sábado, 31 de dezembro de 2011

Uma nota só

Naquele momento, o do adeus, bastaria um violino tocar uma nota que fosse, só uma, para que minha alma se espatifasse na calçada. Se ele tocou, eu não ouvi. Na Paulista, a desatada alegria dos outros piedosamente me ensurdecera.

Foi

Foi ilusão, foi quimera
Tudo que você me disse.
Que bela era essa tolice,
Que tolo feliz eu era.

Teu nome

Comeram, amor, teu pão,
Tua alma vilipendiaram,
Zombaram de ti, usaram
O teu santo nome em vão.

Final

Esquecido o juramento,
Resta apenas o que resta:
A mágoa depois da festa,
A dor, o ressentimento.

Na poltrona

Aprendeste a esperar. Enquanto os outros se lançam a batalhas, buscando a morte, tu a aguardas na poltrona, com a certeza de que ela virá. Quando vier, tu a censurarás pela demora e ela se justificará dizendo que esteve ocupada matando alguns jovens guerreiros.

Réveillon

Às 2h34 de 1° de janeiro, quando na pista não havia lugar para mais um casal sequer e um pistom insano gritava as notas de um mambo da década de 1960, alguém gritou "fogo" e, às 3h17, quando os bombeiros, que chegaram rapidamente, apagaram as chamas, havia oitenta e oito mortos no salão - uma dezena deles ainda segurando o copo, o que um sargento atribuiu à atrapalhação provocada pelo pânico, mas um tenente considerou uma demonstração, infelizmente inútil, de otimismo.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Aquele tolo

Talvez tu rias, se te recordares,
Daquele tolo que te fez rainha,
Ou, se houver ainda uma lembrança minha,
Talvez tu chores, mas sem exagerares.

Espaguete

Diante da proximidade da morte, nossa confiança e nossas ambições se enfraquecem. Um concunhado meu, já nas últimas, me disse, depois de um mês de comida rigidamente hospitalar, que sua maior aspiração, se recebesse o milagre da alta, seria comer um espaguete com atum. Ele pronunciou isso com sua voz débil - espaguete com atum - e olhou esperançosamente para o teto do quarto, como se fitasse o céu.

Extrema-unção

Quando entendeu que o padre lhe dera a absolvição, desobrigou-se de prestar atenção aos parentes que soluçavam e sentiu pela primeira vez, nos dois meses de hospital, que estava finalmente autorizado a dormir até morrer. Só não sorriu porque receou que pudessem, interpretando isso como um sinal de melhora, voltar a atormentá-lo com exortações e preces.

Os pombos

Os pombos já o viram. Esperam que ele se sente, abra a marmita aluminizada e enfie a colher de plástico para pegar o primeiro bocado de feijão e arroz. Ele também os viu, atocaiados sobre um toldo. É uma cena que se repete todas as tardes, como se fizesse parte do filme de um diretor exigente. Assim que ele tira a tampa, os pombos descem, com estrépito, para assustá-lo e fazê-lo cometer um erro. Ele não se assusta mais. No primeiro dia, deixou cair a marmita e precisou lutar pela sua comida, enfiando as mãos na calçada. Agora já sabe lidar com eles. Joga dez ou doze grãozinhos de arroz no chão e, enquanto eles se bicam para disputá-los, ele come rapidamente, mas com cuidado, para que não escape nada: há dias em que lhe dão pedaços de batata e até de carne. É simpático o gerente do restaurante. Faz dois meses que guarda restos do almoço para ele. É sua única refeição do dia e ele gostaria de comê-la com mais sossego, mas os pombos o vigiam, entre a uma e meia e as duas, e não o deixam em paz. Eles o seguem até quando ele vai jogar a marmita vazia no lixo. Poderia atirá-la ao chão, mas não faz isso nunca, por ser educado e - reconhece - também por birra, para que os pombos não tenham como raspar mais nada no fundo dela.

YouTube

Em 7 de julho de 2006, Placido Domingo, Anna Netrebko e Rolando Villazón se encontraram em Berlim, para um desses momentos que a História, eternamente interessada em Césares e Cleópatras e no cortante ruído de espadas, não guardará. E, no entanto, eu não o trocaria por nenhum outro. Abençoado sejas, YouTube.

Para

Deixar-se levar como um
Cisco pela correnteza,
Para onde mora a beleza
Ou para lugar nenhum.

O avô

Se a casa é visitada por outros velhos, ele se esforça para tossir sempre mais alto, e dramatiza as pontadas no peito e, se for preciso, eleva uma gripe à condição de pneumonia dupla e uma dor no rim ao status de câncer.

A arte

O que melhor soubeste fazer, em todo esse tempo no qual - não por humildade, mas por covardia - sempre deste a outra face para bater, foi cultivar a arte da autocomiseração.

Ainda

No entanto tu andas ainda, e outras manifestações tuas, como abrir os lábios para tentar falar, podem também ser consideradas sinais de que continuas vivo.

Ela, só

De toda a dor e a alegria,
De tudo aquilo que eu tinha,
Sobrou só uma coisa minha:
A minha melancolia.

Estado atual

Por pior que possas estar,
Não estás tão mal assim.
Podes andar, respirar,
Ainda não chegaste ao fim.

Assim será

Será assim enquanto for,
E é, conforme o tempo passa:
A minha vida é o amor,
E o amor é a minha desgraça.

Três vezes

Se por acaso te importa,
Te digo, minha querida,
Três vezes, que a minha vida
Está morta, morta, morta.

Hora de dormir

O jornal estava úmido, mas ele o pegou e começou a desdobrá-lo. Estava na porta de uma farmácia e lhe pareceu um lugar tão bom para dormir quanto qualquer outro. Nas páginas centrais, apesar da luz fraca, ele poderia ler, se quisesse, o relato de uma tragédia com duas centenas de mortos na Indonésia. Mas ele as alisou e deitou-se em cima delas. Tirou do bolso o sanduíche que tinham acabado de lhe dar numa casa. Estava quase feliz.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Assim como os cães

Nas batalhas da vida, aprendi o básico: a curvar-me diante dos inimigos, a falar sua língua e a reverenciar os seus deuses. Não tendo talento para a glória nem audácia para a conquista, fiz o que me convinha: tornei-me dócil e, se não pude erguer espadas nem troféus, consegui ao menos a honra de encher o cálice dos vencedores e - para quem acha essa uma tarefa vil - digo que tenho sido invejado por isso. Não sendo um vitorioso, sou visto ao lado deles e às vezes recebo tanto afeto quanto o que dedicam a seus cães. Quando morrer, talvez me caiba uma sepultura tão digna quanto a de um desses soberbos animais que alegram e enobrecem seus donos.

Mentiras

Tu vens agora e me dizes que mentiste todo o tempo, desde o início, sempre. Vens e, com remorso, me pedes perdão. Não te perdoo, nunca te perdoarei. Por que não me mentiste mais, por quê? Ah, eu era tão jovem e acreditava em ti, podias ter me dado uma felicidade muito maior. Teria sido tão fácil. Talvez seja ainda. Ah, por favor, me diz que estavas brincando, e me mente como me mentias antes, me mente como só tu abençoadamente sabes mentir.

Só uma palavra

Sim, o amor é hoje uma palavra velha e fraca. Eu olho bem para ele toda vez que vou usá-lo, para saber se é ele ainda, e sempre me surpreende encontrá-lo vivo. Procuro pronunciá-lo baixo e devagar, tento poupá-lo, porque não suportaria senti-lo morrer em minha garganta, nesta que, tão velha quanto ele, vive ainda só para a glória de dizê-lo.

O estranho

Quando, depois de um ano e meio, ele voltou, estava estranho. Tinha aprendido a dar nós de marinheiro, cuspia com notável precisão, chegando a derrubar moscas, e nada restava dos seus antigos refinamentos. Tinha se tornado omnívoro, comia tudo com dentes gulosos e as estrelas com que antes avaliava os pratos haviam sido substituídas por uma escala de tonitruantes arrotos, constituindo oito deles a nota máxima, concedida certa vez a um bife de fígado quase cru. Três mulheres com as quais ele mantivera relações aprofundadas e voltaram a acolhê-lo na cama disseram que nem ao Diabo contariam como ele as entretinha, embora uma delas tivesse razões para acreditar que ele e o Diabo fossem a mesma pessoa.

Bodas de prata

No começo, não foi fácil lidar com ele. Era jovem, presunçoso, rebelde e, quando contrariado, suas unhas transformavam-se em garras. A mulher lembra, hoje com bom humor, os casos que ele criava e, pondo a mão no joelho do marido, diz: "Ainda bem que eu tinha este aqui para me ajudar. Sozinha eu não tinha dado conta." Então é vez de o marido contar histórias de revolta e insubordinação. Se alguém pergunta como conseguiram dominar a situação, o marido e a mulher sorriem, orgulhosos: "Foi com muita disciplina, esse é o segredo." E mostram mais uma vez o milagre, que alguns visitantes fotografam. Chamam o amor, e ele vai, gentil e obediente, comer nas mãos deles.

Predestinado

Meus amigos morreram cedo. Eu não devia tê-los lastimado. Eles se foram no verão, ainda com algumas sílabas dos cantos da juventude nos lábios. Eu fui preservado para conhecer o inverno, para ouvir lá fora a elegia tocada no violino pelo vento e para clamar pela morte como clamam os velhos: com esta voz que parece o crocitar de um corvo moribundo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Placido, Anna, Rolando

Ouvir Placido Domingo, Anna Netrebko e Rolando Villazón cantando Dein ist mein ganzes Herz é uma dessas irrefutáveis provas da existência de Deus.

Carta para Anna

Enlouquecer, escrever uma carta de 25 mil caracteres para Anna Netrebko, enviá-la, esperar por dois anos a resposta e no setingentésimo trigésimo dia, quando tudo indicar que não, recebê-la, como prova de que os deuses e algumas deusas, ainda que tardem em reconhecê-la, amam a loucura.

Os três

Quando o primeiro urubu apareceu ao longe, ficaste atento. Logo viste que havia mais dois e esperaste, mas eles passaram. Alguém os merecia mais do que tu. Guardaste tua decepção, mas já sabes agora o ponto de onde eles vêm e amanhã os esperarás de novo, com ânsia renovada. Talvez até com acenos.

Não te

Não te iludam as cantilenas dos que te preveem um futuro glorioso. A cada dez bilhões de homens nasce um Beethoven, um Einstein, um Jobs, e já terás notado que, se tens duas ou três das qualidades de cada um deles, te faltam todas as outras, que não devem ser poucas. Não te enganem os conceitos vagos de que viver é, por si só, uma bênção e de que cada um de nós é um ser raro e precioso, ainda que não achemos. Não te convenças com aquelas ladainhas de que, assim como as formigas, as baratas e as lagartixas, temos utilidade sobre a terra, ainda que seja apenas a de nos comermos uns aos outros. Assume a coragem de admitir que não prestas para nada, como bem sabes, e acredita na óbvia e simples verdade de que, se algo mudar no mundo com a tua morte, certamente mudará para melhor.

Longos são os dias

Acorda sempre mal. O sol lhe avisa que há mais um dia a cumprir. Precisará sorrir quem sabe quantas vezes, ouvir as palavras de sempre, falsas e adocicadas, dizer que sim, que sim, que tem fé, que tem esperança. São lentas as horas, mas ele sabe que o sol se irá, que com o sol se irão os visitantees importunos e ele voltará a se pertencer. E então ele sorrirá o seu sorriso, e dirá a si mesmo que não, que não tem fé, que não tem esperança, que não tem vontade de viver, e rezará a sua oração, aquela em que toda noite, fechando os olhos, pede para Deus lhe conceder a bênção de que o sol, quando voltar de manhã, os encontre fechados para sempre e vá iludir outros com sua embromação festeira, seu brilho de prostituta barata e seus passarinhos louvaminheiros.

Vestígio

O sol se foi, mas um vestígio dele ficou ainda por alguns instantes em teus cabelos, antes que se acendessem as luzes na avenida.

Ali

Ali, onde a cachoeira de cabelos flamejantes termina, começa um território pelo qual a imaginação desce devagar, para usufruir mais completamente o instante em que uma elevação repentina a faz segurar o fôlego até que a descida vertiginosa seja enfim a recompensa para todas as madrugadas de febre e os sonhos mais desvairados.

Esse nome

Sei que todo este calor,
Que a febre que me consome,
Só tem uma causa e um nome
E esse nome é o teu, amor.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Cabelos

Cabelos áureos, cabelos
De fogo, fúria, esplendor,
Cabelos ígneos, novelos
De lava, de luz, de cor.

Aquele

Aquele amor poderoso
Que dividiste comigo
Vive hoje doente, leproso,
Ignóbil como um mendigo.

Muito tarde

Chegaste ontem, minha cara,
Tu e tua juventude,
Bateste e eu abrir não pude:
O inverno já me levara.

Porta

Não pude chegar à porta.
Lá fora, a alegre canção
Chamava, mas minha mão
Estava já fria e morta.

Não fosse

Não fosse aquela alegria
Que às vezes rindo me entregas
E que outras tantas me negas,
Há muito eu morto estaria.

Conselho

A quem quiser descobrir
Se a vida é cruel ou bela,
Dou o conselho de ouvir
Virginia, Sylvia, Florbela.

