sábado, 31 de julho de 2010

Lírica (309) - Consulta

Como sempre, o médico lhe perguntou dos rins, do fígado e, depois, como andavam a pressão e o colesterol. Olhou os exames e estranhou que nenhum trouxesse um resultado insatisfatório, porque os olhos do paciente estavam encovados e no seu rosto havia uma tristeza mortal. Perguntou se estava fazendo os exercícios, se vinha se alimentando bem e como dormia. Perguntou outras coisas e, no entanto, se tivesse prestado atenção aos longos suspiros do homem e lhe revistasse os bolsos, abarrotados de poemas, saberia qual era o mal de que padecia.

Lírica (308) - Doce loucura

No início pensou que fosse
Apenas insanidade.
Agora sabe a verdade:
Morrer por amor é doce.

Lírica (307) - Definição

Amor é aquilo que dói,
Que arranha, fere e maltrata,
Amor é aquilo que rói,
Amor é aquilo que mata.

Lírica (306) - Quatro letras

Tinha sido alertado sobre a doçura e o veneno que existem em cada palavra, mas julgou isso apenas mais uma tolice, entre tantas que ouvira. Certa vez, disse a uma mulher uma palavra curta, de quatro letras, e passou o resto da vida sem saber o que dia a dia o atormentava: se a doçura, se o veneno.

Lírica (305) - A palavra

Ela falou com ele por dez minutos e, em cada um deles, por trás do que ia lhe dizendo esteve atocaiada uma palavra que era seu trunfo e que ela usaria no momento certo. Conversaram sobre banalidades, frivolidades e até baboseiras, e a palavra ficou ali, todo o tempo, espreitando atrás dos dentes dela, esperando, ansiosa. No décimo primeiro minuto, ele perguntou - e isso pareceu a ela uma insinuação de fim de conversa - se havia algo em especial que ela quisesse dizer. Era o momento, mas ela e a palavra que estivera atocaiada na língua se acovardaram. Ela respondeu que não, que não havia nada em especial, e os dois se despediram. Desligado o telefone, ela explodiu em lágrimas e disse, afinal, a palavra. Amor, amor, amor, repetiu para a mesa da sala, para as cadeiras, para a cortina e, indo para a sacada do apartamento, continuou a gritar para o trânsito lá embaixo, para o céu, para o mundo: amor, amor, amor.

Lírica (304) - Inaptidão

Não gostava que o amado falasse dela, que proclamasse sua beleza e lhe exaltasse os outros atributos. Estava certa em sua modéstia e certa também por algo que ignorava: ainda não havia nascido um homem com talento capaz de cantar suas virtudes com a excelência e o brilho que elas mereciam. Mas o amado continuava tentando.

Lírica (303) - Timbre

Ao ouvir a voz, aquela voz única que corria como eletricidade pelo seu corpo e arrepiava os pelos de sua alma, ele se sentiu resgatado do reino das trevas e dos mortos e, como por milagre, se viu andando por uma avenida bafejada por um sol esplêndido, igual talvez ao que havia sido o primeiro de todos e brilhara no dia da criação do mundo.

Lírica (302) - Contramão

E cada sol que chegava
Lhe dava a angústia de ver
Que, em vez de o amor trazer,
Mais longe ainda o levava.

Lírica (301) - Qual foi

Qual foi o fim,
Restou o quê
Da nossa história?
Você sem mim,
Eu sem você,
E a vã memória...

Lírica (300) - Teoria

Estão destinados um ao outro por uma inscrição feita no livro do destino, ou talvez por um augúrio de uma bruxa alcoviteira, ou por uma auspiciosa conjunção de astros. Mas, pelo vício da lógica e pela ânsia da comprovação, empenham-se em encontrar a citação do livro, a enunciação do augúrio, ou o minucioso relato da disposição dos astros. Enquanto isso, os frutos do amor pendem sobre suas cabeças, e os dois não os enxergam, porque seus olhos procuram, no chão, um caminho entre os descaminhos da filosofia.

Lírica (299) - No pijama

Toda noite sonhava com a amada. Era sempre o mesmo sonho. Ele a via na rua depois de muitos anos, tantos que, quando se aproximava e se punha à sua frente, ela não o reconhecia. Ele tentava lhe falar, dizer quem era, mas, como acontece nos sonhos, sua voz borbulhava ininteligível nos lábios, quando não morria na garganta. Acordava amaldiçoando-se. Ocorreu-lhe então o estratagema de escrever o próprio nome e deitar-se com ele no pijama. Mostraria o papel quando ela aparecesse. Mas ela nunca mais apareceu. Tanto tempo se passou que agora, quando vai dormir, receia que ela surja no sonho e seja ele que não a reconheça. Por precaução, deita-se com uma foto dela no pijama.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Lírica (298) - Estrela

Sabia que ele estaria pensando nela naquele instante. Fazia uma hora que, na sacada do apartamento, tendo como testemunha a única estrela que a noite nevoenta deixava ver, pensava nele com uma saudade dilacerante e tão aguda que só não chegaria a ele se a morte o houvesse levado. Concentrou-se tão fortemente nisso, em ensinar a saudade a encontrar nos caminhos noturnos a casa e o coração do bem-amado, que seus olhos, estilhaçados de lágrimas, estilhaçaram também a estrela. Foi então que o toque do telefone a avisou de que dera certo o sortilégio. Correu para atendê-lo, mas não havia ninguém na linha. Tinha sido o telefone do vizinho, talvez até o toque de um telefone no filme que o vizinho, insone como ela, via. Voltou para a sacada e bastou-lhe um momento para notar que a estrela não estava mais lá. Procurou concentrar-se de novo, com mais empenho ainda. Precisava contar ao amado que pensara nele com tanta paixão e febre que havia matado uma estrela.

Lírica (297) - Você viu?

Certa manhã, provavelmente em dezembro, mas talvez em janeiro, fevereiro ou quem sabe abril, o homem estava no centro da cidade quando se desenhou no céu um arco-íris tão majestosamente formoso que os jornais e as tevês falaram dele por dois dias. Nunca se havia contemplado um igual. Um cronista escreveu um texto quase tão belo quanto o arco-íris e disse que ninguém que o tivese visto se esqueceria jamais dele. Mas o homem esteve ali, diante da maravilha das maravilhas, e não notou nada. Andava pela rua naquele dia com um arco-íris interior e, se tivesse visto o outro, que tanta admiração viria a causar, decerto proclamaria a excelência do seu, nascido de um amor que ele não seria tolo de comparar com nenhuma beleza real ou imaginária.

Lírica (296) - Amorzinho

Foi um carneirinho,
Foi luz, foi alvura,
Foi meio carinho
E meio ternura,
Morreu, aqui jaz.

Foi lã, foi arminho,
Foi fio, doçura,
Foi tolo, bobinho,
Viveu na cordura,
Morreu, durma em paz.

Lírica (295) - Espelho

Em cada ruga surgida
Ele vê, com desalento,
Que o amor trouxe à sua vida
Menos mel do que tormento.

Lírica (294) - Pássaro

Pensava no seu amado com tanta ternura, e no seu peito havia uma agitação tão doce que lhe ocorreu o pensamento de que era como se tivesse ali um passarinho. Alimentava-o, cuidava para que não sentisse frio, falava com ele e ouvia-o responder com seus pipilos. Soube desde o início que, por ser um pássaro destinado a cantar o amor, era frágil e doentio. Quando veio o inverno, notou que ele ficara ainda mais fraco e que, apesar de todos os seus cuidados, agora redobrados, ele parecia estar morrendo a cada nota que emitia. Passou a pensar com menos intensidade no amado, tentando poupar o pássaro, e o amado se ressentiu tanto que, acusando-a de já não lhe ter amor, disse que tudo estava acabado. Nessa noite, a do rompimento, ela sentiu que, se não exprimisse em uma carta todo o amor que ainda palpitava no seu peito, jamais veria o amado. Entre lágrimas, escreveu talvez os mais belos e pungentes parágrafos que um coração enamorado já conseguiu fazer. Escreveu por uma hora, deixando que as palavras lhe arranhassem o peito antes de sair, para que o amado visse em cada uma a marca da sua dor. Quando pôs o ponto-final, sentiu que seu amor estava salvo e desfrutaria o júbilo e a perenidade. Mas o pássaro dentro dela havia sangrado até a morte.

Lírica (293) - Curtinha

Por ela vivia,
Por ela somente,
Por ela sofria,
Vivia doente,
Por ela morria,
Morria contente.

Lírica (292) - Livre-arbítrio

Tinha resolvido deixar ao destino a solução de sua aflição amorosa. Mas, como o destino se mostrasse lento demais, ou ele aflito em demasia, perguntou-se para o que servia afinal o livre-arbítrio. Pegou então o telefone uma, duas, três vezes - e uma, duas, três vezes desistiu, porque receava embaraçar o que porventura o destino estivesse tramando. Na quarta vez, contudo, digitou o número e viu-se tomado de tamanha comoção e tão desprovido de palavras, até das mais elementares, que foi um alívio ouvir o sinal de linha ocupada. Colocou-se de novo nas mãos do destino, mas surpreendeu-se murmurando uma prece antiga, do seu tempo de menino, na qual imaginava não mais acreditar.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O abatedor de animais

Uma das mais notáveis histórias curtas de Isaac Bashevis Singer (Nobel de Literatura de 1978) é "O abatedor". Nesse conto de onze páginas, Singer discute, quase com a mesma intensidade atingida por Dostoiévski em "Crime e castigo", o problema da existência de Deus e como a resposta, afirmativa ou negativa, afeta a consciência do homem. Na obra de Dostoiévski, o assassino Raskolnikov raciocina que, se não existe Deus, tudo é lícito, argumento retomado por Woody Allen em alguns dos seus mais significativos filmes. A história de "O abatedor" é simples, se assim se pode considerar um enredo cuja força está em um dilema de consciência que atormenta um homem, Yoineh Meir. Destinado a ser rabino, mas preterido, oferecem-lhe as funções de abatedor ritual da cidade. Ele não quer fazer isso. Tem piedade pelos animais, compadece-se com seus sofrimentos, mas é convencido, aos poucos, a resignar-se. O principal argumento que lhe apresentam é o de que Deus disse ao homem que ele deveria matar seus rebanhos e manadas. Não foram ensinados a Moisés, no monte Sinai, os modos de matar e abrir o animal para livrá-lo de impurezas? O corolário desse argumento, com o qual acabam por demover Yoineh Meir de seus impulsos de caridade, é: pode um homem ser mais compassivo que Deus? Yoineh debate-se profundamente com essa questão. O que lhe acontece no final é uma curiosidade que, além da excelência do texto de Singer, constitui um convite ao leitor para, se ainda não conhece o conto, conhecê-lo.
("47 contos de Isaac Bashevis Singer", tradução de José Rubens Siqueira, Companhia das Letras.)

Lírica (291) - Cidadão do mundo

Fazia duas décadas que, entrando num ônibus para São Paulo, ele tinha dito que iria arranjar um emprego e voltaria para se casar. Ela continuava aguardando, cada vez com menos esperança. Mas hoje, certamente porque se completam exatos vinte anos da partida dele, em 29 de julho de 1990, ela teve um pressentimento de que ele afinal chegaria. Em um lugarejo a cinquenta quilômetros dali, onde estava fazia um mês, depois de andar por cidades às quais ninguém acreditava que ele tivesse ido - Nova York, Bruxelas, Buenos Aires, Lima -, ele, recordando-se também da promessa feita vinte anos antes, pensava em voltar. Bastaria pegar um ônibus e uma hora depois estaria na cidadezinha de onde saíra e onde deixara a moça chorando e esperando por ele. Chegou a ir à rodoviária, mas, por ter descoberto em suas andanças que o amor não era bem o que se dizia, entrou num bar, gastou em cerveja o dinheiro da passagem e ficou lembrando com quantas mulheres havia topado em tantos lugares do mundo.

Lírica (290) - Quem

Pode-se o amor aplacar
E até a paixão se acalma,
Mas quem há de mitigar
A angústia que fica na alma?

Lírica (289) - O indesejável

Amou tanto, entregou-se tanto ao amor, sofreu tanto por ele, que começou a ser visto com desconfiança. Só podia ser antiquado ou louco, era fácil ver. Se o deixassem sem uma reprimenda, acabaria certamente se ajoelhando diante da amada no meio da rua ou contratando um aviãozinho para escrever no céu o nome dela. Esses comentários, cada vez mais constantes, eram feitos entre risos. Só assim ele era levado a sério: como se fosse uma piada. Um dia, porém, quando por um arrebatamento amoroso ele chorou (não no sentido figurado, mas vertendo lágrimas, lágrimas de verdade), pressentiram que, além de ridículo, ele poderia ser perigoso: o que aconteceria se o seu comportamento exaltado passasse a atrair adeptos e abalasse tantas décadas de conquistas, que se exprimiam agora em amores maduros, controlados, dentro das melhores normas pessoais e sociais? Fecharam-lhe as portas.

Lírica (288) - Mágica

Era já a quarta noite em que, da primeira fila de assentos da casa de espetáculos, uma linda mulher olhava extasiada para o mágico enquanto ele se exibia. Desde a primeira vez o mágico notara a presença dela, e sua beleza o perturbara tanto que a cada instante ele receava falhar no número que executava. Naquela quarta noite, ao tirar o pombo da cartola, surpreendeu-se ao vê-lo voar e ir pousar suavemente no colo da mulher. Sentiu que o amor possuía artimanhas melhores que as dele. Tinha acabado de pensar nisso quando, ao fitar o rosto da mulher, percebeu que ele estava ainda mais belo, parecendo o de uma daquelas fadas dos contos infantis.

Lírica (287) - Escritor

Não conseguindo pensar em outro assunto que não fosse o seu malogrado amor, passou a escrever somente sobre ele. Escreveu parágrafos, páginas e livros, e mais parágrafos, páginas e livros, durante anos, anos e anos. Talvez porque seu amor fosse único e só a ele interessasse, os originais, não publicados, se apossaram de todo o seu quarto, de sua sala, da casa toda. E agora, no fim da vida, toda manhã ele precisa abrir espaço entre eles para encontrar um cantinho onde possa começar ou continuar a escrever mais um, no qual narrará, como em todos, suas parcas venturas e seus múltiplos infortúnios.

