terça-feira, 31 de maio de 2011

Pobre Philip

Tua mão procurava Philip Roth na estante, e, imaginando como ele gostaria de se saber procurado por ti, fiquei triste, porque ele jamais saberia. Era uma época em que, ainda não sofrendo os meus, eu podia me preocupar com os tormentos alheios.

Eles

Imprescindíveis, os críticos. Sem eles, como saberíamos que a baleia de Melville e a barata de Kafka são símbolos ou, na linguagem deles, metáforas? E como descobriríamos que Machado de Assis escrevia nas entrelinhas?

Tirano

Se dele mais te aproximas,
De ti mais ele se afasta.
O amor não quer que te eximas
E tudo que dás não basta.

Ele te quer por inteiro,
Não podes dar-lhe a metade.
Quer teu perfume, teu cheiro,
Quer tua mentira e a verdade.

E tu te dás, vais-te dando,
E, quanto mais tu te dás,
Mais diz ele estar faltando.

Que Deus te conceda a sorte
De conseguires a paz,
Ainda que seja com a morte.

Quadrinha hipocrática

Conserto tem o pulmão,
Remédio tem a loucura,
Transplanta-se o coração,
Mas para o amor não há cura.

Raskolnikov

No Brasil, Raskolnikov, depois de matar as duas mulheres e ter seu julgamento várias vezes adiado graças a hábeis recursos do seu defensor, seria afinal condenado a prestar um ano de serviços comunitários. E poderíamos vê-lo com sua famosa machadinha - e, com alguma sorte, tirar algumas fotos ao lado dele - podando árvores no Parque do Ibirapuera.

Paz

Não ter mais nada a almejar,
Não ter mais nada a dizer,
Não ter mais nada a esperar,
Mais nada além de morrer.

Filosofia

Após tanto estudo e lida,
Não sabe nada de nada,
Só sabe que é triste a vida
E a morte é o fim da jornada.

BO

A rosa? Feriu-a o frio,
Crestou-a o sol renitente,
Matou-a a geada inclemente,
Levou-a o vento vadio.

Erro

Fizemos falsas escolhas.
As flores todas murcharam,
Os frutos verdes goraram,
Sobraram-nos só as folhas.

Ainda

Não ri mais, nem sorri. Fala baixo e anda com passo macio. O amor morreu há um mês, mas ele continua a proceder como se o tivesse ainda no peito, e respira com cuidado, para não machucá-lo ainda mais, e conversa ainda com ele, e lhe pede ainda perdão.

Futuro

De vez em quando vai ao cemitério, para ir se acostumando com a vizinhança.

Advérbios de modo

Com o amor, sentia-se inacreditavelmente vivo. Sem ele, sente-se antecipadamente morto.

O passo

Não tenho mais ilusão.
Andei, cheguei ao fracasso
E sei que o próximo passo
Não leva à consagração.
Só leva ao fim do cansaço,
No centro da escuridão.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Talvez tanto quanto

Há tantas associações empenhadas em salvar animais em extinção e nenhuma que se preocupe com os desenganados pelo amor, essa espécie que não para de crescer e uiva, e geme, e revira os olhos e clama por um afeto que jamais receberá, porque ele está todo reservado a focas, pinguins e passarinhos de nomes estranhos. E, no entanto, talvez possamos ser, se examinados de perto, quase tão graciosos quanto as focas, os pinguins e os passarinhos. E alguns de nós, apesar de tudo que sofreram, ainda falam - e até escrevem algo que parece chamar-se poesia.

Os que sofrem

Se os que sofrem por amor se dessem as mãos, quantas voltas ao mundo daríamos?

A difícil palavra

Quem soube dizer-te amor
E outras palavras amenas,
Quem te compôs cantilenas
E te louvou com fervor,

Quem te chamou de querida
E com palavras sinceras
Te disse que eras, porque eras,
A vida de sua vida,

Quem exaltou em poesia
Da tua voz a magia
E o brilho dos olhos teus,

Quem sempre te disse tudo
Agora se mantém mudo,
Não sabe dizer-te adeus.

Castigo

Tivemos tudo, bebemos
O sumo doce, o licor,
Nos embriagamos de amor
E ao céu não agradecemos.

Do inverno nos esquecemos,
E do que foi esplendor,
E brilho intenso, e calor,
É neve agora o que temos.

Ah, manhãs rubras e quentes,
Ah, mornos frutos pendentes,
Ah, douradíssimas tardes,

Agora nós já sabemos
Como vos celebraremos
Se acaso um dia voltardes.

As gotas

Implorou pelo amor, e o amor, intenso e rápido como um aguaceiro de verão, escorreu-lhe pelo rosto e pelo corpo e, escapando-lhe entre as mãos, deixou porém nos seus lábios, por um instante, algumas gotas mornas que são o tesouro de suas lembranças.

Este aqui na foto

O amor agora é como aquele rosto que nas esmaecidas fotos de formatura, de trinta ou quarenta anos atrás, alguém quer mostrar. O dedo vai apontando aqui, ali, um pouco mais acima, um tanto mais abaixo, é este, é esse, aquele, aquele outro ali - e nenhum é, nenhum parece ser, nenhum, nenhum mais.

domingo, 29 de maio de 2011

Cão morto

Quando a noite, com sua sombra,
Apaga o dia e o tumulto,
O amor à porta nos bate
E uiva, e arranha tudo, e late,
E nos horroriza e assombra
Como um cachorro insepulto.

Jogo

Fui eu que inventei o jogo
E que a jogar te ensinei,
Fui eu que ateei o fogo
E eu, eu só, que me queimei.

Tributo

Talvez tenhamos sabido
Em tempos imemoriais
Dar ao amor o devido,
Porém não sabemos mais.

Ardil

Não chora mais. Aprendeu,
Depois de tanta desdita:
Finge que o amor já morreu
E o amor finge que acredita.

