à sua amada. E ele passou a cantar mais forte, mais forte, até que, um mês depois de ter aparecido, sumiu. Aos vizinhos que estranharam, a jovem mulher respondeu que o passarinho estava voltando para a terra dele, citou um lugar desconhecido pelas pessoas e pelos mapas e, enquanto o pronunciava, seus olhos ganharam um desses brilhos que só se veem nos olhos de uma mulher apaixonada quando imagina um pássaro batendo as asas sobre um mar azul.

domingo, 20 de junho de 2010

Lírica (112) - Historinha

Onde você estava quando os bem-te-vis chegaram? Todos na rua, menos você, viram, todos ouviram, todos saíram das casas e apontaram para cima. Um menino, que conhecia o idioma dos passarinhos, perguntou o que eles queriam ali. O chefe dos bem-te-vis respondeu que estavam procurando o caminho da primavera. O menino pediu ajuda aos adultos, mas ninguém soube indicar o rumo. Os bem-te-vis, retomando a algazarra, perguntaram por você: onde ela está, onde ela está? Ninguém sabia, e os bem-te-vis abandonaram o telhado da sua casa e voaram para um lado, para outro, e voltaram, e perguntaram outra vez por você, e voaram de novo, e todas as pessoas notaram que continuavam desnorteados. Onde você estava quando os bem-te-vis chamaram? Eles se foram, enfim, e só um ficou diante da sua porta, um que acabou morrendo de fome e frio. Onde estava você quando eu, procurando o caminho para a primavera, chamei, chamei e chamei? Onde está você agora, enquanto eu, padecendo fome e frio, espero diante da sua porta?

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Lírica (111) - O dia

Teria sido tão doce
Que nunca mais haveria
Um dia igual, se esse dia
Tivesse sido o que fosse.

Lírica (110) - Cinzas

Talvez já não te lembres, como eu lembro, se era fria a manhã, se havia sol ou se chovia. Talvez não te lembres, como eu lembro, se era segunda ou terça, se era quarta ou sexta, e se eu estava solene ou com a minha cara de besta. Talvez te lembres, ou provavelmente não. E o dia virá em que não te lembrarás, como eu lembro, se era janeiro ou fevereiro, se era novembro ou dezembro, se verão era ou se primavera. E também virá o dia, se já não veio, em que nem o ano lembrarás, como eu lembro. Só terás certeza, se a tiveres, de que foi algo longínquo, algo que aconteceu, se aconteceu mesmo, muito tempo atrás.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Lírica (109) - Bula

Acreditamos em tudo o que as enormes letras dizem sobre o amor e estranhamos que letras ainda maiores não o louvem e não o proclamem, e o bebemos em goles gulosos, e o sentimos na exaltação de todos os sentidos, e o vivemos como se fosse a única forma de viver, e somente quando estamos definhando e morrendo por vivê-lo é que vamos ler, com os nossos olhos cansados e úmidos, o que dizem as letrinhas sobre as contraindicações, e mesmo depois disso não o amaldiçoamos, não o execramos e, cegos ainda por seu sortilégio, balbuciamos, com nossa voz de vítimas, palavras que fazem soar essa maldição e essa execração como se fossem a maior de todas as bênçãos.

Lírica (108) - Satélite

Se estiveres à janela e um raio de sol te roçar os lábios, eu te asseguro, ainda que a poesia me tente a dizê-lo, que não sou eu. Não sou ousado. E, se uma nuvem flutuar sobre ti, não esperes que seja eu e que tenha uma gota sequer para a tua sede. Sou pouco, sou parco, sou contido. Talvez me aches na parede ou no chão, tão discreto quanto uma sombra. Ou talvez me encontres, quando fores calçar os sapatos, embaixo de um deles - um cisco de pó que te acompanhou até a tua casa. Não tenho força, não tenho peso, não tenho voz - e, se a tivesse, ela já estaria gasta pelo prazer de decantar os teus encantos. Sou algo que podes esquecer, mas que não te esquece, algo que gravita em torno de ti e cuja amorosa obediência não convém que exaltes ou menciones, porque diriam só poder ter sido urdida na tua imaginação tal criatura, que ninguém, nem mesmo tu vês, a não ser naqueles teus raros momentos de descuido ou de generosidade.

Lírica (107) - Fácil

Daqui a quinze anos, daqui a dez, daqui a cinco, nada disto importará. Estará apagada a chama e o amor será uma lembrança. Não será preciso fazer nada, apenas deixar que o tempo flua. Tão simples, tão fácil. Então por que o coração se obstina e se recusa a aceitar?

Lírica (106) - Rejeição

Doía-lhe ver seu amor rejeitado, mas doía-lhe mais, muito mais, saber que não acreditavam nele, embora por esse amor ele toda noite se perguntasse se podia ser considerado um homem alguém que chorava como ele.

Lírica (105) - Trecho de uma carta

"Um dia tudo isto passará e não sentirei mais esta dor, e poderei de novo dizer o teu nome sem alvoroço e sem aflição, talvez até sem me lembrar do teu rosto. Um dia, quando menos esperar, terei descoberto que o sofrimento é suportável, apesar de tudo. Mas quem me devolverá a doçura dos frutos que estou perdendo e, se a devolverem, quem há de garantir que será ainda de mel o seu gosto?"

Lírica (104) - Dúvida

Não entendia por que a amada se zangava com ele e por que dizia estar sendo sufocada, se ele não lhe pedia nada além de amor.

Lírica (103) - Nada mais

Tinha dezoito anos, era um rapazinho, mas naquela manhã, ao ir se deitar depois de uma insone e febril madrugada, já não esperava nada da vida, como dizia no final de uma carta que havia escrito e picado em pedacinhos: "Serias tudo para mim, mas não quiseste ser."

Lírica (102) - Abandono

No porão mais escuro e frio da memória, os frutos não colhidos e o mel não provado abraçam-se tão tristemente quanto um bando de meninos órfãos.

Lírica (101) - E contudo

E contudo, e apesar de tudo, pulsa ainda o coração, e os olhos veem, e as pernas se movem, mas pulsa por quê, mas olham para o quê, mas se movem para onde?

Lírica (100) - Saudade

Não seja avarenta. Sorria sempre, à brisa da manhã, ao sol da tarde, à beleza da noite. Mas guarde um de seus sorrisos diários, mesmo que seja o menos expressivo, para o momento em que se lembrar de seu amigo distante.

Lírica (99) - Aconchego

Talvez tivesse sido um passarinho, talvez o vento, talvez o homem que havia acabado de passar por ela. O fato é que, vendo-se de repente com uma pequena flor na mão, ela a levou ao colo, para protegê-la do frio da manhã.

Lírica (98) - Evocação

O sol a acompanhou pela calçada e, por um instante, ao fazer escorrer um fio de ouro pelos seus cabelos, evocou num homem a lembrança de uma cachoeira numa manhã de verão.

Lírica (97) - Frustração

Ao ler num livro que o destino é feito pelo homem, ele, que até ali havia confiado no acaso e no embaralhamento fortuito das circunstâncias, sentiu que jamais certos olhos azuis o fitariam com o fervor que ele desejava.

Lírica (96) - O buquê

Na saída da igreja, a noiva atirou o buquê e o fez tão desastradamente que precisou apanhá-lo de volta, porque lhe caiu na cabeça. A isso se atribuiu o fato de, três meses depois, ela haver abandonado o marido para ir viver com outro homem.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Lírica (95) - O caminho

Tão grande era sua dor que uma noite, incendiado pela febre, viu entrando no seu quarto duas tristes mulheres vestidas de branco, que lhe secaram o suor e lhe disseram palavras de conforto, e às quais ele implorou: "Sylvia, Virginia, me levem, me ensinem o caminho."