Lírica (286) - Esperança

Da ilha de seu desalento, lembrando-se do que tinha lido em antigos livros, começou a atirar garrafas ao mar. Todo dia lançava uma e esperava. Passaram-se anos e ele não desistia. Certa manhã, ao acordar, viu que chegavam à praia centenas de garrafas. Recolheu-as e, embalado pela esperança, começou a abri-las, frenético. Chegou a noite e, tendo aberto todas, em nenhuma encontrou nada além da mensagem que pusera em cada uma. Respostas não havia. Nessa noite, dormiu um sono de tão profundo cansaço que, quando acordou, já a tarde caminhava para o fim. As garrafas estavam à sua frente e ele pensou em relançá-las todas imediatamente ao mar. Mas isso lhe pareceu tão rude que decidiu retomar o ritual de enviar só uma por dia, como havia feito antes, mas agora pondo no ato uma esperança que imaginou ter faltado na primeira vez.

Lírica (285) - Piquenique

Que insípido seria o amor se vivesse só de flores e frutos colhidos, como alguns tolamente pretendem. As flores e os frutos hão de ser, na história do amor, exceções que, quanto mais raras, mais bem-vindas serão. De tempestades e de perdas, de granizo e geadas, de incertezas, de angústias e de colheitas goradas há de se nutrir o amor para ser amor, uma constante e necessária convulsão, um ranger de dentes e uma explosão de lágrimas - não a monótona paisagem com o céu azul ao fundo, um riacho deslizando indolente e a grama lustrosa onde um casal estende uma toalha com iguarias e, para assegurar sua felicidade, tem a única preocupação de espantar as moscas e as formigas.

Lírica (284) - Colheita

Plantou um afeto grande
E achou que amor colheria.
Porém o que hoje se expande
É só a melancolia.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Lírica (283) - Vampiro

Chorou pelas rosas mortas, pelo amor malogrado, pelas juras não cumpridas. Chorou pelas esperanças desfeitas. Escondeu-se no canto mais escuro e afastado de sua alma. Não comeu, não bebeu, não dormiu. Esperou a morte, mas nisso também foi frustrado. Então um espírito maligno, ou talvez um tardio realismo, foi procurá-lo na sua solidão e, depois disso, ele foi outro. Não poupou as rosas mortas, o amor malogrado, as juras não cumpridas, as esperanças desfeitas. Bebeu-lhes o sangue e renasceu para a vida.

Lírica (282) - Ulisses

Passava as tardes sentado no terraço, diante do jardim, esperando que os livros, que tanta inquietude e frustração haviam plantado no seu espírito, lhe trouxessem alguma calma. Apesar de haver jurado que nunca mais, de vez em quando ainda se aventurava a ler uma história de amor. Mas, no meio de alguma delas, se a memória ameaçava se alvoroçar e lhe vir com dolorosas lembranças, ele imediatamente fechava o livro, concentrava-se e preparava-se para resistir, ainda mais se o vento, começando a se mexer de modo suspeito, ia sussurrar algo à rosa. Quando isso acontecia, ele exagerava na resistência: cerrava os olhos e tapava os ouvidos, embora - depois de passado o risco - lamentasse não se ter deixado levar pelas insinuações mornas da brisa e não se ter aberto inteiro, como sabia que a rosa fizera.

Lírica (281) - Hoje

O sofrimento agora lhe parecia suportável, quase doce, e ele já não tentava impedir a memória amorosa de se insinuar em todas as horas de seus dias e em todos os instantes dos seus sonhos. Ele a estimulava até, incitava-a a se mostrar e, se ainda a recebia com lágrimas, elas agora, ao descer, encontravam logo abaixo um sorriso.

Lírica (280) - As borboletas

Na primeira vez em que a mulher viu as duas borboletas, elas estavam juntas, lado a lado, numa das paredes da sala. Condoída, porque ali não tinham como sobreviver, ela pegou uma folha de papel, conseguiu colocá-las na superfície e, abrindo a porta, sacudiu a folha, esperando que as duas voassem para o jardim. Uma foi para lá, mas a outra se apegou ao papel e só com muito esforço a mulher conseguiu fazê-la desprender-se. Sentiu alívio. Mas, voltando para dentro de casa, dali a alguns minutos a viu no mesmo ponto, na parede. Repetiu a tentativa de resgate, mas, toda vez que imaginava ter restituído a borboleta à companhia da outra e à liberdade, dali a instantes ela reaparecia no mesmo ponto, na sala. A mulher pensou então em algo que porém logo descartou, pela insensatez: ir buscar no jardim a outra borboleta e trazê-la para dentro, onde a primeira estava e, provavelmente, a esperava. Mas, procurando no jardim, não viu borboleta nenhuma e, depois de tentar mais algumas vezes levar a de dentro para fora, esqueceu-se dela. Cinco dias depois, notou uma mancha na parede e, aproximando-se, viu, transformada em pó, confundida com a parede, como se dela fizesse parte, a borboleta. Como tinha ideias românticas, não lhe custou imaginar que, separada da outra, ela havia resolvido morrer por amor.

Lírica (279) - A notícia

Quando soube da morte do amado, sentiu-se feliz por não viver com pai, nem mãe, nem irmãos que tentassem aliviar sua dor. Não queria ser consolada. Lançou-se contra as paredes, ansiando rasgá-las com suas unhas, mordeu as portas, arranhou-as, arranhou-se. Dilacerou tudo ao seu redor, mutilou, destruiu, amarfanhou, picou. Foram horas de desespero. Depois, convencendo-se tristemente de que o mundo continuaria a existir apesar de suas maldições e de seu ímpeto de devastação, pôs um vestido que julgou o mais apropriado para quem não esperava nada mais além da morte e deitou-se. Afundou em pesadelos que geraram outros, e mais outros, e muitos mais. No último deles, antes de acordar, viu-se aliviadamente morta. Não estava, porém, embora, ao sair da cama e se olhar no espelho, visse um rosto de anciã. Resignada a viver, lembrou-se dos peixinhos no aquário e foi levar-lhes comida, mas os três estavam mortos. Foi então ao quintal, para alimentar o passarinho, mas também ele estava morto, rígido como uma pedra. Na frente da casa, ela viu, amontoados, quatro jornais que o entregador havia lançado por entre as grades do portão e soube quantos dias haviam passado depois de receber a notícia.

Lírica (278) - História

Chamou-a de pequetita,
De talismã, de tesouro.
Foi ela todo seu ouro
E toda sua desdita.

Lírica (277) - Triste

De tudo, apenas ficou
Aquilo de que me lembro
E faz de mim o que sou:
Certa manhã de dezembro
E três outras que relembro.
O resto o tempo levou.

Lírica (276) - Raro

Ela custou a sorrir mas, quando o fez, ele abençoou a tristeza que a levava a tornar momentos como aquele tão raros e preciosos.

Lírica (275) - Bela da tarde

Ela o castigou e ele, como se fosse um garoto travesso posto de cara na parede pela mestra, sem poder ver suas pernas e os seios apetecíveis como uvas, viu-os melhor do que nunca, na imaginação, e ficou enredando enredos que celebravam a eterna glória de Sade e Sacher-Masoch.

Lírica (274) - Minutos

De todos, um haverá
Em que, por vontade ou não,
Você de mim lembrará,
Talvez até com emoção.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Lírica (273) - Vezes mil

Passou a ver em todas as mulheres aquela que considerara única. Ele a encontrava agora em todas as ruas, em todas as livrarias, em todos os restaurantes, e isso, que no começo lhe pareceu a suprema ventura, se revelou um tormento: assim como aquela, nenhuma lhe falava, nenhuma parecia vê-lo.

Lírica (272) - Ternura

Pensara abrasado em sexo
E até em devassidão,
Mas foi de amor seu amplexo,
E o beijo, um beijo de irmão.

Lírica (271) - Os olhos

Já na primeira vez em que olhou para os olhos dela, sentiu que estava cativo deles. Apesar do seu plácido azul, os olhos tinham algo que o fez pressentir uma vaga ameaça de calamidade, e seu instinto de sobrevivência lhe deu um recado que ele, porém, nem naquele nem em nenhum outro momento quis ouvir. Adivinhou, subjacente, um azul mais carregado, um azul-ferrete perigoso, de pré-tempestade, e, nas várias vezes em que se viram depois, ele jamais a olhou que não fosse de esguelha. Temia ser devorado pelo animal que imaginava estar oculto atrás da limpidez daquele azul. Na noite em que, sem saber exatamente como, se encontrou com ela num quarto e ela apagou a luz, os piores e os melhores receios dele se confirmaram.

Lírica (270) - Moça morta

No velório da garota que definhou e morreu por amor, as velas se apagaram, sopradas por um vento feroz que destelhou casas e derrubou árvores. Sempre que alguém pegava outra vez os fósforos, o vento voltava com fúria redobrada e foi preciso desistir. De manhã, quando foi sepultar a garota, a família viu na rua milhares de passarinhos mortos e também, embora a cidade ficasse a cem quilômetros do mar, uma infinidade de pequenos peixes que pareciam trazer uma mensagem, interrompida pela morte.

Lírica (269) - Linhas

No primeiro encontro, pegou a mão da mulher e disse que ia fazer a leitura dela. Sentiu, talvez mais pelo calor que ela lhe transmitia do que pelas suas linhas, que o afeto entre os dois prosperaria. Disse isso a ela e teve a ventura de ver recebidas com um sorriso suas palavras. Correu o tempo e o prognóstico se confirmou: o afeto entre os dois cresceu e transformou-se em amor. Tempos depois, quando, alertado por um mau pressentimento, ele lhe tomou novamente as mãos, sentiu frieza nelas. Procurando-lhe os olhos, frios também, viu, nas rugas da testa da amada, que infelizmente continuava sabendo ler os desígnios do destino.

Lírica (268) - Silêncio

De repente se viram sem ter o que dizer. As palavras estavam todas gastas, ou mortas, depois de tantos encontros, desencontros e reencontros. Viviam um daqueles momentos nos quais só restam duas palavras: sim ou não. Ambos sabiam qual delas diriam e, como não suportariam dizê-la, olharam-se pela última vez e foram caminhando, ele para um lado, ela para o outro.

Lírica (267) - Frustração

Não enlouqueceu, como pretendia, nem morreu, como desejou. Continuou apertando contra o peito a aguçada ponta da tristeza, mas, ainda que todo dia a cravasse com mais força e a empurrasse para dentro, sangrava mas não morria. Seus olhos insistiam em permanecer abertos, talvez pela lembrança de felizes manhãs, e o coração batia ainda, como se estivesse num longínquo dia de um antigo calendário.

Lírica (266) - Troféu

Tão fácil ver quem triunfou,
Tão fácil ver quem perdeu...
De nós, quem foi que chorou?
Foi você? Não foi. Fui eu.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Lírica (265) - De uma carta

"Não haverá mais rancor. Talvez, pode ser, persista algum melindre, uma pequena mágoa, algum grito que o amor insatisfeito dará. Ou, quem sabe, nem esse grito, mas só um queixume que, no fundo, será apenas o reconhecimento de que o coração teve muito e, presunçoso, queria mais. O amor, esse déspota não esclarecido, sempre quer mais, porque lhe ensinaram que não querer é abdicar da vida. Haverá - pena que ainda pareça estar longe esse tempo - um dia em que a memória só se nutrirá dos melhores momentos e se mostrará num sorriso terno que compensará todas as amarguras e os dissabores, um sorriso tão doce que nele virão beber os sedentos passarinhos da tarde."

Lírica (264) - Ali, ó

Se lhe jurarem amor
E uma incontida paixão,
Amigo, seja quem for,
Tenha a precaução devida:
Peça uma declaração
Na forma da lei vertida.
Fazendo isso, em frente vá,
Mas, mesmo assim, olhe lá:
Cuidado com o tabelião
E a firma reconhecida.

Lírica (263) - Fantasma

Trair o amor, esquecê-lo,
É bem fácil, minha amada.
Basta que se mude, ao vê-lo,
De passo, rumo ou calçada
E que em vez de enaltecê-lo
Dele não se diga nada
Ou que, para envilecê-lo,
Se diga que é uma piada.

Lírica (262) - Lixa

Em ti, coração de pedra,
Alheio à dor e à tristeza,
Algum sentimento medra,
Além da crua aspereza?

Lírica (261) - Hem?

Que chance, amiga, terá
O amor sincero, que tantos
Problemas traz e trará,
Se existem outros (e quantos!)
Em que só riso haverá
E festas, bailes e cantos?

Lírica (260) - Livre

Como ela previu, não foi muito difícil livrar-se do amor. Bastou-lhe fechar por um mês os ouvidos, os olhos e a alma para ele e para os seus disparatados apelos, e, um dia, quando acordou, lá estava o amor, morto como uma barata num chão de cozinha. Visto de perto, era tão repugnante o aspecto dele, e tão inofensivo lhe parecia agora, que ela se perguntou por que não havia pensado em fazer aquilo muito antes. Podia, enfim, voltar a viver sua vida sem baboseiras e sem contratempos. Pela primeira vez em muito tempo, viu o sol como era, sol apenas, e não a comoveu o canto dos passarinhos. Pegou a agenda e, surpreendentemente, achou que seriam agradáveis todos os compromissos que teria. Sorriu. Estava salva.

Lírica (259) - Consolação

Ele hoje, olhando o passado,
Esquece a atual agonia
E se lembra só de, um dia,
Ter amado, ser amado.

Lírica (258) - Estranheza

Não compreendeu, e talvez
Nunca venha a compreender
Que o que viveu uma vez
Jamais virá a viver.

domingo, 25 de julho de 2010

Lírica (257) - Lição

Saiu do amor igual: tolo,
Sem nada ter ou saber.
Apenas teve um consolo:
Agora sabe sofrer.

Lírica (256) - Só

Só quis o amor para não
Viver em eterno dó.
Quis só ternura, afeição.
Só quis, quis só, está só.