As pecadoras

Era uma apoteose de frutos. Ramos carregados, árvores ameaçando desabar, uma explosão de cores, perfumes, doces tentações. Olhamos para tudo com desdém, era pouco para nós. Demos uma mordidinha condescendente, outra tediosa, e fechamos os olhos para o ouro que fulgurava nos galhos. Dormimos, e os passarinhos, com a urgente fome dos gafanhotos, e os espantalhos também, mancomunados com eles, despiram as árvores que, secas como esqueletos, balançam os braços e gritam, agitadas por um vento que as chicoteia como se fossem elas as grandes pecadoras, as culpadas pelo cenário de miséria e desolação.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Vias opostas

Ah, como o amor nós amamos:
Eu amo, tu amas, ele ama.
Ah, como nós o chamamos.
Mas ele, o amor, não nos chama.

Para Wislawa

Alguns gostam de poesia.
Se um ao outro desse a mão,
A fila se estenderia
Por bem mais que um quarteirão.

Tibieza

As nossas opiniões,
Os gritos de consciência,
São meras divagações,
São pontos de reticência.

Melhor assim

Melhor assim, não nos darmos,
Ficarmos só na intenção
E, um dia, da floração
E não dos frutos lembrarmos.

Camões

Eu quisera ter sido Camões
não pelas glórias
pelas vitórias
pelo nome na história
ou pelos galardões

Quisera tê-lo sido
pelas duas simples razões
de que já teria vivido
e já teria morrido
há muitas gerações.

Seria

Sem nenhuma dor ou com,
Com paz ou com agonia,
À noite ou à luz do dia,
Morrer seria tão bom.

Objeto incômodo

Tentarão me acordar
os mariscos
e um cardume
de peixes miúdos
brincará nos meus cabelos

O sol da manhã
virá me olhar
e balançando a cabeça
um homem
puxando para longe
um menino dirá
um bêbado
e um bêbado
dirão mais dois ou três
até que alguém
um dessees viciados
em fazer o bem
se abaixará
fará o sinal da cruz
murmurará Jesus
e irá chamar
quem possa vir
por espírito cristão
ou por obrigação
desatravancar a praia
porque não é concebível
os turistas encontrarem
coisa assim horrível
já no primeiro domingo
da temporada de verão.

Fundo

Bem para o fundo eu quero ir,
Para o fundo mais profundo,
Não respirar, não ouvir,
Morrer (e matar o mundo).

domingo, 25 de dezembro de 2011

Só isso

Depois de tanto viver,
De tudo que eu poderia
Talvez ainda querer,
Morrer me apeteceria.

Carpe vitam

Desfruta tua alegria,
Mas rápido. A morte que
Não poupa ninguém, por que
Somente a ti pouparia?

Revolução

Um dia eu gritarei teu nome na avenida, e dois guardas me apanharão, mas eu continuarei gritando e esperneando, até que alguns pedestres, revoltados, começarão a gritar "solta", "solta". Me soltarão, eu voltarei a gritar e logo cem vozes se juntarão à minha, e gritaremos teu nome até que o vento se disponha a levar as quatro sílabas até a janela onde pensarás, sem entender os gritos, que terá estourado uma revolução e o povo estará gritando "polícia", "polícia".

Passos

Andamos um passo, e dois
Recuamos. Já nos achamos
Bem aquém do que almejamos,
Como estaremos depois?

Quais

Palavras, quais te direi
Que possam ainda tocar-te,
Que ardil, que artimanha, que arte,
Me diz, ainda eu não usei?

Lembrança

Foi triste. Nem bem os meus
Braços ternos te acolhiam,
Os teus braços se encolhiam.
Chegara a hora do adeus.

Garimpo

Teus cabelos roçaram em minha mão, e há alguns dias sinto nela uma mornidão de sol, uma faiscação de ouro, uma crepitação inquieta de pepitas, uma peneiração febril e, às vezes, à noite, acordo porque dos dedos emana um cheiro de álcool, de rum, de gim, de aguardente, e começo a ouvir exclamações de júbilo dos garimpeiros.

Sonho

No sonho és uma assassina. Tu me persegues, me atormentas, ameaças matar-me, em mensagens pelo micro e pelo celular. Não me deixas dormir, respirar. Cada minuto me parecerá sempre o instante derradeiro, e esse instante, enfim, chegará. Virás uma noite, com um vestido negro e longo, um colar de pérolas de três voltas e um revólver de prata. Atirarás em mim, sorrindo. E sorrindo te abaixarás para ver se morri. Mas isso é um pesadelo, alguém dirá. Não, é sonho. O que mais poderá ser quando disseeres ao meu ouvido moribundo "me perdoa, está bom, me perdoa"?

Olhos

Os dois se fixam em ti.
Se para ver-te não são,
De que me servem então,
Por que Deus os pôs aqui?

Exceção

Saber que toda regra tem exceção me conforta principalmente quando leio que o homem é um ser gregário.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Dezembro, 24

Era um 24 de dezembro da década de 1960. Aproximava-se a meia-noite. Sárvio Nogueira de Holanda (revisor dos melhores, apesar do nome inadequado) fazia comigo a correção de um texto no Estadão. No meio de uma frase, ele interrompeu a leitura, olhou-me desconsolado e disse: "Eu acho que quem trabalha em véspera de Natal só pode ser filho da puta." Concordei.

Os homens

Enquanto dormias, os frutos foram colhidos. Quando acordaste e viste os galhos vazios, um vento zombeteiro escarneceu de ti e te deu um retrato falado do homens que levaram tua safra. E a descrição deles, dos braços cabeludos, das cicatrizes, das tatuagens, das bocas cúpidas, te fará pensar nos teus frutos como se fossem virgens estupradas num celeiro, num domingo de Páscoa.

Causa e efeito

Só tive, sempre, o que quis.
Não peço ajuda ou socorro,
Se do amor que vivi morro,
Só posso morrer feliz.

Boletim médico

Sim, estou bem. Não respiro por aparelhos, consigo levantar-me sozinho de manhã, tomo o café às vezes sem derramar uma gota e, depois de abrir o portão, faço uma série de movimentos com os braços e as pernas que, se vistos com boa vontade, podem ser considerados algo semelhante ao ato de andar.

Cadáver

Teus pecados se engancharam em tuas costas. São um cadáver que fede sobre ti e, com a contínua decomposição, pesa cada dia mais, te encharca de podridão e, com os dedos que se recusam a descarnar-se, te aperta o pescoço e te aponta: é este, é este.

Imaginário

Não devo contar com teu bom-senso. À primeira olhada ele arrancaria meu disfarce. Melhor será confiar no teu imaginário, em algum resquício de tuas fantasias juvenis -não a surrada imagem do jovem guerreiro montado em seu cavalo branco, mas quem sabe a de um professor já meio maduro, que por uma dessas coisas inexplicáveis - como uma cicatriz no rosto ou o modo de pronunciar a palavra sofisma - aguça a imaginação das adolescentes.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Dizer-te

Dizer-te palavras doces,
Dizê-las com a alma elevada,
Dizê-las como se fosses
O que és: minha bem-amada.

Despeito

Sim, em qualquer jornada, por maior que seja, o primeiro passo é o mais importante. Mas nunca deixe que os outros passos saibam, do contrário não chegarás nem ao décimo.

Megalomania

Talvez, ao contrário do que pensas, não sejas tão mais pecador que os outros. É provável que essas abominações que apregoas não passem de mais uma das manifestações de tua mania de grandeza.

O bilhete

Meticuloso, começou a escrever o bilhete de suicida uma semana antes. Acossado por questões gramaticais e de estilo, foi refazendo o texto, dia a dia. Quando chegou o momento que estabelecera, um sábado às nove da noite, releu pela centésima vez o bilhete e, insatisfeito, em vez de imprimi-lo e assiná-lo, o deletou. Em seguida, pegou o revólver na gaveta e, para se justificar, disse: "Vai sem bilhete mesmo."

O outro

Não sei se sou bom, se sou mau. Devo ser as duas coisas, se sou humano. Quando pensares em mim, imagina-me bom, de preferência. Se for difícil, então me imagina outro, qualquer outro. Qualquer um será melhor que eu.

Comercial

A pomba aparece voando com um ramo de oliveira no bico. A câmera se aproxima, e do ramo se desprende um papel que se abre e em letras verdes anuncia: "Azeite Verdemor, o melhor." Imediatamente, centenas de azeitonas, como se fossem fogos de artifício, começam a pipocar no céu azul.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Ótimo

Foram dizer ao chefe dos caçadores que ele, com um dos seus tiros, tinha acabado de matar a pomba da paz. "Ótimo", ele disse. "Por hoje chega. Vamos comemorar."

Major Quedinho, 28

De madrugada, ainda é visto nos corredores um homem muito pálido, vestindo um terno da década de 1960, que pergunta, melancólico: "Onde está o segundo clichê?"

Pesadelo

Ouviste um gemido e um ruído forte no guarda-roupa. Acendeste a luz e, ao abrir o guarda-roupa, viste um fantasma de bigodinho que acabara de se enforcar com uma de tuas gravatas, a grená.

Pecados

Tu aumentas tanto os teus pecados, tu os mencionas tanto, com tanta imodéstia, que pareces desejar vangloriar-te deles.

Épocas

"Ah, no meu tempo a literatura era bem melhor que hoje, nem se compara", estava dizendo o homem. "Lembro que, num livro que eu li quando era menino, os animais falavam e discutiam até filosofia."

Periquito

Numa das noites no asilo, sonharei que, voltando a ser menino, vi o periquito do realejo puxando o bilhetinho da sorte. Será o sonho mais bonito que terei lá. Na noite seguinte, ficarei ansioso, à espera da repetição do sonho, mas verei só o periquito e, aproximando-se da gaiola, uma cobra gorda subindo lentamente a parede. Ela escorregará e cairá, escorregará e cairá, mas recomeçará sempre a subir.

Ele pode?

Ele pode estender a mão a qualquer uma dessas pessoas na avenida e pedir uma informação ou dinheiro. Talvez lhe deem, tudo é possível quando se trata de seres humanos, até a solidariedade. Mas pode ele parar alguém e dizer que já não come, que já não dorme, que só respira, que só vive, que só tem olhos para respirar, para viver, para chorar por amor?

Juventude

Naquele tempo, você tinha dezoito anos e julgava a poesia a mais digna das ocupações de um homem. Hoje, contemplando a metrópole do alto de um dos majestosos edifícios que seu escritório de arquitetura projetou e construiu, você sabe que estava certo.

Teu sonho

Gostaria de ver um pouco do teu sonho. Ver como pegas teu gato, sorris para ele, o afagas. Ver como pegas tua cachorrinha, esfregas o nariz no dela, a afagas. Ver se sonhas comigo, se me abraças, se me afagas.

O jogo

Se recorres à filosofia para encontrar respostas, estás jogando o jogo errado. A filosofia transforma uma pergunta em pelo menos dez outras, e, quando vês, já estás no centro de um labirinto que se transformará em pelo menos cem outros labirintos.

Opção

Um dia chegaste à conclusão de que escrever era uma necessidade para ti. Foi há muitos anos, já nem sabes quantos, mas desde esse dia escreves, escreves, e te esqueceste de viver.

A frase

Pensa que todos os livros que leu foram inúteis para o seu aprendizado. Tem a impressão de que a vida pode se resumir em uma frase de quatro ou cinco palavras. As três primeiras são: a vida é.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Opiniões

Ele se considerava um escritor pragmático. Os críticos discordavam: diziam que os personagens dele tinham menos humanidade que um cavalo de Tchekhov.

Reinado

Soberba, pões e dispões
De acordo com teu agrado.
Tu me submetes, impões
Sobre mim o teu reinado.

Juízo

Quando falo mal de um homem, ou do homem em geral, sei que posso estar exagerando, mas sei também que posso estar sendo condescendente.

Parti pris

Não esqueçamos que essa definição - animal racional - foi cunhada pelo homem.

Pretexto

Se a vida não é um pretexto para a arte, para que diabos ela serve, afinal?

Moldura

Toda vez que tira o quadro para limpar a parede, a empregada estranha que, pondo a mão na água do rio, ela não saia molhada, embora, atrás da moldura, a superfície esteja sempre úmida.

Respeito

O rio corria com maior fluência quando estava na sala. Agora, com a tela posta no quarto da dama enferma, que tanto a amou e louvou, o rio a respeita, e seu marulho é tão inaudível quanto o zumbido de um inseto.

O sapo

Só de madrugada, se as luzes da sala se acendessem, poderia ver-se o sapo, embaixo da pedra. O pintor o colocou ali, mas o achou tão feio que o submergiu.

Pretensão

Ser como um traço numa tela, tão leve que daqui a cem anos ninguém o notará, como ninguém o nota agora.

Conduta

Não sabe mais o que faz.
Tudo lhe provoca tédio.
Morrer não é o remédio,
Viver também não lhe apraz.

Mãos

Quem pode olhar para as próprias mãos e garantir-lhes a pureza? Temos por acaso controle sobre elas quando, imersas no sonho ou mergulhadas em pesadelos, põem um par de luvas saído não se sabe de que gaveta?

O feitiço

Ele gostaria de não ter sido tocado pelo feitiço da literatura. Gostaria de ter construído casas, edifícios, túmulos, coisas que não tivessem a pretensão de perenidade que tem a poesia. Coisas destinadas a ser destruídas pelo tempo e que não o obrigassem todo dia a se julgar um deus prestes a criar o mundo.

Pureza

Inquietante não é sermos atrozmente impuros, como somos. É saber que, quando falamos de uma fonte, de uma estrela ou de uma rosa, estamos usando um conceito que nós - justamente nós - criamos, comparando o que jamais seremos com aquilo que deveríamos ser.

Julgamento

Que tristeza é nós sermos feitos desta matéria, de nervos, músculos, sangue. Que alívio é nós sermos feitos desta matéria e podermos culpá-la de tudo, quando a atormentada consciência nos submete a julgamento.

