segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Vida

Excluindo-se a fúria e o som,
Pode haver algum sentido,
Algo talvez até bom.
Pode haver, mas eu duvido.

Concurso

Enquanto os outros se matam
Em sua febre criadora,
Os que vão ganhar contatam
A comissão julgadora.

Resigna-te

Bom tempo este
em que já não precisas de nada
em que sonhos novos não tens
e os velhos ideais
ficaram para trás

Já não te importa
que entreguem prêmios
ao vivo e em cores
a gente morta
e confundam josé joão
com carlos drummond

Se fraudarem concursos
não entrarás com recursos
pela irretorquível razão
de não participares de mais nenhum

Teu dever hoje é só
o de respirar
firmar-se bem
na bengala
sem tropeçar

Tomar os remédios
um a um
direitinho
sem pular nenhum
maus pensamentos não abrigar
e nem ambição
e jamais olvidar
que a literatura e a sua glória
são uma ficção

Deixar o dia passar
simplesmente passar
sem reparos ou reflexão
e - isto é o principal -
antes de dormir
não esqueceres nunca
de beber o teu chá.

O momento

Chegou agora o momento
Em que morrer é já não
O mais temido tormento
E mais uma aspiração.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Lista

Gosto das coisas tristes. Dos Noturnos de Chopin, da Pavana de Ravel, da Lacrimosa de Mozart. Gosto dos rouxinóis, do som agudo dos violinos agonizando nas tardes de outono. Gosto de Romeu e Julieta, gosto do cocheiro que fala com o cavalo no conto de Tchekhov, gosto do cavalo que ouve o cocheiro. Gosto das coisas que vivem o tempo exato para morrer no auge de sua beleza. Gosto do amor.

Um poema de Mirian Paglia Costa

"A ARTE DA FABRICAÇÃO DO TRAVESSEIRO

minha terra tem paineiras
frondosas, filhas da puta
alérgicas a criança trepadeira

tão altos ramos para quê?
espinhudos, inúteis para os pés
só eles querem ver do alto
os tetos e mais tetos da cidade

minha terra tem paineiras
cor de maravilha, escandalosas
quando é tempo, chegamos perto
vingativos
e com paus, guerreiros em bando
vamos saquear seu algodão
coalhado de sementes

ó dura batalha
equilibrar as longas ripas
bater na paina
esperar a chuva branca

a marca da flecha, porém
esta ficou
foi travessão, agora é hífen no meu ventre
margens da carne que a saudade às vezes abre
e quando abre
jorra mel a cicatriz da infância."

(Do livro Notícias do lugar comum, publicado pela Editora 34.)

Um poema de Wislawa Szymborska

"VIETNÃ

Mulher, como te chamas? - Não sei.
Quando nasceste, tua origem? - Não sei.
Por que cavaste um buraco na terra? - Não sei.
Há quanto tempo estás aqui escondida? - Não sei.
Sabes, não te faremos mal nenhum. - Não sei.
De que lado estás? - Não sei.
É tempo de guerra, tens de escolher. - Não sei.
Existe ainda a tua aldeia? - Não sei.
E estas crianças, são tuas? Sim."

(Do livro Quatro poetas poloneses, tradução de Henryk Siewierski e José Santiago Naud, publicado pela Secretaria do Estado da Cultura do Governo do Paraná, com o apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)

Um poema de Geraldo Pinto Rodrigues

"CARTA DE CHÃO PARA CASA E QUINTAL

E foi por ordem d'el rei,
que ganhei casa e quintal.
Na carta, estas normas só:
não molestar os vizinhos,
nem das virgens abusar.

Louvo-me em ajuste vero:
cá serei pastor de estrelas,
enamorado do sol,
cordato com bons conselhos.

Também por ordem d'el rei
fui plantar casa e quintal.
Pintei de verde o pomar,
de rubro as vides nascentes,
de azulado as nuvens sobre,
de ocre toscas paredes,
de claro fartas manhãs.

Por último, no interior,
a lua por companheira,
sonhei sonhos bem sonhados,
plantei uma vida inteira."

(Do livro Compasso binário, publicado pela Scortecci Editora.)

Essa espécie de amor

Desistir é o que resta, nada mais. O amor que eu concebo em minhas insônias e desejaria de ti é tão ingênuo, tão boboca, que, se eu fosse explicar para ti como ele é, talvez visses nele uma requintada espécie de depravação.

Recado

Ando de cabeça baixa, olhos no chão. Não procuro moedas, notas, anéis de ouro. É maior minha ambição. Talvez um dia eu veja na calçada um papel e, apanhando-o, eu leia Zé Carlos eu te amo, ou Mateus eu te adoro, e sonhe que aquela Fátima, ou aquela Luana da assinatura tenham escrito o recado para mim.

O erro

Meu erro foi presumir
Que o amor, impulso tão nobre,
Eu pudesse dividir
Com o corpo, sócio tão pobre.