Lírica (94) - Mãos

Ao poeta que se lastimava por seus infortúnios amorosos, um homem experiente aconselhou que se resignasse com a sua sina, que era a de semear, e deixasse a colheita para outras mãos, pois tinham sido sempre assim e assim continuariam a ser os desígnios do destino.

Lírica (93) - Biscoitos

Comeu um biscoito e esticou-se para apanhar mais um no pacote. O poema correu no monitor e ela, que havia lido só a estrofe inicial, teve diante dos olhos a última, que julgou tão insossa quanto a primeira. Tendo sido assim poupada de oito estrofes nas quais o poeta havia consumido o coração, a alma e a madrugada, ela pôde comer com tranquilidade o resto dos biscoitos.

Lírica (92) - Ausência

Sem o amado, não sabia mais o que fazer com o sol, as árvores, as flores, a lua e a monotonia de suas noites.

Lírica (91) - A escolha

Resignado, mencionando para os amigos contristados a lei da compensação, ele, que havia estranhado muito quando a amada o escolheu, não estranhou nada quando ela, dias depois, lhe disse ter se enganado na escolha e o deixou.

Lírica (90) - Desforra

Buscou no amor o júbilo e a felicidade, mas, não havendo alcançado nem esta nem aquele, consumiu-se em mágoa, ciúme e rancor, e, para nutrir esses sentimentos, aos quais inicialmente se opôs e depois aceitou como uma bênção, encontrou uma força que talvez nem o júbilo nem a felicidade lhe poderiam ter dado.

Lírica (89) - Invocação

Assumiu-se como politeísta porque era tão inacessível a amada que, para conquistá-la, seria insuficiente invocar a intercessão de um só deus.

Lírica (88) - A jura

Confiando numa jura falsa, ela esperou anos e anos pelo seu cumprimento e, ao ver todas as suas esperanças malogradas, lançou a culpa não sobre o amado, mas sobre si mesma e sobre seus tolos ouvidos.

Lírica (87) - O nome

Ferido mortalmente, poderia ter acusado o assassino, mas guardou seu último alento para sussurrar, a quem o socorreu, o doce nome da amada.

Lírica (86) - Só

Começaram a lhe ser indiferentes o sol, a chuva, o frio, o tempo. Das oito da manhã às seis da tarde, como se aquilo fosse o seu emprego, ficava sentado no banco de praça e murmurava sem cessar um nome, que alguns diziam ser o de uma mulher.

Lírica (85) - A palavra

No asilo, onde viveria seus últimos anos, sentava-se com os outros velhos diante da tevê e não revelava nenhuma emoção, a não ser quando em algum programa se dizia a palavra amor, momento em que em seu rosto surgiam o brilho de um sorriso e o de duas lágrimas e se podia até acreditar que estivesse vivo.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Lírica (84) - Sutil

Tocou-lhe carinhosamente uma orelha, depois a outra, preparando-as ardilosamente para o discurso amoroso que pretendia fazer.

Lírica (83) - Volúpia

O homem citou ao acaso o rei Salomão, e a mulher, dizendo que não sabia coisa nenhuma da Bíblia e nem queria saber, pôs-se a beijá-lo com uma avidez que Satanás não desaprovaria.

Lírica (82) - Ciúme

Assim que o arco-íris se desenhou, a mulher, pensando no amado e no ciúme que ele demonstrava sempre, procurou olhar para tudo, menos para o céu.

Lírica (81) - A peste

As musas o abandonaram e seus poemas foram atingidos por uma praga que roía laboriosamente os textos escritos à noite, deles restando apenas, de manhã, pedacinhos de papel picado nos quais, com muito esforço, era possível ler sempre a mesma palavra: "não".

Lírica (80) - Perfeita

Ele a idealizou tanto, e a cada dia lhe deu tantos novos atributos de graça e beleza, que, uma tarde, encontrando-se com ela, a viu tão superior a ele, que deplorou não ter concedido a si mesmo nenhuma virtude além daquela de conceber uma criatura tão soberba que jamais lhe seria dado alcançá-la, tamanha era sua perfeição.

Lírica (79) - Outono

Nos seus lábios, as palavras de amor não ditas começaram a murchar e, um dia, quando ele disse "querida", as mulheres se afastaram rapidamente, como se ele tivesse proferido uma maldição.

Lírica (78) - Descaminho

Sem olhar para trás, pois o adeus era irrevogável, ele se afastou devagar, bem devagar, porque todos os seus passos dali em diante só o conduziriam para lugares em que nunca mais encontraria a vida.

Lírica (77) - O baile

Pelas escancaradas janelas da imensa casa o som trovejante de uma orquestra saía em golfadas alegres e era levado por um vento triunfal que, para alegrar tudo e todos ao redor, corria para a rua como um moleque desatinado. Encostado num poste cuja luz doentia era engolida pelos holofotes que se cruzavam em cima da casa, um jovem imaginava tristemente com quem certa garota estaria dançando e, ao rugido da orquestra, opunha estoicamente o violino interior que chorava notas só para ele, para a melancolia dele, e que ganhava agora a ajuda de uma chuva fria como um adeus.

Lírica (76) - Cavaleiro

Chamava-se Jéssica e seu namorado, Jéferson, não sabia nada de torneios medievais, mas olhava sempre para ela de tal forma que seria injusto supor, se por um desses truques da ficção ou um daqueles enunciados da filosofia voltasse no tempo, que lhe faltariam coragem e amor para defender sua dama diante de qualquer um dos mais temíveis cavaleiros do mundo.

Lírica (75) - O presente

Depois que a amada lhe disse querer uma estrela de presente, ele passou a não ir mais vê-la à noite. Ficava olhando para o céu, atento a qualquer brilho desfalecente que lhe pudesse justificar a esperança, enquanto a amada, no calor das festas, ria e brindava com taças de cristal.

Lírica (74) - O milagre

Na primeira vez em que pronunciou em voz alta o nome dela, esperou que um bando de pássaros apanhasse as letras no ar e as levasse para o ponto no qual uma nuvem branca pudesse acolhê-las e embalá-las e onde o sol, penetrando, as fizesse brilhar no céu azul. Não aconteceu o que esperava, mas ele atribuiu isso a uma falha de pronúncia sua ou a um equívoco no tom, e tentou mais algumas vezes, cheio de culpa e esperança.

Lírica (73) - A voz

Ouviu aquela voz, e a comoção o deixou paralisado por alguns instantes. Quando se recompôs o bastante para olhar na direção de onde ela viera, tudo que lhe chegava agora era o fragor dos pratos recolhidos, o tilintar dos talheres e o alegre vozerio dos que almoçavam, contrastando com o silêncio agudo e doloroso de sua alma.

Lírica (72) - Destino

Ela viria num trem, viria num navio, viria a pé talvez, porque era possível que, sem ele saber, ela fosse vizinha sua e o destino a estivesse reservando para um dia especial, em que a primavera fosse mais primavera. Mas viria, se ele pudesse crer nos livros que lera e naquela doce aflição no peito que, desde menino, lhe tinham dito ser poesia.

Lírica (71) - Loucura

Pelos adjetivos que usava e pelos gestos que fazia, imaginei que estivesse contando uma travessura de algum menino ou de algum cachorrinho atrevido. Mas, quando me aproximei, soube que saltitante, alegre e maluco se referiam ao estado de seu coração minutos antes do seu primeiro encontro com a amada.

