sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Ponto de vista

Convidou-a para a sessão da tarde do cinema, e ela o olhou indignada. Ele não entendeu: "O que foi? Parece que eu estou propondo uma... perversão." Ela respondeu: "Você disse a palavra certa. Por que não podemos ir ao motel, como sempre?" E, vendo a decepção dele, deu-lhe uma esperança: "Quem sabe na próxima...".

Nem parecido

O amor é aquilo - uma ânsia, uma aflição, uma esperança jamais consumada, um desespero, lágrimas, a vontade de morrer. Qualquer outra coisa fora disso - a consumação, a posse, os risos, a felicidade - não é amor, nem sequer se parece com ele.

Utopia

Amar a ideia, a noção
De amor, não mais, sem pensar
Em ter, gozar, desfrutar:
Amar sem retribuição.

Filhote

Ainda tinhas na mão um resto da tinta com a qual havias acabado de pintar a grama em tua tela, quando o desnorteado filhote de passarinho entrou saltitando na sala. Tu o pegaste, amorosa, e ele, faminto, começou a bicar tua mão, procurando um grão entre os teus dedos verdes.

Tanto quanto

Se eu pensasse em mim tanto quanto penso em ti, meu narcisismo seria digno de um livro de recordes.

Desenho

A menina enfrenta o primeiro grande drama de sua vida escolar. A professora mostrou uma foto - uma casinha com um sol em cima, um jardim e um cachorro na grama - e pediu à classe que faça um desenho colorido reproduzindo a cena. A menina sabe que conseguirá desenhar tudo, até o cachorro, que é o mais difícil. Mas, abrindo a caixinha dos lápis de cor, vê, apavorada, que ali não está nem o amarelo nem o vermelho. Como ficará o sol sem eles? Termina o desenho e começa a colorir. Quando chega ao sol, toma uma decisão: sobre ele, e sobre todo o céu, espalha os pingos azul-escuros de uma chuva cerrada. Completada a rebeldia, sente-se mal. Será castigada, certamente, e isso mexe com sua bexiga. Levanta a mão, para pedir à professora que a deixe ir ao banheiro, mas é tarde: o amarelo de sua vergonha já lhe escorre pelas pernas.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Vai que dê certo

Entrou na mais lotada sala do velório municipal, olhou para o morto desconhecido e furtivamente deixou cair no caixão um pedacinho de pano. Saiu, com o coração tumultuado, mas esperançosa. Tinham-lhe dito que, se um pedaço da camisa do seu filho fosse enterrado com um defunto, o menino se livraria do defeito numa das pernas. Isso foi há quinze anos, o filho tornou-se homem e continua mancando.

Pai

Quando a mãe fala do pai sumido há três anos e fica olhando sonhadoramente para a foto, o menino a olha também, vê aquele rosto, aquele bigodinho preto e, como sempre, sente alívio mas também medo de que ele um dia volte seja lá de onde estiver e faça com ele aquilo que fez naquela manhã, no porão, um dia antes de ir embora.

Três dias, três noites

Três dias e três noites depois, o gato conseguiu voltar para a casa do dono. Estava faminto, fraco, e precisou miar muito diante da porta, porque a televisão estava ligada. O homem finalmente ouviu, deixou-o entrar e deu-lhe comida. Depois, pegou-o carinhosamente no colo, foi à garagem e entrou com ele no carro. Foi para mais longe do que na primeira vez e, porque era noite, achava que o gato não repetiria a proeza de voltar.

Cisco

É tão entranhadamente amante de tudo, das pessoas e das coisas, que uma ocasião, tendo-se grudado na viagem para Buenos Aires um cisco, uma felpa no seu casaco, ele ficou feliz porque o conservava ainda ao descer no aeroporto de Ezeiza, no táxi para o hotel e na recepção. Quando, ao entrar no quarto acompanhado pelo recepcionista, deu pela falta da felpa e começou a procurá-la aflito no chão, o rapaz, sem saber do que se tratava, se pôs também de quatro, para ajudá-lo. O cisco estava ali e, enquanto disfarçada mas venturosamente o resgatava entre o indicador e o polegar, o amante de ciscos disse ao recepcionista que não se preocupasse: imaginara ter deixado cair a caneta, mas via agora que ela estava no bolso do casaco.

Sal

Era já quase meia-noite quando, depois de ele ter suplicado tanto, ela, na areia, com as ondas abafando os gemidos, os dela e os dele, consentiu afinal que ele lhe provasse demoradamente o sal.

Por ti

Se penso em ti, dói-me aqui
Querer-te e nunca te obter.
Mas penso, e quero querer
E quero doer-me por ti.

Os vampiros de Dalton

A casta Curitiba jamais perdoou Dalton Trevisan por ele vir há cinco décadas dizendo que toda noite vampiros andam pelas ruas da cidade à cata de mocinhas - umas apavoradas, outras ansiosas.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Tempo

Bastou-te, amor, só um dia
Para eu cativo tornar-me.
Mas, se quisesses matar-me,
Uma hora te bastaria.

Trocas

Enquanto na tela os caubóis e o xerife trocavam tiros com os invasores da fazenda, na última fileira da plateia, entre coragem e medo, o garoto e a garota faziam a balinha de goma trocar de boca até se derreter, enquanto as mãos trocavam mútuos tesouros.

Xeque

Naquela tarde, admirado,
Observei como o sol fez
Um lance mais do que ousado
Na tua blusa xadrez.

Simples

É simples assim,
Como eu resumi:
Eu vivo por ti,
Tu vives em mim.

Aventureiro

Como um expedicionário
Percorro a mata e avanço,
Nas tuas águas me lanço
E atinjo teu estuário.

Anacleto

A menininha de três anos corre pelo supermercado com a avó e vai apontando as cores nos produtos: azul, vermelho, branco. Parece-lhe boa a vida, e é. Só daqui a quinze anos conhecerá neste mesmo supermercado um rapaz que a fará definhar e morrer por amor, apesar do nome nada romântico: Anacleto.

Shakespeare

Minutos antes de Shakespeare se entregar ao sono, os assassinos expulsavam as alegres comadres de Windsor e a megera domada e, com seus punhais e venenos, esperavam o momento de vagar pelas sombrias ruas do sonho.

Carlos Zéfiro

Carlos Zéfiro não produzia o milagre da chuva, mas as espadas e as lanças dos seus lúbricos personagens nunca deixavam de gotejar.

José de Alencar

José de Alencar não viveu o suficiente para receber a Medalha do Mérito Marechal Rondon.

Zweig

Para Stefan Zweig, assim como para tantos outros, o paraíso foi apenas uma parada breve e enganosa, sob as árvores, antes da retomada do caminho sob o sol assassino, rumo ao tormento e ao inferno.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

De novo

Estive morto. Vivi
De novo para poder
Por ti de novo sofrer,
Morrer de novo por ti.

Do amor

A chama do amor é fraca.
Produz apenas fumaça
E uma luz pálida, opaca,
Mortiça, trêmula, baça.