Toque de prata

Ousamos olhar
para cima
para o alto
e aos nossos olhos
passaram a desagradar
as árvores
as flores
o horizonte
o mar

Olhamos para cima
olhamos
e de tanto olhar
vimos noite a noite
a lua se aproximar
e as estrelas mais perto

Parecia impossível
no início
mas muito pouco
falta agora

Talvez seja hoje o dia
em que conseguiremos
tocar nossa primeira estrela
e sentir em nossas mãos
a palpítação da sua prata

Teríamos conseguido já ontem
se no último instante
não chegasse
aquele estúpido homem
de jaleco branco
e não nos agarrasse
e não nos puxasse
desgraçadamente
para baixo.

O amor que nos envergonha

Costumamos suportar estoicamente o dia, com os ultrajes, os escárnios, as zombarias que nossa antiquada concepção de amor provoca. De manhã sofremos muito, à tarde um pouco menos e, à noite, nosso espírito dócil e nosso cansaço quase nos convencem de que a condição de vítimas nos cabe por merecimento. O pior instante é aquele em que, com a cabeça no travesseiro, ansiando pelo sono, nos entra no quarto aquela despedaçadora certeza de que, enquanto tentamos repousar, o sol nos espreita lá fora, escondido na noite, e virá, como sempre, nos empurrar para a rua e para os sarcásticos olhos que desnudam a nossa pureza e a expõem à chacota. Se ao menos dormíssemos em paz... Se dormimos, não sonhamos com a sacada para a qual atiraríamos flores certeiras para os braços da amada. Sonhamos com um campo imenso em que bodes e cabras, dezenas, centenas, copulam freneticamente enquanto uma voz gargalha e repete "amor é isto, amor é isto", até que um último esforço de nossa alma nos livra do horror e, encharcados por um suor fétido, abrimos os olhos a tempo de ver o sol nos convocando para mais um dia.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Treinamento

De vez em quando
ainda que por um segundo
mesmo que por um instante
feche os olhos
e apague o mundo

Feche os olhos para tudo:
para a manhã
para a tarde
para o sol
peneirando ouro
sobre a avenida

De vez em quando
feche os olhos
vá se acostumando

De olhos fechados você estará
quando para você estiverem olhando
no dia mais importante
da sua vida.

Uma visão realista do amor

No fundo, como o bilhar,
De nada mais que de tacos,
De bolas e de buracos
O amor costuma cuidar.

Espelho

Sempre que me encaro assim,
Vejo que só um sandeu
Exatamente como eu
Daria importância a mim.

Caçador

Não tenho troféus na sala
cabeças de animais abatidos
nem fotos de caçadas

Leões e tigres
África e Ásia
para mim são só palavras
num livro de geografia

Matei uma lagartixa hoje
isso é bem verdade
mas não creio
ser possível empalhá-la
porque minhas sapatadas
a partiram em duas metades
e uma delas mesmo morta
com tanta veemência ainda me acusava
que eu lhe dei mais pancadas
até conseguir calá-la.

Um poema de Czeslaw Milosz

"PREFÁCIO

Tu a quem não pude salvar
Escuta-me.
Tenta compreender este simples discurso porque tenho
vergonha de outro.
Juro que em mim não existem
as magias do verbo.
Te falo em silêncio como nuvem ou árvore.

O que me fazia forte, para ti foi letal.
Confundiste o adeus a uma época com o começo de outra,
A inspiração do rancor com a beleza lírica,
A força bruta com a forma perfeita.

Eis o vale dos rasos rios polacos. E uma ponte imensa
Furando a neblina branca. Eis a cidade quebrada,
E o vento arrasta o pio das gaivotas sobre o teu sepulcro
Quando eu estou falando contigo.

Que é a poesia que não salva
Nem as nações nem a gente?
Uma trama de mentiras oficiais,
Uma canção de bêbados cujas gargantas podiam ser
cortadas de repente.
Uma leitura para meninas de colégio.

Que eu quisesse a boa poesia sem poder fazê-la,
Que eu tardiamente entendesse o seu fim redentor,
Isto e só isto é salvação."

(Do livro Quatro poetas poloneses, tradução de Henryk Siewierski e José Santiago Naud, editado pela Secretaria de Estado da Cultura do Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)

Guerra e paz

O meu, o teu, o nosso sentimento
São só uma questão de guerra ou paz:
Já que trégua tu nunca me darás,
Gozarei as delícias do tormento.

Um poema de Eugenio Montale

"GOTTERDÃMMERUNG

Lê-se que o crepúsculo dos Deuses
está por começar. É um erro.
Os inícios são sempre irreconhecíveis,
quando se constata alguma coisa é porque ela já
está cravada com um alfinete.
O crepúsculo nasceu quando o homem
pensou ser mais digno do que um grilo ou uma toupeira.
O inferno que se repete é apenas o ensaio
de uma "estreia mundial" continuamente diferida
porque o diretor está ocupado, ou doente, ou sumido
quem sabe onde e ninguém pode substituí-lo."

((Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

Livre-arbítrio

Para ele, a insanidade é uma questão de escolha. E ele já a fez há muito tempo.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Um poema de Wislawa Szymborska

"NADA DUAS VEZES

Duas vezes nada acontece
nem acontecerá. E, asssim sendo,
nascemos sem prática
e sem rotina vamos morrendo.