Lírica (70) - Conversa

Passou a olhar para as flores do caminho e, muitas vezes, parava para observá-las melhor. Até aí parecia tudo normal, mas já nem tanto quando ele começou a falar com elas e, ganhando confiança para ir às confidências, lastimava-se: "Ah, se vocês a conhecessem..."

Lírica (69) - Idade

Devastado pelo amor, em poucos meses o homem parecia ter saltado dos quarenta para os sessenta anos, e da vivacidade antiga só restou o sorriso com que às vezes, recordando decerto alguma tarde passada com sua querida, ele murmurava, sem ressentimento: "Que ela esteja feliz."

Lírica (68) - Avareza

"Nem um beijo, nem um", ia repetindo o poeta, queixando-se dos avarentos carinhos da amada naquela tarde, e dizendo essas palavras passou melancólico e pálido diante do mendigo que, tendo tocado a campainha de uma casa, perguntava patético a alguém que havia aparecido na janela: "Mas nem um pão?"

Lírica (67) - Pouco

Simples, ao lhe perguntarem por que havia sido rejeitado seu amor, ele disse não estranhar, porque apenas podia oferecer, e tinha oferecido, seu coração, sua vida e alguns poemas bisonhos.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Lírica (66) - Comparação

Na estante, pegava um livro e repunha, pegava outro e recolocava, e assim, pegando, repondo e recolocando, alvoroçava Vladimir Nabokov, Philip Roth e William Shakespeare, além de um obscuro homem que, observando-a, tentava decidir onde haveria mais beleza, se nela ou se nos livros, tendendo, numa avaliação inicial, para a primeira hipótese.

Lírica (65) - Se

Se eu tivesse, se eu pudesse, se eu conseguisse, se eu fizesse, pensava o poeta, aflito com sua falta de inspiração, e, sabendo já que não teria, não poderia, não conseguiria e não faria, olhou para a folha na qual sua incapacidade não lhe permitira escrever nada além de "minha querida" e sentiu a mais profunda das tristezas, sem imaginar que nenhum poema que escrevesse teria palavras mais expressivas e preciosas do que aquelas.

Lírica (64) - Presunção

Ela deixou o carro no estacionamento e, ao voltar, encontrou presa no limpador de para-brisa uma flor que o manobrista, piscando galantemente, avisou ter sido posta ali pela brisa, ao que ela, dando de ombros, disse não precisar de mais nenhum admirador, ainda que fosse um vento primaveril.

Lírica (63) - Dodói

Batendo o dedo na quina do balcão da lanchonete, ela se pôs a soprá-lo para atenuar a dor, observada por três casais - os homens subitamente apaixonados e as mulheres inconformadamente ressentidas -, enquanto o atendente, tocado por uma inesperada poesia, derrubava uma bandeja de sanduíches, e o gerente, que deveria repreendê-lo, nada via além do dedo que, mesmo à distância de uns cinco metros, ajudava a soprar.

Lírica (62) - Anúncio

Se não temesse o escárnio dos vizinhos e o rigor de alguma postura municipal, iria ao parque do bairro e circularia por ele com uma tabuleta: "Preciso de amor."

Lírica (61) - Exagero

Sempre foi gentil e delicado com as mulheres, tão gentil, delicado e inepto que ao seu velório só compareceram sua avó, sua mãe e suas duas irmãs.

Lírica (60) - Companhia

No parque, viu sentada num banco distante uma mulher de esplêndidos cabelos loiros falando num celular e imediatamente pegou seu celular também, para ter ao menos a impressão de que era com ele que ela conversava.

Lírica (59) - Mensagem

"Te falo do meu amor hoje, Scarlett Johansson, e espero que, com todos os anos pesando nos meus ombros, não venha a pesar também sobre eles a suprema tristeza de ver mais um de meus amores fenecendo e morrendo depois de minha declaração."

Lírica (58) - Aflição

Ela retirou a mão da mão dele e nesse momento ele se lembrou de um homem que, numa longínqua matinê, não havia conseguido apanhar o salva-vidas que lhe tinham atirado de um navio e que, depois disso, ninguém no cinema viu mais.

Lírica (57) - Repetição

Porque já estava afeita a ela, depois de meses de separação, sofreu só por dez segundos o suplício da dor, o suficiente para a lista de compras, em sua mão, ficar amassada como a carta que, numa tarde distante, lhe anunciara que nunca mais.

Lírica (56) - Firmeza

Ela estava tão triste por um amor frustrado que, saindo de manhã para seu último passeio pelo parque, e sentindo, ao voltar para casa, que naquele dia não teria coragem, não tirou no entanto de cima da mesa da sala o bilhete-testamento, para que na manhã seguinte se lembrasse de sua resolução e não vacilasse novamente.

Lírica (55) - Testemunha

A maçã que levaste de lanche para o primeiro dia de aula, e que comeste ainda entre lágrimas, por haveres brigado com tua amiga, talvez tenha sido a primeira testemunha de como podes ser cruel quando estás furiosa.

Lírica (54) - Roth

Ela assinalou no livro dele algumas passagens. Quando ela o deixou, ele passou a borracha nos trechos marcados, mas a intolerável beleza deles já estava em sua memória, como a lembrança de certos olhos, de certos cabelos, de certa voz, de certa mão traçando a lápis certas passagens.

Lírica (53) - Único

Quando o grande amor entrou em sua vida, ele não sabia se havia sido bom ou ruim não haver aprendido nada com os anteriores, a não ser a evidência de que nenhum deles era o verdadeiro.

Lírica (52) - Plágio

Quando a preferida do seu coração chegou com os cabelos molhados e, beijando-lhe os lábios, queixou-se da chuva e do tempo e disse que felizmente a primavera viria na semana seguinte, ele, amável e insensível a repetições, não perdeu a ocasião de afirmar que a primavera tinha acabado de surgir.

Lírica (51) - Aspiração

No metrô, o velho olhou para a garota e sorriu, encantado com sua beleza. Depois olhou para o namorado, tão jovem e belo quanto ela, e manteve o sorriso, porém tão amargo que era impossível não notar que trocaria todos os anos que porventura ainda lhe restassem para ser, mesmo que fosse só por aquela manhã, o rapaz que agora roçava com o lábio penugento o rosto da amada.

Lírica (50) - Olvido

Para a amada ele colheu a flor mais bela e, tentando inutilmente entregá-la, passou-a da mão para o bolsinho do paletó, em cima do coração, depois para um vaso onde ela definhou e morreu, e, por fim, recolheu suas pétalas murchas e colocou-as dentro de um livro que, anos mais tarde, não sabia mais qual era.

Lírica (49) - Por quê?

Se ele a amou e ela o amou, por que o sol não os vê mais caminhando juntos com aqueles dois sorrisos que pareciam um só?

Lírica (48) - Reverência

Quando, anos depois, observou andando pela avenida o homem que ela mais havia amado, ela, embora ele não a tivesse visto, lhe fez uma reverência, curvando-se como um salgueiro para beber do rio a primeira água da manhã.

Lírica (47) - Estranheza

Sempre que passava por lugares onde os pés dela haviam pisado, estranhava que ali ainda não tivessem nascido amores-perfeitos.