Nem sempre

Quis partilhar com ela filmes, livros, peças. Compartilharam Woody Allen, Philip Roth, Edward Albee. Quis partilhar com ela música. Compartilharam Maria Callas. Quis partilhar com ela o amor.

Dois, três dias

Quando fecha os olhos, de madrugada, tenta não pensar no amor. Receia que o amor o mate de tristeza, como já ameaçou tantas vezes, e que ele fique jogado na cama dois dias, três, até que o porteiro do prédio se lembre de que há muito tempo não vê aquele rapaz pálido e melancólico.

Puteiros

Sonha com moças impuras
com marafonas
com vielas escuras
com falsas meninas
puteando nas esquinas
de todas as zonas

E lambe geografias
e possui territórios
e ocupa promontórios
e estende-se sobre enseadas
e derrama-se sobre baías
e trepa em montanhas empinadas

Acorda morto
já no meio do dia
mas na cama vira-se ainda
e revira-se
e busca na memória
a morna agonia
o cheiro
de cada puteiro
a escada rangendo
a luz se acendendo
a cama vadia gemendo
e no quarto abafado
o doce suor
o olor úmido
de peixe pescado
de pecado
e de maresia

Freud

Um dos marinheiros tinha um dente de ouro; o outro, um punhal de prata. Falaram-lhe numa língua estrangeira e o levaram para um beco onde, para sorte dele, apareceu do nada uma mulher pela qual eles o abandonaram. Ele se safou, mas no meio do sonho descobriu que a mulher era a mãe e chorou até acordar. Era tão belo o marinheiro do dente de ouro.

Von Masoch

Como era doce sentir
O amor ferindo-lhe as costas,
A carne rasgada em postas
E o látego a insistir.

Ímpeto

Sentiu um cheiro de égua, de mula, de cadela. Galopou para onde a brisa apontava e estava atravessando a campina perfumada pelo cálido cheiro do cio, quando acordou e olhou para o teto e, depois, com os olhos molhados, para o criado-mudo cheio de frascos e cápsulas de remédio.

Realidade

Desiludiu-se com os sonetos e as trovas em que acreditou na juventude. Hoje não lhe servem para mais nada. Sabe que, quando vem a noite, qualquer mulher do mundo julgará um carroceiro mais útil, com seus braços de ferro, do que ele, com seus dedos frágeis habituados a escandir versos.

Gravata

Escolheu até a gravata com que irá. Tudo está anotado em letra grande, num papel guardado na gaveta de documentos. Foi chefe de cerimonial e sabe o que se exige em cada solenidade. Não iria querer que, morto, comentassem ter descurado da última e mais importante de sua vida.

Velhote

Devia, como outros da sua idade, estar na igreja, ajudando o padre, correndo o chapéu entre os frequentadores, cantando no coro, cuidando de salvar a alma. Mas, como um personagem de Dalton Trevisan, fica fora, esperando as mulheres sair para piscar para elas e abrir seu sorriso velho e já quase sem dentes. Se lhe perguntam por que age assim, explica que está oferecendo uma alternativa. Quando entram nas estatísticas, diz que não tem muitas seguidoras, só as suficientes. E, movendo meticulosamente a mão por dentro do bolso esquerdo da calça, ri: "Tá dando pro gasto, não é, amigão?"

Frase de Pierre Mérot

"Somos dependentes de um produto ou de um ser quando ele nos proporciona uma coisa e seu contrário, isto é, o maior prazer e o maior sofrimento."
(Do romance Mamíferos, traduzido por Eduardo Brandão e publicado pela Companhia das Letras.)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Cantaste

Ó, doce pássaro da juventude,
Cantaste o amor com teu gorjeio forte
Como se não houvesse dor nem morte,
Nem a catástrofe da senectude.

Por que, então?

Se não eras a mulher que me visitou no sonho, por que acordei me abraçando e por que, depois, chorei?

Górki

Os mujiques de Górki, embora com sua linguagem prosaica, davam sempre a impressão de estar defendendo teses, assim como os carneiros, quando baliam, e as vacas, quando mugiam.

Tchekhov

Muitos escritores, no tempo de Tchekhov, escreviam frases como "o dia amanheceu nublado". Tchekhov também escrevia frases assim. Mas as dele sempre pareciam melhores e ainda mais simples.

Machado de Assis

As entrelinhas sempre odiaram Machado de Assis. Era o único escritor, na época, que não lhes dava folga nunca, nem quando os personagens tomavam café.

Broch

Hermann Broch construía seus tipos como um escultor, ponto a ponto, linha a linha, traço a traço. Uma ruga que aparecesse na página 3 era retomada na 30, retocada na 100 e dada como concluída, ou quase, na 300. E quantas rugas morais, quantas nódoas éticas há em cada um de seus personagens.

Momento

Quando olhas para mim, alguma coisa me corre pelo corpo, se insinua em minha alma e me diz que a vida é tão bela que poderia terminar assim, que não precisaria continuar.

Cisco

Pousar nos teus cabelos como um cisco, uma pluma, e caminhar contigo ao sol, e entrar contigo em tua casa à noite e, por um descuido teu, ou condescendência, continuar entre os fios de ouro, como se fosse um deles ou um reflexo luminoso do teu sonho.

Como tudo

Penso em ti e em como é triste saber que as esperanças, como todas as coisas, como tudo, nascem para morrer.

Uma só palavra

Nem sempre entendo o que falas, nem preciso. A música de tua voz me embriaga e todas as palavras que ela me diz são no fundo uma só, curta e definitiva, porque assim as traduz meu coração.

Sonho

Eu era pequeno, tinha um pelinho cinza e macio, miava baixo como se fosse recém-nascido e era alegre, mas fingia ser triste e doente, porque assim afofavas o canto do teu travesseiro e me deixavas dormir ao teu lado.

Dostoiévski

Nos livros de Dostoiévski, há sempre ao menos um russo que já na décima página pode ser considerado maluco.

Como um rio

Talvez o tempo não transcorra com a velocidade imaginada por mim. Talvez ele flua lento, talvez se esvaia vagarosamente. Talvez. Pena que flua, se fluir, e se esvaia, se se esvair, na direção contrária àquela na qual estás, como um rio ficando a cada instante mais longe do mar e da algazarra festiva das gaivotas.

domingo, 25 de setembro de 2011

Proust

Proust passava seus sábados procurando sempre as sextas-feiras.

Libertino

De manhã, quando entra na sala, a primeira coisa que o sol faz é ir até a tela. Ele enfia a cara na perna da mulher que, curvada, ajeita a meia com o pé apoiado no assento da cadeira, fica um pouco ali, estremece e, antes de ir embora, sussurra com sua voz velha e cheia de intenções: "Me espera, que amanhã eu volto, tesãozinha."

Galanteria

No lado esquerdo do rosto
Exibes uma beleza
Que só tem par, com certeza,
Na que tens no lado oposto.