Nesta escola que é o mundo,
mesmo os piores
nunca repetirão
nenhum inverno, nenhum verão.

Os dias não podem ser repetidos,
não há duas noites iguais,
não há beijos parecidos,
não se troca o mesmo olhar.

Ontem, o teu nome
em voz alta pronunciado
foi como se uma rosa
me tivessem atirado.

Hoje, ao teu lado,
voltei a cara para a parede.
Rosa? O que é uma rosa?
Será flor? Talvez rocha?

Por que tu, ó má hora,
me trazes a vã tristeza?
Se és, tens de passar.
Passarás - e daí a tua beleza.

Abraçados, enlevados,
tentaremos vencer a mágoa,
mesmo sendo diferentes
como duas gotas de água."

(Do livro Alguns gostam de poesia, publicado pela Cavalo de Ferro, Lisboa.)

In pace

Logo tu terás conforto.
Por uma norma sagrada,
Jamais contradita, nada
Pode perturbar um morto.

Sessenta

A receita ficou retida na farmácia. Ela tem agora sessenta comprimidos. O psiquiatra garantiu-lhe que, tomando um por dia, irá melhorando. Ela sabe que, se engolir todas ao mesmo tempo, melhorará de vez.

Essa palavra tão antiga

Quando o rapazola, depois de muito tremer e gaguejar, lhe falou em amor, ela estranhou ouvir essa palavra, que parecia foragida de um dicionário, e esforçou-se para não gargalhar. Teria conseguido, se em seguida ele não se curvasse cerimoniosamente para lhe beijar a mão.

Um trecho de Salman Rushdie

"Ele estava começando a aprender a lição que o libertaria: que estar aprisionado pela necessidade de ser amado era como estar fechado numa cela em que se era submetido a um tormento sem fim e da qual não havia fuga possível. Ele precisava entender que havia pessoas que nunca o amariam."

(Do livro Joseph Anton - Memórias, traduzido por Donaldson M. Garschagen e José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Kama Sutra - LXXIII

Assim que a luz no cinema se apagou, a mão da garota deslizou para a coxa dele. Tinham-lhe dito que ela era experiente e ousada. Ele não era nem uma coisa nem outra. Ainda não preparado para o avanço da mão, ele a pegou e, levando-a à boca, beijou-a, ouvindo imediatamente uma interjeição de desagrado, ao mesmo tempo em que a outra mão dela pousava sobre a coxa dele, um pouco mais acima dessa vez, e mais inquieta.

Aventuras marítimas

Estou seguro aqui, a salvo das tempestades tropicais, das traiçoeiras correntes marítimas e dos tubarões. Se algum monstro proteiforme, um leviatã me ameaçarem, basta que eu feche rapidamente o livro ou desligue a tevê. Dentro dele, ou dela, ficarão os tufões, a agressiva aproximação dos piratas e as pragas rondando o convés. Meu barco, o sofá em que há tantos anos viajo, voltará a navegar tranquilo pela sala, e o vento, se vier, será a brisa soprada pelo ventilador.

Amor, o verdadeiro

O amor - quando merece esse nome - é repentino como um incêndio e intenso como um vulcão. Arde, consome-se, destrói-se. Não deixa lembranças, porque não tem tempo para guardá-las - tão diferente daquele sentimento morno que lhe usurpou o nome  e que vai colecionando fotos, fitas de cabelo e de vídeo, rolhas de champanhe e cardápios de hotel numa gaveta que é aberta só nas grandes ocasiões por mãos velhas que tremem ao tocar objetos tão sagrados. O amor verdadeiro não chega a completar idades, etapas, bodas. Dura o suficiente para não tornar-se ridículo, para não ser roído por traças num amarelado álbum de família. O amor de verdade vive apenas o bastante para começar a construir-se e para destruir-se ainda em construção.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Kama Sutra - LXXI

Ele sonha escrever um poema que fosse como uma laranja que a bem-amada partisse ao meio, chupasse e depois cuspisse displicentemente as sementes, semente a semente, na terra. Da árvore que ali nascesse ele colheria laranjas que, mordidas carinhosamente e chupadas pela sua boca, pareceriam ter, além da própria, a inquietante doçura dos lábios dela.

Kama Sutra - LXX

Ela nunca beija; deixa-se beijar. Suas mãos não se movem enquanto as alheias, depois de apalpá-la à vontade, a conduzem ao quarto. Na cama, ela também não se mexe. Aceita as investidas e as estocadas com resignação. Imagina-se mártir, anseia pela dor e pela humilhação, concentra-se no sofrimento e às vezes, quando consegue atingi-lo, se é novo seu parceiro, ele se espanta e se assusta ao ver como ela rapidamente muda de posição e passa a montá-lo, como ela pesa sobre o seu corpo e como se contorce sobre ele, parecendo querer furá-lo. Esses acessos não costumam se estender por mais que três minutos, durante os quais ela berra interjeições de autoincitação, palavrões e outras grosserias. Depois, ela apeia, rola para o lado e, deitada novamente de costas, começa a se desculpar: "Eu não sou assim, eu juro, eu não sou assim."