A serpente

Assim que a disseste, a palavra amor caiu de tua boca e, rastejando, confundiu-se com a grama. Sabes que ela está ali, ainda, e cresce como as pragas de uma maldição. Nunca mais a pronunciaste, mas temes deixá-la escapar num sonho. Se o fizeres, ela te devorará a garganta, o coração e as tripas, assim como já engoliu tua alma pecadora.

Significado

Ter tanto tempo vivido
Para descobrir, pasmado,
Que tudo não tem sentido
E nada significado.

Consciência

Assumir o que há de mais humano em ti: a vileza, a inveja, a cupidez, a infâmia. Deixar cair a máscara de santidade e exibir ao mundo os teus dentes ávidos de sangue e de destruição. Tua alma há muito está perdida e sabes disso toda vez que tua boca saliva quando alguém menciona ter visto uma ovelha no alto da colina.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Apatia

Hoje pensou que gostaria de morrer. Mas, como sempre acontece com todas as suas outras ideias, não a encarou com o entusiasmo necessário, e logo a esqueceu.

Réus

Pelos teus infortúnios podes culpar um só deus ou, se fores politeísta, denunciar uma formação de quadrilha.

Sistema de cotas

Deveríamos economizar as palavras. Um sistema racional e equânime nos permitiria dizer até dez vezes na vida as palavras plenipotenciário, vasoconstrição, sintagma e anacoluto. Zeugma e antitranspirante teriam direito só a nove licenças. E assim por diante: oito vezes para latrocínio, sete para conspícuo, seis para frontispício, cinco para prolegômenos, quatro para sinalefa, três para dodecassílabo e duas para hemistíquio e similares. A palavra amor deveria empregar-se uma vez só, num momento, único e definitivo, em que apenas a amada pudesse ouvi-la.

Autocomiseração

Está velho demais, cansado demais. O que lhe restou de vontade se concentra agora em alimentar e justificar sua autocomiseração. Considera-se indigno, mesquinho, abjeto, e repete isso a si mesmo sempre, até que as lágrimas o absolvem outra vez da obrigação de ser alguém, de querer ser alguma coisa. Bebe as lágrimas em êxtase, e até sorriria, se isso não fosse contra os seus princípios.

Decifra-me

És como eram as esfinges,
Volúvel como as marés.
Nunca sei se és o que finges,
Ou se és aquilo que tu és.

Exortação

De vós nós escarnecemos,
Zombamos de vossa voz.
Amor, não vos merecemos,
Amor, livrai-vos de nós.

O mar

Sim, ir viver perto do mar e ficar a ouvi-lo, não como o ouvimos até hoje, mas como ele deve ser ouvido: um animal às vezes dócil, às vezes inquieto, que nos faz a gentileza de se mostrar todos os dias e de repetir suas canções e de falar conosco, e de nos contar histórias do tempo em que não existíamos, de sereias, piratas e baleias brancas, de estrelas que, por amor, em seu peito se afogaram, de tesouros escondidos nas suas entranhas. Ouvir o mar, ouvi-lo e, se nos chamar, ir até ele, até onde bate seu coração generoso, seguindo o caminho que as ondas nos indicarão, se formos os ouvintes certos.

Aquele do cachorro

Um dos velhinhos será conhecido como "aquele lá que tem o cachorro". No meu primeiro dia, perguntarei como será possível alguém manter oculto um cachorro num asilo em que um toco de cigarro no chão é motivo de abertura de inquérito administrativo. Estranharão a pergunta, como se eu estivesse duvidando da existência de Deus. Um dia, já no meu terceiro mês ali, quando eu tiver quase esquecido o cachorro, me verei pela primeira vez sozinho com o homem, no jardim. Perguntarei baixinho pelo cachorro, e o homem, mais baixinho ainda, dirá que o enterrou na véspera e me apontará um lugar no gramado. Eu colocarei a mão no ombro dele, para consolá-lo, mas ele, depois de me pedir segredo, contará não estar mais triste, por ter arranjado um gato. Perguntarei sobre a cor do gato e ele, olhando inquieto para todos os lados, me prometerá: "Um dia eu te mostro."

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A dor

E bem quando você pensa
Que a dor do amor se aliviou
Você vê que ela voltou,
Dura, forte, aguda, imensa.

Onde estão

Amor, onde estão agora os que te celebraram? O vento dispersou os sons dos últimos cantos, o sol sorrateiramente desaparece no horizonte, o menino da gaita e o do tambor já se foram, e o da flauta, assim que viu o primeiro sinal da noite, parou de soprá-la e pegou o caminho de casa, porque ao longe um lobo uivou e outros responderam. Eles sentem o cheiro de tua carne fresca e, na mata agora deserta, ouvem as batidas do teu coração jovem e desencantado.

A cantora

Uma tarde, irá apresentar-se para nós uma cantora que aplaudiremos muito no final, na esperança de que ela volte um dia. Ela agradecerá os aplausos e, ao se despedir, se desculpará por estar gripada e não ter podido cantar tão bem quanto desejava. Uma das irmãs de caridade definirá como exagerada sua preocupação com detalhes técnicos, dizendo que, depois dos setenta anos, quase todos os velhinhos são praticamente surdos.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Teu dia

Esperas resignado

Teu câncer
foi controlado
teu colesterol
equilibrado
e tuas radiografias
brilham como ardentias
no mar embrumado

Esperas resignado

Confias em que os dias
que vão e vêm
isentos serão
de doenças do pulmão
e cardiopatias

Reza pelo teu dia
e que Deus
te ouça as preces
porque mereces
e mesmo que não mereças
que de ti não se esqueça
e te favoreça
a Virgem Maria.

Direito adquirido

Quando o desembargador morreu e o livreiro que comprou sua biblioteca foi retirar os livros, de uma das páginas do Código Civil saiu uma traça de óculos que avisou: "Veja bem o que vai fazer comigo ou arque com as consequências. Eu tenho direito ao usucapião e não saio daqui nem que chova canivete."

Tonico

Ouvimos um alvoroço na cozinha e quando chegamos lá com nossos passos lerdos vimos as duas mulheres da limpeza em pé, cada uma sobre uma cadeira, enquanto a cozinheira do asilo, agachada, segurava um camundongo: "Ah, Tonico, por que você morreu?"

A única

Todas as palavras que te disse eram imitações, disfarces, contrafações da única que eu sempre quis dizer-te e tão poucas vezes ousei: amor.

Sessenta e quatro

Essa é a vida

Foram-se as ilusões
os anéis
as condecorações
os lauréis
foram-se os dentes
que se exibiam sorridentes
e no seu apogeu
e ainda um pouco depois
chegaram a ser trinta e dois

Ficaram as recordações
os versos amassados no terno
os cacos do amor eterno
e esta necessidade
de olhar as velhas fotos
e chorar sobre elas
para provar que sim
que foi verdade
que você foi aquele
que você ainda é este
que aparece sorrindo
para a mulher sorridente
naquela tarde de verão
na indesmentível adição -
trinta e dois
mais trinta e dois
são sessenta e quatro dentes.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Você

Você me instiga e me impele,
Me enche e me esvazia a taça,
Você me afasta e repele,
Você é ventura e desgraça.

Como outrora

Pedir carona a uma nuvem bem clara, dessas que os poetas comparavam a um carneiro, ir vagar sobre tua casa e, como nos livros de fadas, fazer cair sobre ti uma chuva de flocos brancos, como se o vento estivesse tosando carinhosamente o carneiro.

Receita

O melhor modo de viver a vida é morrer de amor.

Chá da noite

Que louco eu fui em enredar-me assim nas teias do amor. O amor é uma tolice só admissível em jovens. E que insano eu fui em arder de febre tantas noites, em consumir-me em falsas esperanças e supliciar-me com o tormento do ciúme. A maior emoção e a mais fascinante das aventuras de um homem de minha idade há de ser contrariar o médico e tomar meio cálice de vinho nas refeições e lançar um temerário dedo de rum no chá da noite.

BBB

Pelo menos uma felicidade eu terei no asilo. As irmãs de caridade - que Deus as abençoe - não deixarão ninguém assistir ao Big Brother Brasil.

Melhor

Que eu possa ter a virtude
De o teu amor esquecer
Ou Deus me ensine a sofrer
Melhor do que amar-te pude.

Pétalas

Despetalar uma rosa, bem devagar, como se um vento muito jovem e muito tímido estivesse despetalando sua primeira flor. Esquentar uma água e ir colocando dentro dela, uma a uma, as pétalas. Deixá-las flutuar um pouco. Depois, retirá-las com cuidado, colocá-las na palma da mão, ir até a porta da rua e soprá-las, uma por vez, na direção da tua casa. E pedir-lhes que te digam como está sofrida minha alma e atormentado meu coração. Que cheguem ainda mornas a ti, para saberes que não se extraviaram e não foram fazer, a outra, declarações que cabem somente a ti.

O casal

As idades dos dois, somadas, passam dos cento e quarenta anos. Há vinte não falam com ninguém no bairro. Dialogam incessantemente um monólogo, nas raras vezes em que saem, como se representassem uma peça. Ele, sempre dois passos à frente, geme e vai dizendo: "A vida é assim." Ela geme também: "Não, é bem pior."

Pois é

Do homem, abrindo a quinta latinha de cerveja: "Pois é, ela me dispensou assim, sem uma palavra, como se eu fosse um vendedor de vassouras tocando a campainha."

O cachorro

Em janeiro ou fevereiro, um desses meses quentes, haverá um acontecimento extraordinário. Sem conseguirmos dormir, com a cama empapada de suor, eu e o outros trinta velhinhos ouviremos um cachorro latir do lado de fora do asilo. Ele nos chamará só por uma hora ou duas, mas ficaremos acordados toda a madrugada, aguardando que ele volte. De manhã, na hora do café, uma das freirinhas, ao ver nossos olhos machucados de sono, comentará: "Vocês parece que andaram na farra..." Sorriremos, mas ninguém revelará nosso segredo. À noite, esperaremos pelos latidos, mas o cachorro não voltará. Virão então os meses frios e dormiremos novamente como dormem os velhinhos de um asilo, sem ansiedade e sem esperança.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sono

Me abate um cansaço enorme,
Tudo em mim arrefeceu,
Quem eu fui agora dorme,
Quieto como quem morreu.

Um gato

Em algum canto da tela, pinte um gato, ainda que seja um bem pequeno (talvez só mais um bibelô na sala que retratas). Nem sei para que lhe sugiro isso. Talvez para que você possa dar aos olhos dele o mesmo esverdeado azul dos teus.

O mesmo

Eu voltarei
depois de mais um
retiro prolongado
depois de mais um
suicídio malogrado
e olharão para mim
como sempre olharam
e verão o que sempre fui
um homem de bons projetos
decente e honesto
bem-intencionado sempre
e imutavelmente
fracassado.

Chaga

Se todas as vezes que eu disse amor me tivesse nascido na boca uma chaga, eu não estaria, ainda hoje, invocando seu santo nome em vão.

A quarta batida

Depois da terceira batida, mais forte que as anteriores, ela acendeu a luz do quarto, aproximou-se da janela e perguntou: "É você, Alírio?" O quarto toque a fez abrir, mas era só um galho da ameixeira. Ela ainda fixou o olhar por uns instantes no jardim, mas logo fechou a janela e voltou para a cama. Não conhecia ninguém mais tímido que Alírio. Apalpou os seios, lastimando o desperdício que era estar sozinha na mormacenta noite de verão, mas resignou-se, virou-se de lado e adormeceu, deixando a ameixeira queixar-se lá fora.

Hás de

Se optares pelo amor, hás
De prescindir do conforto,
E a doce calma da paz
Só gozarás quando morto.

Êxtase

Quando o amor deixa de pungir e afligi-lo, quando há uma trégua no seu sofrimento, ele vai buscar as recordações mais doloridas, traz todas à tona e convoca em regime de urgência as lágrimas, e se envenena com o veneno barato do youtube e faz tocar aznavours e ferrys e netrebkos e winehouses, e volta a gozar o êxtase dos supliciados.

Descarrego

Todo dia, debaixo do chuveiro, cumpria o ritual de livrar-se de palavras como ira, ressentimento, despeito, mágoa, rancor. Seu banho começava às oito e, às oito e dez, quando fechava a torneira, seu rosto estava desanuviado. Nos últimos dias, tem saído do banho só às oito e vinte: incluiu o amor na lista das palavras perniciosas.

As duas

Para duas situações nunca estamos preparados, por mais que vivamos: o amor e a morte.

Antropologia

Em certas comunidades, porém, o amor era tido como um ardil do Diabo para apossar-se da alma dos homens e fazê-la apodrecer.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Compensação

Me tratas como se eu fosse
Um garotinho bobão
A quem tu negaste um doce
E beijas por compaixão.

Costumes

Observaram-se entre os nativos alguns casos de aberração, como o de homens que não só trocavam o amor por um prato de lentilhas como eram eles que propunham a troca.

Incursão

Morreram todos. Um deles, que falava a língua dos invasores, implorou pela vida, mas lhe disseram, antes de lhe cortar a garganta, que seu chefe, assim como o amor, não poupava ninguém.

Cativeiro

O menino guardou dentro de uma caixa uma formiga e, depois, um pequeno raio de sol. No dia seguinte, só encontrou a formiga, que lhe pareceu maior e mais gorda. Decepcionou-se. Teria preferido que o raio de sol a engolisse.