Garras (para Frida)

A gata miou pela terceira vez, mas ela continua a trabalhar na tela. Não está satisfeita com o canto superior esquerdo. Parece faltar-lhe algo, talvez uns fiapos de nuvem. A gata mia pela quarta vez. Não miará mais. Quando ela enfim vier sentar-se ao lado dela, no sofá, ela fingirá estar entregue ao sono, ou talvez arranhe a mão que se ocupava da tela. E, se ela continuar se portando mal, de madrugada sairá furtivamente da cama onde as duas dormem e enterrará as garras na tela, para deixá-las afiadas como devem estar as garras de uma gata enciumada.

Seda

Minhas mãos estranharam as tuas. Só conheciam a seda tateada em cortinas, em vestidos, em blusas ou imaginada nas luvas de condessas russas de romances antigos.

Garoa

Se não estás na Paulista, o sol também se vai, para te procurar pelas alamedas. E surge um fulgor de avenida nas jaús, nas lorenas, nas santos, nas rios claros.

O adeus à rosa

Sabe que o marido a está observando e balançando a cabeça, como sempre faz nessas ocasiões, como sempre faz nessas ocasiões em que ela é toda sentimento.. Pode adivinhar a frase que ele está resmungando ("coitada, é louca"), mas nem por isso se apressará no triste trabalho de envolver a rosa no papel celofane. Ela merece isso. Irá para o lixo, mas com dignidade. Não é mais possível recuperá-la, está estraçalhada, chegou o momento de botá-la fora, mas desse último ritual, de acondicioná-la com carinho e dizer-lhe ternas palavras, não abrirá mão, não importa quanto o marido balance a cabeça e resmungue. Amanhã ele contará aos amigos que ela levou dez minutos preparando uma rosa, como se fosse uma menina morta, para depois colocá-la no lixo. Uma rosa de plástico, ele acentuará, de plástico, e balançará a cabeça: "Coitada, é louca").

sábado, 24 de setembro de 2011

A segunda

Na segunda vez em que uma estrela caiu diante dele, não se preocupou em saber se era uma coincidência ou se ele era alguém destinado a atrair estrelas. Colocou-a no bolso da camisa e, com a mão em concha, para melhor aquecê-la, correu para casa, onde a pôs na cama, debaixo de três cobertores. Não deixaria essa morrer como a outra, que jazia enterrada no quintal, sob a rosa que à noite brilha como um vaga-lume.

Passos

Naquela manhã, pela primeira vez sentiu que seu amor era uma imposição do destino, e seus passos, que até o dia anterior haviam soado juvenilmente incertos, expressavam a resolução, a confiança e a urgência de um homem caminhando ao encontro da mulher amada.

Êxtase

Sentiu o toque da beleza, uma tarde, e soube que nunca mais lhe ocorreria algo igual. Não comeu mais, não dormiu, e só respirou porque era algo que independia de sua vontade. Morreu uma semana depois, e esses últimos sete dias, os mais venturosos de sua vida, fixaram-se em azul nos seus olhos. Havia neles um brilho que um cunhado, vendedor de frios, definiu como êxtase, atônito por não atinar como essa palavra tão inusual fora parar em seus lábios.

Más companhias

Gramático e revisor de provas, por onde anda é acompanhado por suas vírgulas, que enxameiam sobre sua cabeça. Quando sai para um compromisso mais importtante, usa um truque: com a chave na porta, diz às vírgulas que há um presente para elas na parte de cima da casa. Assim que elas, em tropelia, sobem a escada, ele escapa: antes só que virgulamente acompanhado.

Bioy

Há quem diga que Adolfo Bioy Casares foi um personagem de Jorge Luis Borges. E há quem acredite.

Cervantes

Cervantes foi o escritor que tornou famosos Dom Quixote, Sancho Pança e os moinhos de vento.

A contagem

Toda noite contava as estrelas, uma a uma. Se no final da contagem achasse falta de uma ou houvesse uma a mais, recomeçava do zero. De manhã, estava exausto e, assim que chegava ao trabalho, dormia. Como era muito simpático, ia sendo mantido, até que um chefe novo o demitiu. Livre das obrigações do dia, aperfeiçoou sua contagem noturna e dificilmente precisava refazê-la.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu, trancaram-na num prédio tenebroso cujos quartos, para segurança das internadas, não tinham janelas pelas quais elas pudessem ver o céu, a lua e o mar.

Classe

Na corda de enforcado, o bailarino balança ainda, com a perfeição de sempre.

Um dedinho só

Incorrigíveis são aqueles que, sugerindo um dedinho de prosa, não se satisfazem com ele e avançam nas mãos e até nos anéis do interlocutor.

Aquela noite

Uma noite, pensou ter visto Machado de Assis comendo quibe na avenida São João. Isso foi em 1962, mas até hoje ele classifica as noites em duas categorias: essa, inesquecível, e todas as outras em que não viu Machado de Assis comendo quibe na São João.

Eles hoje

Sabem o que fariam hoje Dostoiévski, Proust, Shakespeare e Borges? Escreveriam. Rimbaud, dependendo da idade que tivesse, talvez já estivesse estabelecido como traficante de armas.

Chuveiro

Se a imagina no banho, ele se inclui na cena - e é ou as mãos dela ou o sabonete. Nos dias em que a poesia o toca, ele é também a espuma.

Acróstico

Poucas palavras são capazes de rivalizar, em antipatia, com acróstico. Mas como as garotas gostavam de receber um, escrito com a trêmula letra dos seus apaixonados, que na época eram conhecidos pela não menos desengonçada palavra pretendentes.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Viagem

Minhas mãos estiveram tão perto daqueles mundos que com tuas mãos constróis - e no entanto faltou um gesto, um impulso (meu ou teu?) e a viagem ficou suspensa ali, adiada, em cima da mesinha do café, a dois centímetros de se iniciar, até que nossas mãos se recolheram, talvez constrangidas, talvez aliviadas, talvez tristes, quem há de saber?

Final de carta

Talvez para você o sol, quando se vai, não deixe esta tristeza em tudo, como se as coisas todas e as pessoas tivessem morrido. Talvez ele simplesmente se vá e nem notes. Acendes então a luz e sorris, porque a noite, para ti, não há de ser como é para mim. Nada, para ti, há de ser como é para mim - e isto, mais do que uma suposição, uma frase, é um desejo, um voto, uma prece. Que sejas sempre feliz, minha cara amiga.

Lembrança

Meu nome esteve naquela garganta, naquela boca, naqueles lábios. Foi há muito tempo, muito mesmo, mas ainda não esqueci.

Caprichos

Não mexam em mim, não me toquem, por favor, não me tirem daqui. Para que vocês hão de querer uma pedrinha? Deixem-me aqui, onde o amor, num acesso de irritação, me lançou. O amor é assim, cheio de caprichos, e quem garante que um dia, talvez amanhã, não virá me buscar, para me aquecer em suas mãos e brincar comigo um pouco, antes de se aborrecer e me atirar longe outra vez?