Lírica (46) - Verdes

Tinha quinze anos e, embriagado pelos livros de aventuras e pelas ilhas de tesouros, falou de arcas em que se guardavam anéis de brilhante, colares de inigualáveis pérolas e pesadas moedas de ouro, até conhecer uma garota cujos olhos o levaram a se enternecer pelos verdes de todos os matizes e a decantar a faiscante esmeralda, o incorruptível jade e até o quase desconhecido berilo.

domingo, 13 de junho de 2010

Lírica (45) - No teu sonho

É possível que tenhas ouvido certa noite, no teu sonho, teu nome sussurrado e, depois, uma canção cheia de palavras amorosas. Não, não era eu - era um deus, ou um diabrete, compadecido com os meus infortúnios.

Lírica (44) - Carinho

Ela pôs a mão no próprio queixo, distraidamente, e não a deixaria ali, nem iniciaria os afagos, se não se lembrasse de uma tarde em que outra mão, não tão distraída, havia pousado lá.

Lírica (43) - A imagem

Passou num início de noite por um sobrado e, na janela de um quarto, viu de relance uma jovem que, porém, decidiu ser a mais formosa de todas as que conhecia. Durante meses, na mesma hora, passou pela casa, mas jamais reviu a imagem que buscava. Na última das tardes em que seus passos o levaram novamente até o sobrado, viu no jardinzinho da frente uma senhora, a quem perguntou sobre a jovem, recebendo a resposta de tratar-se de uma empregada que trabalhara só um dia lá e havia sido despedida por furtar dinheiro, ao que ele disse - enigmaticamente para a senhora - que ela furtara não apenas o dinheiro naquele dia.

Lírica (42) - A prova

Os participantes do almoço chegaram à conclusão de que ninguém mais morria de amor, e ele, que amargava no peito a dor profunda e latejante de uma paixão não retribuída, achou injusto não ter nascido na época em que os enamorados desiludidos saltavam de pontes ou tomavam veneno, e lastimou que sua covardia o impedisse de promover um retorno histórico e morrer ali mesmo, naquela hora, para calar a boca daqueles que, devorando o churrasco, discorriam sobre a vida como se fosse um passatempo.

Lírica (41) - Fetiche

Na excursão, o grupo deteve-se ao chegar a uma fonte e, observando uma das garotas sorver avidamente a água na concha das mãos, um garoto teve sua primeira experiência daquilo que anos depois descobriria ser um fetiche sexual.

Lírica (40) - Sangue novo

Arrebatado por um impetuoso amor naquela que Drummond chamou de perigosa curva dos cinquenta, pôs-se a consultar todas as fontes possíveis, para saber se a expectativa de vida no país era de setenta e dois ou setenta e três anos.

Lírica (39) - Passos

De instante em instante, o dia inteiro, imaginava os passos da amada - aqui, ali, além, acolá - e à noite, quando finalmente a via, se espantava por não notar no belo rosto um sinal sequer do cansaço que ele, ao contrário, sentia e que mesmo assim não abreviava seus beijos.

Lírica (38) - Ainda um brilho

Se lhe falavam de amor, ele entreabria um sorriso, tirava os óculos, piscava e, depois de alguns momentos em que seu rosto parecia remoçar vinte anos, punha de novo os óculos, através de cujas lentes se via o indício de duas lágrimas, e dizia baixinho "o amor...", enquanto as rugas voltavam a se desenhar, ali onde tinha estado o breve brilho da memória.

Lírica (37) - Preciosa

Um mês antes de morrer, começou a repetir duas palavras - "Preciosa! Única!" - e mais nenhuma dizia. Nem os filhos nem os netos sabiam a quem ou a quê ele se referia, nem ele talvez, e talvez nem mesmo aquela que, num tempo longínquo, havia inspirado os dois preciosos e únicos adjetivos.

Lírica (36) - Demais

Passou a declamar poemas no ônibus, no metrô, no trabalho e, para indignação dos vizinhos, também de madrugada, no quintal. Quando começou a ouvir rouxinóis onde havia apenas pardais, foi necessário interná-lo.

Lírica (35) - Luzinhas

Na noite na qual pressentiu que o amado talvez nunca voltasse, ela, da sacada do apartamento, olhou na direção em que imaginava ficar o bairro dele e, no meio das dezenas de milhares de luzinhas acesas na cidade, localizou a da casa dele e esperou que ela se apagasse à uma da madrugada, horário em que ele costumava dormir, e só aí resolveu deitar-se também, feliz porque ainda de certa forma faziam aquilo juntos, embora separados, e prometeu a si mesma seguir aquela amorosa rotina em todas as outras noites de sua vida, se preciso fosse.

sábado, 12 de junho de 2010

Lírica (34) - No ar

Juntou as folhas em que estavam seus poemas, rejeitados pelas editoras e pela mulher amada, e atirou-as pelo décimo andar. Por um momento lhe pareceu que tinham se transformado em aves e flutuavam no céu azul da tarde. Por um momento só.

Lírica (33) - Nas nuvens

Tão ansioso estava que, subindo a escadinha posta do lado de fora da casa da amada, viu-se de repente no ar e bateu a cabeça em algo que só podia ser ou uma estrela ou a lua, suposição confirmada pela vertigem que sentiu ao olhar para baixo e não enxergar nada além de uma profunda escuridão.

Lírica (32) - Decepção

Pensou que, se fosse poeta, poderia fazer-se querido pela bela mulher que amava, e procurou um curso, mas perdeu o ímpeto quando, no fim da primeira aula, na casa do professor, a mulher deste saiu da cozinha para oferecer um café, e era tão feia que nem a mais estropiada das prosas lhe cairia bem.

Lírica (31) - Um ano

Quando lhe perguntavam se, estando tão velho, não receava a morte, ele dizia que estava morto fazia muito tempo e que havia vivido só um ano, aquele no qual estivera apaixonado por uma mulher cujo nome não conseguia mais lembrar e que acabava sempre chamando de Amor.

Lírica (30) - Perjúrio

Admirável foi aquele dia em que, num jardim, a um enamorado que te comparava a uma rosa, disseste que era ela a mais linda, e até juraste.

Lírica (29) - Precocidade

O menino tinha cinco anos e toda manhã era levado a um parque onde brincava com uma menina da mesma idade que repentinamente passou a não ir mais lá, deixando-o tão triste que a família, depois de lastimar o fato de ele haver voltado a urinar na cama e de ter adquirido o hábito de suspirar doloridamente, confirmou a suspeita de que era um amante precoce.

Lírica (28) - Uns lábios

Nunca mais foi o mesmo: nos licores que bebia e nas frutas que comia, jamais sentiu o gosto dos licores e das frutas daquela noite, porque não era nem deles nem delas que tinha vindo a doçura que o enfeitiçara, mas de uns lábios que ele passou a procurar em vão, freneticamente, em todas as bocas que beijava.

Lírica (27) - Feitiço

Quando fechas os olhos e te dás ao sono, todos os objetos em torno de ti adormecem também, esperando a manhã, quando voltarão a ter significado e beleza.

Lírica (26) - Não mesmo

Que presunção, a da lua: surgir agora e querer fazer-se notada, justamente quando sais do cinema e andas garbosa pela avenida.

Lírica (25) - Atrevido

A chuva desviou seus pingos, para poupar-te, mas um deles, amoroso e atrevido, caiu em tua testa e, descendo pelo nariz, encontrou abrigo em tua boca.

Lírica (24) - Sol

Quem, entre os teus admiradores, há de rivalizar com aquele que lá em cima afasta agora a nuvem para te espreitar e mandar um beijo cálido?

Lírica (23) - Gosto

Que néctar, que mel, que dulçor podem ser assim considerados, se não passaram pelo teste de teus lábios?