Situações (6) - A piscina

Ela pediu as férias e escolheu um hotel na montanha, como poderia ser um na praia ou até a própria casa. Pouco lhe importava a paisagem, já que estava indo lá para se matar. Não sabia como faria, mas faria, e, quando a assediava alguma dúvida, ela se punha a imaginar o efeito do suicídio no homem que, negando-lhe amor, a condenava ao gesto extremo. No hotel, no quarto dia ainda não tinha decidido como se livraria da vida. Naquela noite, resolveu - porque o impacto sobre o homem amado precisava ser devastador - que acharia uma forma de entrar na piscina depois do jantar, com seu maiô mais bonito, e cortaria os pulsos. Depois do jantar, sua última refeição, ela subiu ao quarto, pôs o maiô, sobre ele um vestido, pegou uma tesoura e caminhou ao encontro do ato que a vingaria. Chegando à borda da piscina, teve uma surpresa: viu, no meio dela, um homem que dava braçadas de campeão. Ao notar a chegada dela, ele se aproximou da beirada e lhe fez um sinal com o indicador sobre os lábios: que ela não o delatasse, porque não era permitido nadar ali naquela hora. Em seguida, num espanhol que a fez acreditar que se tratava de um argentino, convidou-a a nadar com ele. Ela tirou o vestido e mergulhou. Nadaram até a meia-noite e, depois, foram para o quarto dele. Na verdade era chileno, tão belo quanto um homem pode ser, e ela antegozou o efeito das fotos que já no dia seguinte encaminharia a certa pessoa.

Situações (5) - Desejadas traições

Na lanchonete do shopping, a mulher olhava para o casal de jovens namorados sentados à mesa ao lado. Embora tivessem pedido dois sanduíches exatamente iguais, com os mesmos pacotes de batatas fritas, e os mesmos refrigerantes, estavam, entre beijinhos e risadinhas, trocando mordidinhas e goles: vê como o meu está gostoso, vê. Pareciam dois passarinhos tolos acreditando, como ela havia feito tantos anos antes, na perenidade do sol, da juventude e do amor. Tão bobos, tão tolos. Ela sabia que no fundo daquela ingenuidade havia, latentes, o que havia em cada homem e em cada mulher: os germes da inconstância, da infidelidade, do desejo de mudança, da traição. Aquela garota com rosto de anjo não sabia ainda, mas viria a esquecer aquele momento, e a vivê-lo com outro garoto, e com outro homem, e com outro, e com outros. E aquele menino sorridente de cabelo espetado faria o mesmo. A traição, se bem que ele não suspeitasse, já morava também no coração dele. Sem vontade de continuar vendo aquela exasperante troca de beijos, de mordidinhas e de goles, ela se levantou da mesa, lembrando-se de quantas vezes traíra e fora traída e pensando em como seria abençoado se houvesse ainda alguém que a traísse e que ela pudesse trair, alguém que a estivesse esperando no apartamento para o qual ela voltava agora, com frio no corpo e solidão na alma.

Situações (4) - Amor e amizade

Ela gostava dele, mas vagamente. Um dia um pouquinho mais, no dia seguinte um tanto menos, mas gostava. Uma ou duas vezes lhe ocorreu pensar em amor, mas nessas ocasiões um sorriso quase de desdém imediatamente lhe vinha, quando ela se lembrava de certas insignificâncias dele, que nem ele conseguiria vencer nem ela poderia vir a tolerar. Continuou então assim, mantendo com ele um convívio para o qual talvez o adjetivo mais adequado fosse "medíocre". Já ele, quando pensava nela, quando a via, quando lhe falava, pensava, via e falava movido por algo que não poderia ser considerado menos do que amor. Na verdade, amor era pouco. No cérebro dele, os adjetivos que se juntavam à palavra amor eram: grande, maravilhoso, sublime, único. O tempo levou a situação para os extremos: ela passou a bocejar quando o via e já quase nem falava mais com ele. Ele também evitava falar com ela, porque as palavras lhe saíam ininteligíveis, molhadas pelas lágrimas e truncadas pelos soluços que exprimiam um amor tresloucado. Atingiram assim um meio-termo que alguns dizem ser o ideal, na vida: a indiferença dela e a exaltação dele, somadas e depois divididas por dois, resultaram numa nota cinco, pelo critério matemático, e num conceito que, se fosse definido em palavras, seria este: "regular". Como se diz, vão levando.

Situações (3) - Prazer

Ela apareceu numa tarde de domingo. O homem, ao ouvir a campainha, olhou pela fresta da cortina e pensou quem poderia ser aquela garota cujo rosto, porém, lhe parecia familiar. Estava pedindo ajuda à memória quando reparou na mala dela. Que estranho, aquilo. Então se lembrou. Não, não era possível. Mas era. Que maluca! A melhor solução seria não atender. A garota tocou novamente. Ele sentiu vontade de estar morto. Ah, que bom seria. Morto, bem mortinho. Quando a campainha soou pela terceira vez, abriu a porta e andou até o portão. Era um dia de inverno, mas ele estava suando. A garota sorriu e segurou a mala com mais convicção. "Oi", ela cumprimentou, "eu resolvi vir." "É, estou vendo." Depois dessa frase estúpida, ele fez uma pergunta tola: "Você veio me visitar?" "Eu vim morar com você. Você disse que eu podia vir, naquele e-mail,  lembra?" O homem pensou de novo como seria bom estar morto. Precisava dizer alguma coisa, e o que disse foi: "Mas isso foi no ano passado." "Foi, mas como você nunca mais mandou mensagem, eu achei que estava tudo certo. Está, não é?" "Você também não mandou mais nenhuma mensagem. Olhe, a coisa não...", ele começou a dizer, e nesse momento apareceu atrás dele uma mulher de olhos sonolentos: "O que é, amor?" Ele olhou para ela, para a garota, suspirou e viu que só lhe restava apresentar uma à outra. Era o que lhe cabia, já que continuava inconvenientemente vivo. Apontou a garota: "Amor, esta é a Lara, uma amiga." Depois, apontando a mulher, disse: "Lara, esta é a Vilma, minha mu..." Antes que ele acabasse a frase, a garota ergueu um pouco mais a mala e, estendendo a outra mão, sorriu: "Prazer."

sábado, 24 de julho de 2010

Situações (2) - Paula

Nos seus vinte anos de ateliê, o pintor nunca havia encontrado melhor modelo para nus artísticos. Paula era o nome dela, ou pelo menos o que ela lhe tinha dito, como tantas coisas nas quais ele não acreditava muito, porque lhe pareciam disparatadas, como a história de que a avó materna dela posara para Pablo Picasso e lhe dera a ideia para a realização de Guernica. Paula dizia que essa avó havia sido uma tresloucada e que lhe transmitira a sandice. Fosse por hereditariedade ou por escolha, Paula não precisava senão de alguns instantes para exalar essa loucura por todos os poros do seu majestoso corpo. Não ficava quieta nunca, não havia pose que ela mantivesse por mais de dois minutos, dissesse o que dissesse o pintor, ameaçasse ou implorasse. Era comum ela andar nua em círculos pelo ateliê e, às vezes, ir até a janela e, debruçando-se, ficar olhando para baixo, como se tivesse deixado cair a roupa ali, do terceiro andar. O pintor não podia contar com ela. Faltava muito, chegava atrasada, tinha rompantes de ir embora no meio da sessão, e ia, mas o pintor tolerava tudo, porque as telas para as quais ela posava recebiam sempre elogios dos críticos e eram consideradas os mais importantes trabalhos de suas exposições. Adorável e insana Paula. Uma tarde, enquanto ele ia pegar uma cerveja na geladeira, ela sumiu. Ele correu para a janela, receando um suicídio, mas não havia alvoroço nenhum na rua. Saiu então do ateliê e a viu descendo, nua, pela escada. Ele desceu também, aos pulos, mas só a alcançou no térreo. Quando a agarrou e tentou levá-la de volta ao ateliê, foi empurrado e espancado pelo zelador e por um dos porteiros, enquanto uma das moradoras gritava para chamar a polícia e, ao mesmo tempo, externava a opinião de que pintores não eram pessoas sérias.

Situações (1) - Para o seu bem

Ela sugeriu que, para o bem dele, se afastassem um pouco, dessem um tempo. Achava que ele estava apaixonado demais, era uma doença já. "Um tempo? Quanto? Uma semana?", ele perguntou, e ela disse: "Vamos ver." Sairia para uma viagem e, quando voltasse, se ele tivesse conseguido domar sua paixão, reduzindo-a pelo menos à metade, retomariam o caminho do amor (como ela, subliterariamente, disse). Ele ficou quatro anos sem saber onde e como ela estava, sem poder lhe enviar ou receber mensagens. Para o bem dele, como ela dissera. Quando ela voltou, ele estava vivendo fazia quase um ano com uma garota meio bobinha (talvez até mais do que ele), que se arrastava pachorrentamente pela casa, carregando no ventre um filho de três meses. No momento em que reviu a amada, ele se esqueceu da garota e do filho e a abraçou com desespero e esperança. "Parece que você não mudou nada", ela disse, contrariada, e ele se desculpou, atribuindo seu ímpeto ao longo tempo de separação. Falou-lhe da sua nova situação, e ela achou muito conveniente o que acontecera na sua ausência. Via-o agora preparado para encarar com equilíbrio uma relação amorosa (talvez até duas). Não foi assim. Ele se abrasou de novo e a chamou de mesquinha, por nunca se encontrar com ele senão às sextas-feiras à noite, para uma horinha de motel. Numa dessas sextas-feiras ele ficou esperando por ela até a madrugada de sábado. Nunca mais a viu nem ouviu falar dela. Isso foi em 2010. É outro homem hoje, dedicado à mulher e ao filho. A doce, perversa, pérfida e malévola amada, se o visse agora, diria: "Viu? Foi tudo para o seu bem, tolinho. Sempre."

Nova série - Situações

Inicio hoje outra série, depois de alguns meses em que me dediquei aos episódios das Pequenas Alegrias Urbanas e da Lírica. Não que se tenham esgotado as intenções e o estado de espírito que me levaram a escrever as duas séries. Não há um tempo exato para os sentimentos. Eles não são como as roupas, que vestimos de acordo com a ocasião e o efeito que delas pretendemos. Eles nos solicitam, nos exigem a todo instante para o cumprimento de nosso destino e de nosso mais importante exercício, que é o de viver. Vários textos desta nova série - Situações - poderão, quando analisados, ser incluídos mentalmente pelos leitores, imagino, tanto nas Pequenas Alegrias Urbanas quanto na Lírica. Serão frutos do mesmo empenho de procurar exprimir o que sinto - e talvez o que outras pessoas sentem também -, com uma característica da qual já não posso me apartar: uma paixão exacerbada, beirando o piegas, que herdei do sangue polonês e que tem me feito tanto mal na vida, sem melhorar minha literatura.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Lírica (255) - Trova

Se lhe pedem afeição,
Diga sim, não não, querida.
E, se lhe pedem a vida,
Diga também sim, não não.

Lírica (254) - Endereço

Perguntou onde ficava o amor. Ninguém conhecia, mas, tentando ajudá-lo, quiseram saber se ele tinha algum ponto de referência. Ele falou vagamente, mas com um brilho de esperança nos olhos, de um lugar em que havia risos, alegria, bem-aventurança, e onde a dor e o sofrimento não entravam. Um homem velho disse, então: "Ah, o que você está procurando é a felicidade." O rapaz negou: "Estou procurando o amor." O velho pôs a mão no ombro dele: "Vá por mim. Se é um lugar onde é tudo alegria e a dor não entra, você está querendo a felicidade. O amor eu conheço bem, e não é nada disso que você falou. Olhe para estas rugas aqui, está vendo? Eu tenho trinta e cinco anos, rapaz. Só trinta e cinco."

Lírica (253) - Passos

O homem andava pelas ruas. Estava em São Paulo, mas poderia estar em qualquer outra cidade do mundo, ou em nenhuma, porque era somente seu corpo que esperava a abertura do sinal de pedestres, que atravessava para a outra calçada e passava diante das pessoas e das lojas. Estava em São Paulo, porém numa São Paulo que ele percorria não com os olhos, mas com a memória, uma cidade embriagada por um perfume soprado pelo vento como um feitiço leve, na manhã de um remoto dezembro. Estava numa São Paulo que vivia só nas suas recordações doloridas, na reconstituição de um dia tão assombrosamente singular que às vezes ele se perguntava se não tinha sido apenas o eco de um sonho. Andava de cabeça baixa, porque sabia que, depois da célebre manhã dezembrina, vinha caminhando na direção oposta àquela onde encontrara sua felicidade ou pelo menos a mais generosa insinuação do seu destino. Andava e não ouvia seus passos, não porque estivessem mortos, mas porque ele se recusava a compactuar com o som de uma caminhada que, levando-o aonde o levasse, não o levaria jamais ao único lugar, agora perdido para sempre na névoa, e ao único e irreconquistável tempo no qual ele desejaria estar.

Lírica (252) - Possibilidade

Escreveu o final da mensagem: "E, se alguma coisa for ainda possível, peço que você pense nisso com carinho." Ia apertar a tecla de enviar, mas resolveu pôr ainda uma frase: "Acho que não precisaria esclarecer, porque você sabe o que sinto, mas, enfim, quando digo se alguma coisa ainda é possível, quero perguntar se a vida (a minha vida) ainda é possível."

Lírica (251) - Sabedoria

Quando menino, tinha muito medo da Morte. Aterrorizava-se ao pensar quando ela viria, de que forma, e sentia horror ainda maior ao imaginar como ela seria, se ele a reconheceria logo ou se ela o enganaria, apresentando-se com uma face gentil, para apunhalá-lo só na décima segunda ou na décima terceira esquina. Os adultos, que sempre sabiam de tudo, lhe diziam que não se preocupasse, porque a morte viria quando viesse, e que ele cuidasse da vida porque, esta sim, era traiçoeira. Ontem, andando por uma rua para a qual pareciam ter ido todos os habitantes da cidade - e mais uma vez, como em todos os outros dias, não vendo a mulher amada -, ele entendeu o que os adultos lhe tinham dito: difícil era a vida, terrível era sentir-se morto no meio do burburinho e da agitação, horrível era saber que a Morte não precisaria iludi-lo antes de o acompanhar até a décima segunda ou a décima terceira esquina e apunhalá-lo.