O homem na foto

Na manhã de domingo, desistindo de sair porque uma chuva grossa soprada por um vento gelado varria as ruas, ela resolveu limpar o arquivo de imagens do celular. Surpreendeu-se com o número de fotos guardadas e, de cada cinco que olhava, quatro já não lhe diziam quase nada: paisagens, fachadas de hotéis onde estivera em suas viagens pelo mundo, entradas de galerias ou museus. Com as pessoas ocorria quase o mesmo: de cada cinco imagens, três eram descartáveis, e foi isso que ela se pôs a fazer. Excluía, excluía, excluía. Um rosto de homem lhe chamou a atenção. Quem era aquele? Por que estava ali no arquivo? Procurou alguma foto em que ela estivesse ao lado dele. Nenhuma. Intrigada, decidiu dar uma última chance à imagem, enquanto pedia socorro à memória. Qual era o nome do homem? Era Paulo? Lauro? Lucas. Sim, era Lucas. Mas quem era Lucas? Ficou assim alguns minutos. No momento em que finalmente excluiu a foto, lembrou-se. Era Lívio. Não, era Pablo. Não, não era Pablo também. Ou era? Olhou pela janela e viu um aceno do sol. Aprontou-se, pegou o carro e saiu. Olhou-se no espelho e sorriu - um sorriso que talvez tivesse oferecido, num dia de sol, a Paulo, Lauro, Lucas, Lívio, a Pablo.

sábado, 28 de maio de 2011

A causa

Toda manhã, agora, ao andar pelo parque ele procura o que mudou, aquilo que talvez esteja faltando, a causa da tristeza que há uma semana o atormenta. Já encontrou vários suspeitos: um passarinho que já não canta como antes, uma árvore que sovinamente escondeu suas flores, o pequeno lago que não lhe parece mais tão azul. Até o sol já esteve sob suspeita, acusado de economia no brilho e no calor. Ele procura, procura, continuará procurando fora de si mesmo a causa que bem sabe estar dentro, no peito, no coração, algo que tem nome, endereço e um número de telefone que há tantos dias ignora a aflição dos seus dedos e os chamados de sua alma.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

O que somos

De sangue somos, de artérias,
De pústulas e de fezes,
E produzimos misérias,
Desgraças, pragas, reveses.

Vida

Morreram quase duzentos no acidente e seus nomes estão nos jornais, nas rádios, na internet, na tevê. Dos mais ilustres, divulga-se algo mais do que o nome: biografias de um ex-ministro, de um cantor que vendeu duzentos mil cedês em 1998, de uma atriz promissora, de um advogado defensor de causas célebres. Aqui e ali, citam-se também - produto do trabalho de pesquisa dos jornalistas - o dono de uma rede de lojas de 1,99, um ex-banqueiro casado vinte anos antes com uma tenista chilena muito mais bela e chilena do que tenista, e mais algumas pequenas celebridades. Parentes e amigos velarão seus corpos, lembrarão o que fizeram, celebrarão os pequenos e grandes feitos dos mortos e, quando todos estiverem sepultados ou cremados, virá aquele momento em que os vivos irão para uma churrascaria ou uma sorveteria e sentirão que ir à churrascaria ou à sorveteria, por mais prosaico que pareça, é algo que jamais trocariam por nenhuma glória ou gloríola de nenhum dos mortos.

Sonhos

De uns tempos para cá, acorda sempre com os olhos úmidos. Na primeira manhã, estranhou. Agora já sabe que, lembre-se dos sonhos ou não, neles estiveram certamente o amor e seus tormentos.

O melhor

Um dia o amor se sentará na sua poltrona mais funda, suspirará como suspiram os velhotes, colocará um cobertor sobre as pernas cansadas e frias e, porque será noite e a sopa tomada um pouco antes lhe terá dado sonolência, cochilará. Cochilando, recordará imagens ternas, doces, e quando no sonho quiserem se insinuar cenas dos tempos em que ele, sendo jovem ou assim ainda se imaginando, era ríspido e arrogante, o sonho entrará numa região de névoa fina, jamais vista por ele. De manhã, quando na casa se derem conta de que o velhote passou a noite na poltrona, estranharão o sorriso vivo no corpo gelado e talvez alguém suspeite que o melhor de todos os seus sonos foi o derradeiro.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Lição de autoajuda para um poeta

Se em determinada manhã você acordar e, abrindo a janela, não encontrar o sol, não entre em pânico. Ligue para a amada. Quando ela atender, o sol talvez não apareça, mas você não precisará mais dele.

Nostalgia

Não viu as flores e os frutos que se abriram em seu caminho nos dois anos em que, obcecado por um amor, só teve olhos para ele. O amor murchou, suas pétalas secas levou-as o vento, e ele sofre agora a nostalgia das flores e dos frutos que não viu e os imagina vivos e esplêndidos, ofertados a um sol que jamais voltará a brilhar.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Kafka

Pressentindo que está próxima a loucura, prepara-se para o dia em que virão buscá-lo com a camisa de força. Anda pela sala o dia inteiro, com um livro na mão, e repete: "Eu sou Kafka, eu sou Kafka." Não tem mais dúvida de que é Kafka mesmo, mas receia que no manicômio não acreditem e o confundam com uma barata.

Esquivo

Amor, que leve tu és.
Tu chegas, feres, fulminas,
Nos matas, nos exterminas,
E sais, na ponta dos pés.

Satanás

O amor se transformou em tão despropositada obsessão, que só restou a ele chamar um padre, não para casá-lo, mas para exorcismá-lo.

Apesar de

Respira ainda, e o angustia
De manhã, ao acordar,
A atroz, a torpe ironia
De, após a morte invocar,
Noite a noite, dia a dia,
Poder ainda respirar.

Tatame

Sempre que se lembrava de um amor antigo e se sentia perto de sofrer uma recaída, ele, para se defender, imaginava uma cena: a mulher amada posta de quatro, num tatame, recebendo o sêmen do mais encorpado, bufante e suado de todos os lutadores de sumô. Isso resolveu seu problema até a madrugada em que, de tanto imaginar a cena, acabou sonhando com o tatame e a mulher. Havia uma diferença: o lutador de sumô era ele.