Lírica (22) - Respeito

Os passarinhos se reuniram e seus gorjeios ensaiaram, desde a aurora até o crepúsculo, mas nenhum se considerou apto a levar seu canto à janela onde esperavas.

Lírica (21) - Quem?

Que poeta há de ter a sedosa palavra, a rima certa e o feitiço métrico que te farão justiça?

Lírica (20) - Vocação

Um beija-flor te acompanhou por três ruas, porque levavas sem perceber uma migalha de pão no lábio, e, quando distraidamente a atiraste ao chão, ele quase desceu, mas, tangido por outro apelo, talvez o da beleza, decidiu continuar te seguindo.

Lírica (19) - Impetuoso

Estava fria a noite, mas o vento - talvez o mesmo que, amante do belo, de manhã aspirou o aroma da rosa e à tarde fez dançar as folhas da árvore -- baixou a gola do teu casaco, para desnudar teu pescoço.

Lírica (18) - Felicidade

Deixaste cair uma pipoca na sala do cinema, e um passarinho, que havia te seguido, recolhendo-a, pulou para o teu colo e a devolveu. Depois esvoaçou cantando, feliz pela oferenda.

Lírica (17) - Ah, se...

Se tuas mãos fossem as de quem a ama, não estariam agora entretidas no trabalho em que modelas a beleza com tanta arte. Estariam na já modelada arte do teu rosto, apalpando a inexcedível perfeição de suas formas.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Lírica (16) - Garimpo

Quando sacodes os cabelos depois do banho, sensato será quem se abaixar: haverá, num ladrilho, ao menos um fio de ouro.

Lírica (15) - Sorrisos

Naquela tarde, é possível que não te lembres (ou talvez nem tenhas notado) que foi um raiozinho moleque de sol que, fazendo cócegas em teus lábios, te levou afinal a sorrir, e eu, com a astúcia e a presunção dos enamorados, abri também imediatamente um sorriso para ti, como se estivesses respondendo a ele.

Lírica (14) - Paisagem

Aquele que se emociona quando, submergindo no mar, o sol vem dourar as ondas, o que sentiria se você aparecesse andando pela praia? Pediria decerto que a noite se atrasasse um pouco e segurasse por algum tempo as estrelas, para que tua beleza reinasse no glorioso fogo do crepúsculo.

Lírica (13) - Pompa

Uma folha desprendeu-se da árvore e esvoaçou diante de ti, acompanhou por um instante os teus passos e pediu de novo ao vento que a elevasse até a altura do teu rosto, mas teus olhos a ignoraram, como haviam ignorado aquela folha de caderno espiral que um garoto pôs timidamente na tua mão, numa distante manhã. Pensaste então, e pensas ainda, que à beleza somente se devem prestar reverências solenes.

Lírica (12) - Zumbido

Quando caminhas ao sol, talvez não as ouças, mas logo se põem a zumbir em torno de ti palavras como tâmara, cereja, pêssego, mel, ambrosia.

Lírica (11) - Como o Bolero

Como o Bolero de Ravel, que se anuncia ao longe e vem crescendo cuidadoso, para que o coração se prepare para a beleza que, se o pegasse desprevenido, poderia de êxtase matá-lo, como o Bolero de Ravel, que sobe, e retumba, e vem, e chega, e exalta a alegria da vida, e depois se vai e se esvai aos poucos, para que o coração não sofra a repentina desilusão de sentir que a vida começa a se afastar, deixando um vazio que poderia aniquilá-lo, você vem assim, minha querida, lenta, e cresce aos poucos, e grita com todos os sons que a vida é bela, a vida é única, e depois vai saindo, vai se distanciando, mas deixa no ar ainda uma plenitude, uma beleza que a recordação há de reproduzir, e repetir, e renovar, e celebrar, como o Bolero de Ravel.

Lírica (10) - Castigo

Se os brincos te caírem, não te curves para apanhá-los. Deixa que sofram o castigo de não ouvirem aquilo que o amor vier dizer-te.

Lírica (9) Desperdício

Que desperdício beijar-te e, por dez segundos ou vinte, deixar de ouvir, ou ouvir somente como um murmúrio ininteligível, justamente aquelas palavras que o beijo pretendia fazer aflorar.

Lírica (8) - Desejo

Se um dia tuas unhas quiserem em garras se transformar, que meu pescoço seja o mais próximo, minha bela, ah, que ele esteja bem perto de ti, e que macio tu possas achá-lo.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Lírica (7) - Anseio

Quando você pergunta com o pé como está a água no chuveiro, ela sempre se diz morna, porque anseia pelo instante em que você lhe oferecerá o caminho que começa em seus cabelos e por onde ela poderá descer suave.

Lírica (6) - Intuição

Se percebem que você sofre, seus lábios se abrem, ansiosos para beber a límpida água de sua alma.

Lírica (5) - Música

Se você anda com a sandália pela sala, os ciscos se juntam à sua passagem e, pisados, gritam uma canção que um dia talvez você venha a ouvir.

Lírica (4) - O gesto

Naqueles momentos em que você coça displicentemente a orelha, os pensadores e todos aqueles pretensiosos filósofos deveriam vê-la, para jamais repetirem esse gesto como se ele fizesse parte do ritual de quem está no caminho de decifrar um grande mistério da vida. Ele é um atributo da beleza e como tal deve ser considerado.

Lírica (3) - Suspiro

Quando tu suspiras, é o ar que geme por se despedir de ti.

Lírica (2) - Perguntas

Quando tu respondes a uma pergunta, as outras se alvoroçam, se oferecem, todas querendo ser respondidas também por ti.

Lírica (1) - Tristeza

Quando você fala, as palavras se entristecem, porque estão se afastando do calor de sua boca.

Paulistana

Embaixo da fria chuva,
Levava pela São João
O estúpido coração
E sua pobre alma viúva.

Pequenas alegrias urbanas (190) -- Infância

Enquanto o rato roía a roupa de Rute na rua do Rosário e o rei de Roma rumava para Madri, o menino na aula de gramática não sabia se um tigre, dois tigres, três tigres comia um missionário ou comiam três.

Vocação

Se tu achas doce a loucura
E te agrada o desatino,
Meu amigo, o teu destino
Está na literatura.

Pequenas alegrias urbanas (189) -- Arrependimento

Atropelado por um caminhão e conduzido de helicóptero a um hospital, ficou três dias na UTI e, desenganado pelos médicos, recebeu a visita da mulher, a quem, já com voz de além-túmulo, pediu desculpas por várias coisas, dos dois filhos, aos quais recomendou que não seguissem os exemplos dele, e do irmão mais velho, a quem confessou ter furtado dele, quarenta anos antes, uma coleção de histórias em quadrinhos. No quarto dia, porque milagres existem, sentiu-se melhor e teve alta uma semana depois, quando, ainda no caminho para casa, maltratou a mulher e os filhos e, apesar dos suplicantes olhares do irmão, recusou-se a dizer onde estavam as revistas, declarando raivosamente seu direito sobre elas, pela posse continuada.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Pequenas alegrias urbanas (188) -- Msn

Era a terceira noite em que o garoto se comunicava com a garota e, vendo que, como nas duas ocasiões anteriores, não conseguia tratar senão de assuntos triviais, resolveu que era hora de se arriscar. Perguntou à garota se queria saber o que ele seria capaz de fazer por ela e, quando ela disse que sim, começou a enumerar façanhas como escalar o monte Everest, correr na Fórmula Um, enfrentar um tigre no circo, sem chicote e sem banquinho, conseguindo dela, depois de cada uma dessas declarações de valentia, só um indefinível huumm. Pressentindo que precisava de algo mais do que bravuras físicas, lembrou-se de um romance que estava lendo, no qual o herói escrevia flamantes cartas à amada, e, recordando-se de uma frase em particular, digitou-a com o coração aos solavancos: "Eu beijaria seus pés." A resposta veio dez segundos depois: "Huumm."