Lírica (250) - Sofá

Agora aquela alegria
Contigo não mais se deita,
E de manhã quem te espreita
É o sol da melancolia.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Lírica (249) - Devoção

Toda vez que ela surgia
O homem a olhava extasiado
E, sem temer o pecado,
Pensava em epifania.

Lírica (248) - www

Vergonha não tinha mais,
Fazia o que achava bom.
Anúncios punha em jornais
E até em carros de som,
E nas paredes colava
E na tevê divulgava
E na internet, nos portais:
Amor feliz ponto com.

Lírica (247) - Você

E todas as horas, e
Todos os dias, e tudo,
Até o silêncio, mudo,
Fala de você, você.

Lírica (246) - Definição

Carinhos, beijos, afagos,
E rimas em cor e flor,
Tudo bom, tudo bem,
Sem que se esqueça, porém,
Que amor que não causa estragos
É tudo, menos amor.

Lírica (245) - Catástrofe

Gostava de exageros, não fazia questão de evitá-los. Todos os seus sentimentos eram levados a extremos. Tudo para ele era enorme, imenso, colossal. Não economizava adjetivos para exprimir grandezas. Teve um amor que chamou inicialmente de maravilhosa viagem num transatlântico por um mar azul. Quando esse amor chegou ao fim, ele naturalmente falou em naufrágio e catástrofe. Mas ninguém o levou a sério.

Lírica (244) - Querer ou não

Não queria mais pensar no amor - não o amor amplo, vago e difuso, mas aquele específico, que tinha olhos de mel e uma trança escandinava e cujo nome, para maior sobressalto do seu coração, transpunha um monte antes de descer suave pela língua: Tamíris. Não queria mais pensar em Tamíris, porque Tamíris jamais pensava nele. Às vezes conseguia, e, nesses exercícios de não querer, descobriu algo que, se fosse dado a filosofias, talvez lhe parecesse um princípio, quem sabe até uma máxima: mesmo para não querer é preciso querer. E, quando conseguia ficar, um minuto que fosse, sem pensar em Tamíris, cavava-se no seu peito um vazio que um dia o levou a uma dúvida que, se estivesse na boca de um personagem shakespeariano, soaria pomposa, apesar de sua simplicidade: querer ou não querer?

Lírica (243) - Um advérbio

No bloquinho anotou tudo, todos os júbilos e todos os sofrimentos do seu amor. Quando o amor terminou, ele fez a última anotação e só teve ânimo para pegar o bloquinho meses depois. Espantou-se ao perceber que a primeira frase da primeira página - "Hoje conheci Luana" - coincidia com a última frase da última página, excetuando-se um advérbio: "Hoje conheci verdadeiramente Luana."

Lírica (242) - Quatro palavras

Falaram-se, conversaram, cem vezes, mil, mil e cem, e nunca se disseram as quatro palavras essenciais e decisivas, e no entanto tão simples: eu preciso de você.

Lírica (241) - O cão

Escolheu um banco bem no centro da praça, onde não poderia deixar de ser visto. Sentou-se. Não precisou concentrar-se, porque estava interpretando o próprio papel. A tristeza o havia marcado tão profundamente que, ele sabia, não precisava fazer nada para realçá-la. Não se exibiu, nem sequer se expôs. Ficou sentado, apenas. Foram três horas, que seriam penosas se ele já não estivesse acostumado àquilo, que fazia semanas vinha sendo sua última esperança. Essa tarde foi um pouco melhor do que as anteriores. Seus olhos atraíram um cachorro necessitado de afeto como ele, porém talvez nem tanto, porque, depois de cheirá-lo e olhá-lo, andou capengando para o outro extremo do parque.

Lírica (240) - Defeito

Achou bela a mulher, tão bela que, creditando isso aos apelos de sua solidão e sentindo certa desconfiança, desejou que ela exibisse um defeito qualquer, como tirar um fiapo de carne de um canino ou enfiar seu inquieto indicador no nariz.

Lírica (239) - Zíper

Às vezes, pensava em pedir a Deus que lhe concedesse o dom da cegueira, para que pudesse isentar-se de ver certas manhãs com as quais vinham recordações tão gratas e tão insuportáveis que ele cerrava os olhos com a determinação e a esperança que usaria para fechar definitivamente um zíper.

Lírica (238) - Céu e inferno

Talvez um dia merecesse o amor. Enquanto esse momento não chegava, escrevia versos e rezava rezas contaminadas por uma inevitável luxúria e, possivelmente por não acreditar nelas, praguejava também, e blasfemava, e caluniava santos, e lançava maldições, esperando que o Diabo o ouvisse e, interessando-se por sua alma sofrida e pecadora, lhe oferecesse o que Deus tão obstinadamente lhe negava.

Lírica (237) - Ligação

Pensando na tecnologia e nos seus milagres, ocorreu-lhe um exemplo simples: como poderia ser resgatado do reino dos mortos, onde fazia semanas se sentia, por um telefonema.

Lírica (236) - Quem sabe

A mulher tinha nádegas extravagantes e uma gargalhada tão notável quanto elas, mas ele se persuadiu a ignorar isso, porque se sentia só e porque talvez acabasse descobrindo nela alguma virtude que pudesse catalogar entre as espirituais - quem sabe os olhos, nos quais ainda não havia se detido, quem sabe algum modo especial de pronunciar uma palavra que ainda não tinha sido dita na conversa.

Lírica (235) - Sobrevivente

Na parte mais escura e remota de sua solidão, havia algo que de vez em quando ainda se mexia. Não era a esperança, mas o que restara dela.

Lírica (234) - Sem nome

Do canto mais profundo da alma ele puxou um sentimento que não era o amor - porque o amor ele conhecia, e o amor não tinha aquela pungência toda nem aquela força. Enquanto tentava nomear esse sentimento, para passá-lo pelo telefone à bem-amada e talvez assim reconquistá-la, o ciumento amor o assediou de tal forma, reivindicou tal supremacia sobre os outros sentimentos, que, com a mão no celular, ele já não sabia o que estava sentindo além da dor que tinha voltado a açoitá-lo.

Lírica (233) - A palavrinha

Ela estaria andando por uma avenida ensolarada, distraída das coisas do mundo, e ele, tendo-a visto afinal depois de mil noites de insônia, tocaria levemente seu braço e, quando os olhos se encontrassem, não saberia o que falar, mas ela lhe diria a mais desejada e doce das palavras: oi.

Lírica (232) - A esmo

No sofá, imaginando onde ela poderia estar, ele caminhou com o pensamento por tantas ruas, avenidas, praças, restaurantes e livrarias, que uma hora depois sentiu cansaço nas pernas, dor nos pés e, tirando os sapatos, com seus olhos molhados por chuva nenhuma foi procurar um chinelo.

Lírica (231) - Dádiva

Sentou-se embaixo de uma árvore e, embora isso ainda o magoasse muito, não conseguiu eximir-se de pensar no amor em que recentemente havia naufragado. Talvez só ele tenha sentido como o ar se impregnou de um cheiro de açúcar e como, daquela árvore cujo nome ele desconhecia, se desprendeu uma pequena flor que ele acolheu no colo.

Lírica (230) - Intelectuais

Conheceram-se numa tarde, na sala de leitura de uma biblioteca - ele atrás de substanciosas literaturas, ela em busca de excelsas filosofias. Conversaram muito nesse dia, embora a ele não encantassem os Kants e Kierkegaards dela e a ela não dissessem nada os Flauberts e Nabokovs dele. O diálogo foi, por isso, como a leitura de uma peça em que cada um dos atores, educado, espera acabar a fala do outro para entrar. A situação mudou no terceiro dia, depois que ele notou como os lábios dela se umedeciam convidativamente quando pronunciavam expressões como causas primeiras e imperativo categórico. A conversa teve jeito de conversa nesse dia e também no seguinte, quando ela, embora fosse uma tarde fria, apareceu com uma minissaia. A partir daí, os dois esqueceram um pouco as normas de construção de um texto literário e os cânones da filosofia. Tudo caminhou bem, até o dia em que ela, dizendo ter lido um livro de Dostoiévski, comentou que o achara fraquinho. Ele, para revidar, embora nunca tivesse lido um trecho sequer de Sartre, proclamou a opinião de um amigo antiexistencialista: a de que Sartre não era nem filósofo nem escritor. Depois desse incidente, analisando bem tudo, ele já não achava tão soberbos os lábios nem as pernas dela, grossas demais para os refinamentos exigidos pela filosofia. Continuaram frequentando a biblioteca, cada um agora em uma mesa, e foram infelizes para sempre, como costumam ser os que se deixam seduzir ou pela vã literatura ou pela árida filosofia.

Lírica (229) - Sofrimento

Não me pergunte o motivo,
Tão fácil de adivinhar:
Bom tempo foi quando amar
Era verbo intransitivo.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Lírica (228) - Aspiração

Queria só descansar,
Nada mais que isso: dormir,
Esquecer o amor, sumir,
No sono fundo afundar.

Lírica (227) - Coadjuvante

Sentado na praça com o livro aberto, ouviu, vinda da alameda, uma conversa entremeada de risos, uma algazarra de vozes femininas, e baixou ainda mais os olhos, como se alguma parte do texto pudesse fugir à sua compreensão. Ficou assim, sem ler uma palavra, sem ver uma vírgula, esperando que o alegre vozerio passasse e ele pudesse de novo olhar à sua volta, sem enfrentar o risco de ser reconhecido pelo amor e escolhido outra vez por ele para entrar em mais um de seus enredos, nos quais acabava representando sempre papel de coadjuvante - sem brilho e sem glória.

Lírica (226) - Ainda

Ele gostaria, ah, como gostaria, que houvesse ainda um trecho de caminho, mesmo que acidentado, e ele pudesse uma vez mais sentir o aroma de uma flor, e talvez colhê-la, antes que lhe coubessem o olor que já não poderia aspirar e as flores que, por piedade, num dia cada vez mais próximo, colocariam em seu peito imóvel.

Lírica (225) - História médica

Estudaram no mesmo colégio e em sua capela fizeram a primeira comunhão. Dos vinte aos vinte e sete anos, viveram em cidades separadas por mais de duzentos quilômetros. Reencontraram-se por acaso - ou pela sutil intromissão do destino - numa reunião nacional de médicos, no Rio, e reataram a amizade. Tudo terminaria aí, não fosse uma nova reunião de médicos no ano seguinte, em Fortaleza. Os contatos se tornaram frequentes, mensagens e telefonemas foram trocados, além de - com a mútua e simpática tentativa de tornarem menos indecifráveis suas letras de médico - meia dúzia de cartas. Conseguiram passar um mês de férias numa pousada em Goiás e, logo depois, resolveram unir-se para sempre. Moram hoje na mesma cidade e têm um consultório juntos: dr. Frederico e dr. Renato, endocrinologistas.

Lírica (224) - A amiga

Disse uma vez à amiga, e não estava mentindo, que passava todas as horas de todos os seus dias e todos os dias de sua vida pensando nela. Isso foi há algum tempo. Como às vezes ocorre com os amores, mesmo com os maiores, esse, o deles, teve um desvio, depois outro, e de repente estava completamente fora do rumo. As culpas não tiveram mais desculpas, os erros não foram mais tolerados e os desentendimentos não encontraram mais compreensão. Hoje, se fosse ouvir a voz do antigo orgulho - esse ressentido sentimento que plantou entre eles a primeira discórdia -, ele telefonaria e diria que não pensa mais nela todas as horas de todos os seus dias e todos os dias de sua vida. Mas estaria mentindo. Pensa, continua pensando, embora sua vida já não mereça esse nome, a não ser pela recordação da extinta felicidade.

Lírica (223) - Chama

Às vezes julga-se tolo por ferir, ferir e ferir, sempre, sempre e sempre, a mesma tecla, aquela que incita todos os violinos de sua alma a tocar a canção do arrependimento e do desespero. Mas que outra tecla ele ferirá, se essa é a única que o faz sentir-se vivo e a única que ainda lhe aquece o corpo sofrido, embora com uma chama já morta, que arde só na sua exaltada recordação?

Lírica (222) - Imortal

O amor não morre. O amor vive
Em nós, para nós, por nós,
E a qualquer dor sobrevive
Até mesmo à mais atroz.

O amor não morre. Se o seu
Amor parece finado,
Você, não ele, morreu
E deve ser enterrado.

Lírica (221) - Mensagem

Querendo mandar uma rosa à amada, pediu a um menino que a levasse. Achando, depois, que era pobre demais o presente, lastimou-se por não ter pensado em algo mais belo, até receber, da amada, a notícia de que a rosa havia chegado, trazida por um reverente pássaro branco que, depois de fazer a entrega, ainda a cumprimentou com um gracioso canto ao levantar voo rumo ao céu sem nuvens.

Lírica (220) - Pecado

Não amará jamais, ele se diz todo dia, às vezes diante do espelho, mas, assim que renova o juramento, sente no peito uma pontada tão funda que o perjúrio lhe parece a única satisfação e a única resposta que pode dar à vida.

Lírica (219) - Felicidade

Esteve perto, chegou a tocá-lo, mas apesar disso o fruto lhe pareceu inalcançável, e ele, recolhendo a mão, deixou o fruto na árvore. A partir desse dia, caminhou para longe, para a outra extremidade do mundo, e conseguiria talvez a bênção do esquecimento se na mão não houvesse ficado o aroma do fruto e, com ele, a aflição que o seguirá sempre, por mais que ande para o lado oposto ao daquele onde esteve sua possível felicidade.