Uma frase como tantas

Falava de um amor bem antigo a dois rapazes que o ouviam sem muita atenção: "Nem o câncer me maltratou tanto." Disse a frase como se fosse uma qualquer, dessas que se usam para reclamar do frio ou do calor, mas os rapazes o olharam com respeito. Ninguém chora para reclamar do frio ou do calor.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Estúdio

Se ela sai, no estúdio as telas, os pincéis, as tintas, a cola e os recortes a esperam com uma tristeza que o sol tenta, mas não consegue atenuar, ainda que, esforçado, ensaie alegres desenhos nas paredes.

"Eu"

Quando ela vai à estante, há nas divisórias um murmúrio de vírgulas, crases, pontos e pequenas palavras convocando as grandes para que se juntem e digam a ela, se esticar a mão, um parágrafo, um período, uma frase ou simplesmente um "eu", e o digam com tal segurança e suavidade que ela não possa senão puxar graciosamente o livro e trazê-lo ao colo.

Melodias

Quando ela fala, as vogais se dão as mãos e alvoroçadas dançam, enchendo o ar de melodias, e até as consoantes arriscam passos, sentindo-se todas maravilhosamente vogais.

Bic

Voltou a escrever à mão.
Escrita no monitor,
A dor não parece dor
Nem deixa aquele borrão.

Gelo

São todos frios, bem frios,
São todas frias, bem frias,
Os dias todos sombrios,
As noites todas vazias.

Uma vez mais, antes do fim

Fechei a porta ao afeto,
Aos risos e às alegrias,
Odeio as manhãs, os dias,
E o sol é meu desafeto.

Exalto as noites vazias,
Que passo fitando o teto,
E sou o filho dileto
Da mágoa e das agonias.

Ó tu, que sabes quem és
E que me puseste assim
Com teus poréns e teus nãos,

Que eu possa ainda, antes do fim,
Seguir o chão dos teus pés,
Sentir em mim tuas mãos.

Messe

Descremos de nossa messe.
Dos frutos dela, maduros,
Abrimos mão, imaturos,
E ela gorou, e apodrece.

Selvagem

Sonhei que tu me agarravas
E com teus braços frementes
O meu pescoço apertavas
E enfiavas nele os teus dentes.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Lourenço Diaféria

Não sei se já há em São Paulo uma rua que homenageie o cronista Lourenço Diaféria. Se há, é pouco. Uma avenida? Pouco também. E também pouco um viaduto. O Brás deveria chamar-se Lourenço Diaféria. Até o Brás sabe disso. É só perguntar a ele.

Gentledog

Na noite atormentada por uivos e ganidos, ele fica quieto na frente da casa, olhando a rua com enfado.

O vampiro

Imaginar que a esta hora um homem maior que Curitiba caminha pela sua noite anônimo e não poder pôr-lhe a mão no ombro e dizer: "Oi, Dalton."

Essa bênção

Que doce infortúnio, grata
Desgraça, morte querida,
Quando é paixão que nos mata
E amor que nos tira a vida.

Lá em casa

Na esquina opacamente iluminada, a mulher - de minissaia e salto alto, com uma espantosamente grande bunda e peitos que chacoalhavam quando ela dava os seis passos para a frente e os seis passos para trás, para manter seu ponto - parou quando o menino, de uns doze anos, se aproximou: "Mãe, o pai chegou bêbado e disse que me mata se eu não levar dinheiro."

Ornitologia

Se eu digo que é bem-te-vi,
Entendes sempre canário.
Amor, eu pergunto a ti:
Mudaste o teu dicionário?

SOS face, msn, spams

Ninguém me procura mais. Minha caixa de mensagens tem saudade daqueles spams que se dispunham a me ensinar como ganhar nas loterias, como encontrar minha alma gêmea ou como encomendar o infalível perfume do amor. Quando eu usava o msn, aparecia às vezes, num cantinho, alguma Débora, de 32 anos, secretária, ou alguma Hilda, de 43, professora, oferecendo-me um bate-papo. Minha única correspondente no msn se foi, cancelei a conta no facebook, por não saber nem curtir, nem compartilhar nem comentar, e agora, olhando para o monitor vazio, tenho vontade de abrir a janela e gritar: "Eu não estou morto." Mas será que não estou? A solidão virtual é a peste do século.

Heliófobo

Criou tal horror ao mundo e à claridade, que mantém todas as janelas fechadas e, se por elas ou pela soleira das portas se insinua um filete de sol, ele o ataca a pontapés, como se estivesse expulsando o Demônio.

Ufa!

Interessa-se pelas palavras, pelas frases, pelo seu ritmo, jamais pela trama ou pelos personagens. É capaz de ler o livro inteiro e não saber dizer, uma hora depois, o nome do amante de Lady Chatterley e acreditará, se lhe sugerirem, que era o Padre Amaro. Também é mais fácil para ele, num romance policial, descobrir um bom diálogo na página 12 do que apontar o assassino na última. Outro dia, o vizinho, ouvindo-o gritar "Três zeugmas e cinco anacolutos, aqui!", pensou em assalto e quase ligou para a polícia, mas felizmente eram só figuras de linguagem.

A beleza do mundo

Ele deixou o jornal no sofá, para atender o telefone. "Pai, eu estou ligando porque peguei o exame. Graças a Deus o Nico não tem nada." A voz da filha, avisando que o neto estava livre da suspeita de uma doença muito grave, o fez esquecer os assassinatos, as tragédias e as catástrofes que tinha acabado de ler. Assobiando, pegou o Caderno2 e começou a ler o Verissimo. Estava salvo o dia.

Memória

Que eu possa ainda uma vez,
Em uma tarde tranquila,
Rever a tua mochila
E a tua blusa xadrez.

Vice-versa

Que sejas sempre lembrada
E estejas sempre comigo
Como amiga ou como amada
Do teu amado ou amigo.

domingo, 22 de maio de 2011

Perdão

Humilde, peço perdão.
Fui rude, eu sei, fui ingrato,
Mas pode alguém ser sensato
Em coisas do coração?

Sacada

Nas horas longas, sombrias,
Da noite e da madrugada,
Eu penso em ti, minha amada,
Extinto sol dos meus dias,

E vou então à sacada
E vendo as estrelas frias
Te lembro e, em mil agonias,
Te abraço, abraçando nada.