Bom tempo

Havia em algum lugar uma amiga, a quem ele sempre mandava um bom-dia e uma flor. Havia, no jardim de uma casinha amarela, um canteiro onde a qualquer enamorado bastava avançar a mão para apanhar uma margarida. Havia o sol, que vinha lhe apontar todo dia a mais formosa delas, porque a amada entendia de margaridas como ninguém. Havia nele, havia no mundo algo simples e bonito. Havia, havia, havia.

Fraude

Gritou o santo nome do amor em vão. Ninguém o ouviu e agora, se alguém pronuncia perto dele a palavra, ele sente sempre o impulso de se aproximar e advertir que o amor nunca é mais do que uma engenhosa fraude.

Antes do baile

Escrevo hoje o que lerás amanhã. Depois que te conheci, minhas palavras têm sido as mesmas, e até elas, percebendo isso, tratam diariamente de se arranjar de uma forma diferente, como um bando de meninas se ajeitando no espelho para o primeiro baile. São sempre as mesmas, dez ou doze, mas me comovo ainda quando as vejo se aprontando, ansiosas para te agradar.

Discrição

Será assim, então. Um
Amor calado, discreto,
Tão silencioso e secreto
Como se fosse nenhum.

Remédio

Se choro meu abandono
E você não me socorre,
Eu me emaranho no sono
E durmo como quem morre.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Intruso (para Zelda)

Ela deixou o último traço na tela e foi se deitar. De madrugada, teve um pesadelo e ouviu um grito triste, um piado aflito, um pedido de socorro. Acordou inquieta e andou até a sala, onde estava a tela. Na árvore onde juraria ter colocado quatro passarinhos havia três e no céu ela viu um gavião que não se lembrava de ter pintado. Voltou para a cama e, embora ouvisse de novo o piado, não interrompeu o sono. De manhã, sem se lembrar do pesadelo, parou para olhar a tela. Aprovou o trabalho, com exceção do passarinho na árvore. Havia algo muito triste nele, parecia aterrorizado. Notou também em cima, no céu azulíssimo, um ponto que, para que houvesse um equilíbrio formal, deveria ser preenchido com algo. Pensou num gavião.

Caso de polícia

Há também quem hoje passe por uma maquininha, como aquelas que atestam se um dólar é legítimo ou não, todas as palavras de amor recebidas. E já ouvi até casos de coração presos como falsários.

Que ninguém

Um dia, na praia, o vento me trouxe o grito de um marinheiro que, atormentado pelo amor, acabara de cortar a garganta e se atirar às ondas. Eu era então um menino e não pude fazer nada. Quando eu cortar a garganta, que ninguém ouça meu último grito de amor e que, tingindo com meu sangue o azul, eu possa convocar os festivos tubarões.

Sempre pouco

Talvez, no fim, nem te lembres do meu nome. Se alguma imagem ficar, será uma bem vaga, de alguém que vivia falando do amor que sentia por ti, alguém que alardeava esse amor com todas as trombetas do coração, mas que tu sempre achavas pouco.

Body and soul

Quando ela se dá, ela se dá a um corpo - um corpo que tem um nome e pouco mais do que isso. Porque também ela, quando se dá, não é muito mais que um corpo. Se o corpo ao qual ela se dá quer ser mais do que isso, e revela aspirações que só à alma competem, ela diz intimamente: este, nunca mais. Porque a alma é dela, dela só, e jamais alguém a levará para uma cama, seja em que lugar for e tenha as sedas que tiver.

O comandante

Devo desistir, então, não te mandar mais nenhuma palavra e acolher todas as que te enviei nesses anos todos e voltam agora - tão humilhadas, tão vencidas, tão esfarrapadas quanto soldados que, perdendo a última batalha, perderam também a honra e, por um pedaço de pão velho, negociaram o uniforme, as botas, as armas e até o estandarte no caminho. Recebi esta manhã a primeira leva desses estropiados, dessas palavras outrora nobres e que hoje, por vergonha, se recusaram a dizer quem são. Eu as chamei uma a uma pelo nome - ternura, afeto, sentimento - e nenhuma ergueu a mão. Quando pronunciei o nome do amor, o silêncio assumiu a intensidade que costuma anunciar as grandes desgraças e, em seguida, todos aqueles soldados, pálidos como fantasmas, puseram-se a chorar e a soluçar pelo comandante, que, escondido no fundo, encolhido, não ousava olhar-me. Eu, porém, olhei para ele e, em troca do nome que não soube honrar, dei-lhe três - maldito, covarde, inútil - e o toquei dali para fora como se fosse um leproso.

Divina Callas

Se você ouvir Maria Callas cantar O Mio Babbino Caro, pode estar certo de que dificilmente alguém o levará para tão próximo dos anjos, do céu e da beleza.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

À moda de Carlos Zéfiro

Seguindo com galhardia
Sua índole aventureira,
Na mata espessa e bravia
Fincou a sua bandeira.

Autossuficiente

A mão com esmero molha
E, mais com arte que ciência,
Com lentidão, com paciência,
A flor do sexo desfolha.

Estátua

Sim, eu te forjei perfeita,
Sem uma mácula, sem
Defeito nenhum. E quem
Com uma estátua se deita?

Um traço

Se de mim ficar
um sinal
um traço
uma pista
há de ser num lugar
um espaço qualquer
onde certa manhã
possuído pelo amor
um pássaro aflito
tentou ser ouvido
no alarido
entre a augusta e a paulista.

Como o látego

Amor, teu violino toca sem cessar dentro de meu peito, não me deixa dormir e, se durmo, me acorda para ouvi-lo, fino, agudo, impositivo como o látego de um verdugo.

Sedosamente

Eu me rasgarei maciamente, com dedos de brisa, e me desfarei em seda diante dos teus pés, para que não sintas remorso e nem manches de sangue tuas mãos se quiseres me erguer.

Cole-Ferry

E de repente, onde a beleza parecia não ter lugar, ali, bem ali, Bryan Ferry começou a cantar You do something to me em meu ouvido reminiscente, e por um instante me pareceu mais suportável a vida e menos podre o retalhado coração da cidade.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Deus

Deus, não me fizeste forte para suportar a visão de tanta beleza e o sofrimento de perdê-la.

Alguma coisa

Alguma coisa me fará ir caminhando para as ondas. Alguma coisa fará as ondas dóceis. Alguma coisa me fará sorrir. Alguma coisa me fará ir entrando mais, mais. Alguma coisa encrespará as ondas repentinamente. Alguma coisa me fará continuar andando, mais para dentro, mais para o fundo. Alguma coisa me fará continuar sorrindo.

Bobeira

Tens razão. Não deve ser amor, isto. Deve ser só uma dessas bobeiras que levam alguns velhotes a imaginar coisas quando precisam mudar o remédio da depressão.

Beleza

Naquela manhã, naquela tarde, conheceu a beleza que, acumpliciando-se depois com a memória, o mataria todas as manhãs, todas as tardes, todas as noites, todos os dias.