Uma frase de Salman Rushdie

"Tamanha é a necessidade de amor. Faz com que os homens tenham visões do paraíso e desprezem o fato, patenteado pelos olhos e ouvidos, de que estão no inferno."

(Do livro Joseph Anton - Memórias, traduzido por Donaldson M. Garschagen e José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Soneto da inutilidade

Os passarinhos chegaram,
Suas árvores escolheram
E ali ficaram, viveram.
Em mim, porém, não pousaram.

Eu de chamá-los não canso
E os frutos meus lhes ostento
E peço a ajuda do vento
E os ramos todos balanço.

É tudo inútil, porém.
Chamo, chamo, e eles não vêm.
Que sejam amaldiçoados,

Pela peste perseguidos,
Pela desgraça punidos,
Pelos gaviões devorados.

No chão

No chão que ela pisa
vestígios de ouro
você encontrará
se neles como eu
você acreditar

No chão que ela pisa
se sinais de lábios
você encontrar
e parecerem os meus
você pode acreditar.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Manhã

Do monte de jornais o menino emerge, boceja, coça os olhos e, como um cachorro, empina o nariz e identifica, vindo da esquina, um aroma de café.

Rosas

Se penso em ti, uma rosa
Desponta no meu jardim.
Se em mim não pensas, formosa,
Uma rosa morre em mim.

Tudo

Tudo isto é pouco, eu bem sei,
Porém se a alma e o coração
Contigo há muito já estão,
Que mais eu te ofertarei?

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Sem o protagonista

Que importa o teatro lotado?
Quando o amor não entra em cena,
A peça não vale a pena
E o público sai logrado.

Provérbio

Você, que hoje abraça e beija,
Talvez precise saber
Que cruel o amor pode ser
E quando não mata aleija.

Antes

Fiz coisas extraordinárias: bebi água da fonte na concha das mãos, passei a madrugada acordado na praia, esperando o sol chegar, apontei o dedo para as estrelas e não fui punido. Salvei um gato numa tempestade, ajudei um cego a atravessar uma avenida, doei sangue para um pronto-socorro. Não anotei tudo, mas foram muitas coisas fora do comum, úteis, belas - antes de me submeter à pretensão de ser escritor.

Autoajuda

Escolher ideais que morram antes de você pode não ser épico, mas será certamente salutar.

Os extremos e o meio

Ou nós nos damos muita importância  - e sofremos - ou nós não nos damos nenhuma - e sofremos. Entre esses extremos, o da presunção e o da autoimolação, há um imenso território, em que moram quatro quintos da humanidade e onde florescem as árvores da alegria e da mediocridade.

Para que

Devo escrever, ainda que seja para manter a sanidade, embora o esforço para me conservar são me enlouqueça.

Porque

Por minhas noites de insônia,
Pelos meus dias de drama,
E porque és meu amor, me ama,
Mesmo que com parcimônia.

Vida, peça em três atos

O roteiro é sempre igual.
As vitórias prometidas,
As derrotas conseguidas,
A morte no ato final.

Ciúme

Vendo antigas fotos da mulher, ele chegou a uma da primeira comunhão e pôs o dedo acusador sobre o menino de cabelo brilhantinado: "Quem é este?" "Ah, é o Vítor. Ele morreu faz uns dois anos. Câncer." "Ah", ele suspirou, aliviado, "o câncer é... é... horrível."

Que

Que todo brilho esmoreça,
E toda chama também,
Que a treva sobre  nós desça
E tudo se apague, amém.

Final

Do grande amor morreu tudo.
Lembrança dele não há
Senão muito vaga, já
Sem forma nem conteúdo.

Vir a ser

Não é o que foi que eu choro.
Isso já está esquecido.
O que me dói e eu deploro
É o que podia ter sido.

Tédio

Se eu me lamento e me agonio,
Não é por tristeza, não.
É por ser a vida tão
Cheia de tanto vazio.

O caminho

Diversas as trilhas são,
E o fim de todas é um:
Todas, sem uma exceção,
Levam à vala comum.

Histórias

Desde cedo, os livros me aceitaram, me acolheram e me contaram histórias de vitoriosos, fazendo-me crer que eu poderia vir a ser personagem de outras, iguais. Contaram-me também histórias de fracassados, tendo a delicadeza de não insinuarem que eu estava destinado a viver outras, também iguais.

Votos

Abraços mil para ti,
E muitos beijos, milhões,
E cantos de bem-te-vi,
Vários, sem fim, multilhões.

Lição

Esta aqui, que eu estou dando,
É uma lição mais que boa:
Não custa sermos Fernando,
Difícil é ser Pessoa.

Coragem de poeta

Não é vital o sentido.
Quando te perdes, te arrimas,
Buscas apoio nas rimas,
Jamais te dás por vencido.

Me poupe

Tu sabes como sou tolo.
Jamais me dês, por favor,
Um pingo sequer de amor.
Não saberia onde pô-lo.

Opinião

Se estou em más ou em boas mãos, quem pode responder és tu. Há muito não me pertenço.