Lírica (218) - Orador

Uma tarde, ele apareceu na esquina e começou a gesticular e falar. Pensou-se que era mais um dos que de vez em quando, numa cidade grande, se põem a debater causas perdidas. Entre várias hipóteses, disseram que representava os sem-teto, ou os ambientalistas, ou os defensores dos direitos humanos, mas a única palavra que se conseguia ouvir de sua algaravia, abafada pelo fragor do trânsito, era amor. Pela idade presumida, chegou a julgar-se que ele fosse um remanescente da época do power-flower, gritando ainda slogans tantas décadas depois. Dia após dia, com chuva, sol, calor ou frio, ele estava ali na esquina, a qualquer hora, como se fosse os trezentos e cinquenta de Mário de Andrade, falando sem parar palavras das quais a única inteligível continuava sendo amor. Um dia, alguém, um forasteiro, depois de olhar bem para o homem, disse aos que por ali passavam que o conhecia e garantiu que ele não tinha mais de trinta anos, devendo-se seu desvario, suas rugas e seus olhos tristes a uma desafortunada experiência que sofrera, e que se resumia toda naquela palavra que ele continuava repetindo, no meio de tantas incompreensíveis: amor, amor, amor.

Lírica (217) - Sina

Carrega as cinzas de um amor extinto. Por isso, quando caminha, é acompanhado só por aves que não cantam nunca e por uma nuvem que lhe veda a visão do sol.

Lírica (216) - Meio-termo

Encararam o amor ora com alegre desleixo, como se fosse um brinquedo de criança, ora com a dramaticidade forçada de uma companhia teatral amadora. E, embora aí talvez estivesse o caminho certo, jamais adotaram o meio-termo, porque lhes parecia banal demais.

Lírica (215) - Requiescat

Morto o amor, todos os dias, agora, passam despercebidos e inúteis como aqueles que se sucedem à inscrição definitiva feita numa lápide.

Lírica (214) - Nos autos

Pensam que sabem o motivo, alegam que sabem, são capazes de jurar que sabem, mas que importa isso, de que valem as justificativas, os argumentos, as mais concatenadas explicações, quando aquilo de que se trata é o fim de um amor?

Lírica (213) - A árvore

Fizeram tudo certo. Plantaram o amor, cultivaram-no com o que tinham de melhor, viram-no crescer e florescer. Porém, quando os bem-te-vis já haviam incluído a majestosa árvore no itinerário dos seus barulhentos voos, repentinamente os dois se tomaram de um amargor inexplicado, e cada galho, cada ramo, cada flor, todos morrendo aos poucos, nunca mais receberam a visita de um passarinho sequer, nem mesmo daqueles mais cansados, aos quais agradaria ao menos o breve conforto de uma sombra.

Lírica (212) - Ponto-final

Imaginou que, tendo sido posto um ponto-final em sua história de amor, estivesse tudo terminado. Mas o sol insistia em procurá-lo todas as manhãs, e chegava com o esplendor da melhor época, e o vento que havia esperado por ele durante a madrugada lhe soprava novas sugestões quando ele abria a janela, e, substituindo primeiro o ponto-final por uma vírgula, foi acrescentando trechos, parágrafos, páginas, que lhe mostravam a história como ele a deveria ter vivido e escrito.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Lírica (211) - Vela

Devia a ela - e lhe agradecia por isso - a agonia lenta que o estrangulava quando vinha o crepúsculo, as recordações que escavavam sua alma e subiam à tona com lágrimas, as lembranças e relembranças dos gestos dela, da voz, dos sorrisos, dos rabiscos deixados numa toalha de restaurante, de uma foto prometida e não dada, e lhe devia também a dor que o roía por dentro e a devastação que o sofrimento desenhava sem piedade no seu rosto. Devia a ela tudo isso - e lhe agradecia -, porque era ainda uma forma, a única e a melhor que ele conhecia, de se sentir vivo, porque ligado a ela, embora essa vida fosse como a luz indecisa de uma vela colocada no topo de um morro numa noite de chuva.

Lírica (210) - Resignação

Palavras o vento leva, quando não as leva o tempo. Ele sabia disso, ninguém precisava lhe dizer, mas diziam, e zombavam porque ele, de todo o intenso amor ao qual se entregara, havia ficado apenas com elas. Ele sorria tristemente e perguntava, mais a si mesmo do que aos outros: e o amor, o vento não leva, e o amor, o tempo não levou?

Lírica (209) - Cinamomos

Embora mereça essa honra, e tantas outras, não choram por ela os cinamomos celebrizados por Alphonsus de Guimaraens. Chora por ela um poeta obscuro, desses que nasceram para sentir o amor como ninguém, para sofrê-lo na alma, para morrer por ele, mas incapazes de exprimi-lo como só os grandes sabem. Seus versos, embora regados com lágrimas e sangue e lançados apaixonadamente à estrela da sua vida - ela -, estão sempre, assim como o voo das moscas, ao alcance de qualquer tapa ou injúria, e a rosa eterna com que ele tenta celebrar a amada não passa de uma flor murcha que nenhum vaso aceitaria.

Lírica (208) - Testemunha

Alguém te viu nesse dia
Em que, no café sentado,
Pensei notar ao meu lado
Um anjo que refulgia.

Lírica (207) - Exótica

Assim como o cabelo dos mortos, a lembrança de um finado amor continua crescendo depois do adeus e, como uma flor exótica, insiste em assomar à superfície da terra santificada.

Lírica (206) - Sonho

Porém nos livros buscava
Do amor o terno tesouro,
Aquela prata, aquele ouro
Que a vida lhe recusava.

Lírica (205) - Consolo

Estando muito tempo sem ouvir a voz querida, ocorreu-lhe o alívio filosófico de pensar que tudo no fim tende ao silêncio, mas o coração se rebelou de tal forma e começou a bater tão aflito e com tamanho alarido que ele precisou mudar de opinião imediatamente.

Lírica (204) - Onde

Mas onde te esconderás
Quando na rua gritando
Ele surgir e, chorando,
Quiser saber onde estás?

Lírica (203) - Recaída

No terceiro dia de tratamento, pressentindo que talvez acabasse curado da depressão e, com ela, do seu mal de amor, ele se recusou terminantemente a continuar tomando a medicação e se entregou a tão intensa crise de soluços, suspiros e lágrimas que o doutor recomendou à família a constituição de uma junta médica.

Lírica (202) - Cálculo

Poderia estar esperando por ela, pensou, e isso o fez ficar atento à entrada do centro cultural, como se a qualquer instante ela fosse aparecer ali. Se tivesse formação matemática, chegaria à conclusão de que havia apenas uma, entre um milhão ou dois milhões de probabilidades, de que ela viesse. Mas, como não sabia fazer cálculos, ficou olhando para a entrada, olhando, olhando, enquanto o sol descia até desaparecer, e a noite, chegando, vinha lhe avisar que não havia mais esperança nenhuma.

Lírica (201) - Naufrágios

Sentou-se no canto mais afastado da praça e abriu o livro, uma novela em que um polaco inglês narrava turbulentas viagens marítimas que já nenhum deles, nem o autor nem o leitor, conseguiria realizar. Empolgou-se com as peripécias e imaginou-se jovem, curando romanticamente as desgraças do amor num navio qualquer, enfrentando as tempestades e os oceanos. Duas horas depois, sentindo-se velho outra vez, saiu do canto afastado e buscou o centro da praça, onde, com o livro fechado, se pôs a olhar para todos os lados, à procura de vida, qualquer vida, tivesse ela olhos verdes ou azuis.

Lírica (200) - O fruto

Tão empenhados estiveram em descobrir quem amava mais, quem amava menos, tanto se dilaceraram e desavieram-se tanto que o fruto do amor, cansado de se mostrar maduro, escorregou da árvore e se espatifou no chão.

Lírica (199) - Metrô

Esquecido pela mulher amada, estava tão triste que não notou uns olhos que o fitaram por alguns momentos e com os quais ele poderia compartilhar algo - se não o amor, ao menos seu infortúnio e suas lágrimas.

Lírica (198) - Sol

Pelo telefone, mandou à amada o sol da manhã, desculpando-se por só ter aquele, melancólico e frio. Na manhã seguinte, acordou com um sol tão brilhante e quente que se apressou em pegar o telefone.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Desculpas

Tenho certo pejo às vezes - e deveria tê-lo com maior frequência - quando coloco aqui algumas pieguices minhas. Durante grande parte da vida, meu desejo foi - contra as normas da melhor literatura - ser piegas ao ponto máximo e fazer chorar. Com o blog, venho conseguindo fazer pelo menos um leitor chorar. Esse leitor sou eu, quase sempre exacerbado em meus sentimentos e em meu tosco lirismo - e, quanto mais exacerbado e lírico, mais distante da nobreza literária. Não chegarei ao extremo de dizer que talvez a poesia esteja hoje tão fora da vida das pessoas exatamente por não exprimir o que elas gostariam de ver a poesia celebrar. Mas imagino que haja algo de verdadeiro nisto. A chamada poesia ingênua, aquela que - uso aqui um lugar-comum - fala diretamente à alma, está fora do mercado. E não há mais, como antigamente havia, quem suspire com versinhos de amor, porque eles já não se encontram nas livrarias, a não ser em edições antigas, em antologias. Admito - já que isto aqui para mim não raramente é uma espécie de divã psicanalítico - que tenho saudades de Casimiro de Abreu (cruzes, que confissão) e momentos há em que me envergonho de ter execrado J.G. de Araújo Jorge, que era tido como "o poeta das datilógrafas" (havia datilógrafas naquele tempo!). Quem escreverá hoje para as digitadoras? Não tenho ilusão quanto à qualidade das quadrinhas que venho postando. Elas têm cumprido, e só isso, o papel de - e aqui vai outro lugar-comum - me lavar a alma. O ideal seria que eu fizesse isso de tal forma que os eventuais leitores se beneficiassem com algo ao menos semelhante a uma manifestação artística. Por não ser esse o caso é que peço desculpas a vocês.

Lírica (197) - Nefelibata

Não acreditaram, e de asno
O povo inteiro o chamou
Quando ele o céu apontou.
Zombaram e riram, mas no
Alto uma nuvem dourada
Mostrava o nome da amada.

Lírica (196) - Parede

Aquilo que o desgraçou
Foi, já no primeiro dia,
Que ela não acreditou
Naquilo que ele sentia.

Lírica (184) - Prêt-à-porter

Às vezes tão triste é a vida
Que, se você tiver sorte,
Chega, justa e sob medida,
A doce bênção da morte.

Lírica (183) - Não leia isto

Não leia isto, por favor.
Não vale a pena, me creia.
Ainda há, me diga, quem leia
Tolos queixumes de amor?

Lírica (182) - Castigo

Depois de ouvir tua voz
E sua rouca magia,
Por que eu - me diz - merecia
Um silêncio tão atroz?

Lírica (181) - Barroco

Porém depois da primícia,
Do agudo e extremo dulçor,
A incomparável letícia
Se foi, e veio o amargor.

Lírica (180) - Tragicômico

Soube-se velho no dia
Em que sua jovem amante
Depois da doce folia
Lhe ofereceu um calmante.

Lírica (179) - Exagerado

Perdeu totalmente a fé
No dia em que, magoada,
Sua sensível amada
Lhe recusou um café.

Lírica (178) - Pessoa

Como lhe convinha certo ar de poeta romântico, esmerou-se em amar e em sofrer por amor. Celebrou as flores - e, mais do que elas, os espinhos -, assumiu a palidez da lua e doeu-se por todas as dores. Estas eram imaginárias no início, ou assim lhe pareceram, mas no dia em que se pôs na sacada do apartamento e pela primeira vez premeditou um voo, soube que era como aquele poeta de quem Fernando Pessoa disse que fingia tão completamente que fingia ser dor a dor que realmente sentia.

Lírica (177) - No deserto

Chorei, clamei, esperei,
Gritei ao vento: "Onde estás?"
Tudo inútil. Hoje sei
Que nunca mais voltarás.

Lírica (176) - Na melhor das hipóteses

Só restará dessa história,
Que tão infeliz me fez,
Alguma foto talvez,
Quem sabe alguma memória.

Lírica (175) - O rio

Todos os dias, quando o homem acordava, o rio já estava deslizando diante dele - devagar, para que seus olhos pudessem apreciá-lo. Ele, enquanto dava os últimos bocejos, olhava para o rio, às vezes também para o sol, rapidamente, e se esquecia logo dos dois, solicitado pela vida. Saía e quando voltava, à noite, o rio pedia à lua e às estrelas que brilhassem sobre suas águas, esperando que assim o homem olhasse para ele, mas o homem não olhava, nem para ele, nem para a lua, nem para as estrelas. Enquanto o homem, um daqueles que se consideram sempre lesados pela sorte, dormia, o rio compunha uma cantiga para embalá-lo e consolá-lo dos infortúnios. Passaram-se anos assim, tempo em que o homem, solitário, definhou, porque a ele não tinha sido dada nem sequer a ventura de um amor. No entanto, assim como o rio, o amor por anos e anos havia passado diariamente diante dos seus olhos, e se mostrado, e cantado enquanto ele dormia.

domingo, 18 de julho de 2010

Lírica (174) - Sinopse

Agora já não importa
Se foi pelos erros meus
Ou pelos enganos teus.
A bela história está morta.

Acabou a luz, a festa,
Estão recolhendo tudo.
Não digo nada, estou mudo,
Saudade é só o que resta.

Lírica (173) - Distraído

Fazia tempo que vinha
Morrendo e não percebia.
Quando o enterraram, tinha
Morrido, mas não sabia.

Lírica (172) - Pintura

Seu olhar começou pelos cabelos e acompanhou o modo como escorriam dourados e como, no meio da nuca, com medo talvez do abismo, se encolheram abruptamente, formando uma graciosa curva com as pontas para cima. E, tendo chegado à metade da nuca, os olhos desceram por ela mais um pouco, percorrendo as costas, e alcançaram os quadris, por onde se espraiaram e, com lenta atenção, se fixaram por um instante nas coxas recém-saídas do banho e, depois de um salto suave sobre a parte de trás dos joelhos, deslizaram com leve susto pelas panturrilhas e chegaram aos tornozelos, onde a toalha enxugava os últimos pingos, para que os pés pudessem ir pegar o roupão que, impaciente como o homem no quarto, esperava.

