terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Crueldade

Na saída do metrô
vi o homem
na cadeira de rodas
vendendo rifas
de automóvel

Era um desses dias
em que fica mais fácil
acreditar em Deus

O sol jogava para o alto
suas moedas amarelas
e a tarde as recolhia
na sua saia azul
e ia separando
o trigo aqui
o ouro ali
o trigo aqui
o ouro ali

Ao lado do homem
na cadeira de rodas
uma mulher vendia cocada
e em torno dela
zumbiam abelhas embriagadas
enquanto um sorveteiro
oferecia seus palitos
de chocolate
coco e abacaxi

Repentinamente
o portão do colégio
se abriu como
uma barragem derrubada
e um enlouquecido
bando de meninos
saiu para o sol
para a tarde
para o trigo
para o ouro
para a cocada
para o chocolate
o coco e o abacaxi

Ninguém
correu para o homem
na cadeira de rodas
ninguém queria saber
daqueles papéis
com aquela foto desfocada
de um carro zero quilômetro

Era cruel aquilo

Era como se
o homem
na cadeira de rodas
estivesse ali
só para ser a exceção
à alegria
e o contraste
à correria

Apiedei-me dele
e pensei
como diante daquilo
eram ridículas
e até infames
minhas lágrimas
minha dor
minhas mágoas de amor

Parei
e pensei em
comprar um
papel daqueles
uma das rifas
que ele segurava
e sem nenhuma esperança
apregoava

Mas logo
me afastei dele
comprei uma cocada
e procurei andar
com ostentação
para que ele sentisse
que não poder andar
era de todas
a pior privação

Ele que se danasse
com sua cadeira de rodas
e suas rifas

Sabia ele
que um mês antes eu
flutuava por aquela
e pelas outras
ruas desta cidade?

Poderia ele
ao menos imaginar
que um mês antes
enfeitiçado pelo amor
eu não precisava
destas pernas miseráveis
eu não precisava andar
porque era capaz de voar
e voava?

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