Palhaços

Um dia, um pouco antes do Natal, irá visitar-nos uma dupla de palhaços que fará um show, e gargalharemos tanto que uma das irmãs de caridade dirá a outra: "Olha, os velhinhos parecem crianças." E por alguns minutos esqueceremos como podem ser longas e apavorantes as noites num asilo, lamentando, quando formos para a cama, que não pareçamos mais crianças para as irmãs de caridade e não possamos dormir com todas as luzes acesas.

Asilo

Haverá uma mulher que, num dia de visita, chegará com uma cachorrinha no colo e, quando ela se for, uma tristeza maior que a dos outros domingos pairará entre nós. E, em todos os domingos seguintes, quando ela vier, sem a cachorrinha, nossos olhos rancorosos se voltarão contra ela.

O apelo (versão final)

À noite vem me tentar
A terna voz dos suicidas
Prometendo-me outras vidas,
Chamando-me para o mar.

Roupa domingueira

Eu, como os outros velhotes, vestirei a melhor roupa e ficarei atento à porta. Os visitantes irão chegando, com a resignação de quem cumpre um dever, trazendo aquele chocolate com que presumivelmente apagam a culpa por visitas não feitas. Talvez alguém vá me visitar - haverá sempre uma possibilidade -, mas tu não estarás e eu agradecerei a Deus, se ainda acreditar Nele, por poupar-te da visão de um homem, que há muito perdeu o direito à esperança, tentando reencontrá-la num domingo ensolarado, na recepção de um asilo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Dein ist mein ganzes Herz

Com todo o meu coração,
Servo dos caprichos teus,
Te peço e te dou perdão,
Te peço e te dou adeus.

Impressão

Para a maioria dos escritores - apesar dos seus sonhos de grandeza, de sucesso e de sucessivas reedições - a primeira impressão é a que fica.

Probabilidades

Em Curitiba, é mais fácil encontrar um vampiro num restaurante vegetariano do que falar com Dalton Trevisan.

Visita

Toda vez que me disserem "você tem visita hoje", eu tentarei me iludir e irei para a sala de recepção com o sorriso antigo, aquele que abri para você naquela manhã e que domingo a domingo, até o último deles, se desfará melancolicamente.

Absolvição

Não tenha pena, mulher,
E nem se sinta culpada
Por minha alma atormentada.
Só morre de amor quem quer.

Celular

Eu terei virado fumaça numa fornalha alpina e meu celular, encontrado por um descendente bisbilhoteiro, terá no arquivo de imagens um rosto que ninguém saberá identificar.

Tudo certo

Pular do alto
bem do alto
mas só depois
de calcular bem
um dia ou dois
a trajetória do salto
e saltar só quando
não houver ninguém
nenhum homem generoso
passando ali por perto
e mulher alguma
metida a enfermeira

E que sendo um só
seja um salto certo
uma tentativa certeira
mais nenhuma
e você se espatife
satisfatória
espatifatoriamente
como seu coração se espatifou
a vida inteira.

Geometria

O amor é o caminho mais curto entre dois tolos.

Reconstituição

Faz um ano já que, numa manhã como esta, ele ficou parado por cinco segundos na porta, antes de ir embora para sempre. Faz um ano e, como todos os dias, ela olha outra vez para a porta, sorri como deveria ter feito naquela manhã e diz, inutilmente, a palavra que não disse: "Fica."

Felizes

Felizes aqueles que foram devorados pelo amor. Estão isentos das mornas recordações, das fotos esmaecidas e da ternura chocha como um café guardado numa garrafa térmica.

Cacofonia

O amor há de causar sempre sobressalto, aflição, ansiedade, susto, como um gemido nas trevas ou uma maçaneta sendo girada abruptamente do lado de fora da casa, à meia-noite. Rimar amor com paz não é poesia, é cacofonia.

Presente

Se algum presente pretendes dar à tua poesia, não me ocorre sugerir nenhum que seja melhor ou mais útil do que a tristeza ou uma decepção de amor.

O horror, o horror

Um dia, você se verá numa sala ampla, no meio de uma dezena de homens tão velhos quanto você. Um o chamará de Aristides, outro de Aristeu, um terceiro de Orozimbo, e você tentará lembrar qual desses é o seu nome. Vocês almoçarão e você chamará um de Seixas, um de Jarbas, um de Ernesto, e vocês se entenderão. O almoço terminará e uma freira, com ar de grande concessão, virá ligar a tevê num canal que estará passando um abominável programa de domingo, com um daqueles apresentadores que não tiram o sorriso da boca nem para escovar os dentes. Então você já estará sentado numa das poltronas doadas pelos beneméritos que investem na salvação da alma e quando um daqueles homens, um Natanael qualquer, fizer um comentário, você, que tanto amou Dostoiévski e Tchekhov, elogiará Silvio Santos.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Pelo jardim

Talvez nesse dia seja outra a enfermeira que me levará de cadeira de rodas pelo jardim e algo nela - os olhos quem sabe, ou os cabelos - me fará lembrar de ti, mas misericordiosamente as trevas logo sufocarão minha memória.

Esmolas

Nem sei quanto tempo faz
Que eu, outrora tão altivo,
De migalhas de amor vivo,
De esmolas que tu me dás.

Vingança

O que ele quer é levá-la
A uma pensão bem imunda,
Tirar-lhe as roupas, usá-la,
Chamá-la de vagabunda.

Total

Não te pedirei mais nada.
Já tive tudo: o amor pleno,
A decepção, o veneno,
A vida despedaçada.

Mesmo assim

Quando eu já um morto for,
Mesmo assim os meus destroços,
E o sangue gelado, e os ossos
Por ti clamarão, amor.

Covardia

Não tivemos coragem de assumi-lo, e o amor, órfão, vive hoje perdido pelas ruas, contando a história da nossa covardia.

Devíamos

Devíamos tê-lo sepultado. Era uma tarde de sol pleno e a terra talvez o aquecesse. Embora seu coração já estivesse gelado, mantinha-se belo, ainda, como tinha sido desde os primeiros dias, e talvez por isso o tenhamos conservado, revezando-nos na impossível tarefa de reanimá-lo, deixando-o junto ao peito. Devíamos tê-lo sepultado. Está enregelado, agora, nosso amor, e é roxo o rosto onde duas rosas, para nosso efêmero orgulho, por algum tempo brilharam.

Modus vivendi

Deixar o tempo correr,
Deixar a vida escoar,
Não ser, não ter, não querer,
Deixar a morte chegar.

Oração

Sejam remidos
Os meus pecados,
Os concebidos
E os consumados

E desmentidos
Os apontados
E redimidos
Os mais pesados.

Que eu possa ter,
Ó, meu Senhor,
O Teu perdão,

Em paz morrer
E em Teu amor
Ter redenção.

O vício

Que Deus me dê de volta todos os meus vícios - beber, fumar, jogar, fornicar - e me livre do pior de todos, aquele que está mais perto de me destruir do que já esteve qualquer outro: o amor. Que eu possa dormir sem pensar nele, acordar sem recordá-lo, respirar sem senti-lo nas veias, deixá-lo, abandoná-lo, escorraçá-lo, vomitá-lo até que suma qualquer traço dele em meu corpo e em minha alma.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Historieta

O amor o exauriu,
A dor o golpeou,
A vida o iludiu,
A morte o salvou.

Soneto do "se"

Se o amor não te fustigar,
Se não te fizer sofrer,
Se a pele não te rasgar
E o pâncreas não te comer,

Se não te chicotear,
Se os pulsos não te morder,
Se não te dilacerar,
Se toda não te roer,

Melhor deixares estar
Tudo como está, ou ver
Se aprendes a velejar,

A cozinhar, a coser,
E a vida assim desfrutar
Sem riscos tolos correr.

O nome

O melhor amor é aquele que se queima no próprio fogo. Digam o que disserem, o verdadeiro nome do amor deveria ser paixão ou insanidade.

Agora que

Agora que voltaste a dormir as tuas oito horinhas diárias, que saudade da insônia te unhando, das invocações e das preces, das pragas e das maldições que o amor punha em teus lábios naquelas madrugadas e que faziam tua boca sangrar como uma metafórica antecipação da aurora.

G

Agradam-lhe a poesia
palavras amáveis
e a cortesia

agradam-lhe gestos afáveis
carinhos suaves
e a fidalguia

porém agradam-lhe mais
à noite principalmente
a linguagem fremente
o jargão insolente
o calão indecente
e os dedos pontuais
buscando no ponto G
os doces ganidos
os incontroláveis gemidos
e os satisfeitos guais.

Final reescrito

Colocaram o amor num cesto e o puseram no rio, correnteza abaixo. As águas estavam revoltas, o sol se ocultara atrás das nuvens, carregadas de chuva, e relâmpagos faiscavam no céu. Os dois preocuparam-se por um instante, mas logo sentiram alívio. Estavam fazendo o certo. Hoje, toda vez que lembram a cena do cesto atirado ao rio, tentam - e sempre conseguem, meu Deus, sempre conseguem - convencer-se de que as águas estavam mansas e o céu azul.

Chamando-te

Por minha sorte mesquinha
Perdi o momento certo
E te chamo, amor, e minha
Voz se perde no deserto.

Saber morrer

Visto que a mim viver feliz não coube,
Por demérito ou por destino meu,
Que, assim como Bocage prescreveu,
Saiba morrer o que viver não soube.

Banho

Ela já se enxugou, mas no umbigo ficou parada uma furtiva gota, ansiando pelo instante de iniciar a venturosa aventura de descer mais um pouco, mais um palmo.

Síndrome de Adão

Depois que seus lábios foram pela primeira vez usados em exercícios de amor, o menino passou a evitar certas palavras. Branco, por exemplo, ele dizia quase inaudivelmente, e pureza fazia todo seu sangue afluir para o rosto.

Atalho

Antes que pudesse entrar na rotina de datas, comemorações e efemérides, antes que os beijos de ontem começassem a ser comparados com desdouro aos beijos de anteontem e os versos deixassem de eriçar a pele, sensatamente o amor se perdeu num atalho e desapareceu.

Amiga

És minha amiga e ouso crer que sempre serás. Não sei como faria se não pudesse conversar contigo, contar-te minhas aflições, tomar-te como doce confidente, dizer-te como me faz sofrer por amor aquela outra mulher que me atormenta e me dilacera e que, no entanto, é tão semelhante a ti.

Balanço

Ele a ama muito e nem pensa
Em ver-se recompensado.
Amar lhe traz tal agrado
Que até sofrer lhe compensa.

Efêmero

O amor há de ser um acontecimento extraordinário, limitado no tempo, brilhante e efêmero como a passagem de um cometa. Querer mais dele é querer perenizar o arco-íris e torná-lo, aos poucos, alvo de bocejos, como é hoje o sol, todas as manhãs.

Definir beleza

Eu estava falando a uma classe de trinta alunos muito jovens, entre doze e catorze anos, e num dos meus arroubos disse que a mais importante e a mais bela tarefa de um homem é buscar a beleza. Um garoto, de olhar sério e triste, me perguntou o que era beleza, e eu senti todo o drama de um tempo em que até as coisas mais intuitivas e espontâneas exigem definição.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Sabes

Sabes a que me refiro.
O amor, que provocou brados
E apelos desesperados,
Não causa mais um suspiro.

Hoje

Nos desfizemos de tudo.
O dia perdeu a cor,
A vida a beleza, e o amor
Parece um pássaro mudo.

Vezes dois

Que tu não me amas eu sei.
Importa-me pouco, ou nada.
Te amo tanto, minha amada,
Que pelos dois amarei.

Carneiro

No sonho, és uma pastora recolhendo teu rebanho ao anoitecer. Tu chamas e logo todos os carneiros correm para ti. Eu, o mais jovem e o mais travesso deles, demoro-me um pouco, para que chames só a mim e eu desfrute outra vez o timbre cálido de tua voz, que inspirará aos passarinhos, agora aninhados nas árvores para a noite, o canto com que amanhã despertarão o sol.

Mundo

Pus a mão no teu ombro e não havia para mim, naquele instante, europas, américas, ásias, áfricas, oceanias, não havia tumultos, catástrofes, revoluções. O mundo estava sob meus dedos e era macio como o pelo de um gato.

Amar

O amor foi a minha sina.
Amar foi minha missão,
Amar foi minha obsessão,
Amar foi minha ruína.

O que eu queria

Me deste paz, simpatia,
Carinho, consolação,
Me deste o teu ombro, a mão,
Me deste o que eu não pedia.

Deste razão ao meu dia,
Deste afeto, compreensão,
Porém não era isso, não,
Era amor o que eu queria.

Mudança

Deixamos o amor cair no caminho, mas só notamos depois. Pensamos em voltar para apanhá-lo, mas estava escuro, fazia frio e tínhamos fome.

sábado, 10 de dezembro de 2011

A palavra

A mais bela das palavras eu ainda não te disse. Ela é preciosa demais, está sendo criada ainda, no reino das palavras, e só a conhecerei num sonho - se a conhecer.

Chama-me forte

Amor, às vezes penso que me chamas, paro e vejo que é só o vento na roseira. Se me chamares, chama-me forte, amor, ainda que a rosa caia e se despetale.

Só ele

O único pretexto que temos para continuar vivendo é o amor.

Semelhança

Criamos Deus à nossa semelhança e não perdoamos Seus defeitos, mas queremos que Ele perdoe os nossos.

O estilo

Estudei teorias, li todos os livros que pude, busquei o estilo, e hoje gostaria de escrever aqueles textos que com sete anos eu fazia, com meu lápis Johann Faber número 2, olhando uma gravura pendurada na sala do segundo ano primário: eu vejo o menino, o menino é bonito, eu vejo o cachorro, o cachorro é branco, o cachorro é do menino, o cachorro branco do menino é bonito.