Ela - III

Alegre nome, letícia,
Que favos de mel ressuma,
Soberba como nenhuma,
Suprema em gozo e delícia.

Ela - II

Manjar dos deuses, delícia,
Excelso gosto, ambrosia,
Sabor divino, primícia
Do prazer e da alegria.

Ela - I

Ah, se como eu você visse-a,
Tão tenra, tão terna, tão
Afeita à palma da mão
E ao toque do amor propícia.

Cântico

Não seja triste como eu,
Não veja em tudo agonia,
Louve o calor do himeneu
E a febre da putaria.

O cheiro

Um aroma pungente de flores maceradas se espalhou pela rua. Se o som tivesse olor, seria o olor de um violino. Algumas pessoas sentiram lágrimas aflorar aos olhos e começaram a se perguntar o que seria aquilo. Antes que suspeitassem dele, o homem apressou o passo e foi para casa. Ele sabia o que era aquilo: era o cheiro do seu amor morto.

Inho, inha

Ela jamais lhe desculpará a indelicadeza de ter-lhe sugerido que o amor, ao contrário do que ela imaginava e queria, poderia ser mais que um jantarzinho, uma dançadinha, um papinho e uma rapidinha.

sábado, 21 de maio de 2011

Veneno

Perto do seu braço direito e do copo, havia uma mosca, também morta.

E ponto final

A última frase do seu derradeiro bilhete: "Talvez agora você acredite, Sarita."

Vida também

Se os amigos ligam, preocupados porque ele tem falado muito de suicídio em seu blog, ele diz: "Ah, é só literatura." Deixa passar dez segundos e conclui: "Se bem que literatura seja vida, você sabe, e, claro, morte também."

Facebook

Antes de dar um tiro no coração, postou uma mensagem na rede social: "Leiam o jornal amanhã e digam se vocês curtiram isso também."

Nem assim

Foi desprezado até o dia em que se matou. No velório, como se ainda vivo estivesse, todos o olhavam com desprezo e cochichavam: veneno de rato.

O blefe

A arte do suicida consiste em que, quando ele anuncia sua intenção, nunca ninguém sabe se ele está blefando. Nem ele mesmo.

Questão de estilo

Tem em tão alta conta a literatura que há um ano e meio escreve e reescreve sua mensagem de suicida. É sempre salvo por uma frase capenga, por uma palavra que não soa bem ou por uma vírgula indevidamente colocada.

O suicida

Em 121 bilhetes ele ameaçou matar-se. Quando escrevia, com definitivo esmero, o centésimo vigésimo segundo, a Morte, julgando-o já um poltrão, fulminou-o com um enfarte.

O pacto

Se viesse procurá-lo o Diabo, ele não pediria, em troca de sua alma, que lhe desse o amor, mas a bênção de olvidá-lo.

Ovelha

Quando pensa na sua vida, sente-se como aquela ovelha de um livro de Céline que, ferida mortalmente, estrebuchando, pela força do hábito mordiscava ainda a grama ao redor.

Ajuda-te a ti mesmo

Soube que ninguém o amava quando, imerso na mais funda e dolorosa agonia, todos lhe punham a mão no ombro, como se estivessem selecionando um boi para o abate, e sentenciavam: "Só você mesmo pode ajudar-se."

Game

Já sei, já entendi.
Quis jogar, joguei,
A vida arrisquei,
Joguei mal, perdi.

Diálogo às oito

Sonhou que tirava um cisco do rosto dela, primeiro com a mão, depois soprando, e acordou com uma ternura tão morna lhe percorrendo o corpo que por muito pouco não chorou. Eram cinco e meia e, sabendo que não conseguiria mais dormir, esperou até as oito e ligou para ela. "Aconteceu alguma coisa?", ela perguntou. Ele ia contar sobre o cisco e sobre como conseguira tirá-lo, mas a tépida ternura, voltando, o emudeceu. "Você me ama, é isso?", ela disse. "É", ele respondeu, sentindo que jamais a amaria tanto quanto naquele instante.

Aqui entre nós

Já amei antes, sim, mas não
Assim desvairadamente,
Tão forte assim, assim tão
Desesperançadamente.

Assim

Põe a palma em minha palma,
Teus olhos nos meus, me diz
Que me amas e que és feliz,
Me beija, aquieta minha alma.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Contradição

O amor sempre impõe em mim
A sua contradição:
Diz não quando digo sim
E sim quando digo não.

Alquimia

Amor, bastou um aceno
Teu e logo em alegria
Se transformou a agonia
E em puro mel o veneno.

Assassino

Com seu punhal mais agudo,
O amor perfura o pulmão,
As tripas, o coração,
E rói, corrói, destrói tudo.

Esmola

Ele tocou a campainha e ofereceu a ela todo o amor que tinha. Ela não abriu a porta e, da janela, atendendo-o como ele se fosse um mendigo, lhe disse que infelizmente não tinha nada para lhe dar.

Como se

Carrego minha tristeza como se tivesse nos braços, debaixo de chuva e frio, um cachorro muito branco, muito belo e muito morto.

Os temas de Philip Roth

Uma senhora chamada Carmen Callil, participante do júri que concedeu a Philip Roth o prêmio Man Booker International, censurou a escolha feita pelos seus pares. Argumenta que Roth não tem imaginação e trata sempre dos mesmos temas. Pelo que sei, Roth fala basicamente de amor, sexo e vida e, pelo que suponho, esses temas jamais se esgotarão.

Companheiros

Agora, quando vou ao parque, não preciso mais levar pela coleira minha melancolia. No começo, atraída pelos meninos andando de bicicleta ou jogando futebol, ela se esforçava para livrar-se e cheguei a imaginar que, se a deixasse, me escaparia. Hoje ela me acompanha como um cãozinho e, se aproveito um instante de distração dela e me escondo atrás de uma árvore, logo noto seu desespero. Ela me ama agora, posso chamá-la de minha melancolia. Não se adaptará a mais ninguém. Sento-a no meu colo, num banco, e não nos seduzem nem o sol nem o canto dos passarinhos. Ficamos na sombra, sempre, nutrimo-nos da tarde em agonia e esperamos a noite, quando, livre da algazarra, o parque permite que ouçamos o vento e suas tristes canções.