Lírica (171) - Desvarios

Fazia cinco anos que ele não recebia uma notícia dela e nem mesmo poderia dizer se ela estava viva, se não fossem os desvarios dos seus sentidos, que a viam a todo instante, e a tocavam, e se embriagavam com o perfume adocicado dos seus cabelos e provavam o batom dos seus lábios. Cinco anos, mais dois meses, e vários dias, e algumas horas e minutos, e os segundos que seu cérebro registrava, sem perder um sequer. Todo esse tempo passara, mas ele acreditava ainda que, num momento qualquer, que ele esperava sempre que fosse o seguinte, ela se lembrasse de certa manhã e se sentisse em comunhão com ele, como então estivera. Para cumprir a sua parte, não havia um segundo de sua vida em que ele não estivesse pensando nela, no seu sorriso, na voz grave e nos olhos que o haviam hipnotizado naquela distante manhã.

Lírica (170) - Neve

Entrando na etapa da vida que os otimistas chamam de outono e que ele julgava mais adequado definir como inverno, a ocupação dos seus dias - porque nada mais de importante lhe acontecia - era o exercício da recordação. Punha-se a vagar pela infância, pela adolescência e pelos anos que os otimistas classificavam como fase de maturidade e para os quais ele tinha outras palavras: estágio de apodrecimento. Sempre que se dedicava a essas reminiscências, era subjugado por uma agudíssima tristeza. Nesses momentos, por um fiapo de ternura por si mesmo ou talvez por um resto do necessário espírito de sobrevivência, pensava num antigo amor. Seus olhos então se tornavam menos mortiços, um traço de sorriso animava seus lábios e, na sua solidão, antes de tomar o chá, pôr o pijama e se entregar aos pesadelos, ele murmurava: "Fui amado, fui amado..."

Lírica (169) - Perjúrio

Acreditou que ninguém pudesse jamais ter sofrido tanto quanto ele por amor e, porque essa crença se transformou na obsessão de sua vida, ele a cultivou como a mais rara das flores. Viveu por ela e para ela, e em nada mais pensou e nada mais fez que não fosse movido por ela. Mirrou, definhou e, enquanto mirrava e definhava, a flor crescia soberba em sua alma e dia a dia lhe reforçava a convicção de ser a única no mundo. Mas sempre há, no caminho dos que acreditam, os risos de escárnio e as chicotadas da zombaria. Começaram a chamá-lo de mimalho, de tolo, de piegas, e persistiram tanto em escarnecê-lo que ele fraquejou em sua crença e, por fim, a renegou. Enquanto a flor de seu sofrimento murchava, o rosto dele foi ganhando as saudáveis cores do rosto de um açougueiro e seu corpo fanado se transformou rapidamente em corpanzil. Abjurado o amor e seu supremo atributo - a dor -, não mais compunha delicados versos, mas odes à libertinagem e à dissolução. E foi pungente isso, e deplorável, porque, se bem que agora não acreditasse mais, ele estivera todo o tempo certo, e o seu havia sido, mesmo, o maior sofrimento a que um homem se submetera por amor.

sábado, 17 de julho de 2010

Lírica (168) - Historinha de amor

Ontem flutuando no céu,
Hoje visitando o inferno,
Ontem um amigo terno,
Hoje um detestável réu.

Lírica (167) - Meteorológico

Por muito tempo esperou
Que algum informe viesse
De sua esperada messe
Que de repente gorou.

Porém notícia não tem
Do que causou a desgraça -
Se as pragas, se a chuva escassa,
Se alguma coisa ou se alguém.

Lírica (166) - Calafrios

Pior mesmo é a noite, quando
Os amorosos apelos
Rondando o sono e o violando,
Viram torvos pesadelos.

Anteontem, de madrugada,
Ele se viu transformado
Num ogro vil, e a amada
Em um dragão afogueado.

Lírica (165) - Seara

De tudo que cultivou,
A terra, a semente, o fruto,
De tudo em que se empenhou
Jamais gozou usufruto:
Seu sonho, sua plantação
Morreram podres no chão.

Lírica (164) - Acervo

De todo o amor, restou só
Um livro como lembrança.
O resto, o sonho, a esperança,
Virou cinza, nada, pó.

Lírica (163) - Ruínas

O corpo ainda anda, fala,
Parece que vivo está,
Mas anda com débeis passos
E fala com descompassos.
Já a alma saiu com a mala
E diz que não voltará...

Lírica (162) - Viagens

De mim para ti, de ti
Para mim, quantas mensagens,
Que leste e, ai de mim, que li,
Quantas palavras e imagens,
Quantas sonhadas paisagens
Que não viste, que não vi,
Quantas frustradas viagens,
Aqui, acolá, ali.

Lírica (161) - Limpeza

Veio então o garrafeiro
E carregou sem cuidado
Um coração bom, inteiro,
Mas pelo amor rejeitado.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Lírica (160) - Praga

Se apenas o que consegue
É ferir o coração,
Que a paixão se dane então
E ao diabo vá que a carregue.

Lírica (159) - Fim

Saiu do amor como entrou:
Ingênuo, inábil, tristonho.
Tudo que buscou no sonho
Murchou, feneceu, gorou.

Lírica (158) - Lobo

Quando ela tirou os sapatos, e em seguida as meias, com movimentos lentos, e depois, com os olhos sonolentos, tirou dos cabelos os ornamentos, e abriu a blusa, e escaparam os seios opulentos, não pensava em nada, a não ser talvez em se embrenhar em sonhos neblinosos, nevoentos, mas havia no homem que a observava um sentimento de posse, um tormento, um momento de lobo que espreita, uma aflição, um estremecimento.

Lírica (157) - Trigal

Quando a mulher os levantava, para ajeitá-los, ou o vento os suspendia, os cabelos desnudavam a nuca, e o homem, embora se forçasse a pensar em coisas amenas, sentia que os dentes se inquietavam e o impeliam a cravá-los ali onde o sol da tarde expunha quase invisíveis fios de ouro.

Lírica (156) - Descoberta

No desajeitamento do primeiro beijo, os narizes se tocaram, e o homem e a mulher souberam, com súbita exaltação e vertigem, que até aquele instante haviam superestimado a boca e suas artimanhas.

Lírica (155) - Covardia

Sentiu-se tão fraco, tão covarde diante da mulher que o examinava com olhos de luxúria, que no cérebro não se formaram imagens voluptuosas, nem itinerários de língua e boca, nem entrelaçamentos corporais, mas só uma lembrança muito antiga e triste na qual ele, menino, ardia de febre pela excitação e pela antecipada culpa de furtar na escola o lápis de uma menina tola.

Lírica (154) - Égua

Ela sorveu o ar com volúpia, com um frêmito quase tão extático e frenético quanto o de uma égua em furioso galope, e ele, com a espinha e os sentidos eriçados, por um momento se imaginou deliciosamente tragado por aquelas narinas e conduzido para longe, sobre a relva, pelas campinas, rumo ao horizonte.

Lírica (153) - Mona Lisa

Não conhecia rosto mais belo e fascinante que o da mulher amada. De vez em quando, uma estrela de cinema ou de tevê o deixava em dúvida, mas só por uns momentos. Ninguém ignorava sua obsessão, que era seu assunto predileto, quase único. Tinha dezenas de fotos da amada e, um dia, pegando um lápis bem fino, cujas marcas poderiam ser facilmente apagadas, resolveu ver se conseguia enfear seu rosto. Desenhou nele um bigodinho e um cavanhaque. Sorriu, pois o efeito lhe pareceu levemente cômico, mas, olhando melhor, concluiu que o rosto continuava belo, talvez até mais do que antes. Para confirmar o acerto de sua opinião, mostrou a foto modificada a dez amigos, que não se pronunciaram. O décimo primeiro, porém, o aconselhou a procurar um terapeuta. Ele disse que já tinha um, fazia dez anos, e insistiu: "Ela é bonita de qualquer jeito, não é?"

Lírica (152) - Resumo

De tudo que foi vivido,
De todo o amor malogrado,
De tudo que foi sofrido,
De tudo que foi chorado,

Ficou um livro na estante
E a tristíssima memória
De um sorriso, de um instante,
Que nem chega a ser história.

Lírica (151) - Queixa

Existe alguma razão,
Algum motivo haverá
Para o sim virar um não?
Um dia você dirá,
E sem tergiversação,
O que houve, o que foi, o que há?

Lírica (150) - Questão

Para quê eu viveria,
Lhe pergunto, se não for
Para celebrar o amor,
Seu mel, seu fel, sua magia?

Lírica (149) - Café

Lembro-me de tudo, até
(Lembra?) daquela migalha
Que deslizou na toalha
Na mesinha do café.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Lírica (148) - Pois é

Pois é, foi belo, foi lindo,
Como um sol de primavera.
Pois é, mas não era infindo,
Pois é, foi lindo, já era.

Lírica (147) - Morto

Quando lhe disseram que um dia ainda iria rir, e muito, de sua catástrofe amorosa, nos seus olhos tristes apareceu um traço de ironia, e ele respondeu que morto estava, e morto continuaria a estar, e que mortos não costumam rir, nem muito nem pouco.

Lírica (146) - Adversativas

E, quando lembrava tudo,
Achava que merecia
Ter sido feliz. Contudo,
No entanto, mas, todavia...

Lírica (145) - Indagação

Se alguém - amigo ou amada -
Influi assim no teu dia
E dita a dor e a alegria,
Me diz: o que vales? Nada.

Lírica (144) - A vida

Alguém perguntou como ia
A vida, e ele num lampejo
Respondeu que não sabia:
"Faz tempo que não a vejo."

Lírica (143) - Antes

Em mim, porém, ainda vive,
E mais forte, muito mais,
Aquilo que um dia tive
E que não terei jamais.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Lírica (142) - Investigação

Com o poeta foi encontrado
Um bloco, uma intimação,
E também um coração,
Porém em péssimo estado.

Lírica (141) - Recado

Aqui tudo bem, em calma.
Só uma coisa ocorreu:
Minha pobre alma morreu.
Mas quem se importa com a alma?

Lírica (140) - Inventário

Alguns e-mails, alguns versos
Que o teu amor me soprou,
Mensagens, papéis diversos,
Foi tudo que me ficou.
Meus cacos, todos dispersos,
O vento veio e levou.

Lírica (139) - Esperança

E os pássaros nos dirão
Bom dia quando passarmos
E boa tarde ao voltarmos,
Quando vier o verão.

Lírica (138) - Encontro

Tão encantados ficaram com o primeiro encontro que, depois de duas horas de uma conversa empolgada num café, cada um chegou à sua casa com a primeira troca significativa entre os dois: ele com uma sombrinha cor-de-rosa e ela com um guarda-chuva sombrio como um corvo, com uma vareta quebrada.

Lírica (137) - Inéditos

Só no terceiro dia, descobrindo que tinha morrido, abriram a porta do apartamento. Eram cinco pessoas: a ex-mulher, dois primos, o zelador e um vizinho. Nas gavetas, os originais do morto, seus contos e seus poemas líricos, se alvoroçaram, mas dos cinco que entraram no apartamento ninguém era editor.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Lírica (136) - Tornozelos

Olhava para os tornozelos dela e lastimava sempre que os poetas - talvez porque, por sua presunção, se imaginassem destinados a fitar a lua e as estrelas - não observassem aquelas deliciosas curvas que instigavam tantas comparações e insinuavam tantas sugestões mornas.

Lírica (135) - Coragem

Cansado de se angustiar
Por causa da mulher da
Sua alma, mandou à merda
A vida e foi para o bar.

Lírica (134) - Pulvis

No chão onde o amor morreu,
Apesar das dores minhas
E talvez do pranto teu,
Só crescem ervas daninhas.

Lírica (133) - Amantes antigos

Amar sabiam aqueles que, quando eu era menino, me espantavam com os desvarios suicidas de soda cáustica com guaraná, de formicida com açúcar, de heroicos saltos sobre avenidas (e não há um viaduto sequer que tenha o nome de um deles...). Amar sabiam aqueles tresloucados que Nelson Rodrigues celebrou em episódios de A Vida Como Ela É. Hoje o amor finado merece quando muito um bocejo, e mesmo este provavelmente não possa ser creditado ao amor, mas a uma simples manifestação de sono.

Lírica (132) - Castigo

No entanto, conheci muitos que, desdenhando as farturas do amor, como se elas nunca se esgotassem, foram depois bater à porta da amada e se davam por satisfeitos quando ela estendia a mão e lhes oferecia migalhas.

Lírica (131) - Escolha

Já que devemos sofrer
Por seja lá o que for,
Se acaso eu posso escolher,
Que seja então por amor.

Lírica (130) - Lágrimas

Chorando passava as noites e, ajudado pela insônia, as madrugadas. Durante o dia, na rua ou no trabalho, chorava também. Julgou que chorava por amor. Com o passar do tempo, se lhe perguntassem, talvez já nem soubesse a causa. Chorar havia se tornado um hábito. Houve um tempo em que imaginou que suas lágrimas, em vez de compaixão, despertavam galhofa. Se soubesse que nem isso elas mereciam, que ninguém na cidade sequer suspeitava o que ele sofria no décimo andar, tão propício ao salto, talvez chorasse mais. Era um tolo.

Lírica (129) - Êxtase

Uma súbita cintilação nos dentes dela fez o homem se arrepiar, como se repentinamente o possuísse a ancestral reminiscência de um mártir entregando a alma em êxtase, num banquete de canibais.

Lírica (128) - Febre

Estava tão incendiado pelo amor que a amante, ao lhe tocar o rosto, imaginou que afagava a pele do sol.

Lírica (127) - Laranjas

Pensou em laranjas maduras e, sendo essa a primeira imagem que lhe ocorreu, receou que não fosse poética, porque lhe tinham dito que a poesia jamais se deixa capturar facilmente. E, enquanto procurava outra imagem, a mulher passou por ele com as duas laranjas maduras ofertadas ao sol pelo magnânimo decote.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Literatura (126) - Sabor

No festim do amor, a taça
Que lhe deram tinha o gosto
Do mais acerbo desgosto
E da mais crua desgraça.