Navio

Passaste como um navio
Pleno de luz e barulho.
Depois de ti, o marulho,
Depois de ti, o vazio.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Lareira

Foi muito amor. Lembrá-lo, hoje, é tão triste quanto recordar uma lareira crepitante numa noite do inverno de 1950, na sala de uma casa que não existe mais e cuja memória se foi também, acompanhando aqueles que a habitaram e a morte levou.

Contradição

Amor, quem há de chorar
As tuas vítimas, quem,
Se elas o teu mal em bem
Insistem em transformar?

Tão macia

Ter a mão tão macia para ti que, quando eu a passar em teus cabelos, penses que é o vento outra vez brincando de desmanchá-los.

Recompensa

Se um dia tu me apanhares,
Deixa-me por favor vivo.
Se tu, amor, me matares,
Como serei teu cativo?

Rótulo

Nunca escreva três livros sobre um assunto. Mesmo que sejam sobre horticultura, logo alguém lhes colará o infame rótulo de trilogia.

Só a primavera

O sol bateu à nossa porta, convidou-nos a passear. Era manhã, e, bocejando, fomos até a janela: ah, era só a primavera que tinha chegado, mais uma. Bocejamos de novo e preferimos ficar em casa, olhando as flores do vaso da sala. Nos dias seguintes o sol não bateu mais, nem era necessário. Sabíamos que lá fora estava a primavera, igual a tantas outras. Ficamos em casa. Desdenhamos também o verão e o outono. Não sabíamos ainda, mas ansiávamos pelo inverno, e, quando a neve veio anunciá-lo, sorrimos. Podíamos agora ficar em casa sem culpa.

Voyeur

O que o garoto teria visto, se não saísse por um momento da janela onde todas as manhãs espreita, seria a mulher sentada na cama, ainda de camisola, com uma perna dobrada sobre a outra, apalpando o menor dos dedos do pé. Talvez ele tivesse visto também os lábios dela se mexendo, embora não pudesse ouvir o que ela dizia: "Tá doendo, tá, meu amor? Hoje não vou pôr aquele sapato, pode sossegar. Se eu pudesse, te dava um beijo, meu lindo." Se ouvisse, o garoto incorporaria a frase aos seus fetiches matutinos.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Elas

Ao lado de tuas pernas
andam elas

Gostam de acenar ali
para uma amiga
e para um amigo acolá
e abraçam as costas
de quem abraças
e vão contigo
por onde passas
e tocam outras mãos
e tocadas são

Costumam ser calmas
e se conservam assim
bem-comportadas
mas logo se enervam
se aos teus cabelos
de vez em quando
não as trazes
ou se ao teu pescoço
não as levas
ou ao teu rosto

São ciumentas
as duas
um ciúme que se eriça
e as crispa
quando à noite
mãos que não elas
te correm pelo corpo
a buscar lugares
onde elas só elas
gostariam de te tocar

E te tocarão
vingativamente vivas
rancorosamente ativas
quando as intrusas forem
mera recordação.

De amor

Pudesse a morte escolher,
Morrer de amor gostaria.
Pode melhor morte haver
Ou superior honraria?

Comércio

Alguém virá colhê-las amanhã, alegres flores. Algumas serão postas num caixão branco, sobre o peito de uma menina. As outras tentarão disfarçar o inflado ventre de um industrial, para que não faça má figura diante dos filhos e dos netos.

A tela

Quando tuas mãos se aproximam, a tela abre amorosamente os poros e prepara-se para acolher tudo: talvez a grandiosidade do mar, talvez nuvens em forma de navio, talvez a altivez das montanhas ou, mais provavelmente, a simplicidade de uma mulher que, não se sabendo observada, com a perna apoiada numa cadeira, enfia negligentemente a meia até o ponto da coxa em que, alguns dedos acima, começa o úmido caminho da luxúria.

Porém

O amor morreu depressa. A vida, porém, mesmo sem sentido, insistiu em continuar.

Livraria

Lembro-me de ti
na livraria
com os olhos na estante
e a mão nas lombadas
com teu toque digital
de unhas não pintadas
apalpando a literatura mundial

Lembro que nunca
senti maior o ímpeto
de ser Dante
Cervantes Shakespeare
e ser levado por ti
para tua casa
e lido na cama
e sentir teu suspiro
na hora de Julieta
perguntar a Romeu
tu me amas?

E ser então Romeu
e dizer sim
o amor é meu amo
tu és minha ama
e te amo e te amo.

Sentido

Talvez um dia eu consiga
Fazer-te enfim compreender
O que é que eu quero dizer
Quando te chamo de amiga.

Natureza-morta

Na segunda manhã, a empregada notou a mosca sobre o frango, na tela, e com um estalar de pano a fez voar para longe e abdicar de sua ambição de coautoria.

Santificação

Mataram o amor há muito e largaram-no no porão. No início, tudo foi bem. Mas nas últimas semanas um odor de rosas sobe a escada, imiscui-se na sala, passeia entre os móveis e vai com os dois para a cama, à noite, carregando de culpa o sexo. Parece-lhes cada dia mais claro que ou se mudam de casa ou assumem o amor e o santificam.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Castigo

Te acenarei de longe. Não me verás - e encerrarei no bolso, como numa masmorra, os dedos que não souberam aprender as linhas do teu rosto e os contornos do teu corpo, os cinco infelizes guardiões que não conseguiram manter-te nem trazer-te de volta.

Só o teu

Não amo o amor. Tanto faz
Se é Eros ou se é Cupido,
Se tem ou não tem sentido,
Só amo o amor que me dás.

Bem mais

Te disse sempre, bem sei,
Que te amo muito, demais.
Desculpa-me, porque errei:
Te amo mais que isso, bem mais.

Aquela

Aquela flor, a mais bela,
Nao viveu mais que um momento.
Levou-a o primeiro vento,
Aquela flor, lembra? Aquela.

A falha

Desculpa-me. Em mim te entronizei rainha e te reverenciei como os egípcios reverenciavam o Sol. E te prestei tributo como se deusa fosses, e te exaltei como musa, e te louvei como o maior dos poetas louvaria a inatingível perfeição da beleza. Desculpa-me, eu falhei. Fiz isso tudo, e tudo isso é tão pouco para definir-te e expressar-te.

Racionais

Mataram o amor com a lâmina fria dos silogismos e depois foram ao restaurante, para o jantar de despedida. Sorriam-se como nunca. Sentiam-se magnificamente racionais e não lhes ocorreu olhar uma vez sequer para trás, para as flores, as lembranças e os versos que os seguiam esperando o milagre da ressurreição, que nunca esteve ao alcance da filosofia

Posteridade

Fechou-se para a vida, para a família, para os amigos, e lutou pelo reconhecimento dos pósteros. Morreu há dez anos. Na gaveta em que estão seus poemas vão se juntando outros papéis e logo as traças comerão tudo que lhes apetecer.

Rota

Meu caminho não é
para o alto
para a frente
para a certeza
inamovível do norte
nem para a posteridade
que reescreve a vida
e dignifica a morte

Meu rumo não é
um rumo
é um contrarrumo
e a minha rota
submersa em treva
me leva
ao suprassumo
da desgraça e da derrota

Para beber a água
do rio turvo
me curvo e me abaixo
e na superfície leio
que são vãos meus anseios
e que para os outros
não para mim
é feito o mundo

E o que me resta
de mais profundo
e me caberá até o fim
é esta sina
sempre esta
de olhar assim
para baixo
bem para baixo e bem
para o fundo.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ele

Às vezes ainda se lembram do amor, mas se constrangem e não o chamam pelo nome. Dizem apenas "ele", "ele", "ele": ele foi isto, ele fez aquilo, ele morreu.

Tolo

Tolo, tu bradas pela felicidade e exiges teu quinhão de alegria. Tempo chegará em que poder respirar sem aparelhos e dar cem passos por dia te parecerão os bens supremos.

Ata-me

Que encanto tem tua voz
Que assim me subjuga e enleia,
Que laços, cordas e nós,
Que sortilégio, que peia?

Que

Que magia, que feitiço,
Que irresistível vodu
Me prende a ti, o que é isso
Que só tu sabes, só tu?

Compromisso

Te louvo, celebro e canto
Teu encanto de mulher,
E assim farei sempre, enquanto
Em meu peito vida houver.

Benditas

Benditas palavras, jamais me trouxestes de volta o amor que vos pedi para invocardes, mas que alívio ofereceis para os meus desgostos, para a minha saudade e para as rejeições que supliciam minha alma.

A árvore

Te acostumaste a ouvir minha voz e não a distingues mais das outras. Eu grito, no meio da avenida ou na galeria, e olhas para todos os lados, menos para aquele em que estou. Ontem à tarde, tive uma esperança. Eu te seguia, enquanto caminhavas pelo parque quase silencioso, e te chamei. Olhaste para uma árvore, e eu quis ser uma pena de passarinho ou um fruto que a gravidade fizesse cair mansamente no teu colo.

UTI

Teus olhos e os meus, vermelhos,
Choram a inefável dor
De ver nosso pobre amor
Respirar por aparelhos.

Tarde demais

O Destino me avisou tão tarde que tu existias que, quando me pus a caminho para encontrar-te, meus passos já eram tão inúteis como os de quem viaja num carro preto, esperado por dois homens de enxada numa alameda sombria.

As três palavras

Eu devia ter dito só uma vez que te amo. Pensei que pudesse renovar a magia daquele momento, mas sempre que repito a frase as três palavras se gastam um pouco mais e aquilo que foi ouro tem agora tanto brilho quanto uma lata amassada de sardinha.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Apenas tu

Apenas tu, dia a dia,
Ouve meus prantos e queixas,
Apenas tu não me deixas,
Amada melancolia.

Aquele

Eu sou aquele fadado
A amar sem ser compreendido,
A dar sem ser retribuído,
E em tudo isso achar agrado.

Soneto da busca

Nos sonhos que tenho, pelos
Atalhos da madrugada,
Procuro-te, minha amada,
E os olhos teus quero vê-los.

E os beijos teus quero tê-los
E ouvir-te a voz adorada
E a mão manter aninhada
No ninho dos teus cabelos.

Procuro-te sempre, assim,
Do início do sonho ao fim,
E quando te encontro é triste

Descobrir, ao acordar,
Que terminei de sonhar,
Que é dia e que tu partiste.

Teus mundos

Tuas mãos tecem teus mundos,
Moldando-os do início ao fim.
Tens compromissos profundos,
Não tens tempo para mim.

Vir e ir

Que festa ver-te chegando,
Ao sol teu sorriso abrindo,
Que triste ver-te partindo,
Ao longe as mãos acenando.

Gps

Triste é o dia ter tantas horas, e a cidade tantas ruas, e eu ficar imaginando, em cada uma, em qual delas você está, e com quem.

Ziraldo

Se for participar de um evento literário, jamais aceite dar autógrafos na mesa ao lado daquela em que estiver Ziraldo. Os 1.236 leitores dele, impacientes na fila, contrastarão vivamente com aquele leitor (às vezes dois) que parará para perguntar a você de que lado fica a saída.

Livros

Fala-se muito do futuro dos livros no Brasil e diz-se que ele será brilhante. Não sei. Nas jornadas literárias e nas bienais a que tenho ido, as duas maiores filas são sempre a do cachorro-quente e a do wc.

Canção

O vento dedilha
teus cabelos
sopra-os como se fossem
os furos de uma flauta
e toca sem pauta
de puro ouvido
violonista egoísta
avarento flautista
uma canção só dele
e para ninguém
ou talvez só para ti
já que de repente
fechas os olhos sonhadoramente
e sorris.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Lota*

Devias saber, querida
Lota, que a vida não vale um
Queixume, uma dor sentida,
Nem uma gota de Valium.


* Lota de Macedo Soares, arquiteta responsável pelas obras do Aterro do Flamengo no Rio, na década de 1960, teve uma história de amor com a poeta norte-americana Elizabeth Bishop. Desfeito o vínculo amoroso, Elizabeth, que morou muitos anos no Rio, voltou para os Estados Unidos, onde Lota, tendo ido visitá-la, em Nova York, se matou tomando um frasco de Valium, morrendo em seus braços.

Indizível

Amor é aquela emoção
Que sempre se estudará
E explicação não terá
Nem nunca definição.

De tudo

De tudo que eu aprendi,
Só de uma coisa hoje eu sei:
Tudo esqueci, só de ti
Eu nunca me esquecerei.

Dezembro, 2009

Naquele dia, se eu fosse
Astuto, me conviria
Morrer. Ah, não haveria
Morte melhor, nem mais doce.

Mais um

Arcaico sistema este
de pretender num poema
dizer quanto se ama
e oferecer à amada
a lua as estrelas
e a perfumada alma
das flores

Quando ouvem
que outra vez
são invocadas
para ornar
novos amores
a lua as estrelas
e as flores
bocejam e dizem a rir
ah, lá vem mais um
que se julga Shakespeare.

Justiça

Foi justo sermos punidos.
Avisaram-nos como era
Fugaz toda primavera,
Mas nós não demos ouvidos.