Dados biográficos do matador

Quando menino, tornou-se conhecido pela habilidade com que matava ratos a pauladas e pedradas. Eles eram asquerosos. Adulto, descobriu que a humanidade era também asquerosa.

O pregador

Com a chuva, as pessoas que ouviam a pregação dispersaram-se. Diante do pregador, ficou só um homem, que a todo instante gemia. O pregador notou que as suas pernas eram atrofiadas. Continuou a pregar para esse único ouvinte e, porque a chuva se tornara mais intensa, bradou: "Confia em Deus santíssimo, que Ele te curará. Anda, eu te ordeno em nome Dele! Anda! Anda, pelo amor de Deus, anda, porra!"

A próxima atração

Quando a última fatia de peru é posta à mesa, o espírito de Natal começa a concentrar-se na sobremesa.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Natal paulistano

Sem pão, sem um puto,
Jesus espero, e sua luz,
Aqui no viaduto.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Cafeteria

Um dia, tudo isto será uma lembrança apenas. Fixemos os olhos no que nos cerca. Não percamos uma minúcia. Não é difícil. São tão poucas coisas. Esta mesa, estas duas xícaras, estes dois pãezinhos de queijo, os envelopes de açúcar. Talvez convenha reter também o sorriso da garçonete, ainda tão fresco nesta hora matinal. Gostaremos de revê-lo quando recordarmos este instante em que ela, depois de colocar tudo sobre a mesinha, começa a se afastar, impondo uma nova direção aos nossos olhos - aos meus, que te fitavam, e aos teus, que retribuíam.

Celebração

Convém darmos ao amor
O que hoje é dele, cantando
O que ele não terá quando
Tão belo assim já não for.

Kama Sutra - LXIX

Toda noite ela apaga a luz, deita-se, dá liberdade aos dedos e deixa que eles a explorem, subam, desçam, entrem, saiam. Só se sente pecadora no momento em que começa a suspirar ai ai meu Deus e a gemer amor.

Terceirização

Aquilo que ele fazia
Com a máxima honestidade
Era buscar dia a dia
A posse da alteridade.

Uma frase de Salman Rushdie

"Ele parecia ser a única pessoa que não sentia o que era ser feliz."

(Do livro Joseph Anton - Memórias, tradução de Donaldson M. Garschagen e José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Morrer, viver

Há muitos que se dizem dispostos a morrer pelo amor. Já viver pelo amor, ou viver o amor, não costuma causar tanto entusiasmo.

Criações

Porque eu canto a beleza que tens, dizes que criei em mim uma imagem que não corresponde ao que tu és. Tu, então, também me criaste. Vejo-me como sou, analiso-me, e me acho incapaz de conceber tanta beleza.

Pontos cardeais

No colégio, eu não sabia ainda que norte, sul, leste e oeste eram os nomes dessas vastidões onde podes estar hoje, amanhã ou depois e aonde não chegarão nunca os apelos aflitos do meu coração.

Quando

Quando Ela chegar e pousar a mão em meu braço, que os seus dedos sejam tão afáveis quanto os teus e que eu possa acreditar que és tu e que vieste para levar-me finalmente para aqueles lugares todos aos quais nunca pudemos ir.

Santos nomes

Tenho saudade da época em que eu, não ousando te dizer as palavras essenciais,  usava pueris subterfúgios. Quanto tempo me custou admitir que te amava. Depois que pela primeira vez pronunciei para ti a palavra Amor, ela foi perdendo o brilho, e eu tentei revigorá-la com os mais dourados adjetivos. Tem sido inútil, será sempre assim, eu sei. Certas palavras não devem ser ditas nunca. Não são feitas para passar pela carnalidade dos lábios. Hão de ficar bem guardadas dentro de nós, intocadas como a imagem de um mártir. Pronunciei tantas vezes em vão o Teu nome, Deus, e não me puniste. Mas, assim que pronunciei o nome do Amor, o que nele era ouro se transformou na mais desprezível das bijuterias.

sábado, 22 de dezembro de 2012

O teu azul

Antes havia algumas cores básicas - aquelas que qualquer menino, que qualquer menina conheciam. Hoje elas se misturaram, são centenas. Para caracterizar essas nuances, tão sutis, dessas cores mescladas, os adjetivos se mobilizaram. Os dicionários quase não dão mais conta de registrar os verdes: verde-azul, verde-cinza, verde-claro, verde-escuro, verde-cré, verde-oliva, verde-paris. E também se fatigam ao registrar os azuis, tantos: azul-claro, azul-escuro, azul-fino, azul-ferrete, azul-marinho, azul-seda, azul-violeta. E ainda não abrigaram, porque não sabem defini-lo, aquele outro azul, aquele azul teu, só teu, aquele azul único que corre como sangue nas tuas veias de artista.

As duas belezas

Que sejas duas vezes abençoada. Que em ti se conserve sempre essa tua beleza - e também aquela outra, a que pões em tudo que crias, nas tuas telas e nas tuas colagens.

Silêncio

Às vezes, especialmente quando se trata do amor, o melhor que as palavras podem dizer é que não são capazes de dizer coisa nenhuma como deve ser dita.