Nevermore

Dezoito pessoas curtiram teu poema, nove o comentaram, sete o acharam lindo, é meia-noite, você está há doze horas no micro e fita o monitor com os desesperançados olhos de quem sabe que aquela mensagem, a única que esperas e queres, não virá. E te enganas pondo a culpa no fuso de Tóquio, de Nova York, de Kuala Lumpur, de Amsterdã, de Mumbai, enquanto em tua alma um corvo, lúgubre como o de Poe, corveja: nunca mais, nunca mais.

Sociais

As redes da internet criaram um curioso e pungente fenômeno: a solidão compartilhada.

Barbas

De manhã, nunca se esquece de arrancar os fios pretos da barba, para deixá-la imaculadamente branca, e a ajeita para que fique espetada. Professor de literatura em um colégio, tem uma aluna que, apaixonada por Hemingway, o acha parecido com ele e por essa semelhança lhe proporciona tépidas tardes de amor. Ele a ama também e sua felicidade seria irretocável, se de vez em quando não tivesse pesadelos nos quais a garota, repentinamente interessada em história, se apaixona por Dom Pedro II. Há no colégio um professor que é a cara do imperador e tem uma barba bem mais aristocrática que a de Hemingway.

Especialista

Desnudou o umbigo da mulher e enquanto o tocava, ora com o dedo médio da mão esquerda, ora com o dedo médio da mão direita, ia dizendo, compenetrado, que via no futuro próximo um homem belo, um casamento feliz, boas entradas de dinheiro e uma saúde à prova de qualquer doença. Quando a mulher lhe disse que já era casada, embora não usasse aliança, ele se desculpou e atribuiu a culpa do equívoco à pequena pérola que o umbigo ostentava e que, segundo ele, embaçara sua visão. Dispôs-se a ampliar sua avaliação e tão aveludado e hipnótico era agora o ritmo com que passava os dedos pelo ventre da mulher, que três minutos depois estava apto a vaticinar que ela trairia o marido com um homem de mãos macias e, um minuto após o vatícinio, já comprovava o acerto da previsão, colhendo mais um triunfo para a nobre arte da onfalomancia.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Livre iniciativa

Talvez ela não se esquivasse tanto se soubesse que, assim que ela sai, a imaginativa mão dele percorre todas as partes do corpo dela - as lícitas e as outras.

Preliminares

Por algum tempo em sua mão
Um morno olor ficaria
De fermentado verão,
De pertinaz maresia.

Incitações

Gosta de beijá-la logo depois que ela diz certas palavras ou frases, principalmente aquelas que vêm acompanhadas por interrogações: agora?, outra vez?, não se cansa? Não lhe desagradam outras, impositivas, como: aqui não, então rápido, estão olhando. Mas beija-a mais gostosamente se ela entrecerra os olhos e não pronuncia uma palavra, como se perguntasse: o que eu faço agora, o que faz você agora com os meus lábios?

Refrão do pequeno afogado

Me ensina o caminho, pluma,
Me mostra e, leve, me leva,
Não tenho medo da treva,
Do mar, das ondas, da espuma.

Menino

Olhou a foto dela, a tristeza em seus olhos, e sentiu-se rejeitado como um menino que vê lágrimas no rosto da mãe e sabe que não é por ele que ela chora.

Tesouro

Cabelos claros, novelos
De rútilos fios de ouro,
Cabelos raros, tesouro,
Pudesse um dia revê-los.

Estatística

De todos os pecados, o original é talvez o mais plagiado.

As folhas

Houve um tempo em que eu andava ereto, observando as árvores, as flores, os frutos. A sábia natureza foi me curvando, para que eu pudesse acompanhar, hoje, o caminho que as folhas, arrastando-se pelo chão, me indicam.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O fruto

Cansado já dos frutos que encontrava pelo caminho, habituei meus olhos a ignorá-los, minhas mãos a esquecer-lhes a maciez e minha boca a desdenhar-lhes o gosto. Atrofiaram-se assim pouco a pouco os olhos e as mãos se embotaram. Uma tarde, porém, quando andava pelo mesmo caminho, um fruto novo, igual a nenhum dos que eu havia visto, acendeu-me vivo lampejo no olhar e as mãos se inquietaram. Afastei-me apressado e passei a evitar aquele caminho, mas nas mãos e nos olhos se excitou tamanha ânsia de contemplação e posse que tempos depois retomei o antigo caminho e, com a boca antegozando seu sabor e as narinas adivinhando-lhe o aroma, procurei o fruto. Tarde demais. Alguém o colhera, e minhas mãos e meus olhos, desinteressados de todos os outros frutos, novamente se entregaram à indiferença e à apatia.

Até

Quando tiverem passado
As mágoas das horas más,
Estiver tudo perdoado
E tudo entre nós for paz,

Terei saudade dos dias
De fúria e de tempestade,
Das dores, das agonias
E até da tua crueldade.

Crueldade

E noite após noite, e dia
Após dia, a tua faca
Buscava-me a carne fraca
E entrava fundo, e feria.

Língua

Quando ela, ao entrar no carro e beijá-lo, esqueceu uma delicada ponta de língua entre os lábios dele, o homem fechou os olhos e, ao reabri-los, não a achou tão desgraciosa quanto a havia julgado ao vê-la na fila de ônibus.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Se

Se o que eu te disse de ruim
Olvidado por ti fosse
E só lembrasses, de mim,
O que te disse de doce,

Se em mim de novo tu cresses,
Como antigamente crias,
Não tristes, como agora esses,
Seriam os nossos dias.

Em vão

Chegar ao fim da vida e descobrir, depois de tanto esforço para mantê-la, que ela não vale a pena - seja grande a alma ou pequena.

O Mago

Apesar dos detratores, Paulo Coelho continua realizando o prodígio de tirar da cartola substantivos, adjetivos, verbos - e, às vezes, até frases.

Retórica

Ter lido tanto e não ter
Sabido nunca dizer
Como é bonito viver,
Como é saudável morrer.