Conversa com Neusa

"Foi uma noite só, nunca mais pus os olhos nele, Neusa. Me deixou de barriga e sumiu. Meu Bruno hoje está com catorze anos, é alto e forte, graças a Deus. Eu ralei todo esse tempo, só eu sei quanto. Só não virei bolsinha. Hoje a coisa melhorou. Sou quituteira e vendo coxinhas e empadinhas no bairro. O que eu ganho é pouco, mas eu vou levando. O Bruno, coitado, é que faz as entregas, quando não é horário da escola. E sabe o que ele faz, Neusa? Com aquele tamanho todo, passa por baixo da catraca do ônibus, com as bandejas, quando o cobrador é legal. Outro dia uma bandeja abriu e voou coxinha pra todo lado. Se você visse como ele voltou chorando. Ele tem bom coração, o meu menino. Claro que isso não veio do pai, aquele safado que eu nunca soube onde se enfiou."

sábado, 3 de dezembro de 2011

Idade

Começarão os achaques,
A tosse, as erisipelas,
Perturbarão os ataques
De asma, com suas sequelas.

E, lembrando-se nessa hora
De quando tinhas sessenta,
Dirás que bom tempo outrora,
Quando eu não tinha setenta.

Adeus

Que morra minha alegria,
E todos os sonhos meus
Se desvaneçam, no dia
Em que disseres adeus.

A tosse

Ela tossia como um homem, mas era fascinantemente bela e tinha um nariz arrebitado que lhe dava um ar de petulante nobreza. O marido tinha medo de que a roubassem dele e esse receio se revelou fundado no terceiro ano de casamento. Ela foi morar com uma amiga da adolescência e hoje ele, toda noite, se lembra do seu corpo, do modo como ela o mexia, graciosamente quando ela queria, energicamente quando ele pedia, e do narizinho apontado para o teto. Quando consegue dormir, logo é acordado por uma tosse forte que soa ao seu lado. Sorri, apalpa a cama, apalpa, e, segurando-se para não chorar, recorda-se das noites em que sufocava a tosse dela com beijos.

Jornada

Chegando já ao final
Do meu sombrio caminho,
Tu me fizeste um sinal,
Mas tarde, e segui sozinho.

Mulherão

O homem apontou a loja: "Olha que mulherão." Olhei e demorei uns instantes para descobrir que ele se referia a um manequim. Concordei: era mesmo um mulherão e, no resto do caminho, o transparente tecido da camisola que a cobria foi tocado por minha imaginação inquieta.

Vinte e três invernos

Chegaste tarde demais
puseste as mãos
nos meus cabelos
no meu rosto
e neles havia neve
e te arrepiaste

Pus as mãos nas tuas
para aquecê-las
mas logo as retirei
porque meus dedos
eram dez lâminas de gelo
e tu me encaraste aflita
como se eu em estátua
quisesse transformar-te

Tu me encaraste e viste
ai de mim
nos meus olhos congelados
que vinte e três invernos
irremediavelmente
nos separavam.

Contas

Te devo, não nego, pago
Tudo, podes anotar,
Quando o momento chegar:
Beijo a beijo, afago a afago.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Freud em Manhattan

Woody Allen é o psicanalista mais acessível e eficaz que conheço: pelo preço de uma entrada de cinema, ele já me fez ver, mais de uma dezena de vezes, que meus problemas estão menos para uma tragédia grega que para um bom pastelão.

Te

Te devo muito. Te devo
Meu novo modo de ver,
De sentir e de escrever,
Te devo tudo que escrevo.

Pedra

Estou cansado de tudo.
Quisera pedra tornar-me,
Poder do mundo alhear-me
E ser cego, surdo e mudo.

Pedra

O ipê derramou suas flores na calçada e, pisando-as, teus pés por um momento se sentiram tão ornados de ouro quanto teus cabelos.

A loirinha

No primeiro dia de trabalho, a empregada pegou o pano e esfregou o rosto das três meninas da grande tela da sala com água e sabão. Na manhã seguinte, não a deixaram trabalhar. Despedida, ficou imaginando qual das três meninas a delatara. A principal suspeita era a loirinha que tinha a cara mais lambuzada de chocolate, que, das três, lhe pareceu aquela com mais cara de má.

Sangue azul

Azul é o sangue
que corre em tuas telas
rancoroso azul
que se recusa a adornar
o céu e o mar
e se imagina vermelho
e se quer sangue
e se carrega de ira
e não podendo o sol expressar
por proibições naturais
e imposição do vermelho
ataca as nuvens azuis
azula-as mais
incha-as como balões venosos
hematomatosos
fere-as e as faz sangrar gotas
berrante
escandalosa
inacreditável
vingativamente azuis.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Opinião

O que penso da vida? Não sei. Alguns gostam.

Quando se lembra

Quando se lembra de quanto amou, das loucuras que fez por amar e, mais que tudo, de todas as vezes em que chorou por amor, vai até o espelho, olha-se com severidade e diz: "Como você foi idiota, ah, como você foi idiota." E põe-se a chorar.

Recenseamento

Morreram muitos soldados, alguns oficiais e principalmente civis. Estão sendo contados os mortos, ainda, e registrados os feridos, que não foram poucos. A dona da maior casa da aldeia recebe parabéns porque as outras todas foram destruídas, enquanto a dela está quase intacta. Delicada, ela agradece, entreabre até um sorriso, mas, quando olha para o jardim, diz, chorando: "E a minha roseira, onde está a minha roseira?" Perguntou isso hoje a um homem que apareceu com um bloco, fazendo anotações. Ele respondeu que, por enquanto, roseiras não estão sendo recenseadas.

Musa

Se a um poeta menor
Inspiras tantos primores,
Como será quando fores
A musa de outro melhor?

Eu, ele

Quando eu te mandar um poema, imagina-me como o mais belo dos teus amigos. Talvez os versos fluam melhor e mais preciosas pareçam as rimas. E, se o mais belo dos teus amigos te mandar um poema, perdoa-lhe os possíveis defeitos e não penses em mim, para não vê-los maiores do que são. Ser magnânima é uma virtude que te cairá bem. Assim como os meus poemas têm mais beleza quando és tu que os inspiras, os dele também hão de um dia retratar-te com precisão.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Valor

Dizes não entender o que vejo em ti. Ah, como deprecias teus olhares, ah, que pouco valor tu dás aos teus sorrisos.

Reflexo

Depois que te conheci,
Tudo em mim se transformou.
Há muito não sou eu, sou
Só um reflexo de ti.

Apostila

Recusar missões
atribuições
lemas

Relegar obrigações
aporrinhações
problemas

Desdenhar comemorações
condecorações
emblemas

E cantar canções
e declamar poemas
e entre ser
muito e ser pouco
ser apenas ser
e viver apenas
na medida exata
do que exige a vida.

Joguinho

Eu te afagaria como se fosses um gato, te perdoaria e te suplicaria que jamais me arranhasses. Correriam os dias, e seriam tão monótonos, que num deles eu te provocaria, te importunaria, até que de novo me arranhasses e eu precisasse outra vez decidir se merecias meu perdão e meus afagos.

Protagonista

Estarás rodeado de parentes e amigos. Falarão de ti, e alguns, mais emocionados, falarão contigo, aos murmúrios. Serás o centro do espetáculo e, se pudesses, te levantarias, apesar de tua timidez, para fazer um agradecimento, ainda que breve. Mas como será bom não poderes, como será venturoso estares dispensado de tudo, até de fingir que rezas acompanhando o padre, como tantas vezes fingiste.

Pétalas

Às vezes me ponho a imaginar viagens para os teus dedos e, por alguns instantes, meu rosto parece a superfície de um lago tocada pelas pétalas soltas de uma rosa.

Jardim

Depois de tudo, bem sei
Que nada além de agonia
Em teu jardim colherei,
Dia após dia após dia.

Exceção

Tu deves bem entender
Que maravilhosa exceção
(Quando a regra é não te ver)
É ver-te, é tocar-te a mão.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Patti Smith

Ah, os sonhos

Ontem Patti Smith
me apareceu em um
tirou sua pele de cordeiro
ficou nua como um lobo
e disse me decifra
me decifra seu bobo
ou eu te como inteiro

Porque hesitei
ela os dentes em mim cravou
e me chamando de Rimbaud
Rimbaud meu rei
meu Arthurzinho
inteiro me devorou.

O clube

Disseram-lhe que ela era fácil e nada exigente, mas advertiram-no de que devia ficar preparado. Preparado para o quê?, ele perguntou, mas apenas sorriram e não esclareceram nada. No dia seguinte, quiseram saber como tinha sido, e ele disse que tudo bem. Ela havia sido mesmo fácil e nada exigente. E as costas?, quiseram saber. Estão em carne viva, que unhas ela tem. Isentaram-no de mostrar as marcas. Todos tinham sinais idênticos - eram como um distintivo para os que frequentavam a cama da mulher fácil.

Preferência

Das gotas que no teu banho para ele escorrem, o umbigo prefere as que passam pela tua boca.

Lagos

Não, os teus olhos não são
Lagos. Se fossem, num dia
Em que me dissesses não,
Num dos dois me afogaria.

Teu nome

Serei o mais triste dos velhinhos do asilo. Me acharão antipático, porque pouco falarei e saberão de mim só o essencial. Mas, toda vez que me surpreenderem sorrindo, me apontarão: "Olha, ele está se lembrando dela." E dirão teu nome.

Cotação

Se me perguntam como estou, não digo, mas deveria, que perguntem a você. Termômetro e cotação não são propriamente palavras poéticas, mas como elas se aplicam bem a você quando o assunto sou eu e minha alma.

Sabedoria

Conheces tão pouco a vida
e te lanças aos livros
e recorres aos sábios
e perguntas aqui e lá:
a sabedoria onde está?

E te respondem uns que é aqui
e te garantem outros que é lá
e entre lá e aqui
e entre aqui e lá
tu ficas oscilando
tu ficas hesitando
até que um dia
milhares de dias
depois daquele
em que te puseste
a buscar a sabedoria
em que saíste para procurá-la
descobres que envelheceste
que estás no mesmo lugar
e que nunca vais achá-la.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Pepitas

Escorrendo pelos teus cabelos, a chuva apanhou neles um punhado de ouro e começou a esparramar pepitas na calçada.

Tudo

Foi tanto amor, tanto, que
O pão que me alimentava
E até o ar que eu respirava,
Tudo, tudo era você.

Quando

Quando disseres adeus,
Que eu esteja muito absorto,
Ou surdo ou então já morto
E não ouça os lábios teus.

Woman

Se queres matar-me, é simples. Espera aquele momento, na noite, em que, segurando as lágrimas, não posso impedi-las porém de se mostrar à beira dos olhos. Coloca então no You Tube John Lennon cantando Woman. Terás três minutos para abandonar a cena do crime.

Amiga

Que bênção estar assim, sem nada para querer ou fazer. Se a morte viesse agora, eu me deixaria levar e talvez até pusesse a mão no seu ombro: vamos, amiga.

domingo, 27 de novembro de 2011

O plano

Um dia, vão te dizer que eu estou preparando um plano para subir à lua e lá escrever, bem grande, o teu nome. É mentira, não acredites. O plano já está pronto.

Belo quadro

Um dia, se lembrares, podes pôr-me em uma de tuas telas. Não precisa ser nada especial. Posso ser a espuma de uma onda, um fiapo de nuvem, algo que só tu saibas que sou eu, algo simples, que faça parte, embora mínima, de um desses tesouros que tuas mãos diariamente fazem. Eu ficarei ali, espuma ou fiapo, e meu coração se encherá de orgulho toda vez que alguém disser: "Belo quadro, este."

O rapaz

Depois de dar dois beijos, o rapaz tímido, que havia levado trinta encontros para ousá-los, avisou à garota que precisava dizer uma coisa. Ela se preparava para dizer-lhe que ele poderia ousar mais, ousar tudo, quando ele, pegando-lhe a mão, perguntou: "Você me desculpa? Perdi a cabeça. Eu não devia ter feito isso."

Preciosa

És preciosa. Se estou tenso,
Só tu podes acalmar-me,
Porque só tu, amor, tens o
Segredo de hipnotizar-me.

(Inspirado pelo verso "You have the power to hypnotize me", de Cole Porter, em "You do something to me".)

De nada

Não tenho vontade mais de nada. Preguiça de tudo: de me vestir, de olhar para a árvore que balança seus braços para me cumprimentar, para a flor que se abre no caminho. Preguiça até de dormir. Chegou a hora de reconhecer que minha velhice tem direitos adquiridos e consolidados.

sábado, 26 de novembro de 2011

Cenário

É quando o amor morre que notamos que todo o resto morreu também ou, se permaneceu vivo, é tão desprezível e inútil quanto o cenário de uma peça que jamais se reencenará.

Ele

Sentava-se aqui nesta poltrona, onde eu me sento agora. Sinto a rigidez do couro. Quando ele estava vivo, seus braços me enlaçavam a cintura e seus beijos me bafejavam a nuca. Fazíamos isso sempre que podíamos e seríamos felizes se não fosse o medo de sermos surpreendidos pela mulher, que tinha o passo leve. Depois que ele morreu, ela pediu que eu continuasse trabalhando aqui, disse que eu sou de confiança. Sempre que posso, eu me sento nesta poltrona e finjo sentir os braços dele em mim. Às vezes, quando a mulher vai passar o dia com a irmã, eu me deito na cama, que ele e eu usamos, infelizmente não tanto quanto queríamos.

Braguilha

A garota estava recolocando a saia quando o homem lhe estendeu o dinheiro. Ela se queixou: "Aqui só tem dez. Nós combinamos vinte, lembra?" O homem balançou a cabeça e sorriu um sorriso de dentes amarelados: "Ando com a memória fraca." Ela: "Eu tenho quatro irmãos. Com estes dez, dois vão passar fome." O homem começou a abrir a braguilha de novo: "Vão nada. Depende só de você." Ela deixou escorregar a saia para o chão. "É isso aí, você entende as coisas logo", o homem disse, tirando outra nota do bolso.