O fruto

Viu o fruto tardio num quase início de noite, quando não tinha mais forças para puxá-lo da árvore. Continuou seu caminho, mas, já dez passos adiante, o que era resignação se transformara em revolta. O fruto, o fruto, só pensava no fruto, e censurou Deus por não tê-lo cegado, por não tê-lo matado antes que, com o sol já quase se afogando no horizonte, visse, balançado demoniacamente pelo vento, o fruto, apetecível como um pecado e zombeteiro como uma maldição.

Renegadas

Instruí tão bem as palavras que te enviei, confiei nelas, beijei cada uma ao mandá-las, como um pai encaminhando as filhas à escola, e pedi que te tratassem com reverência. Eram as melhores que eu tinha e, quando voltaram sem uma notícia tua, vi como verdadeiramente eram: fúteis, tolas, inúteis. Toquei-as de casa, expulsei-as do meu coração e, enquanto imploravam para ficar, disse a elas o que eram: malditas, todas malditas. E elas - ternura, amor, paixão - choraram como se eu as chamasse de peste, praga e calamidade.

Sinopse

Não tenho mais alegria,
Não tenho mais ilusão,
É noite sempre o meu dia
E a minha palavra é não.

Marca

Toda manhã a vida vem confirmar sua possessão sobre ele, com o ferro em brasa do sol e a gargalhada sarcástica dos passarinhos.

domingo, 18 de setembro de 2011

Onde

São tantas as tentações
Que o Diabo põe no caminho,
Mulheres, saturnais, vinho,
E tantas as perversões
Nas quais me afundo e definho.
Deus, onde estão teus perdões?

Flor

Flor mirrada
mijada pelos bêbados
e pelos cães defecada
flor feia nascida
numa fresta de calçada
flor sofrida
vilipendiada
quem te arrancará
e num vaso te colocará
para que tenhas
por um dia que seja
se não vida
coisa parecida
certa aparência
se não de magnificência
de algo que diga algo
de tua essência
imaculada?

Conceito

A vida é um nada, embrulhado em papel de seda para iludir os otários.

Inútil

Um dia talvez nos lembremos de levar ao Amor um agrado, algumas flores que porém chegarão a tempo só de adornar seu peito frio.

sábado, 17 de setembro de 2011

Tarefa

Talvez seja hora de ir esvaziando as gavetas e os arquivos e não deixar para os filhos a tarefa de descobrir que nelas nada há de genial.

Não tão mal

Sim, eu bebi muito, outrora.
Vivi noites quentes, e os
Meus dias não eram frios
Como são estes de agora.

Ciganos

Até os dez ou doze anos, eu tremia de pavor ao ouvir de minha mãe histórias de ciganos que pegavam meninos desobedientes e os levavam embora, sumindo com eles pelo mundo. Aos catorze, depois de uma crise doméstica cujos detalhes já nem lembro, arrumei às escondidas uma sacola com roupas e comida e saí, ansioso para desaparecer. Não surgiu nenhum cigano para me arrastar e me vender a algum dono de circo (dizia-se que essa era uma prática comum). Voltei para casa, como é fácil imaginar, e renunciei assim a uma carreira de trapezista, palhaço ou malabarista que talvez não tivesse muito sucesso, mas decerto evitaria o nascimento de tantos textos ruins...

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Conteúdo

E aqui estou eu (velho, possivelmente até decrépito) falando de amor. Para temas próprios à minha idade, como reumatismo, artrose e diabetes, tenham a bondade de procurar outro blog.

Evocação

Nas noites de insônia, quando ele se vira e revira sobre a sua solidão, a cama, estalando uma mola do colchão ou uma queixosa ripa do estrado, parece evocar um nome.

Exceto

A razão faria bem se entendesse que pode - e talvez deva - intrometer-se em tudo, menos nos assuntos do amor.

Disfarce

Anda pelo bairro com o bloquinho, anotando esboços de poemas e contos. Apontado zombeteiramente nas ruas, começou a disfarçar e agora só escreve diante de placas de vende-se ou aluga-se. Seu status melhorou: passou de louco a corretor de imóveis.

A raposa e a uva

Até os trinta anos, sonhou com o Nobel. Dos trinta aos cinquenta, trabalhou para conquistá-lo. Depois disso desistiu, e a frase que mais diz hoje é: "Os suecos não entendem nada de literatura."

Avó

Pelo que lembra do amor, era uma coisa delicada, que ela relaciona com poemas, caixinhas de música, bibelôs de porcelana, papel de seda, Glenn Miller na vitrola. As netas lhe dizem que não é mais assim, os netos também, e também os filmes que a tevê ousa passar, tão diferentes daqueles que ela via nas matinês (ah, Clark Gable, ah, Gary Cooper, ah, Cary Grant, tão bonitos sempre e tão dispostos a emprestar um lenço para uma dama secar as lágrimas e a estender um casaco para uma senhorita não pisar numa poça). Os homens de hoje, mesmo os bonitos, não têm casaco e usam o lenço para assoar o nariz.

Trottoir

Gostava mais de ti quando
Tu, não tendo eira nem beira,
A bolsa ias rodando,
Poesia, puta rampeira.

Quem

Quando, depois de cinco decênios de textos diariamente escritos - contos, romances, dois volumes de poesia e um de ensaios -, foi comparado num artigo a Philip Roth, Eduardo Galeano e Margaret Atwood, ao filho que foi lhe mostrar o jornal no asilo ele perguntou quem era Philip, quem era Eduardo, quem era Margaret e aquele homem na foto, tão parecido consigo mesmo, embora bem mais moço.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Cabelos

Cabelos de mel, macios,
Sedosos claros cabelos,
Poder beijar-lhes os fios
E fio a fio bebê-los.

Ciúme

Um dia isto aqui será
Tão tolo, tão descabido:
O ciúme terá morrido
E morto o amor estará.

Lembrança

Naquela manhã, conheceu a mulher que estava destinada não a mudar sua vida, mas a iniciá-la.

Versões

Embora digamos que sim, não fomos nós que nos cansamos do amor. Foi o amor que se cansou de nós.

Paraíso

Jamais me convidaste para ir ao paraíso. Mas, toda vez que segui teus passos, voltei com mel na boca e uma palavra que eu nunca disse, porque ardia nos meus lábios como um pecado.

Sabedoria

Não saber de nada, e ter
A serenidade e a apatia,
O senso e a sabedoria
De nada querer saber.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Um para o outro

Não sei o que vocês pensam, mas eu jamais me senti mais humano do que quando sofri por amor. O amor feliz é como um jogo daqueles bem maçantes, nos quais as peças se encaixam mesmo sem a participação dos jogadores. Há quem veja nisso um desígnio, uma conjunção propícia dos astros, a mão do Destino. Terem sido feitos um para o outro é a frase que costuma ser dita nesses casos e nela há, sempre, um tédio e uma resignação que só o homem e a mulher que a pronunciaram parecem não perceber.