Lírica (125) - Tempestade

Era então jovem e sua ideia de amor ficaria bem em qualquer cantinho de parede: um quadro em que, sobre a plácida superfície do mar, um barco levava passageiros sorridentes que tiravam fotos de tudo e acenavam para a praia. Anos depois, o mar subitamente se revoltou, ondas imensas se ergueram e só num painel caberia toda a fúria que se batia agora contra o navio, para esmagá-lo, enquanto os marinheiros, como formigas apavoradas, corriam para todos os lados, invocando Deus e lançando maldições. O barco deslizando nas águas tranquilas havia desaparecido, e a paisagem amena se transformara numa cena convulsionada, mas ele gostou de estar dentro daquele tumulto, daquela vertigem, daquela voragem - mais um marinheiro clamando por Deus, berrando apelos e atirando imprecações para o amor, pelo amor, contra o amor.

domingo, 11 de julho de 2010

Lírica (124) - Ocaso

Os passos serão trôpegos, os olhos ficarão baços, os ouvidos moucos, e dos desejos - poucos - não constarão nem o amor nem a poesia, mas prosaísmos como uma sopinha quente, um bom chá ou um cobertor felpudo. Existirá um inverno para cada mês, uma impossibilidade para cada músculo, uma dor para cada osso, e não haverá mais encanto, nem desencanto, porque a memória já terá abandonado o homem, que se recordará talvez apenas do seu nome, mas nem sempre, e esperará vagamente algo que, quando vier, será tão importante quanto uma folha caindo de uma árvore.

Lírica (223) - Réu

O que eu fiz, o que eu não fiz?
Qual foi o teu argumento
No dia do julgamento?
Qual foi? Por favor, me diz.

Lírica (222) - Carpe diem

Sim, aproveitar o dia
É mesmo um bom pensamento
Ou pelo menos seria
Se em cada novo momento
Em vez de nova alegria
Não viesse um novo tormento.

Lírica (221) - Sentimento

O sofrimento aguçou tanto sua alma que se um filhote de passarinho, a um quilômetro, piasse para chamar a mãe, e se um gato, a dois quilômetros, miasse à procura da companheira, ele parava tudo que estivesse fazendo e se punha a chorar.

Lírica (220) - Escola

Ele tinha oito anos. Ela, sete. Ele encostou o nariz no nariz dela e ficaram os dois assim por um tempo, cheirando-se como dois cachorrinhos. Ele sentiu, e também ela, uma comichão pelo corpo, uma sensação que ainda não sabiam definir com nenhuma palavra, mas que talvez mesmo hoje chamassem de amor.

Lírica (219) - A quem interessa?

Do amor ficou a lembrança,
É assim que sempre acontece.
De toda a dor e esperança,
De todo o plantio e messe,
Sobra uma história que cansa
E a quem a escuta aborrece.

Lírica (218) - Não creiam

Zelda Scott se encantava com as mortes antigas, aquelas mortes tão distantes que seria inimaginável supor terem mesmo sido ceifados os rapazes e as jovens de olhos sonhadores que de mãos dadas nos retratos, nos álbuns, nos quadros sorriem para nós, quase piscam, para nos avisar que jamais acreditemos se alguém disser que não estão vivos, maravilhosamente e inabalavelmente vivos.

Lírica (217) - Flashback

Do amor perdido, do abraço,
Do beijo outrora presente,
O que sobrou foi somente
Cansaço, muito cansaço.

E é só uma velha história
Aquele soberbo fruto
Que agora eu não mais desfruto
A não ser na vã memória.

sábado, 10 de julho de 2010

Lírica (216) - Pai

Uma noite, pegou o amor, olhou-o por algum tempo - não muito, para não chorar - e, abrindo melancolicamente a gaveta da estante, colocou-o com cuidado lá dentro, junto com seus velhos originais. Fechou a gaveta lastimando que aquele não fosse seu último gesto na vida e, ao apagar a luz da sala e começar a subir para o quarto, onde o esperava a insônia, ouviu os gritos dos originais, aos quais estava acostumado, agora seguidos pelas lamúrias do amor. Sufocados no escuro, clamavam por quem os criara e lhes prometera tanto. Seus originais, seu amor - seus tristes filhos rejeitados pelo mundo e agora também, definitivamente, pelo próprio pai, que, chegando ao quarto, encostou a porta, para que sua insônia não fosse atormentada pelos pedidos de socorro e pelas maldições dos inocentes.

Lírica (215) - Msn

Alguém comigo falava
E eu, tolo, mal respondia,
Alguém que me confortava,
Alguém que eu não merecia.

Lírica (214) - Quiromancia

Tomar-te a mão ternamente
E ler na linha da vida
Que hoje, sempre, eternamente,
Serás a minha querida.

Lírica (213) - Verbo

Sofri, sofreste, sofreu.
Se o sofrimento é de amor
Não há nenhum sofredor
Que sofra mais do que eu.

Lírica (212) - Memória

Lembrava tudo e chorava,
Lembrava tudo e sorria,
Lembrava tudo e gostava,
Lembrava tudo e vivia.

Lírica (211) - Trauma

Não contou ao psicanalista, mas na segunda sessão talvez dissesse que uma das frustrações da sua vida era a de ter dado seu primeiro beijo numa tarde muito distante em que viria a conhecer também a montanha-russa, o trem fantasma, a roda-gigante, o caldo de cana e a maçã do amor.

Lírica (210) - Piedade

Dois enamorados andavam pelo cemitério. Sorriam, porque a manhã parecia ter sido feita para eles, conversavam e de vez em quando paravam para se beijar. Estavam a caminho da saída quando um homem velho e ofegante se aproximou, perguntando: "Desculpem, posso dizer uma coisa?" O rapaz e a garota disseram que sim, e o homem, depois de recompor o ritmo da respiração, pediu: "Não se beijem, nem falem de amor aqui. Por favor. Os mortos já sofreram demais." Não encontrando o que responder, o rapaz e a moça sorriram e foram se afastando. Ouviram ainda o homem dizer "Eu sei do que estou falando", mas, no momento em que olharam para trás, ele havia desaparecido no meio dos túmulos.

Lírica (209) - Dor

O amor que me fez aquilo
Me dilacera ainda tanto
Quanto o cricrilar de um grilo
No enterro de um homem santo.

Lírica (208) - Colheita

Voltou-se então para a dor
E teve enfim a alegria
Que não tivera com o amor:
Seus frutos de cada dia.

Lírica (207) - Maçã

O amor o largou no meio da estrada quando ele tinha quarenta anos. Estranhou-se que alguém lhe tivesse feito isso e predisseram-lhe um sofrimento atroz, mas seu rosto, semelhante ao de um colegial de catorze, continuou a brilhar como uma maçã de capa de revista, e seus olhos verdes, favorecidos agora porque viviam úmidos, faiscavam como os de um gato assustado. Diziam-lhe que ele estava melhor do que nunca, e ele respondia com o entusiasmo com que os parentes de um morto agradecem condolências no sétimo dia. Voltou a uma vergonhosa atividade da adolescência - o exercício da poesia - e não havia um mês em que não enchesse ao menos um caderno com suas recordações. Neles estava a história de um suplício que ele, cada vez mais fiel à grandeza do amor extinto, reconstituía e ampliava. Talvez fosse um bom poeta ou talvez não, mas verdade é que soube expressar sua dor - se não nos mais de sessenta cadernos preenchidos em cinco anos, no seu rosto de maçã apodrecida e nos seus olhos turvos, aos quais nem mais as lágrimas davam brilho.

Lírica (206) - Escaldado

Sofreu tão funda desilusão de amor que anda de cabeça baixa e teme todos os olhos azuis, e as vozes roucas, e os cabelos pelos quais correram a chuva ou os pingos do chuveiro, e as batidas de saltos altos nas calçadas, e os nomes de mulher, lidos ou ouvidos, e estremece no elevador se nele entra um perfume feminino, e à noite, refugiado no apartamento, receia que a campainha toque, ou o telefone, e treme, e pede a Deus que o livre dos sonhos, mas, apesar de todas essas cautelas, pressente que virá um dia no qual ele outra vez será tentado por alguém que terá um nome ao qual ele imediatamente se afeiçoará e a quem implorará, agora já sofredor experiente, que o poupe, que o trate bem, que não se aproveite do seu espírito ingênuo e que não o deixe depois como ele está agora - um homem que sente calafrios quando ouve a palavra amor.

Lírica (205) - Moderno

Acreditar em poesia
Já foi um fato comum,
Porém quem nela confia
No século 21?

Se queres, versejador,
Ver terminar vitoriosa
Tua aventura de amor,
Larga a rima e apanha a prosa.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Lírica (204) - Gentil

Tão tolo é, e delicado,
Que ao lhe darem o paraíso
Disse não, não é preciso,
Senhora, muito obrigado.

Lírica (203) - Virtual

Doou-se inteiro à poesia
E, por sonhar, não viveu.
O bom, o mel, a alegria,
O amor jamais conheceu.

Foi esse o seu dia a dia,
Foi isso que aconteceu,
Foi essa sua agonia,
Sei bem porque ele sou eu.

Lírica (202) - Talvez

Às vezes lhe parecia
Que tinha sonhado tudo,
E se acalmava. Contudo,
No peito o amor lhe doía.

E na boca entrefechada,
Se alguém bem de perto a via,
Um certo sinal havia
De um beijo ou de uma dentada.

Cansaço

Nem sabor, e nem mais cheiro.
Fui eu o meu próprio vinho
E no meio do caminho
Eu já me bebi inteiro.

Procura

Você saiu de uma rua,
Depois sumiu na avenida,
E ao céu, e às nuvens, e à lua,
Na aflição mais dolorida,
Mostrando uma foto sua,
Bem grande e bem colorida,
Por você fui perguntando.
Uns tinham visto, outros não,
Alguns alento me dando,
E outros, a desilusão.
O mais terrível foi quando,
Pegando a foto na mão,
Um homem disse, chorando:
"Vi, sim! Deus, o caminhão!..."

Inexorável

Muitas vezes, como um gato,
O tempo quer se deitar,
Dormir muito, remanchar.
Mas sempre o desperta um chato.

Lírica (201) - Amigos

Uma tarde, quase por acaso, se viram num motel e, como ele se lembrasse de um filme muito amado por ela, acabaram se enredando nesse assunto e, horas depois, quando saíram, não saberiam dizer o que havia sido mais agradável naquela tarde.

Lírica (200) - Princesa

No primeiro encontro com o príncipe a quem estava prometida, a princesa se decepcionou. Ele era tímido, cortês em demasia, e sua voz se assemelhava à de um pássaro moribundo. Depois de falarem sobre assuntos secundários e aborrecidos, como a futura administração do reino, ele ousou olhar diretamente para a princesa e lhe disse que seus cabelos pareciam uma cachoeira dourada e seu rosto era como o de uma escultura. Ela, acostumada a ouvir das camareiras que a elas os apaixonados comparavam com uvas e maçãs saborosas, rogou ao destino que matasse logo aquele pássaro grasnador.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Lírica (199) - Traje

Era quase meia-noite e as poucas pessoas que andavam pela rua viram o homem pálido, parado na esquina, declamando versos para a lua e para as estrelas. Trajava na ocasião um terno gasto que no dia seguinte foi substituído pelo uniforme usado pelos doentes do manicômio.

Lírica (198) - Borboleta

Quando vivo, ninguém pressentiu nada incomum nele. Poderiam estranhar a luz que ficava acesa a madrugada inteira no seu apartamento, mas ninguém pareceu tê-la visto, nunca. Se vissem, talvez suspeitassem de alguma coisa, mas certamente não dos poemas que ele, insone, escrevia. Pensariam possivelmente em alguma outra dissipação, como o álcool ou o jogo, quem sabe mulheres, o que explicaria como, tendo vinte e três anos, parecia um velho, com seu corpo e seus olhos de esqueleto. Morreu com esses vinte e três anos, de inanição e inapetência para a vida. A luz estava acesa quando a empregada que ia todas as quartas-feiras o encontrou debruçado sobre a mesa, em cima de uma pirâmide de folhas de papel - versos, queixas de amor, rimas sobre gatos e passarinhos. Um primo encarregado de tratar do enterro e de recolher os objetos do morto surpreendeu-se quando, ao pegar a pilha de poemas, viu em cima dela uma borboleta que só se afastou depois de ser várias vezes enxotada. Já na rua, levando numa mochila média tudo que recolhera, espantou-se ao notar que a borboleta o seguia. Pegou um táxi, um avião e, ao chegar à sua casa, abrir a mochila e apanhar os poemas, viu esvoaçar em volta deles uma borboleta que, embora assombrado, ele julgou ser a mesma. Encaminhou todas as folhas a um amigo, professor de literatura, que um mês depois, em duas páginas, expressou sua opinião sobre os poemas: infelizmente, eram toscos e sem brilho, exceto um, que falava de uma borboleta. Era o único no qual ele tinha sentido alguma vida. "O que foi, parecia que tinha uma borboleta voando, coisa assim?", perguntou o primo do poeta morto. O professor de literatura assumiu um ar de quem compartilha algo incompartilhável e disse, baixo: "É, coisa assim."

Lírica (197) - Sempre

Um dia, pareceu-lhe que não o afetavam mais certos murmúrios da manhã, as insinuações macias do sol, entrando pela janela, e os passarinhos tentando imitar um violino. Felicitou-se por haver enfim conseguido, mas um instante depois já estava outra vez absorto nos murmúrios da manhã, nas insinuações do sol e nos passarinhos empenhados em sua aposta, além de sentir algo novo, que ainda não sabia definir, mas que também já lhe oprimia docemente o peito.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lírica (196) - Aranhas

Estava já completando uma volta com ela pelo parque e até ali o vício da poesia, contraído na infância, o fizera pensar só em comparações amenas, em imagens doces, em rimas ternas, em sensações que a candura e a ingenuidade poderiam exprimir. Mas, no momento em que ela lhe apertou a mão com a força e a urgência de um espasmo, a brisa da tarde lhe soprou uma indecência morna e ele pensou em aranhas se entredevorando.