Palavras

Palavras
foram palavras sempre
só o que tive para ti

Eu as aprendi
nas noites em que
nos ritos amorosos os outros se iniciavam
e com seus gritos gozosos
proferiam todas
e mais algumas interjeições

Eu aprendi
a escrever
odisseias odes epopeias
a compor estrofes e hinos
a contar sílabas nos dedos
e a escandir alexandrinos meticulosamente
assim como um açougueiro
retalha profissionalmente
um carneiro

Enquanto assim eu
em aprender a linguagem do amor me empenhava
os outros tinham descoberto já
uma fórmula simples
e a diziam e a repetiam
como agora aqui
livre já de estilos e modelos
eu digo a ti eu te amo
e eu te amo repito

Te digo e te repito
eu te amo
como disseram e repetiram tantos
mas digo e repito
com a certeza
de que a minha convicção
ao dizer e repetir
é maior que as outras convicções
todas todas todas
sem exceção.

À sombra

Agora que para as frutas
Já não te servem os dentes,
Melhor a sombra desfrutas,
Ao som das folhas cadentes.

Fiapo

A beleza é um episódio, um fiapo de lã vermelha brilhando por um instante ao sol, um rabisco de vaga-lume na escuridão. Se não fosse assim, esporádica, ela seria insuportável. O coração humano, esse tolo, encanta-se com tantas quinquilharias que, diante do fulgor único do belo, espanta-se e ameaça travar.

Um poema de Charles Bukowski

"SEM CHANCE DE AJUDA

existe um lugar no coração que
nunca será preenchido

um espaço

e mesmo durante os
melhores momentos
e
os melhores tempos

nós saberemos
mais do
que nunca

existe um lugar no coração que
nunca será preenchido

e

nós iremos esperar
e
esperar

nesse
lugar."

(Do livro Poesia beat, publicado pela Azougue Editorial, organização de Sergio Cohn.)

Dois poemas de Gregory Corso

"CASA NATAL REVISITADA

Estou na escuridão da rua
e olho para minha janela, nasci ali.
As luzes estão acesas; outras pessoas circulam por lá.
Estou com um sobretudo; cigarro nos lábios,
chapéu sobre os olhos, o dedo no gatilho.
Atravesso a rua e entro no edifício.
As latas de lixo não param de feder
Eu subo o primeiro andar; o orelha suja
me aponta uma faca...
Eu apalpo seus bolsos cheios de relógios extraviados."

...........................................................................................

"ONTEM À NOITE DIRIGI UM CARRO

Ontem à noite dirigi um carro
sem saber como guiar
sem mesmo ter um carro
Dirigi e derrubei tudo que encontrava
pessoas que eu amava
... a 120 na estrada.

Parei na próxima cidade
e dormi no banco traseiro
... excitado com minha nova vida."

(Do livro Poesia beat, publicado pela Azougue Editorial, organizado por Sergio Cohn.)




Casais

Com o auxílio do vento, o sol pôs-se a peneirar as gotas de chuva e a emprestar a cada uma seus fios de ouro. Um casal de jovens namorados parou para olhar, deslumbrado, mas outro casal, de velhos, que vinha logo atrás, balançou a cabeça, e o homem, entre saudoso e desdenhoso, disse à mulher: "Nós já passamos por isso, lembra?" "É", disse ela, desapontada. "Faz um tempinho, já. Olhe só esse sol. Eu acho que não é o mesmo. Viu a cara dele? Está diferente, não está?" O homem abriu o guarda-chuva, os dois se ajeitaram embaixo dele e não viram no horizonte o arco-íris que se abriu como um leque para o rapaz e a moça.

Crepúsculo

Um violino vem e fere a tarde na jugular, naquele instante em que a noite, chegando para reivindicar seu domínio, impõe o sacrifício do sol, aquele fanfarrão que, não tendo a oferecer senão seu enfadonho espetáculo de todos os dias, se acaba em sangue e dá lugar às estrelas, à lua, aos pirilampos e às luzes dos navios, indicando às alvoroçadas mulheres de todas as latitudes e longitudes que seus amados estão a caminho, com a fome e a sede espicaçadas pelos meses passados no mar.

Afeto

Até no silêncio, quando
Nem sempre pensamos nela,
Continua germinando
A flor do afeto, a mais bela.

Animal das ruas

Para o explorador urbano
O caminhão, subjugado,
Carrega a carga pesada,
Transporta o ferro forjado,
Conduz a pedra lascada.

Para o homem desumano,
Para o homem desalmado,
Faz dupla e tripla jornada,
Faz o trabalho forçado,
Traz a riqueza dourada.

Eu te vejo, caminhão,
Eu te ouço em minha Sampa,
Gemendo o teu desengano,
Subindo e descendo a rampa,
Aflito animal urbano.

Causa mortis

Se pensas de mim livrar-te,
Se queres mesmo o meu fim,
Um beijo ou dois deixa dar-te,
Assim, isto, assim, assim.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Net

Fazem um sexo gostoso,
Marcado, diário, pontual,
Nem mais nem menos virtuoso
Do que é o sexo normal.