O motivo

Ela sorriu nos trinta anos em que esteve casada. Depois que o marido morreu, nunca mais foi vista sorrindo, e disseram que ela não estava conseguindo suportar a perda. Só ela sabe o motivo: sente-se finalmente livre para não fingir mais e em casa, aninhada na solidão, sorri para os móveis, para os quadros, para o seu rosto no espelho.

Paulista

Com a atenção aflita de todos os homens fixada nela, ela sorri, e é ensolarado seu sorriso, mas nenhum deles o vê. Quem há de se interessar pelo sorriso de uma vênus calipígia, se ela, com seu salto alto e sonoro atravessa com a lentidão exata a Paulista?

Tu e eu

Tu dizes que te cansaste
De tudo que te jurei.
Sei que não me perguntaste,
Porém eu não me cansei.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Sonetinho safado

Trocou seus dons filosóficos
E os graves tons metafísicos
Por versos tolos e tísicos
E cânticos catastróficos.

Cantou, em acentos lúbricos
E rimas falsas, as árdegas
Protuberâncias das nádegas
E a maciez dos pelos púbicos.

Da seriedade safou-se
E por safar-se tornou-se
O mais notório safado

E renegando o sagrado
Por mérito transformou-se
Num crápula consagrado.

O alívio

Mas sempre se pode fechar os olhos e imaginar nossa bem-aventurança no dia em que eles estiverem irremediável e irrecorrivelmente fechados.

Declaração

Não quero mais sofrimento,
Não quero mais alegria,
Só quero a doce apatia
Da morte e do esquecimento.

As redes

O amor atravessava mares, transpunha montanhas, afrontava proibições religiosas e familiares. Era intrépido o amor, destemido. Era amor o amor. Hoje o amor hesita em pegar um avião, um táxi, um ônibus. Tudo é difícil para ele, tudo cansativo. Amantes se falam mais do que nunca, mas pelo facebook, pelo orkut, pelo msn, e descobrem às vezes, atônitos, que há seis, há oito, há dez meses não se veem como um par de amantes deve se ver, com os dedos não no teclado, mas ávidos para percorrer um corpo.

Apto. 202

Quem há de ouvir a lamúria
De quem por amor sufoca
Se ao lado o vizinho toca
A nota atroz da luxúria?

Amar foi minha ruína

Por acaso, meus dedos encontraram na estante um romance muito antigo, de Ben Ames Williams. Não precisei me lembrar da história, nem das cenas transpostas das páginas para o cinema. O título bastou para me fazer descer amargas lágrimas para os lábios: Amar Foi Minha Ruína.

De porcelana

Guardei o amor em minhas mãos como se ele fosse uma virgem de porcelana, uma freira noviça com aspiração à santidade. Em nenhum momento pensei sequer em dar-lhe um beijo, para não maculá-la. E no entanto hoje ela está estilhaçada, e Deus bem sabe que não fui eu que a estilhacei. Perguntem aos pequenos pedaços, que conservo como relíquias, e cada um deles dirá que não fui eu, ah, que desgraçadamente não fui eu.

Traição

Podes dizer a todos, e anunciar em editais, que daqui em diante aceitarás tudo em tua vida, mas amor jamais. Podes, mas bem sabes que como ontem e anteontem, como sempre, ai de ti, o coração te trairá.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Castigo

Não ser Dostoiévski, não ser Tchekhov, e no entanto continuar escrevendo, e respirando - é essa a maldição que Deus lançou sobre mim.

Honestidade

A cada passo que damos
Mais a certeza sentimos
De como nos iludimos,
De quanto nos enganamos.

Por que seguirmos então
Fingindo mútuo carinho,
Por que, se o nosso caminho
É inócuo, inútil e vão?

Tenhamos hoje a coragem
De admitir que foi miragem
O afeto que nos uniu,

Que desde o início soubemos
Quão falsamente nos demos
E que o amor nunca existiu.

Ela

Essa mulher, cuja mão
Em minha mão nunca tive,
É a única que ainda vive
Em minha recordação.

Jamais contar

Um dia, você desiste do amor, ou é o amor que desiste de você. Você não diz nada a ninguém, mesmo que perguntem. Você está certo. Seria estranho alguém comunicar a própria morte.

Garoto

Nos últimos passos do caminho, a razão, proclamando-se madura, põe-se a censurar o coração porque este, recusando-se a aceitar sua idade, começa a comportar-se como um garoto e a assobiar, a lançar gracejos às mulheres bem fornidas e a pular muros noturnos que nem na sua mais desatinada adolescência pulava.

Como sempre

Domingo triste, descendente de tantos outros, nos quais minha alma aflita me perguntou se estava condenada a sofrer sempre tanto, e eu lhe respondi, como hoje, que sim.

Se

Se não sentes esta aflição, se não percebes este tormento, se não imaginas como cada minuto sem ti pinga em mim como um suplício chinês, que aflição é esta, que tormento, que suplício? Devo fazer algo para me afligir mais, me atormentar mais, me supliciar mais, ou tu, com tua indiferença, te encarregas disso?

domingo, 11 de setembro de 2011

A incumbência

Se, ao reler o que escreve, encontra uma frase ou um termo que brilhem, ele os mata imediatamente com um furioso rabisco de caneta. As duas palavras que mais abomina são retórica e oratória e, se lhe fosse dada a incumbência de exterminar algo ou alguém, não hesitaria: derrubaria o sol, por sua pretensão de, como uma velha mexeriqueira, tudo querer exibir e ostentar.

Confissão

Leva no bolso agora, todos os dias, para a hipótese de morte súbita, um pedaço de papel em que escreveu, com letras maiúsculas: "Sempre te amei, Fulana."

Serenidade

Não mais me lastimarei.
O tempo trouxe o conforto.
Tudo que quis e almejei
Não quero mais, estou morto.

NY

Se me custa a vir o nome dele, lembro-me de Manhattan e imediatamente a Nova York que não conheço e onde jamais estarei me aparece com todo o seu fascínio, sob um fundo musical de Gershwin, e o nome - primeiro no coração, depois no cérebro - surge, luminoso: Woody Allen.

A época

Não apanharam o fruto. Era belo demais, concordaram, tão belo que mais parecia uma flor. Colheram outros e os comeram com a sensaboria que o hábito traz. No dia em que finalmente o arrancaram da árvore e o dividiram, seu sabor era igual ao dos outros, ou assim lhes pareceu.

Marinha

Reserve para mim um pequeno espaço em sua tela, um centimetrozinho no ponto menos sujeito aos olhares curiosos e reverentes. Se for uma marinha, posso ser um respingo de espuma, a letra mais apagada no nome do barquinho ou - não, isto já é muito - a gaivota menos visível das oito ou dez flutuando no céu pontilhado de nuvens brancas.

No blog

Há quase dois anos ponho aqui fiapos, retalhos, pequenos pedaços de algo que, se eu me atrevesse a tanto, e não temesse parecer inadequadamente grandioso, chamaria de minha alma. Seja alma ou não, que o leitor tenha condescendência e, se não lhe agradarem esses pedacinhos, que, em vez de varrê-los, os sopre para um canto, onde desfrutarão o merecido esquecimento.