Lírica (195) - Os pés

Viu na televisão um homem que, num programa de auditório, para zombaria de alguns e escândalo indignado de outros, confessou ter paixão por pés femininos, chegando a dizer que diante dos mais belos - e às vezes até dos menos - lhe ocorria prontamente o desejo de mordê-los. Antes mesmo que o especialista em fetiches começasse a dar sua opinião, ele, em casa, classificou o homem como pervertido, porque assim merecia ser considerado alguém que, podendo pegar delicadamente um pé de mulher, trazê-lo a um centímetro dos lábios e louvar-lhe a beleza, fosse logo lhe cravando os dentes, algo que só seria lícito, na opinião dele, depois de uma carinhosa conversa e com o consentimento dos cinco dedos, um a um.

Lírica (194) - Paisagem

Quando ela pisca, ao homem sempre parece que os cílios são duas aves ariscas que, com sede, se curvam sobre uma límpida superfície azul.

Lírica (193) - Crepúsculo

Piores eram as horas finais da tarde, quando, dissipadas as esperanças da manhã, a noite se aproximava e, com ela, a certeza de mais um dia malogrado, o sabor acre da derrota, os calafrios da insônia - e, se por bênção vinha o sono, o pesadelo carregado de autorrecriminações.

Lírica (192) - Arma

Toda vez que ela ajeitava os cabelos, o homem, predisposto pelo amor a ver beleza em tudo, fitava o cotovelo apontado para ele e lastimava que tão eficiente arma de sedução não tivesse um nome mais condizente com sua formosura.

Lírica (191) - O livro

Começou a fechar a janela mais cedo, porque os últimos raios do sol da tarde, quando se deitavam na estante, se detinham por um doloroso instante num livro cujas páginas haviam sido folheadas por certa mão que um dia ele tivera entre as dele.

Lírica (190) - Covinha

Bizarro é às vezes o amor em suas tramas, como se viu no caso de um berlinense, Johann ou Franz, que definhou trinta anos por um amor impossível: uma mulher casada que o cativou não pelos olhos, nem pelos lábios, nem pelos cabelos, nem pela voz, nem por algum dos outros dons que os poetas costumam cantar em suas odes, mas por uma covinha no seu joelho esquerdo, um pouco menor que a do joelho direito, mas bem mais sedutora.

Lírica (189) - Arrependimento

E chegou uma época na qual, descobrindo que ser sincero tinha sido a desgraça de sua vida, tentou aprender a linguagem da mentira. Mas já era tarde.

Lírica (188) - Nada

Depois de extinto o fugaz encanto, as belezas que descobrira recentemente lhe pareceram falsas como as promessas do amor, e as antigas, que ele desdenhara pelas novas, se recusaram a confortá-lo.

Lírica (187) - Veneno

No dia em que lhe caiu diante dos pés uma flor e ele a chutou para dentro da água da enxurrada, começara a se desiludir com o amor e já conhecia um pouco do seu veneno. Mas era só o início. Meses depois, se lhe caísse à frente dos pés outra flor, ele a chutaria com mais rancor ainda e reservaria um pontapé também para a árvore, pela indesejada oferenda.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Lírica (186) - Tarefa

Se há alguém que julgue possível encontrar sensatez em um coração apaixonado, talvez a esse otimista se possa confiar a antiga e proverbial tarefa de achar uma agulha em um palheiro.

Lírica (185) - Cautela

Cuidado com as que são belas: o futuro pode cobrar caro pela sua desatenção. Você poderá esquecer desfeitas, insultos e até afrontas, mas, se quem os provocou tiver o dom da beleza, você há de querer reviver na memória, a todo instante, as desfeitas, os insultos e as afrontas, para rever a cólera naqueles lábios, a ira naquelas mãos, a fúria naquele rosto adorável, e acabará reconhecendo, como um dos tantos direitos da beleza, essa cólera, essa ira e essa fúria.

Lírica (184) - Presente

Um dia lhe ocorreu comparar seu amor àquele único pacote, entre dezenas, que a aniversariante mimada não quis abrir - ou por já saber o que nele havia ou por não querer saber.

Lírica (183) - A resposta

Um dia ela o olhou e, como se lhe fosse necessário marcar a posse, disse: "Você é meu, sabia?" E ele, enternecido até a alma, respondeu que tinha sabido disso todo o tempo, sempre, antes mesmo de saber.

Lírica (182) - Viagens

Enlaçou-lhe a cintura, e sua mão, embalada pelas suaves ondas que ela ao caminhar formava, transmitiu a ele a sensação de um passeio de barco rente à praia, enquanto o resto do corpo, de repente despertado, clamava por uma viagem turbulenta e audaciosa, mar adentro, ali onde os vagalhões parecem querer alcançar o sol.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Philip Roth (3)

No século passado, a literatura nos Estados Unidos foi assombrada por uma obsessão: a do grande romance de geração e, por extensão, a do grande romance americano, aquele capaz de traduzir com perfeição e brilho o espírito daquele imenso país continuamente empenhado em definir sua identidade. Grandes nomes se lançaram à tarefa. Norman Mailer julgou tê-la realizado, e também William Styron, e tantos outros. Truman Capote praticamente enlouqueceu na sua sempre adiada e frustrada tentativa. John Steinbeck, um pouco antes, com As Vinhas da Ira, pareceu o mais próximo dessa realização. Digo isso, ressalve-se, sob o meu ponto de vista de leitor, sem nenhuma base nem aprofundamento crítico. Até recentemente, jamais pensei que Philip Roth, um escritor que me parecia esgotado em sua capacidade criadora, ligada ao esplendor do sexo e da juventude, pudesse ter feito esse grande romance-síntese americano. Voltei a ler Roth este ano (Fantasma Sai de Cena, um livro de 2007, com que uma amiga me presenteou) e me surpreendi muito ao notar que ele, até então para mim "apenas" um admirável escritor, tivesse se tornado um extraordinário clássico. Tendo renovado meu interesse por ele, fui à biblioteca do Centro Cultural e ali peguei Pastoral Americana. Sua leitura me deixou a convicção de que ao sempre lastimado fato de Virginia Woolf e Jorge Luis Borges, por exemplo, não haverem sido agraciados com o Nobel se junta, com igual peso, a circunstância de Philip Roth também não ter recebido o prêmio. Notável, obra-prima, brilhante, estupendo e quaisquer outros desses qualificativos que costumam ornar como brincos as orelhas de certos livros são perfeitamente justificáveis no caso da Pastoral Americana. Philip Roth conseguiu, com sua linguagem atual, vigorosa e rude, quando necessário, proezas como a de tornar a descrição do processo de fabricação de luvas no meio do século passado uma epopeia comparável à narração da caça às baleias em Moby Dick - algo que parece fruto de pura magia, e é: a magia de Roth. Indicar sua leitura é um ato de amor àqueles que ainda acreditam na literatura. Vida longa a Philip Roth, e a nós, para que desfrutemos o prazer e a bênção de acompanhá-lo em sua arte.

Lírica (181) - O outro sentido

Ela lhe disse que ele vinha escrevendo cada vez melhor, cada vez com mais alma, e lhe perguntou o que estava acontecendo. Ele a olhou com uma dessas tristezas agudas, dilacerantes, que ela não notou, mas não respondeu. Poderia ter dito que talvez a explicação fosse a de que agora morria um pouco em cada frase que escrevia.

Lírica (180) - Felicidade

E, no entanto, há quem ache tolice um homem desandar a fazer versos, e a sair pelas ruas saltitando como um menino, e a conversar com os passarinhos, e a querer saber nomes de flores e a dizer, sem ninguém lhe perguntar, que a vida é maravilhosa.

Lírica (179) - Sina

Viveu muito e sofreu demais. Poderia não sofrer alguém que, aos dezesseis anos, ao ser repentinamente beijado por uma garota, não soube fazer nada além de dizer "obrigado", e tão baixo que, três dias depois, criando finalmente coragem, foi perguntar à menina se ela o tinha ouvido agradecer?

Lírica (178) - Melhor

Quando sugeriu que seria capaz de se matar por ele, e não teve resposta, achou que ele não merecia seu amor. Depois, tocada pelo esmaecimento da tarde e por uma canção que talvez só ela ouvisse, entregou ao amado um beijo que ele aceitou como a melhor de todas as oferendas.

Lírica (177) - Feras

Ficam as memórias, esses bichos que chegam mansos, costumeiramente à noite, e não esperam senão os primeiros sorrisos reminiscentes para enterrar as traiçoeiras garras no peito daqueles que um dia ousaram viver a ventura do amor.

Lírica (176) - Foi

Nunca lhe beijou a boca, nunca lhe acariciou os cabelos. As mãos, ressentidas, desaprenderam a linguagem da ternura, e a boca, inútil, murchou. Anos depois, as mãos tiveram a pálida compensação de, resgatando numa gaveta uma antiga carta, levá-la até os lábios, que, recuperando por um instante na memória um desenho de sorriso, com ele beijaram a assinatura.

Reincidência

Alguém me perguntou por que, depois das desculpas que pedi por meu vergonhoso lirismo, incidi de novo nele. Quem há de refrear e domar o coração, esse almirante louco de que falava Fernando Pessoa? Ele quer navegar ainda, apesar de tudo. Que navegue.

Lírica (175) - Adeus

Vangloriava-se não de não ter chorado, mas de ter chorado muito, embora seu lenço encharcado de lágrimas não houvesse comovido o outro, que, acenando, se afastava para nunca mais.

Lírica (174) - Passarinho

Segurou o queixo dela como se estivesse simplesmente servindo de apoio a um pássaro cansado antes de ele poder alçar voo, e ficou aturdido com a força do contraste: como uma atribuição tão bela e poética podia ser concedida a um desajeitado polegar e a um prosaico indicador?

Lírica (173) - Mar

Nos olhos dela viu um mar calmo, de ondas pacíficas, e teria jurado ouvir um grasnido que atribuiria a uma gaivota, se não fosse tão suave quanto o canto de um rouxinol.

Lírica (172) - Açúcar

Uma vez, ela pronunciou certa palavra com tal doçura que, a partir desse dia, sempre que ele pegava o dicionário, ele se abria na página em que ela estava e sobre ela esvoaçava uma abelha.

domingo, 4 de julho de 2010

Philip Roth (2)

Houve uma época, não tão distante, na qual imperou um conceito quase higiênico de literatura. Um livro podia não ser constituído basicamente de palavras corretas, mas era um pecado irreparável que ele contivesse palavras inadequadas - aqui, naturalmente mas não exclusivamente, incluídos os chamados palavrões. Esse modo quase puritano de ver a literatura perdeu força, mas ainda há quem, frequentador de todos os bordéis da vida, diga se escandalizar com expressões que até crianças utilizam no seu dia a dia. Como convencer esses, que gostariam de passar pimenta na boca de tantos escritores, de que dificilmente alguém exprimiria com maior ternura e nostalgia do que Philip Roth, em Pastoral Americana, uma reunião de amigos que não se veem há muito? Eis um diálogo de dois participantes da festa, entristecidos com a devastação causada pelo tempo nas suas antigas musas: "Não, uma reunião de quarenta e cinco anos de formatura não é o melhor lugar para se procurar uma bunda para comer." (Pastoral Americana, Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo.)

Philip Roth (1)

Trecho de Pastoral Americana: "Viver é entender as pessoas errado, entendê-las errado, errado e errado, para depois, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas errado. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados. Talvez a melhor coisa fosse esquecer se estamos certos ou errados a respeito das pessoas e simplesmente ir vivendo do jeito que der. Mas se você é capaz de fazer isso... bem, boa sorte."(Pastoral Americana, Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo.)

Lírica (171) - Ainda

Nos seus últimos dias, vergado pelo vento da desgraça, andava olhando para o chão. Chamaram-no de louco, menos um, que viu naquele olhar desalentado, que se fixava em especial nas poças depois das chuvas, a busca de uma imagem amada, que não era a dele.

Lírica (170) - A um escritor

Se tua alma não estiver em cada sílaba do que levas ao leitor, se não te mostrares a ele com todo teu amor e sofrimento, podes aspirar a que ele te receba com efusão superior à que concederia a um vendedor de ouropéis e quinquilharias?

Arte e loucura

O gênio artístico e a sandice costumam ser bons amigos. Fernando Pessoa sintetizou isso quando escreveu: "Sem a loucura, que seria do homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?" Virginia Woolf, depois de cada livro escrito, imergia numa vertigem tão grande do corpo e da alma que não será errado dizer que cada uma de suas obras foi uma incitação coerente para aquilo que alguns tolos ainda chamam de tresloucado gesto. A loucura sempre há de ser uma grata companhia para quem busca na arte não um efeito de beleza, mas a consumação e, mais que isso, a consumpção do ser. Controlar a loucura, iludi-la de qualquer forma, é o maior crime que alguém pode cometer contra uma alma artística e a pior atrocidade que um artista pode impor a si mesmo.

Lírica (169) - Àqueles que

Àqueles que por acaso ou extrema gentileza ainda estiverem me acompanhando aqui, creio dever uma explicação e várias desculpas. Iniciando o blog com a proposta de conversarmos sobre literatura, fui arrebatado no meio do caminho por uma onda de exaltação emocional que acabou por me lançar à quase insana produção de textos nos quais procurei exprimir esse momento de minha vida - que, analisado agora, me parece ter consistido, basicamente, numa daquelas inquietações que nos atacam quando, já percebendo estar muito curta nossa trilha, nos incitamos a falar e a falar, ainda que a esmo. Comecei nesse período uma série - "Pequenas alegrias urbanas" - e nela me exauri, infelizmente não a ponto de impedir-me de iniciar outra - "Lírica" -, na qual expus meu coração como ele era, como ele foi e como ele é hoje. Exaurido outra vez agora, tomara que por longo tempo ou definitivamente, espero poder deixar de lado minhas escrevinhações e voltar a falar do que realmente deve importar a vocês e a mim: a grande literatura dos Borges, Atwoods, Dickinsons, Roths, Donosos, Infantes, Woolfs - e não os queixumes líricos de um obscuro Drewnick.