Pequenas alegrias urbanas (187) -- Vixit

Mas por que a morte temer,
E o sofrimento, e o olvido,
Se Borges diz que morrer
Não é senão ter vivido?

terça-feira, 8 de junho de 2010

Pequenas alegrias urbanas (186) -- A flor

O homem passou pela casa com a placa de vende-se e viu, no jardim maltratado, uma flor não propriamente bela, mas exótica. Entre os dezessete e os dezoito anos, havia trabalhado como entregador numa floricultura e, além das flores mais vendidas, tinha folheado um catálogo de flores raras, que podiam ser encomendadas, e não se recordava de nenhuma que fosse sequer parecida com aquela. A casa estava desocupada e, no terracinho da frente, um gordo funcionário da imobiliária estava escarrapachado numa cadeira muito pequena para ele e sufocava-se em roncos. Foi fácil entrar e arrancar a flor. Era mesmo diferente, compacta como uma fruta, e logo o homem perdeu o receio de que o vento pudesse despetalá-la. O interesse com que olhava para ela enquanto andava para o ponto do ônibus começou a chamar a atenção das pessoas. Alguns rapazes zombaram dele, que segurava a flor como os fiéis conduzem a vela nas procissões, dois homens se olharam e balançaram a cabeça, como se aquilo lhes ultrajasse a honra, e uma mulher perguntou a outra se era Dia dos Namorados. Já na fila do ônibus, todos os rostos se voltaram para ele e para a flor. Supondo que dentro do ônibus a flor continuaria a provocar estranheza, estava pensando ou em deixá-la escorregar até o chão ou em enfiá-la disfarçadamente no bolso, quando uma repentina ternura se apossou dele, a lembrança de um longínquo amor aflorou e, tão espalhafatosamente quanto pôde, ele ergueu a flor até os lábios e a beijou uma, duas, três vezes, e voltou a beijá-la e beijá-la e beijá-la.

Pequenas alegrias urbanas (185) -- Majestade

Na avenida Paulista, andando para o trabalho como todos os dias, o homem fechou por um instante os olhos tocados por um raio de sol e, ao reabri-los, o raio, deslocando-se travessamente para o meio da avenida, conduziu-os para uma mulher aureolada, coroada como uma rainha, que aproveitava o sinal verde e, acompanhada pela luminosidade mágica, que talvez só ele visse, por estar onde estava, chegou até a calçada oposta. Pelo receio de se mover e assim quebrar o encanto, ele a viu ainda, sempre seguida pelo halo, entrar numa transversal e desaparecer antes que ele emergisse do breve êxtase matutino e pensasse que iria atrás dela até o fim do mundo, se ela fosse, e se com ela fosse também o raio de sol.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Pequenas alegrias urbanas (184) -- A centésima

Ela queria que aquela fosse uma carta maravilhosa, a mais bela de todas. Era a centésima que escrevia, mas não era por isso, por ser um marco, que ela a queria especial. A do dia anterior ela também havia escrito com o coração, com a alma, com o sangue ditando cada letra. E também as outras, desde a primeira. Cem dias, cem cartas. Todas falando de amor e saudade. E de que mais falariam? O amor e a saudade eram sua vida. Quando não estava escrevendo a carta do dia, estava pensando na carta que escreveria no dia seguinte. Chorava sempre ao escrevê-las - uns dias mais, outros dias mais ainda. Sentia-se infeliz quando chorava menos, e achava-se indigna do amor que sentia. Precisava tomar cuidado, sempre, para não borrar a tinta. Aquela carta, a centésima, lhe tomou mais do que as duas horas de costume, porque a cada instante era obrigada a engolir as lágrimas e a acalmar os soluços. Conseguiu terminá-la e sentiu-se exausta e vazia, como se tivesse se colocado inteira no texto. Foi para o quarto, feliz por ter exprimido tudo que queria, mas antes enfiou a carta num envelope, pondo-a depois em cima das outras noventa e nove.

Tú me acostumbraste

A flor que meu olhar vê
É a mesma, porém não é,
E o sol e a vida tampouco.
O que era tudo hoje é pouco
E é descrença o que era fé.
Por que foi assim? Por quê?

Pequenas alegrias urbanas (183) -- Meus dois homens

Na maternidade, ao lhe mostrarem pela primeira vez seu bebê, a jovem mãe olhou para ele, depois para o marido, que amava como se fosse um deus, e, sentindo o coração indeciso, deleitou-se ao ver no marido um detalhe que a beleza do menino ainda não tinha: o bigode fininho, lustroso, provocante, bem cuidado.

Pequenas alegrias urbanas (182) -- Herói

Ele viu o homem apertar o pescoço da mulher, fazendo-a de escudo, e ameaçar esfaqueá-la se os dois policiais não se afastassem, enquanto a multidão, estupefata, não se movia. Indignado, porque o pai havia sido assaltado ali uma semana antes, ele se aproximou sorrateiramente do bandido e, com um salto, o atirou longe e o desarmou, enchendo-lhe depois a cara de bofetões. Quando se levantou, surpreendeu-se ao ser empurrado por um dos policiais, ao mesmo tempo em que o outro perguntava ao bandido se tinha sofrido algum ferimento. Em vez de aplausos, ouviu que o chamavam de burro, riam dele e o vaiavam, e um gorducho nervoso que segurava um objeto semelhante a uma prancheta berrou a um centímetro do seu rosto, salpicando-o de saliva: "Imbecil, isto aqui é uma filmagem, não está vendo?" Ele se encolheu, tentou desaparecer dentro de si mesmo e foi saindo devagar, embora tivesse vontade de correr. Ao chegar à esquina que, dobrada, o afastaria da humilhação, uma mulher de uns setenta anos, cujs olhinhos sumidos tentavam enxergar alguma coisa sob as grossas lentes, pôs-lhe a mão no braço e disse: "Parabéns, você é um herói."

domingo, 6 de junho de 2010

Pequenas alegrias urbanas (181) -- O aniversário

Comeu três, quatro, cinco empadas e, depois, achando que naquela noite merecia, esvaziou a bandeja. Cortou um terço do bolo e o enfiou direto na boca, engasgando e tossindo migalhas sobre os brigadeiros. Tomou também toda a garrafa de vinho, no gargalo, e lamentou não ter outra, até abrir a geladeira, onde estava uma dúzia de cervejas, das quais bebeu cinco, latinha a latinha, até sentir uma alegria que o fez subir cantando até o quarto, onde, no criado-mudo, esperava por ele o revólver com que, cinco minutos mais tarde, conforme havia planejado, acabaria com sua vida se até as oito horas não tivesse tocado a campainha nenhum parente ou amigo para lhe desejar um feliz aniversário.