Que não

Lastimo, mas cantarei
Até meus últimos dias
Os frutos e as alegrias
Que almejo e não colherei.

Espelho

Despreza todos os textos que faz, logo depois de pôr o ponto final. É um escritor medíocre dirigindo-se a um leitor mal-humorado.

sábado, 10 de setembro de 2011

O neto

Ao avô, que tem a Morte como musa e compõe elegias que vai declamando pela casa, o neto de sete anos disse, num sábado: "Vô, o seu maior sonho é morrer, não é?"

Era, foi

Era ontem o dia, anteontem. Foi no mês passado, no ano anterior. Passou, passou iremediavelmente, passou, passou. Amaldiçoado seja eu, e desditoso para sempre, por não ter sentido que era ontem, anteontem, que foi no mês passado, no ano anterior. Era, foi, e passou, passou, ah, passou, ah, meu Deus, passou.

Santos

De madrugada, o alvoroço provocado por uma estrela miúda e tola que, errando por muito o cálculo, querendo lançar-se às ondas se espatifou na calçada do prédio 136 da Bartolomeu de Gusmão, perto do aquário municipal.

Reticências

Se soubesses por onde passam tuas mãos em meus sonhos, não sei, mas acho que tu...

Tardia

Às quatro da tarde, um minuto talvez a mais ou a menos, quando o poeta estava sendo cremado, sua amiga mais doidivanas deixou na sua secretária eletrônica uma mensagem de Nova York, em que pedia notícias e admitia estar com saudade.

Solitário

Ele ouve o som, o cicio,
O morno apelo das veias,
E pleno frui, a mancheias,
Os sete espasmos do cio.

Homens ao mar

Toda noite, com a casa às escuras, uma borrasca se abate sobre o navio no quadro, e os marinheiros, arremessados para as ondas, gritam súplicas que só o gato, que dorme na sala, ouve por alguns momentos, antes de se reacomodar no sofá e voltar a dormir.

Perseverança

Parece tão mais fácil desistir, fechar os olhos e conservá-los assim, até que a última pá de terra tenha sido jogada sobre as flores.

Luana

À noite, quando se transforma em Luana e vai para a esquina, ele sente seu sexo palpitar como uma borboleta presa na mão de um menino e, enquanto espera o carro que diminuirá a marcha e encostará na calçada, ele se acende com as lembranças de um livro em que jovens marinheiros de face rósea eram brutalizados por marujos de barba grisalha e peito rabiscado de tatuagens.

Corações flechados

No muro, em letras desengonçadas, de spray - Beto ama Ju -, mais uma dessas frases das quais o tempo cedo ou tarde escarnecerá.

E-mails

Nunca se encontrarão, nunca entrelaçarão as mãos, nunca se afagarão, e essa certeza excita neles uma animosidade quase rancorosa. Açoitam-se verbalmente, atacam-se, depreciam-se, menosprezam-se, e, enquanto os dedos correm pelo teclado, as bocas mudas mordem os lábios, e os beijos que nunca se darão trazem o gosto amargo do sangue.

O violino

Há porém um violino que insiste em tocar - tão límpido, e tão agudo, e tão triste, que, quando a memória o faz soar novamente, ele não entende como, ao ouvi-lo pela primeira vez, tanto tempo atrás, não morreu fascinado por tanta beleza.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

E que se

O que tu queres que eu te diga? Que eu choraria um mar de lágrimas por ti? Ok, eu digo: eu choraria um mar de lágrimas por ti, e que se dane o lugar-comum e que se forniquem, de verde, amarelo e cor de anil, os princípios do comedimento na literatura.

Luz

Que fazes? Diz. Se me embrenho
Por ti na noite sem fim
E anseio a luz que não tenho,
Acaso a acendes por mim?

Como a água

As palavras que celebram o amor deveriam ser como a água que jorra das fontes: iguais, como sempre são, mas puras, como nem sempre.

Contágio

Se toca uma flor, toca leve, como se não tocasse. Teme que suas mãos contaminem, com sua velhice, tudo que tocarem.

A foto

Na foto, tirada certa manhã no sítio, o menino, ao lado do pai e da mãe, olha para o alto, como se estivesse ouvindo uma revelação de um passarinho. Atrás dele, sereno nesse dia, se vê o rio que um ano depois, engrossado por uma tempestade, o levaria por um caminho do qual ele só voltaria uma semana mais tarde, morto.

Horizonte

Se ao mar aprouvesse levá-lo, gostaria que fosse numa tarde calma, de ondas mansas, e que ele pudesse flutuar sob um céu incontrastavelmente azul e que, no momento final, atingido já o horizonte, mar e céu não fossem senão um só e, quando ele fosse tragado, não soubesse por qual dos dois havia sido.

Propriedade

Eletrificaram o muro, soltaram os dois cachorros que babam cólera. Sem os garotos, as frutas apodrecem e a grama sente falta do toque delicado e medroso dos pés descalços.

Piano

Agora, quando passa diante da casa da menina morta, ouve só na memória as notas vacilantes do exercício de piano que ela tocava e que até hoje o fazem percorrer o mesmo caminho, quando o sol começa a deslizar para o crepúsculo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Questão de metros

Um apartamento de primeiro andar tem essa desvantagem, ele pensou, enquanto pela terceira vez imaginava a que altura podia estar e, embora concluindo que deviam ser uns seis metros (nos cálculos anteriores tinha chegado a quatro e meio e a cinco), sentiu-se inseguro: talvez, no salto que pretendia dar, conseguisse quebrar só as pernas ou (aqui ele sorriu) batesse as asas como um passarinho e escapasse sem um arranhão sequer. Descartado o pulo, desceu e foi para um ponto de ônibus. Parou o primeiro e perguntou ao motorista se no itinerário havia um viaduto. O motorista disse que sim, e ele quis saber se era alto. O motorista, não entendendo, não respondeu, mas ele entrou assim mesmo.

Artífice

Talvez não caiba ao artista ter a pretensão de recriar o mundo, mas ninguém o censurará por suas tentativas.

Tunc

Desfruta agora os teus louros,
Ostenta agora os lauréis.
Amanhã, esses teus ouros
Não passarão de ouropéis.

Interação

"É muito charmosa aquela pinta no rosto da dama de azul", disse o homem, apontando o quadro. A pintora, que mostrava a tela a contragosto, porque ele pouco entendia de sua arte, perguntou: "Que pinta?" O homem avançou o dedo na direção do quadro, e a mosca voou, assustada, indo pousar sobre uma rosa, numa tela da parede oposta.

Cronograma

Buscar o amor, a alegria,
A cálida comunhão,
A entrega, a doce paixão,
Noite a noite, dia a dia.

