domingo, 5 de junho de 2011

Um sonho

Faz uma semana que, entre as sete e as sete e meia da noite, a velha kombi de brônquios afetados passa pela rua anunciando pizzas quentinhas. Hoje, domingo, apesar do frio, ela passou de novo, tossindo um pouco mais que nas outras noites. A voz gravada, que fala de vários sabores, mal chega, logo se dissipa, como se o motorista, ou a kombi por conta própria, já soubesse que não adianta passar. Não há freguês, talvez nunca tenha havido nenhum nos sete dias. Moro aqui há trinta anos e já ouvi, com intervalos médios de cinco anos, outras kombis apregoando pizzas. Aparecem e desaparecem em no máximo uma quinzena. E suponho, apostando na suposição, que todas elas representaram a última esperança de uma família para ganhar algum dinheiro em algo que não seja esmolar. Abro a porta, levanto a gola do casaco e talvez me animasse a ir até o portão, mas a voz gravada já vai longe. O motorista e a kombi estão certos. Não há freguês nenhum, nunca haverá. Amanhã ou depois talvez passem de novo, e quem sabe até mais alguns dias. Depois, a voz oferecendo as pizzas se juntará tristemente em minha memória às outras que, nestes trinta anos, tentaram realizar um sonho humano - tão simples e tão inacessível como quase todos os sonhos humanos.

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