Quando eu me for, terá ido
Aquele que por ti, só,
Viveu a ventura e o dó
De só por ti ter vivido.

Moleca

Para mim nasceste ontem
és uma molecona
uma guria
que comigo brincas
como uma gata nova
com um rato velho brincaria

Me pegas na sala
me levas para o canto
me trazes para o centro
me enrolas e desenrolas
me deixas largado
e de novo me agarrras
me cravas as garras
e quando eu já
do jogo imbuído
peço que as garras
me enterres mais
e suplico
e imploro
mais mais mais
me atiras para o lado
ratinho asqueroso
contigo não brinco jamais.

Como um gato

Trago-te em mim como quem carrega um gato muito jovem e querido e que ainda nem sabe miar, mas a todo instante me demonstra seu amor, fincando as garras em minha camisa, se ameaço tirá-lo do colo e colocá-lo no chão.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Ah

Ah, como me agradaria
Dar-lhe o que você merece,
Ah, quanto amor lhe daria,
Se em mim tanto amor houvesse.

Hoje

As mulheres me davam lugar nos seus sonhos e um travesseiro em sua cama. Hoje, quando me veem, me oferecem um sorriso amistoso e assento no metrô.

Catalogação

Gostaria de colocar o amor na categoria das coisas simples. Ele ficaria entre as flores, os pássaros, as nuvens, a brisa. Mas as flores me desassossegam, os pássaros me entristecem, as nuvens me pesam, a brisa me enlouquece?

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Quintal

Na tigelinha azul, o leite amornado pelo sol se arrepia quando sente as primeiras lambidas da áspera língua do gato.

Amadora

Molecona, gostava de dar-se aos rapazes na areia, ouvindo o rugido do mar. Havia noites em que eram três. Um dia, um quarentão lhe garantiu que ela poderia ganhar muito dinheiro. Ela trocou a praia por uma cama e, como lhe dissera o homem, em dois anos comprou um apartamento, de frente para o mar. Recebe homens que marcam com ela pelo telefone e às vezes, com o carro que também comprou, vai ao encontro deles em todos os pontos da cidade. Da janela do apartamento, ou de dentro do automóvel, olha para a praia e sente no peito uma angústia, uma saudade profunda do tempo em que se dava na areia, por amor ou diversão, e depois, pegando sua bicicleta, voltava saciada para casa, como uma garota que se cansou de brincar.

O rosto

O cirurgião plástico restaurou o rosto dela, devastado na infância pela fervura de um caldeirão, e foi um trabalho tão benfeito que ela agora, quando se deita com os rapazes, não lhes diz mais obrigada.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Por onde andas

Nem imaginas
por onde andas
a horas tantas
da madrugada
quando tua ausência
me é cobrada
por minha alma
atormentada

Nem pressentes
por onde caminhas
quando em tua cama deitada
adormecida
dormem também
tuas mãos
porém não dorme
a minha

Não sabes
que me tocas a campainha
e sobes a escada
e entras no quarto
e te deitas na cama
onde te espera e chama
minha alma enfim
apaziguada.

Dom

Que possas ter a certeza
De ser um trunfo só teu,
E não galanteio meu,
O dom de tua beleza.

Cupido

No dia em que me alvejou
Com suas setas certeiras,
De ti o Amor me tornou
Teu servo, embora não queiras.

Em mim

Houve um momento
no dia
em que te senti em mim
tão toda
tão inteira
que me apalpei
e parecia
que eras tu
quem me apalpava
ou tu quem tornava
certeira a mão
com que eu te sentia.

Balanço

Do sobe e desce da vida,
Do que à ventura nos leva
Ou nos encaminha à treva,
És tu, amor, a medida.

Soneto que apela à memória

Talvez te lembres de mim
Quando outros forem os dias
E as dores e as alegrias
Tiverem chegado ao fim.

Talvez te lembres de que eu
Te confessei com ardor
Que sempre foi teu amor
A força que me moveu.

Talvez te lembres (não sei
Se por amor ou bondade)
De tudo que disse a ti

E sintas que te falei
Somente e sempre a verdade
E que jamais te menti.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

De tudo

De tudo que te disse
de todas aquelas palavras
que te enalteceram
que te exaltaram
e a lua e as estrelas
te prometeram
e nas noites insones
te chamaram

De tudo que te disse
de todas aquelas palavras
de todas de todas elas
de nenhuma me arrependi
a não ser daquelas
que te enalteceram
que te exaltaram
que te prometeram
que te chamaram muito
quando deveriam
te enaltecer
te exaltar
te prometer
te chamar muito mais

Arrependo-me sim
do que não te disse
de tudo
que na hora extrema
de tudo que no fim
eu não poderei sequer
pensar em dizer
e que é mais
bem mais do que isto:
que te amo
que te amo mulher
que te amo demais
que te amo muito mais
do que um homem
pode amar
e muito menos
do que hás
de sempre merecer.

Minha alma

Fechaste os olhos, dormiste. Deves ter sonhado, porque sorriste, como alguém que num navio descobre que, para onde olhe, é sempre mar. Fazia frio, e eu te cobri, minha alma, com o meu melhor cobertor. Sentei-me ao teu lado e, como se ainda precisasses, contei-te histórias em que ovelhas, muitas, pediam para ser contadas. Adormeci, foi só um instante, mas fatal. Quando fui ajeitar o cobertor sobre ti, minhas mãos ficaram geladas. E eu te beijei a testa, fria, fria, e meus lábios, frios, frios, disseram teu nome, minha alma, e as sílabas caíram como lascas de neve sobre teu rosto.

Tardio

Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda
podia ver em ti
a cor da alegria
e apalpar
tua polpa macia
quando eu tinha
ainda dentes
e as tuas sementes
podia com minhas mãos
à terra lançar

Fruto tardio
quem me dera
tivesses vindo
quando eu ainda podia
olhar-te e ver-te
olhar-te e ver-te apenas
sem a perda lastimar
de não poder morder-te
de não poder provar-te
de não poder ter-te

Quem te dera
ah quem te dera
fruto tardio
não tivesses frutificado
estivesses ainda florindo
pelo sereno banhado
e perolado pelo rocio.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Como?

O que à minha alma direi
E a todos os sonhos meus,
Me diz, como viverei
Se me disseres adeus?

Todas

Gostaria de ser como aqueles fanfarrões antigos, que prometiam às amadas trazer, para elas, todas as estrelas do céu. E, numa noite de escuridão total, enquanto todos estivessem olhando intrigados para cima, notando a falta delas, gostaria de deixá-las todas no teu colo e, para que não tivesses motivo nenhum para duvidar de mim, começar a contá-las contigo.

O dia

Teu dia chegará. Não
Te apresses. Terra haverá
E já se habilita a mão
Que nela te enterrará.

Preservacionismo

Mirou o céu e lançou o anzol. Veio uma estrela tão miúda que ele a arremessou de volta.

Cafeteria

Só tu não percebias
que tudo em que tocavas
que tudo em que mexias
que tudo mulher tudo
a xícara e a colher
tudo melhor ficava
até o açúcar mais doce
como se mais açúcar
como se mais que açúcar fosse

Só tu não percebias
tuas magias
só tu não notaste
tudo que podias

Ah por que não percebeste
ah por que não me transformaste
ah por que não me levaste
em tua bolsa como um coelho
um objeto qualquer
um lenço um espelho um batom
por que não me mudaste
por quê, mulher?

domingo, 20 de novembro de 2011

Prospecção

Dizer o quê? Que palavras
Definirão o tesouro
Que no meu peito tu lavras,
Que nome dar a isto, a este ouro?

Amiga

Permite-me que eu te diga
Que enquanto eu vivo estiver
Sempre que amor disser
De ti falarei, amiga.

Meu vício

Viciei-me em ti, e te injeto
Em mim, te inalo, te fumo,
Te busco, imploro, consumo,
Amor, meu vício dileto.

Vulcão

Vulcão extinto, leão
Pelos fuzis abatido,
Que é feito do teu rugido,
Das chamas, da ebulição?

Aquela

Todas as noites ele olha para as estrelas. Já viu dezenas, centenas, dezenas de centenas, não viu ainda aquela que procura. Ele a identificará, quando a vir, porque leu num texto persa que a suprema beleza só se deixa ver uma vez, e que o prêmio para quem a contempla é a venturosa cegueira.

Podes

Podes fazer-me morrer
Com essa mesma boca tua,
Com essa mesma pele nua
Com que me fazes viver.

sábado, 19 de novembro de 2011

Tentação

Por que olhas para as estrelas
Como olhas para as maçãs?
Louco, hão de ser todas vãs
As ambições de colhê-las.

Os vinte

Beijou-lhe os dedos, os dez,
E, engendrando igual carinho,
Pôs os lábios no caminho
Que desce das mãos aos pés.

Questão de dois-pontos

Revisor - revisor de verdade, desses capazes de se separar da mulher porque um não concorda com o outro quanto ao uso da mesóclise - só se importa com fatos de um tipo: os gramaticais. Lembro-me de um desses revisores mostrando a outro a manchete de primeira página do Jornal da Tarde, décadas atrás. O título, em letras garrafais, como se dizia na época, era "Tragédia no mar; mil mortos". "Você viu que absurdo?", perguntou o primeiro revisor. O segundo concordou: "Caramba! Aí não era ponto e vírgula que deviam ter posto, o certo seriam dois-pontos." O primeiro chamou o segundo de insensível e desumano, dizendo que importante era o número de mortos, não a correção gramatical, e os dois quase se pegaram a tapa. O segundo fez carreira de revisor e redator em grandes jornais e revistas. Do primeiro não tenho notícia. Deve ter mudado de profissão e é provável que esteja, talvez com dupla personalidade, como convém aos heróis, salvando pessoas pelo mundo afora e adentro. Mas eu não o chamaria para acertar a pontuação de um texto, se precisasse.

Mários e Fernandos

Mário de Andrade
era trezentos
trezentos e cinquenta
e Fernando Pessoa
disse alguém
que quase cem

Talvez quinhentos
fossem os dois
se bem contados
e foram todos tocados
pela magia
suprema da poesia

Eu sou um só
somente um
talvez nem isso
quem sabe meio
possivelmente zero
zero vírgula nada
zero vírgula zero
alguém ninguém
algum nenhum
neres ninharia
dotado pela varinha errada
do dom do prosaico
e da antimagia.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Parágrafo final

No começo, entendiam-se por monossílabos, e até sem palavras. Bicavam-se ternamente, como passarinhos, e isso lhes bastava. Hoje, desentendem-se em longas mensagens, cujo parágrafo final mais parece escrito por um escritório de contabilidade: favor acusar o recebimento desta.

Ingênuo

Ingênuo é o homem que ao amor se entregou um dia. Mais ingênuo é o que sempre resistiu.

Esquecerás

Esquecerás os ímpetos da juventude, as presunções, as labaredas da paixão, a volúpia do álcool, as rebeldias e, de mão dada com a velhice, farás tranquilamente o teu último caminho, e abençoarás o sol, se for ameno, e a água, se houver.

Quantas mais

É pena que eu não fosse ainda mais tolo quando te conheci. Quantas vãs esperanças mais, quantas ilusões, quantas doces mentiras eu poderia contemplar agora, quando olho para a terra onde sepultei todo o meu tesouro.

Ao vencedor as batatas

Com estas mãos matei
um dia um jovem
que tinha o meu nome
sua esperança calei
seus sonhos reneguei
seu sangue bebi
seu corpo enterrei

Ele amava
a poesia
eu a sabedoria
ele o lirismo
eu o pragmatismo
ele o incerto
e eu decerto
o certo
nada senão o certo

As estrelas
que ele idolatrava
- ele, não eu -
há muito já
não pode vê-las
porque a terra
seus olhos tolos comeu

Dele
nem os restos restaram
enquanto eu
eu e estas mãos
que o mataram
chamamos o garçom
e perguntamos
o que na cozinha
nos prepararam

Me alimento só do bom
nada de ambrosias
de etéreas iguarias
só frango
vaca leitão

E aqui onde alimento
minhas sete décadas
bem pesadas
não entram estetas
artistas ou poetas

Fora todos fora daqui

Que fiquem na rua
com seus secos intestinos
morrendo de fome
e latindo para a lua
sonetos alexandrinos.

Constância

Continuo escrevendo mal, com a mesma dedicação de cinquenta anos atrás.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Ramerrão

Falo de amor. Já não sei
Muito bem do que se trata,
Se nos faz viver, se mata,
Mas falo ainda e falarei.

Voz

Aquele autor que descreve a voz como um dos caracteres sexuais meramente secundários, certamente jamais ouviu aquela que, mesmo palidamente reproduzida em minha memória, faz soar todos os violinos de minha alma.

Recompensa

Quando os dedos se queixam de que estão sendo usados em tarefas prosaicas, ela os mergulha por um instante nos cabelos, e eles voltam cheios de ouro.

Honraria

Morreram por amor
e foram condecorados
com uma flor
um lírio talvez

Não lhe sabem o nome
mas sabem que o mereceram
o lírio ou o que for
e sorriem ainda
e se orgulham ainda
porque morreram
na única trincheira
sob a única bandeira
pela qual é honroso
perder a vida.

Catorze anos

A mão sobe e desce, sobe e desce. A imaginação divaga por lábios, altivas nádegas, sexos mornos, cálidas coxas e, quando se detém nos úberes seios, a mão, subindo e descendo, faz jorrar o ubíquo leite.