Rolha

Naquele ponto da tela em que as ondas fervilham espumantes, poderias pingar um ponto bem pequeno, quase invisível, uma rolha que viesse ter aos pés de um garotinho na praia e que ele, depois de transformá-la em navio, lançasse de volta ao mar, com a missão de encontrar embarcações piratas e atacá-las, fazendo faiscar espadas sob o cegante sol da tarde

Ao sol

Um brinde ao sol deste dia,
Mas rápido. Se tardarmos,
Talvez nos cumpra saudarmos
A lua pálida e fria.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Natureza-morta

As três maçãs continuarão no cestinho de vime, onde o artista as pôs. Também o relógio de parede, com seus ponteiros parados: meio-dia e doze. E as panelas no fogão desligado. Mas o peixe, na travessa, é observado pelo gato cinza. Ele ouve os passos da mulher distanciando-se da cozinha (só aparecem suas costas na tela) e premedita o salto ágil para a mesa.

Tio gordo

Na sala onde o menino estava sendo velado, um homem imensamente gordo espirrou três vezes com estrépito bélico e em seguida assoou o nariz triunfalmente, como se testasse uma escala numa tuba. A avó do pequeno morto aproximou-se do caixão e disse, baixinho: "Não foi nada, não. Não precisa ter medo. É aquele teu tio, que não vale o que come."

Marujo

Lembranças, só, é o que há.
Jamais por fêmeas carnudas,
Por triângulos das bermudas
Seu barco navegará.

Hitchcock

No sonho, ela é uma menininha pela qual passa na praia um bando de gaivotas buscando o horizonte. Ela pede à mãe um pãozinho que esfarela nas mãos e chama: "Gaivota, gaivota." Elas ouvem e voltam. Multiplicaram-se, agora são cem, duzentas, e atiram-se sobre as mãos dela e, depois de devorar o pão, começam a bicar avidamente seus dedos, seus braços, seu peito. Ela grita: "Mãe, me ajuda." Mas a mãe, transformada numa imensa gaivota, bica-lhe a boca, o nariz e os olhos, enquanto as outras gargalham malevolamente sobre as ondas, de novo rumando para o horizonte.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Ver neles

Pensa em alguém que, fitando-lhe os olhos, veja neles a tristeza e os respeite por isso, ou se condoa deles, se não puder amá-los.

O momento

Se formos pecar, pequemos agora, enquanto ainda podem nos atingir as flagelações sociais e as vergastadas de nossa consciência. Este é o momento. Os mortos não enrubescem nem se prestam a ser chicoteados.

Impulsos

Às vezes, certos impulsos, como o de se deixar afundar na água como uma pedra, têm, além do tentador fascínio, uma base lógica que os sustenta e quase os justifica. Virginia Woolf, mais do que ninguém, soube disso.

Longe

Ir para longe, bem longe, tão longe que nem o mais persistente dos ventos seja capaz de me levar sequer um fragmento de alguma notícia tua.

Os teus

Talvez eu só venha a me lembrar de um sorriso, possivelmente vago, quem sabe da cor dos cabelos e das mãos buliçosas, pelas quais o mundo parece a todo momento querer se expressar. Talvez me lembre só deles, mas certamente serão o teu sorriso, os teus cabelos e as tuas mãos.

Cinzas

Não poluirá a terra. Será cremado, e o ódio que abriga no corpo, e o ressentimento, e o rancor que o comem por dentro e lhe corroem a alma talvez afetem por um instante o azul, mas estarão salvas as flores, e as pragas não apodrecerão o solo onde os homens generosos dormem.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Diferente

Se pensa nela, ele tenta ficar nos cabelos, nos olhos, na boca. Se a imaginação se aventura mais para o sul, ele a reprime. É a primeira mulher que o faz proceder assim, e ele, se lhe pedissem para dar um nome a isso, gostaria de dizer que é amor, ainda que rissem.

O derradeiro

Já tantos dias morri que, quando vier o derradeiro, temo recebê-lo como se fosse um qualquer, e não o mais venturoso e esperado.

Tocar, sentir

Quando ele pensa nela, tem uma aflição de se tocar e uma ânsia de se sentir que só se aquietam se ele se toca e se sente ou se, como às vezes consegue, deixa de pensar nela.

domingo, 4 de setembro de 2011

Ontem

Alguém te amou ternamente
E por te amar sofreu tanto.
Tu não te lembras, no entanto.
(Foi ontem, antigamente.)

À noite

À noite, a lembrança do amor não o suplicia tanto, sobretudo se ele, dormindo, recebe a bênção de não sonhar.

sábado, 3 de setembro de 2011

Falsas

Evocaremos os dias,
Porém com parca emoção
E imagens tão fugidias
Que falsas parecerão.

Um dia só

Devíamos ter visto que o amor era um desses passarinhos que aparecem uma tarde na casa de um menino tolo ou de uma menina boba e vêm tão feridos que duram um dia só, para doerem eternamente na memória, como se algo pudesse ter sido feito se o menino fosse um pouco menos tolo e a menina um tanto menos boba.

Tão pífio

Quiseste demais. Teu sonho,
Tão grande, tão ambicioso,
Teve um final tão bisonho,
Tão pífio, tão doloroso.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O tolo

Agora, com tudo findo,
Com o amor morrendo num lado
E o afeto no outro, estropiado,
O tolo ainda diz: "Foi lindo."

Aquele

O homem que tu conheceste
E tanto modificaste
Era outro homem, não era este,
Não era ainda este traste.

Terno agora

Ainda sonha com fios,
Com pelos ruivos, novelos,
E imerge em longos cabelos,
Esplêndidos como rios,

E apraz-lhe agora afagá-los,
A ele, que outrora queria
Com sua brutal energia
Possuí-los, tê-los, magoá-los.

Apenas

Se queres pura mostrar-te,
Se queres dizer-te casta,
A nada quero forçar-te,
O teu sorriso me basta.

O morto

Levava nas mãos o nada,
Levava no peito as dores,
No caixão levava flores
E culpas na alma pesada.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Já que

Já que de ver-nos cansamos
E cansados desfizemos
O afeto com que nos demos,
Que nunca mais nos vejamos.

E nem

O amor, assim como a filosofia, é uma das ocupações com que o homem procura justificar sua vida. O resultado, nos dois casos, costuma ser nulo.

Tolice

"Preciso escrever pelo menos um parágrafo por dia, senão sinto que em uma semana eu morro", disse o jovem autor em uma entrevista à tevê, falando sobre seu primeiro romance. O escritor experimentado, cinquenta anos mais velho, lembrou-se do tempo em que relacionava também a arte à vida e lamentou os milhares de parágrafos inúteis que produzira e os milhares que o novato, se cumprisse a palavra, produziria.

Fiel

Nem pensa mais em felicidade. Afeiçoou-se ao sofrimento e não saberia viver sem ele. Se sorri, sente-se mal; se ri, acusa-se como traidor.

Tão tolo

Eu te peço perdão por ter sido tão tolo, tão tímido, tão casto, tão pouco homem que não te dei, em tanto tempo, uma oportunidade de seres mulher.

Fogo

Por que teimas nesse jogo,
Por que insistes nessas manhas,
E não me queimas oom o fogo
Que ferve em tuas entranhas?