Imortalidade

Não acredito na imortalidade. Escritor medíocre, nem a morte será capaz de me melhorar.

O mundo lá fora

Que bom poder estar assim neste sofá - uma das poucas coisas que não me repelem, ainda - lendo, cochilando, rabiscando textos que no início parecem tão promissores sempre. O mundo fica lá fora e aquilo que nele me afligia (sua vastidão) hoje não me perturba, embora sempre me doa imaginar-te andando por Nova York. Conforta-me saber que é grande o mundo e há milhares de cidades grandes, médias e pequenas onde podes estar agora - lugares que a minha parca geografia não consegue conceber e que não hão de ferir muito meu coração. Nova York, não. Nova York torna mais intensa qualquer dor.

Pasticho

Que erro, o teu, julgares que a imagem que tenho de ti foi concebida por mim. Quem pega uma obra-prima e a copia despudoradamente não é mais que um borra-tintas.

Efeitos colaterais

Em coisas nas quais não cria
Agora começa a crer.
E coisas que não podia
Já pensa poder fazer.

Crueldade

É uma crueldade o que estamos fazendo com o amor. De que vale nos revezarmos à sua cabeceira de enfermo, acordarmos médicos de madrugada, importarmos substâncias milagrosas, ervas, poções indígenas? Estamos dando sangue e soro a um morto, para tentarmos abrandar a culpa de havê-lo matado com nossas ingratas mãos.

Trilha

A sina dos meus passos é seguir os teus passos, a certa distância, porque não os merecem, mas nunca a uma distância tal que eu não possa ouvi-los indicando o rumo do meu afortunado destino, ainda que eles não conheçam esse poder que têm, nem queiram exercê-lo.

Estratégia

De todos os que ele usou,
Somente um estratagema
(Um texto bobo, um poema)
A bem-amada aceitou.

Crer ou não crer

Que em mim não creias aceito.
Quem sou para censurar-te?
Mas olha, que para louvar-te
Sangro a alma e rasgo o peito.

Indiferença

Era frio. Dava de ombros
A tudo, e a nada ligava.
Nem o edifício exaltava
Nem lamentava os escombros.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Corcel

Na alma ele tem um cavalo
Que, quando pressente uma égua,
Revoluteia sem trégua
E ameaça, até, desmontá-lo.

Cavalo farejador,
Derrubador de porteiras,
Corcel que ignora barreiras
Quando o chicoteia o amor.

Teu nome, tua imagem

Às vezes, quando acordo de madrugada ou de manhã, me entristeço se a primeira imagem que me vem, e o primeiro nome, são os teus. Ainda não venci isso, mas continuo lutando, e venho fazendo progressos, embora frequentemente eu me inquiete com a ideia de que, quando conseguir curar-me, e tua imagem e teu nome não me causarem mais alvoroço, terá morrido o que de mais vivo eu já guardei em meu peito.

O feitiço do Amor

Para fugir ao Amor e aos seus amavios, amarrei-me ao mastro. Esperava passar incólume e seguir adiante. Mas o vento e as ondas me traíram, meu barco ficou ancorado no meio do oceano, à noite, e as canções do Amor me enfeitiçaram de tal forma que eu, sozinho na escuridão, não podendo ir a ele, lhe implorei que viesse buscar-me e me castigasse pela afronta. Ele veio, me açoitou e foi tão terno seu chicote que desmaiei de gozo. De manhã, o sol me encontrou livre das amarras, que o Amor por piedade havia rompido, e meu barco, impelido pelas ondas recém-despertas, se afastou daquele ponto em que pela única vez na vida senti o que era o prazer. Ainda hoje, se apalpo qualquer uma das cicatrizes, fico à beira de um doce desmaio, como naquela noite.

Amor e paixão

De ansiedade, de angústia, de aflição, de ciúme o amor se dói, se rói, se destrói, se mata. O amor, não. O amor morre de causas insípidas, corriqueiras e naturais.

Os dois navios

A mulher era extraordinariamente bela e jovem. Sua calça de ginástica era tão justa e cor de carne que parecia ser parte do seu próprio corpo. Na blusa abria-se um decote que descia avidamente até o início das nádegas, como se quisesse apalpá-las. Ela estava na seção de frutas e desgalhava preguiçosamente uma uva, depois outra, e as colocava com languidez entre os lábios, como se elas devessem prová-los, e não o contrário. Os rapazes da reposição pararam de repor e a olhavam com um olhar que levava uma indisfarçável inquietação às braguilhas. Dois senhores acompanhavam também cada movimento da mulher, cada piscar de cílios, as palpitações de cada poro. Viram-se os dois de repente a três passos dela, que se voltou para eles, mordiscando mais uma bem-aventurada uva, ciente do poder de seu feitiço. Os dois homens sorriram um para o outro, como se dissessem: mas, meu senhor, o que nós dois estamos fazendo aqui atrás destas nádegas? Vi que nos olhos deles se esgueirou por um instante o brilho triste de uma impossível esperança, e eles se afastaram lentamente da mulher, como aqueles navios velhos e carcomidos que, no poente, o horizonte, por misericórdia, engole.