Codinome

Jamais direi o teu nome.
Aquele que tu me deste
É doce para esta peste
E a praga que me consome.

Pecúlio

A única riqueza com a qual um escritor pode contar talvez seja a fortuna crítica.

Tuas colagens

Em tuas telas há a cor
De um mundo que em mim morreu
E em tua arte há o vigor
Que a minha há muito perdeu.

Certeza

Ser velho enseja-me ter
A abençoada certeza
De que jamais irei ver
O fim de tua beleza.

Patranha

Fernando Pessoa morreu pobre porque precisou dividir com mais de cem colaboradores seus direitos autorais.

Relógios

Quem melhor soube a diferença entre um rouxinol e uma cotovia foi William Shakespeare. Nas suas peças, eram eles os relógios.

Profissão

Paulo Coelho jamais fará números de levitação e magia porque ganha muito mais com a prosaica atividade de escrever livros.

Rugas

Nem lágrimas salvarão
Meu rosto seco e gretado,
Pela amargura crestado
E pela desilusão.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Fim

Um travo, um gosto ruim
De coração iludido
E sentimento traído,
Foi o que deixaste em mim.

Por quê?

Por que, se em sonho me vens,
Nele jamais me magoas
E dizes palavras boas
E tanta ternura tens?

Já que, se estás ao meu lado,
Me fazes sempre tristonho,
Que possas vir só em sonho,
Jamais se estou acordado.

E que outras usar?

No instante em que a mulher, na cama, lhe mordeu a orelha e sussurrou meu-te-são, ele comprendeu afinal por que tantos escritores, quando narram situações como essa, usam palavras como gruta, fenda, esconderijo, lança, espada.

(Res)sentimentos

Que eu possa um dia lembrar-me
De ti sem ressentimento
E possas tu perdoar-me
Com todo o teu sentimento.

Sinopse

Tanta ventura gozamos
Mas tanto nos desaviemos
Que separados estamos
E nem adeus nos dissemos.

Restaurante

Um pouco de chantili ficou no lábio dela, mas ele não avisou. Enquanto ela falava, ele fixou os olhos naquele ponto de inalcançável doçura, desatento ao som das palavras, apenas torcendo para que nenhuma sílaba fizesse a boca desmanchar o encanto.

Metrô

Era macio o cotovelo da mulher sentada ao seu lado no metrô, e também o joelho esquerdo, que se encostou no direito dele, como um cãozinho safado procurando aconchego.

Laranja

Sempre que, ao acariciar a mulher, chega ao umbigo, a suave tepidez o faz lembrar das tardes em que, menino, ao pé da árvore, enfiava os dedos numa laranja e, começando a descascá-la, antegozava o prazer de trazê-la aos lábios e mordiscá-la, e chupá-la.

Retrato

É rude teu sentimento
E nele tudo que medra
É duro como cimento
E ríspido como pedra.

domingo, 15 de maio de 2011

Evoé

Mudou finalmente de ares.
Negou o amor e a poesia,
Baniu a morna apatia
E vive nos lupanares.

Maktub

Cada um de nós tem sua sina
E sua predestinação,
Amar foi minha ruína,
O amor minha maldição.

Eufemismos

Num mês quente ou num mês frio
Que bom seria se tu
Te fosses a Katmandu
E a Portugal de navio.

O primeiro

Respirar é o erro fatal que todo ser humano comete logo no seu primeiro dia.

Troféu

Que possa dar-te alegria
Tudo que tenho sofrido
E seja a minha agonia
O teu troféu merecido.

Iniciação

Da virgindade da garota sobraram o sorriso do quarentão satisfeito, algumas notas para o hotel, um pouco mais para o rufião e uma parte um tanto menor para a menina que, no entanto, julga estar levando uma fortuna na bolsinha e olha com superioridade as pessoas e as vitrines das lojas recém-abertas, enquanto a arrumadeira, no hotel, pragueja ao remover o lençol manchado de sangue e a fronha borrada de batom.

Fantoche

Sou vítima de um contraste.
Por teu desígnio vivi,
Por teu capricho morri,
Tudo me deste e tiraste.

Oração

Que antes de a morte levar-me
Deus me conceda a ventura
De por amnésia ou loucura
Jamais de ti recordar-me.

sábado, 14 de maio de 2011

Prece

Que venha a morte abençoada,
Final de todo tormento,
E traga a paz almejada
E o pó, e o esquecimento.

Medalha

Se o amor é agora pretérito
E morta está a paixão,
Amada, é teu todo o mérito
E tua a consagração.

Maldição

Malditos sejam todos os poemas que fiz para ti. E malditos, mil vezes, todos aqueles que para ti não fiz.

Ontem

Que doce morte me davas
Naqueles longínquos dias
Em que meus rogos ouvias
E em teus beijos me afogavas.

Aleluia

Morreu o amor. Nunca mais
Aos meus ouvidos soarão
Nem dos meus lábios sairão
Aquelas frases banais.

O nome

Sentindo que não aguentaria muito mais e querendo dizer o nome da mulher que estava lhe dando um prazer jamais desfrutado, ele perguntou como ela se chamava. Quando ela, ofegante e sempre se mexendo, respondeu, ele soube por que havia pensado já ter visto aquele rosto. Lembrou-se da sua infância, daquela menina na qual ele jamais havia ousado tocar, tão pura lhe parecia, e, acelerando repentinamente as estocadas e tornando-as mais rudes, se sentiu sujo, como se estivesse chapinhando num pântano.

Macróbio

Atingiu a maturidade. Que diferença do seu tempo de jovem, quando não tinha noção do que seria nem de para onde iria. Homem de sete décadas, hoje ele sabe muito bem o que é - um moribundo - e sabe também qual será sua última viagem: num carro preto, para a Vila Alpina.

Lábios

Pudesse eu tê-los beijado e guardado seu sabor que adivinho, tão tristemente agora, de açúcar, de café, de pãozinho de queijo, de balinha de menta, de batom atenuado pelo guardanapo de papel.

Lauréis

Por um beijo, os cavaleiros de outrora ajoelhavam-se diante de suas damas. O que esperavam quando, voltando dos épicos combates, se curvavam aos pés delas para lhes oferecer os lauréis?