Pequenas alegrias urbanas (180) -- Daquele tempo

"Ah, tio, você não vai chorar, vai?", a garota perguntou, com as mãos em cima das mãos dele, na mesinha da lanchonete, e ele fez que não, com a cabeça, mas era óbvio que ia chorar, sim, que ia chorar muito assim que viessem os sanduíches e ela tirasse as mãos das mãos dele e, comendo, armasse com os lábios aquele biquinho que, agora ele sabia - e tinha precisado de sete encontros para saber -, nunca beijaria com a paixão que um minuto atrás ainda imaginava possível. Relegado à condição de amigo, ele, antes que os sanduíches e as lágrimas viessem, tentou disfarçar como se sentia velho e acabado e começou a cantarolar uma musiquinha alegre que fez a garota sorrir, recomendar-lhe outra vez que não ficasse triste e, sem querer, afundá-lo ainda mais na depressão, ao lhe dizer: "Legal essa aí, tio. Amei. É do seu tempo?"

Pequenas alegrias urbanas (179) -- A rima

A família levou um mês desconfiada de que os suspiros de Leninha, a filha de dezenove anos, eram provocados pelos olhos negros e pelo rosado rosto do novo balconista da padaria, recém-chegado de Portugal, e já estavam todos até começando a achar menos inaceitável o pretendente, não só pelos belos olhos e pelo saudável rosto, mas também por ser sobrinho do dono, quando, interrogada diretamente pela primeira vez, Leninha se indignou e disse que se enganavam se achavam possível ela se apaixonar por alguém tão insosso e presumivelmente sem instrução - o que aliviou os parentes até o instante no qual ela declarou, sem rodeios, que seu coração batia pelo professor Adroaldo, homem de posição sólida, tanto que iria se aposentar dali a dois anos e se dedicar totalmente à poesia, da qual era cultor exímio, o que ela poderia provar pelo último soneto dedicado a ela, no qual o professor rimava no terceto final "juventude" com "senectude", tendo essa última palavra causado um princípio de chilique na avó, que a relacionou a um censurável hábito sexual.

sábado, 5 de junho de 2010

Recaída

Passou. Mas algumas vezes
O coração se comove,
O mercúrio então se move
E, como naqueles meses,
Sem ter controle nenhum,
Sobe até quarenta e um.

Memória

Agora nem ele cria
Que tivesse mesmo havido
Aquela doce manhã
De dezembro, aquele dia
Em que ele tinha pedido
Que nunca houvesse amanhã.

Entretenimento

Se o amor não faz sofrer nada
E não causa comoções,
Melhor comprar uma entrada
Num parque de diversões.

Conselho

Amor? Se não quer problemas,
Não se meta nessa, não.
O amor só traz maus poemas,
Tristeza, desilusão.

Papo

Tudo certo, tudo bem,
A arte minha vida preenche
E, óbvio, a família também.
O quê? Amor? Ah, não enche.

Me diga então

Se a rosa num roseiral
Se expande, se encorpa e medra,
Que flor se gera, afinal,
Em um coração de pedra?

Esperanças

Para escapar do garrote da
Vida, uma boa embolia,
Uma eficaz anemia,
Uma obstrução da carótida.

Tique-taque

E, a cada minuto mais,
Parece-me que o relógio
Soa como um necrológio:
Jamais, nunca mais, jamais...

Dúvida

Um dia dirás: "Outrora
Um homem eu encontrei
Que nunca soube se amei
Mas talvez amasse agora."

Fim

Entrando no mar, gritou
Um nome e depois, sorrindo,
Às ondas que vinham vindo
O corpo e a alma entregou.

Cinza

Tranquilo parece o homem
E ninguém nele adivinha
A dor sob a qual definha
E as fogueiras que o consomem.

De tudo se despojou
E, com o coração aberto,
Seu sentimento gritou,
Mas gritava no deserto.

Probabilidades

Talvez comprando jornais,
Ou na livraria, ou diante
Do café, do restaurante,
Talvez também nunca mais.

Desprevenida

Abriu a bolsa e buscou
Aqui, ali, acolá.
Virou tudo e revirou,
O amor não estava lá.

Vida

Se quer saber se valeu,
Eu lhe respondo que sim.
Você não tirou de mim
Nada além do que me deu.

Idos e ados

E tantos dias perdidos,
Com tantos sonhos frustrados,
Tão tristes, tão mal vividos,
Jamais serão recobrados.

Menino

Num canto de livraria
Sua alma ingênua perdeu,
Certa manhã, certo dia,
E não num livro que leu,
Mas num olhar que lhe deu
Uma bonita guria.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Pequenas alegrias urbanas (178) -- Romance

Bateu à porta. Tinha se perdido na neve, estava faminto, sedento, morrendo de frio, e não parecia haver outra casa em lugar nenhum, no meio da mais escura de todas as noites. Bateu, bateu mais uma vez, mais uma, e outra. Esperou, esperou, continuou esperando, mas ninguém saiu do conforto da casa iluminada. Sentou-se, desesperançado. A única coisa que podia fazer dignamente agora era morrer ali, para castigar quem se recusava a abrigar um homem perdido, a chamá-lo para o calor da lareira e para a mesa de jantar. Encolheu-se e dormiu um sono que esperava ser o último. A noite avançou, chegou a madrugada e por quatro vezes alguém entreabriu a porta, deu uma espiada nele e não o achou digno de entrar. Ao vir a manhã, ele se surpreendeu por estar vivo, por se encontrar na página 278 de um romance russo e porque, ao contrário dos criados que tinham ido espiá-lo quatro vezes lá fora, a jovem condessa, dona da enorme casa, lhe implorou que entrasse e lhe desse o supremo prazer de tomar café com ela.

Sem título

Doeu, ah, doeu. Não há
Dor maior, dor mais doída.
Ontem, hoje, toda a vida,
Doeu, dói e doerá.

Idade

Ânimo, então, e nenhum
Receio de nada, pois
Depois do setenta e um
Lá vem o setenta e dois,
Se um fato bem comezinho
Não te matar no caminho.

Pequenas alegrias urbanas (177) -- Não mais

Quando soube que jamais poderia ser Woody Allen, não pensou em se matar, por saber que não seria uma resolução séria, já que havia lhe passado pela cabeça a ideia de suicídio quando descobrira não poder ser Dostoiévski, Tchekhov e Machado de Assis, até porque estavam mortos, nem Katherine Mansfield, Virginia Woolf e Flannery O'Connor, porque além de estarem mortas eram mulheres.

Pequenas alegrias urbanas (176) -- Quase bom

Fazia dois anos que o velho não dizia uma palavra, mas naquela manhã a mulher e a filha - talvez porque na véspera tivesse sido iniciado um tratamento diferente, talvez porque notassem melhor disposição no doente - refizeram a rotina com renovada esperança: mostraram-lhe a foto dos netos, mas, como sempre, ele se manteve calado; em seguida, exibiram-lhe a foto de Havana, para onde ele sempre havia querido viajar, e julgaram tê-lo visto mexer os lábios; puseram depois para tocar sua música preferida, Clair de Lune, de Débussy, e então, com uma alegria que exprimiram em risos escancarados, lágrimas e impetuosos abraços no velho, as duas o ouviram dizer, encantado com a música: "Pixinguinha!"