Barcos

Já tantos barcos voltaram
já todos

Falta um só
aquele onde ia o amor
e é mentiroso o ardor
com que sorridentes
vamos abraçando
os sobreviventes

E olhamos ainda para o mar
para a bruma
para as ondas que vêm
e não trazem mais
esperança nenhuma.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Surto

Amor eu precisei de ti
esta noite
e te procurei
como um viciado
buscando o pico abençoado
o cheiro a erva o pó
e ofereci a alma ao diabo
e o corpo ofertei
e me retorci
e me curvei
e minha língua desenhou
obscenidades
e me algemei
e me esfreguei
em tudo e em todos
por mais
por menos
por bem menos
por um pouco
por quase nada
por um punhado de pó
por um tapa
por uma tragada e tu amor
tu tu tu amor
não me deste nada
tu me deixaste só
como uma cadela sarnenta
e rejeitada
raspando o sexo sangrento
na calçada
uivando para a lua
e nas convulsões
gritando por ti
amor amor
ahmor
aimor

Só depois

Gaba-se de falar com os mortos. Se alguém pergunta o que eles lhe dizem, responde que quase nada. Prometeram dizer-lhe tudo quando se tornar um deles.

Ah, adjetivos, ah, advérbios

Que abominável é essa mania dos adjetivos. Não podem ver um substantivo, que logo o seguem, o perseguem, o qualificam, o desqualificam, o exaltam, o execram. É sair o sol e imediatamente um adjetivo o rotula de risonho, ou de carrancudo, de magnífico ou de presunçoso. Mas piores são os advérbios. Deixam em paz os substantivos, mas atormentam os adjetivos, os verbos e (vergonha da espécie!) os próprios advérbios. Esperam um adjetivo definir um homem como tolo, aguardam que um verbo faça esse homem voltar para casa e acrescentam "inesperadamente", para que o infeliz encontre, desavergonhadamente enfiado na cama da mulher, o melhor amigo usufruindo muito voluptuosamente suas quentes e proibidas carícias.

Cuidado

Se você se deparar com um verbo defectivo, fique atento. Eles são ardilosos como a raposa e o gato que engambelaram Pinóquio. Apresentam-se estropiados e são aparentemente inofensivos, mas muitos revisores perderam a carteirinha e muitos ainda a perderão antes que o mundo exploda, expluda ou muito pelo contrário.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Crase

Diante de um caso difícil de crase, devemos manter o sangue-frio. Um sorriso confiante talvez seja também útil, desde que em nenhum momento a crase possa considerá-lo um escárnio. Há crases extremamente vingativas.

Suserana

De tuas mãos sou cativo,
A ti me rendo e me entrego,
Me dás a vida que vivo,
Às outras todas me nego.

Vinte anos

De todas as ingênuas esperanças e as patéticas burrices dos meus vinte anos, a maior foi a crença de que, trabalhando com seriedade, poderia chegar um dia a escrever como Machado de Assis.

O seguro

Na noite em que o menino pobre morreu, nenhuma nova estrela surgiu no céu suburbano e nenhum violino soou em tom de elegia. Na esquina, o bar lançava para a rua o som das bolas de bilhar se entrechocando. Na casa do morto, depois de meia hora de choro, a mãe e o pai, pensando que talvez pudessem enfim fazer um puxadinho no fundo, ouviam esperançosos um primo metido a advogado, que explicava como deveriam agir para receber do atropelador do menino a indenização do seguro.

Seis décadas

Ele olha para a garota como, há cinquenta anos, havia olhado para o balcão de doces. Se ela, como o dono da confeitaria, tantos anos atrás, se condoesse com seu olhar faminto, ele poderia dar à língua e à boca prazer idêntico ao antigo - provavelmente não muito mais que isso.

Sozinho

Houve um momento, no velório, em que, tendo chegado um visitante ilustre, a família se alvoroçou para recebê-lo, e o morto ficou sozinho, sob as velas. Tinha sido uma situação comum nos seus setenta anos de vida, mas dessa vez ele não pôde resmungar.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Paz

Fechar os olhos, sentir
Que tudo - o certo, o errado,
O bom, o mau - é passado,
E para sempre dormir.

Norte

Se em cada passo que eu desse
Tu fosses o rumo e o norte,
Talvez viver me aprouvesse
E eu não cortejasse a morte.

Que nome

Não sei que nome daria
A este sentimento louco,
A esta abençoada agonia.
Amor? Não. Amor é pouco.

Já tanto

Amor, já tanto sofri
Por tuas mãos e poder,
E tantas vezes morri.
Amor, me faz renascer.

Pergunta

Colocado na caixa, não miou. O menino olhou para ele pela última vez, pôs a tampa, envolveu toda a caixa com fita adesiva e pegou uma tesoura. Fez meia dúzia de pequenos furos. À mãe , que acompanhava tudo com os olhos úmidos, ele, também começando a chorar, perguntou: "Gato morto respira?"

domingo, 13 de novembro de 2011

Recurso

Te fecho os lábios com um beijo
Não para que prazer sintas,
Mas para não dar-te o ensejo
De que, falando, tu mintas.

Fantasma

Com o tempestuoso vento da madrugada, uma fronha desprendeu-se do varal, e a tartaruga, subitamente transformada em fantasma, assombrou as árvores, os passarinhos que nelas dormiam e os dois cachorros.

Melhor agora

Nesse tempo eu ainda andava,
Mas em cada um dos meus passos
O meu caminho levava
À dor somente, e aos fracassos.

Presságios

Entrei no mar
fui entrando
devagar
devagar
como um barco pequeno
num dia ameno
vogando pelo
prazer de vogar

e fui avançando
avançando
já como um grande navio
tocado pelo desafio
até ali de onde
não se pode mais voltar

onde os presságios se cumprem
e os naufrágios
não se podem evitar.

sábado, 12 de novembro de 2011

Compromisso

Pegar-te a mão, apertá-la,
Trazê-la ao meu coração,
Deixá-la assim, não soltá-la,
Nem mesmo na extrema-unção.

Arena

Toda manhã, como outrora, muito outrora, a vida nos acorda, nos levanta e nos leva, trôpegos, para o centro da arena. Ali ela nos fustiga, nos reanima, reacende nos nossos ossos cansados sua fagulha. Estamos surdos já, e cegos, não vemos o toureiro nem ouvimos a multidão, porém investimos com o que nos restou de orgulho. Mas o que tínhamos de touro em nós ficou em algum outro tempo, em alguma outra arena.

Simples

Todo esse ser ou não ser
Que move a filosofia
Se expressa numa teoria:
Nascemos para morrer.

Arquitetura

Estou cansado. Meus ombros
Já não me suportam, cedem,
Misericórdia me pedem,
E logo serei escombros.

Labirinto

A vida se diverte conosco. Enfia-nos no seu labirinto e nos mantém ali, andando, andando. Quando paramos, porque nos parece impossível haver saída, ela nos provoca com um filete de sol que nos incita a segui-lo, como se soubesse o caminho, e voltamos a andar, a andar. E estamos sempre onde estivemos e onde estaremos, ontem, hoje, amanhã. Já nem queremos a saída, queremos o fim, queremos o minotauro, e o buscamos agora, com nossas últimas forças. Quando pressentimos que também o minotauro, assim como a saída, não existe, a vida faz soar um mugido, um grito, um chamado que nos faz voltar a andar, a andar, oferecidos em sacrifício.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Terramarear

Às vezes, folheio livros de minha juventude - aventuras marítimas da velha coleção Terramarear - e lastimo não ouvir mais o tinido das espadas e a retumbância dos berros dos homens empenhados na luta no convés em chamas. Sentindo como envelheceram minhas mãos, as páginas me recusam as emoções de outrora. Os piratas dormem, as ondas não se enraivecem, os navios bocejam. Se meu neto as toca, para ele - e só para ele - voltam as batalhas, o sol lambendo o sangue dos feridos e o mar engolindo sem discriminação, com sua garganta imensa e generosa, vencedores e vencidos.

Tecelã

Sempre que olho para as tuas mãos, assombra-me saber que, entre tantas tarefas importantes, elas também - embora talvez nem tenham consciência disso - se ocupam da mofina atividade de fiar e desfiar meu destino.

Suicida

Seu último desafio:
Olhou para o chão, lá do alto,
Mirou no centro do asfalto
E se atirou no vazio.

O poeta

Se entre os excursionistas há alguém que revele interesses culturais, o guia - depois de mostrar o rio, que o folheto indica ser "o mais piscoso da região", e a famosa Cachoeira das Três Quedas, "inigualável por sua beleza" - passa pela Casa do Poeta, em cuja varanda, em dias de sol, pode ser visto, em sua cadeira de rodas, o homem que justifica o nome dessa atração turística à qual o folheto dedica duas linhas que exaltam o brilho da obra do ocupante da casa, "sonetista alexandrino de nomeada, cujos livros, de grande sucesso na década de 1980, se encontram na biblioteca anexa à casa". No último decênio, no registro da casa constam quinhentas e quarenta visitas, a maior parte delas forjada pelos dois funcionários municipais - o zelador e a enfermeira do poeta -, que nada sabem sobre a piscosidade de um rio nem sobre o volume de água que define uma cascata e temem o desemprego.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Serôdios

Mas tanto tempo correu,
Até você ofertá-los,
Que os frutos teus, amor, eu
Já não podia prová-los.

Estas flores

Amor, te dou estas flores. Aceita-as, eu te peço, embora humildes sejam. Dá-lhes água, se puderes, porque vêm de longe e até agora só beberam minhas lágrimas. Cuida delas, eu te imploro. Amanhã pode ser que elas te ajudem a ornar o peito de um homem que morreu por amar demais.

Apontam para ela, que vela o filho no caixão. E olham indignados, rancorosos. O rapaz, morto pela polícia, foi perdoado. Ela, não. "É ela, aquela, olha, a mãe do ladrão."

Erro

Errei ao querer-te minha,
Mas eras linda, ao sol forte,
Esse que hoje para a morte,
Como eu, sem ti, se encaminha.

Não só

Amor, que tolo eu seria
Se com a intenção de ganhar-te
Contasse apenas com a arte,
E essa arte fosse a poesia.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Marketing

Do netinho, convidando o renitente avô a jogar bola: "Aproveita, vô, que sábado que vem eu vou passar na casa do meu outro avô."

Que doa

O amor não precisa ser
Sempre uma sensação boa.
Se for amor, que me doa,
E doa enquanto eu viver.

Razões para morrer

Em outubro
ou em novembro
haverá uma bronquite
em dezembro
uma pneumonia dupla
uma pleurite
em janeiro ou fevereiro
uma queda no chuveiro
uma fratura tripla
em março uma infecção
uma embolia
uma grave infecção
uma anomalia
no baço ou no coração
em abril uma peritonite
em maio um desmaio
em junho ou julho uma convulsão
em agosto ou setembro
um rompimento do fêmur
uma complicação
um sério contratempo
e assim por diante
até o teu último momento
sem nenhuma chance
para o fim que você queria
aquela morte glorificante
provocada por um galopante
ataque de poesia.

Da utilidade gramatical do pescoço

Ter de lidar com a gramática como meio de ganhar a vida não é uma atividade saudável, pelos efeitos que pude observar em pelo menos duas centenas de revisores, entre os quais certamente me incluo. Não há nada mais terrível que uma maldição rogada por uma crase insatisfeita, dessas que abruptamente são cortadas só porque estão diante de um verbo ou de uma palavra masculina. É fatal. Por melhor cérebro que tenha, um revisor atingido por uma praga dessas acaba, mais cedo ou mais tarde, com os parafusos frouxos. Um deles, seriamente afetado, propôs por algum tempo, antes de ser devidamente internado, uma infalível regra de acentuação que consistia na simples aplicação de uma frase: levantou o pescoço, vai acento! Na seção de revisão do jornal O Estado de S. Paulo, ele pôs em prática esse conceito. Lia os textos em voz alta e, erguendo o pescoço, ia acentuando: Catandúva, Piracicába, melancía, paralélépípedo. Uma noite, atacado por um torcicolo, declarou-se incapaz de trabalhar e, quando um desmancha-prazeres lhe disse que ali estava, escancarado, um grave empecilho para a aplicação de sua teoria, respondeu que toda regra tem uma exceção e concluiu, quase bem-humorado: "E não é todo dia que se tem um torcicolo." Mas logo se enfureceu, quando o detrator de sua regra de acentuação, com um provocativo sorriso, sugeriu haver outro caso que impedia seu uso. "E qual seria?", o teórico perguntou. O outro, depois de uma longa pausa antes da estocada, disse: "Você já pensou se um dia você esquece o pescoço em casa ou dentro do ônibus?"

O assassino

A borboleta apareceu morta na sala. À noite, quando as luzes se apagaram, as fosforescentes garras do gato estirado no sofá apontavam o assassino.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Empatia

Se as palavras se dão bem num texto ou numa frase, convém deixá-las assim, felizes, sem mexer numa sequer - a menos que elas estejam numa convenção de condomínio ou num tratado de filosofia.

Um pouco mais

Morrer é tão conveniente,
Tão reconfortante e tão
Bom que não sei por que não
Se morre mais comumente.

Ter sido

Que importa se o amor passou
E se o que houve já não há?
Só perde quem já ganhou,
Só morre o que vivo está.

Chavão

Porque detesta o lugar-comum, nunca viveu e jamais viverá um tórrido caso de amor.

Só se for

Adianta nós nos lembrarmos
Do que chamamos de amor?
Lembrar por quê? Só se for
Para outra vez nos culparmos.

De todas

Das bênçãos que nós tivemos
E que jamais merecemos,
De todas nos desfizemos,
De todas nos esquecemos.