Tolas

Me ajude, amada. São tolas
As minhas mãos, sem ciência,
Carentes de experiência.
Me diga, amada, onde pô-las.

Barato

Ele sabe que é mentira, ou que não é bem verdade. Mas, se lhe perguntam como vai o amor, ele responde que otimamente. E diz que não sofre mais mágoas, ressentimentos, desilusões. Tudo que lhe custa o amor, agora, são cem reais por sábado, incluindo o quarto.

Fernandos

Fernando Pessoa fingia tão completamente que chegava a ser mais de cem - e não se atrapalhava nunca, por mais que ele e os outros todos bebessem. A grande dificuldade era encontrar mesa para todos, no bar. Outra ocorria quando, assediados por versos que exigiam urgente anotação, todos se punham a pedir ao mesmo tempo caneta e papel ao garçom.

Família

"É de queijo", anuncia o garoto puxando o sanduíche mordido, enquanto o irmão menor afunda mais a mão no lixo, esperando também ter sorte.

Hospital

Por mais que eu viva, já sei
Que assim tão fraco e tão morto,
Com tanto luxo e conforto,
Jamais eu me sentirei.

Ruiva

Nas festas a avó, se toma dois cálices de licor, conta como no oitavo ano de casamento perdeu o marido para uma empregadinha ruiva que fazia faxina para ela. Não conta com tristeza e, no final, como se fosse uma absolvição plena, suspira: "Ah, aquela ruivinha de olhos feiticeiros..."

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Equívoco

O tolo atribuiu à amada
Uma aura, uma essência etérea,
Mas ela não tinha nada
Além de pétrea matéria.

Agora

Não dóis como me doías,
No peito, como punhais,
Não feres como ferias,
Não dóis como antes, dóis mais.

Fardo

Por mais que você a negue,
Porque já não lhe diz nada,
E a queira morta e enterrada,
A vida sempre prossegue.

Reflexão

A vida é bela, nos dá
Tanta paixão, tanto encanto,
O bom, o melhor que há.
É pena que dure tanto...

Pretensão

Queres amor, velho? Como?
Com tua tola virtude,
Com tua cara de gnomo,
Com tua decrepitude?

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Azar

Depois do câncer, sofreu
De um cisto mal operado
E de um amor malogrado,
Mas por azar não morreu.

Ali, ó

Depois que tomou o tônico
E seu efeito sentiu,
Falar de um amor platônico
Ninguém nunca mais o ouviu.

Intensidade

Ah, quanto nós nos amamos!
Tu foste louca, eu fui louco,
Nos demos, nos entregamos,
E mesmo assim foi tão pouco...

Tolice

A voz do silêncio... Que tolice é essa que, no entanto, nos mantém atentos na solitária madrugada, como se a qualquer instante pudéssemos ouvir o murmúrio dos lábios amados?

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Dois a um

"A senhora teve um?", perguntou o homem à mulher, um pouco mais velha, que caminhava ao seu lado. "É, neste joelho. Por isso que eu uso a bengala." "Ah, isso não é nada", comentou o homem. "Eu tive dois. Um aqui, neste braço, e outro na garganta. Eu tinha uma bela voz. Agora..." "Eu tive sorte", disse a mulher. "O médico descobriu cedo. Mesmo assim eu sofri muito. O senhor nem imagina." O homem parou. Parecia irritado: "Eu nem imagino? A senhora ouviu o que eu falei? Eu tive dois. Dois. O do braço eu vou deixar barato. Mas o da garganta... Deus que livre a senhora de ter um de garganta." Ele disse isso e, andando rápido, deixou para trás a mulher com a bengala. Ia resmungando e proclamando sua superioridade: "Eu tive dois. Dois!"

Quais são

Ele era um tolo, desde o começo ela viu. Em trinta dias de namoro, ofereceu-lhe tantas estrelas, apontando-as - "aquela é sua, olhe, e aquela ali também" - que ela perdeu a conta. Era um tolo, mas ela ficou triste quando soube que tinham ido à casa dele para levá-lo ao hospício. Agora ela olha para o céu e não sabe mais quais são suas estrelas.

A chave

Entrou e trancou a porta.
Jamais a chave usará,
Jamais a porta abrirá.
Para ele, a vida está morta.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Mapa

Amar-te é esta aflição
De não saber onde estás,
Se em Roma, Havana, La Paz,
Na Índia, Nigéria ou Japão.

Amar-te é esta tortura
De abrir o mapa e execrar
Macau, Mumbai, Gibraltar,
Paris, Teerã, Cingapura.

Nos bolsos

Nos bolsos do rapaz que morreu atropelado na avenida estavam a identidade, uma carteira com razoável quantia, um cartão de banco, uma foto do defunto com uma mulher e duas gêmeas de uns quatro anos e um recorte de jornal em que certa Walderez, gaúcha, coroa e fogosa, prometia fazer tudo em um ambiente discreto. Um dos homens da equipe de resgate leu o recorte e comentou: "Coitado. Será que pelo menos ele... (aí fez um gesto) essa Walderez?"

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Instruções

Seguir pelo mar adentro,
Deixar-se dócil levar
Até chegar bem ao centro
E lentamente afundar.

Registro

Amor frustrado, amor vão,
Nalgum lugar ainda escritas,
Fanadas, mortas, prescritas,
Tuas promessas estão.

Orvalho

Cabelos úmidos, em vós, em vosso orvalho, o sol ainda desorientado e sonolento foi visto procurando a primeira rosa da manhã.

domingo, 8 de maio de 2011

Parcela

Olhar-te, ouvir-te, falar-te
Talvez não seja, querida,
Tudo o que tenho na vida.
Porém é a melhor parte.

Tarde

Tão curta é a vida e, no entanto,
Tardaste e, quando vieste,
Já estava o sol no oeste.
Por que demoraste tanto?

O que é

Me diga, me conte, amiga,
Que dom é o seu, que me prende,
E que força é a que me rende,
Me conte, amiga, me diga.