Pequenas alegrias urbanas (175) -- Voyeur

Fazia já três meses que, toda manhã, entre as sete e as sete e meia, ele apontava o binóculo para o apartamento do prédio vizinho onde uma loira esguia, embora vivesse sozinha, tomava café com uma classe impecável, como se estivesse num clube londrino acompanhada por um lorde. Naquele dia, quase não acreditou quando ela meteu o indicador no nariz e, no momento seguinte, para ainda maior espanto dele, começou a escarafunchar o interior da narina, o que o fez descer apressado para ir se postar diante do entrada do prédio por onde a mulher dali a pouco sairia, agora impelido pela impressão e pela esperança de que ela talvez não fosse tão inacessível quanto havia parecido três meses antes.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Pequenas alegrias urbanas (174) -- Imorredouro

"Minha querida, não vou lhe dizer nada. Dizer o quê? Que a amo? Está bom, eu digo. Não tenho dito outra coisa - com essas três minúsculas palavras ou com outras, maiores. Disse isso com parágrafos e mais parágrafos, com textos que jorravam como rios, que se precipitavam como cachoeiras, que retumbavam, que faziam espuma, que se exibiam como saltimbancos e pediam aplausos. Hoje peguei por acaso um desses textos e me perguntei como pude usar certos adjetivos, que nem o amor é capaz de redimir e absolver. Imorredouro? Perene? Santo Deus! Quem permitiu que essas palavras constassem nos dicionários? Imorredouro... Imorredouro! Vi esse monstrengo e ri, ri muito, posso dizer que senti mesmo uma dessas pequenas alegrias que são quase uma felicidade. E sabe por quê? Porque me lembrei de que, no dia em que escrevi essa estúpida palavra, fiquei em dúvida e quase a substituí por sempiterno. Sempiterno! Isso é que eu fui aprender na escola? Melhor, então, dizer apenas que a amo. Tão simples, tão claro, tão riacho, tão arroio, tão regato fluindo mansamente, tranquilamente, humildemente, único e sereno como a verdade."

Pequenas alegrias urbanas (173) -- Meu querido

"Meu querido, já adivinho a cara que você vai fazer, mas você sabe muito bem como eu sou. Acredito em você, no que você diz, mas sou mulher e sei como algumas mulheres são. Por isso, eu lhe peço outra vez, meu querido: cuidado com elas. Sei que você vai ficar aí só três dias, mas eu repito: cuidado com elas. Elas sabem como se aproximar, chegam de mansinho, dão um sorriso, dão outro e, um instantinho depois, já estão com o braço em volta do seu pescoço, se enroscando que nem cobras. E eu não entro nessa história de que as inglesas são frias. Mulher é mulher. São três dias só, mas Deus sabe como vão custar a passar. Três dias!!! Não vai me pedir para ser menos ciumenta, vai? Porque não vai adiantar. Sou ciumenta, sim, não tem jeito. Ciúme é ciúme. Não tem meio ciúme, um terço, um quarto. Sinto muito ciúme, todo o ciúme do mundo, e acho que você devia ter até orgulho disso. Você é meu, todo meu, não consigo pensar de outra forma, e tenho até, sei que tenho, esse ciúme que você chama de retroativo. Sinto ciúme de você desde que você era bebê no berçário. Eu ainda não tinha nascido e já sentia ciúme de você. Por sinal que agora há pouco eu estive na casa da sua mãe e ela me mostrou uma foto sua, com os coleguinhas da quinta série. Uma loirinha feiosa está com a mão no seu braço, toda oferecida. Fiquei uma fera, mas sua mãe me disse que ela está na Espanha faz dez anos e que se deu muito mal: primeiro foi atrás de um cantor espanhol, que um ano mais tarde já estava com outra, e depois casou com um traficante francês preso pela Interpol. Quer saber? Ela que se dane e continue se danando. Já desde menina era assanhada, esperava o quê? Sua mãe não soube me dizer o nome dela. Mas você deve lembrar. Quem é ela, meu querido? Sei que a Inglaterra não é tão perto assim da Espanha e confio em você. Mas, meu querido, me diga, quem é ela, como é o nome dela, meu querido?"

Pequenas alegrias urbanas (172) -- Noturno

Ela disse baixinho "amor", e dessa vez, como se afinal tivesse dito da maneira certa e com o timbre adequado, seu corpo foi possuído por uma fraqueza doce, e, com uma volúpia morna que logo se transformou em chama, ela se abraçou e se apertou, e dançou pela sala, enquanto pelo janelão do apartamento uma brisa capciosa entrava e soprava nos seus ouvidos obscenidades, incitamentos, palavras puras corrompidas pela noite e pela lua, e ela não resistiu nem às obscenidades, nem aos incitamentos, nem às melífluas e malignas palavras, e continuou dançando, e nela havia tanta paixão que foi Melissa, e foi Pablo, e alternou esses nomes, Pablo, Melissa, repetindo-os cada vez com mais entrega, e somente quando o sol chegou, cansada e recompensada por ter sido Melissa e Pablo e por ter dançado tanto, foi para a cama e dormiu como dormem dois namorados depois de uma madrugada de amor.

Pequenas alegrias urbanas (171) -- Os cabelos

A mulher espremeu-se para dentro do elevador lotado e acomodou-se à frente de um homem. Seus cabelos, molhados pela chuva ou talvez guardando ainda algumas gotas do banho matinal, roçaram umidamente o rosto do homem, que, embora tivesse uma formação pragmática e fosse um executivo, foi ungido naquele instante pela poesia e imaginou se ali onde os cabelos haviam roçado não lhe nasceria uma rosa. Enquanto ele devaneava, a mulher desceu num andar que ele não viu se era o quinto, o sexto ou o sétimo, deixando no rosto dele aquele insistente frescor de primavera. Esquecendo-se do compromisso que tinha no décimo andar, por duas horas ele ficou subindo e descendo pelas escadas entre o quinto, o sexto e o sétimo andares, numa frenética busca registrada pelas câmeras de segurança, no fim da qual soube, desconsolado, que jamais sentiria medo da morte, porque já estava morto, depois daquele raro e glorioso momento que jamais se repetiria.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Dark

E, no bastidor sombrio,
Em vez do aplauso implorado,
Em vez da consagração,
O ator ouviu o assobio
Do público exasperado
E gritos de "canastrão".

Pequenas alegrias urbanas (170) -- Significado

Sabia informática e muitas outras coisas, mas depois de um mês o patrão resolveu mandá-la embora, dispensando-a das oito horas diurnas de trabalho, no escritório, e das duas horas noturnas, no motel. Isso a fez queixar-se com a amiga, que lhe recordou haver perguntado desde o início o que tinha visto de bom naquele emprego e principalmente naquele homem, ao que ela respondeu que o trabalho era muito chato e o patrão era mesmo desagradavelmente barrigudo, velho e careca, mas a havia cativado logo no primeiro dia, ao dizer que ela era uma digitadora prestidigitadora, expressão que fascinou também a amiga, embora nenhuma delas conhecesse o significado da segunda palavra.

Futuro

Já se foi o sol, e foi-se
O amor, aquela tolice.
Virão o frio, a velhice,
A morte, com sua foice.

Pequenas alegrias urbanas (169) -- Impulso

E, no entanto, antes de levar um tapa de um, um soco de outro, um pontapé de mais um e de ouvir xingamentos indignadíssimos de quase todos os passageiros do ônibus, ele pôde, como tinha desejado assim que a vira, beijar, e bem no meio da boca cheirosa, a garota de mochila escolar.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Pequenas alegrias urbanas (168) -- A cláusula

Brigavam segunda, quarta e sexta, reconciliavam-se terça, quinta e sábado, e vice-versa. Aos domingos também alternavam brigas e reconciliações - brigas especiais e reconciliações especiais. Quando marcaram o casamento, acertaram uma cláusula não escrita pela qual, se as brigas persistissem, não haveria o surrado dramalhão de malas na porta e despedidas iradas: morariam num apartamento de dois quartos e, assim, dormiriam separados até o dia seguinte, o da reconciliação. Mas, quando se casaram, não precisaram recorrer a cláusula nenhuma. Foram abençoados pelo tédio e jamais houve brigas nem reconciliações.