Miragem

Nos teus cabelos o sol garimpou subitamente fios de ouro tão intenso que um homem te seguiu, enfeitiçado pelo brilho. Quando tu dobraste a esquina e, por uma dessas artimanhas de que os ângulos são tão capazes, o encanto se dissipou, o homem, triste, soube que a manhã não tinha mais nada para lhe oferecer.

sábado, 7 de maio de 2011

Sempre

Estiveste lá - ontem, hoje, quando? Para a memória é sempre hoje, e ela jamais se esquece de nenhum detalhe daquela manhã, nem dos aparentemente mais banais. A mesinha do café é miraculosamente a mesma, os frequentadores também, com as mesmas roupas, e alguém às minhas costas diz uma palavra que soa como russa e que mantém seu mistério em cada nova evocação. Meu saquinho de açúcar sempre esparrama alguns grãozinhos no pires antes de acertar o centro cálido da xícara e este é um instante que eu sempre aproveito, como agora, para me esquivar do feitiço dos teus olhos e transferi-lo para os teus dedos, sob o pretexto de censurar minhas desastradas mãos.

Quando

Quando de mim te aproximas
E com teus braços me enleias,
Meu coração se abre em rimas
E mel me corre nas veias.

Segredo

Doente de amor, ele se queixa sempre deste ou daquele sintoma da doença. Porém, toda vez que o faz, abre um sorriso maroto, como se fosse um menino que, numa casa só de adultos, conseguisse manter sem suspeita, por dois anos, um gato espalhafatosamente amarelo e gorducho, de miado abençoadamente fraco.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Fetiche

Cabelos, voz, o sorriso,
Do rosto o leve rubor,
De nada mais eu preciso
Para o fetiche compor.

Aritmética

Já estava quase pegando no sono quando uma das ovelhas do rebanho que ele contava, ferida numa pata, demorou para passar e ele, não sabendo mais se ela era a centésima décima quarta ou a centésima vigésima quinta, interrompeu os bocejos e decidiu reiniciar a contagem. Honesto, voltou ao número 1, mas, ao chegar a 85, lembrou-se de uma conta que precisava pagar e, em dúvida sobre a data de vencimento, saiu da cama e foi até a sala para revirar as gavetas da estante.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Engano

Há quem se vanglorie de criar-te, beleza, quando já é uma ventura tão grande conseguir, embora palidamente, retratar-te.

Assunto sério

A vida é assunto sério
Do início até seu final:
Começa num hospital
E acaba num cemitério.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Anônimas

Mirradas flores, fanadas,
Que rosas jamais serão,
Anônimas, mal-amadas,
Flores de vil floração.

Solução

Tão simples, tão adequado,
Tão fácil de consumar:
Deitar-se, ficar deitado,
Recusar-se a acordar.

Espelho

O dia inteiro eu escrevo.
Descrevo meu mal, meu bem,
Tudo de mim descrevo.
Escrevo para ninguém.

Decepção

Não faz mais nada, só dorme,
E depois de ter dormido
Sente a decepção enorme
De, outra vez, não ter morrido.

Sofisma

Ainda há quem, pretendendo passar por mártir, diga ter dado a vida pelo amor - como se a vida fosse mais importante que o amor, e não apenas uma das dádivas que ele nos concede.

Idade

Estava já naquela idade em que o amor era só mais uma palavra bonita cujo significado ele chegara a conhecer, em outro tempo.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Rosa dos ventos

Se segues o rumo norte,
O que te espera é a peste.
No sul, no leste e no oeste,
O que te espera é a morte.

Saudosismo

O que no computador
Te disse de modo terno
Teria bem mais valor
Se escrito no teu caderno.

Hoje

Amor, não são essas, frias,
As mãos com que me afagavas,
Não era assim que me amavas,
Nem isso o que me dizias.

Que sobre o sonho frustrado
E o desencanto sofrido
Assente o pó abençoado
Da remissão e do olvido.

Rima

Rimar-te sempre com dor
Não é contigo desfeita.
É a melhor rima, é a perfeita,
É a que mereces, amor.

Cristaleiras

Vi Luzes da Ribalta, de Chaplin, pelo menos vinte vezes e falei sobre o filme mais umas vinte. E, sempre que falo, exagero um tanto e digo que o vi sessenta vezes, setenta. É pouco: sinto que deveria tê-lo visto muitas vezes mais. Aquilo é tão dramaticamente, maravilhosamente, lancinantemente piegas quanto aquelas cristaleiras em que as famílias antigas, à falta de cristais, acabavam colocando rústicas poncheiras, copos opacos, caixinhas de música e bibelôs que, tendo sofrido alguma mutilação por desastres de manuseio e pertencendo à categoria de objetos de estimação, ali eram encerrados. Bailarinas sem pés, moinhos sem pás e outras relíquias domésticas eram postas na cristaleira com a estratégica e piedosa preocupação de que seus defeitos se exibissem mais à parede que aos olhos dos jovens que, nas festas de família, paravam diante da poncheira para novamente serem informados de que aquele soldado com o capacete roído pelo tempo e aquele cachorro com a orelha lascada tinham sido presenteados à vovó em 1910 ou poucos meses antes da I Guerra Mundial.

Lição

O que os jovens escritores deveriam saber, como primeira lição, é que não se pode ser Machado de Assis com vinte ou trinta anos. Nem com setenta.

Dois em um

Arrependo-me de tantos versos capengas, de tantos poemas estropiados, de tudo que escrevi e, principalmente, de tudo aquilo que poderia ter escrito e fiquei prometendo a mim mesmo escrever, sabendo que jamais conseguiria. Fui um poeta inepto enganando um leitor tolo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Último voo

Pudéssemos, em nosso derradeiro dia, ser abençoados com a leveza de um passarinho, o menor de todos, e voássemos até o ponto mais acolhedor do mais distante dos mares, onde flutuássemos por um instante e nos deixássemos cair lentamente, livres do peso de nossas aspirações e nossas desgraças, misturando-nos à espuma e às ondas... Dizem que a alma é assim, leve. Que seja. Ave, alma.

domingo, 1 de maio de 2011

Domingo

Domingo claro, que cantas
A majestade da vida,
Tu tentas, mas não espantas
A convicção do suicida.