A messe perdida

Os frutos estiveram à nossa disposição. Seria erguer a mão e apanhá-los. Tão fáceis estavam que os deixamos no pé. Outros, melhores, viriam. Era questão de tempo. E o tempo veio, e passou, e não colhemos nada. A cada estação os novos frutos têm menor brilho e aroma, e, lembrando-nos daqueles que por soberba desprezamos, continuamos esperando, esperando.

A qualidade

O que de melhor aprendi na vida, com as esperanças malogradas e as ilusões perdidas, talvez tenha sido a resignação. Ela me será útil, ainda, nos meus últimos dias e depois. Não há quem mais precise de resignação do que os mortos.

Soneto das marcas do amor

Hoje quando ao sol caminho
Talvez não vejam que sou
Aquele que se humilhou
Por um pouco de carinho.

Algumas marcas ficaram,
No rosto, no coração,
Nos dedos que o seu portão
Tantas vezes arranharam.

Mas já não é fácil vê-las.
Eu já sei como escondê-las,
Aprendi a simular.

Talvez nem tu, se me visses,
Essas marcas distinguisses.
Se queres, podes tentar.

Rosa dos ventos

Que porto seguro, o teu,
Imune à fúria marinha.
Que rumo inseguro, o meu,
Que nave insegura, a minha.

Tratamento

Irei chamá-la de quê?
De amada e de bem-amada
Chamei-a já tanto, e nada...
Chamo-a agora de você...

Questão de escolha

Se um dia não me quiseres,
Eu, não por ira ou fadiga,
Mas porque és única, amiga,
Direi adeus às mulheres.

Saldo negativo

Quando eu me for, lembrarás
De mim, talvez. Pobrezinha!
Para uma boa coisinha
Ou duas, tantas tão más...

A completude da manhã

Quando sente sede, o sol espera até as sete ou sete e meia, horário em que a mulher loira, depois de ofertar os cabelos ao chuveiro, sai para a rua e os oferece ainda úmidos à manhã, que só então se sente completa em sua beleza e aceita o louvor dos pássaros.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Bestialógico (Pilatos)

Diante de uma decisão,
Se a questão for singular,
O mais sensato é deixar
De lado toda razão

E fazer como Platão
(Ou será que foi Pilatos?):
Desvencilhar-se dos fatos,
Sair e lavar a mão.

E para não dar vazão
A que ninguém me condene
Digo que noções de higiene
Pilatos tinha, e Platão.

Seria

Seria doce a memória
Do amor e do seu encanto
E bela também a hístória
Se não me doesse tanto.

Sangradouro

O amor em mim fez um corte
E abriu a extensa ferida
Pela qual se escoou a vida
E se introduziu a morte.

Decisão

Se sabes já o que sinto,
E também minha paixão,
Ou desconfias que minto
Ou acreditas que não.

Jaculatória

Entrega-te com ardor
A tudo que o Amor te dá.
Ele será teu Senhor
E nada te faltará.

O suspeito

Quem é esse assassino? Quem
Em meu peito o punhal crava?
Quem é ele? Que nome tem?
Amor? Eu já suspeitava.

Oração

Amor por quem eu vivi,
Amor por quem morrerei,
Me ajoelho diante de ti,
Amor, meu deus e meu rei.

Haicai (Natureza)

O vento no cio
Espreita e febril se deita
No dorso do rio.

Safra

Com gozo e deleite
O dia aproveite.
Cada hora ofertada
Seja desfrutada
E o fruto colhido
Não seja esquecido
E teça e memória
E viva na história
Enquanto não vêm
Nem a morte nem
O suave abandono
Do infindável sono.

Delicadeza

Se fosse para tocá-la,
Recorreria a uma pluma,
A uma brisa ou a nenhuma,
Para não despetalá-la.

Custo-benefício

Se não nos fere e tortura,
Se não nos sangra e consome,
Se não nos leva à loucura,
O amor não vale o que come.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Senha

Em algum canto da sua alma há, guardada para uma emergência, uma reserva de ternura à qual, porém, sempre que ele quer recorrer, não tem acesso, porque seu confuso coração esqueceu a senha.

Dois poemas de Carlos de Freitas

"SOCIEDADE

Sou amigo dos cães e os gatos
não me querem mal por isso.
Em minha casa todos esquecem do que são lá fora.
Nas quintas-feiras São Francisco de Assis
vem conversar com Zaratustra.
A águia do filósofo sobe para o ombro
do humilde homem
e a serpente se enrosca em seu pescoço.
A filha mais velha do vigário
canta para nós as músicas de Wesley.
Somos todos criaturas a quem Deus quer bem.
Só regressamos à impiedade pela manhã."

..................................................................................

"NÃO TE INQUIETES

Não te inquietes
se um dia eu não voltar
destas longas viagens.
Quando um companheiro entregar
meu caderno de notas,
põe novamente na estante
o livro que deixei sobre a mesa.
No dia seguinte
arruma a menina para a escola
como se nada tivesse acontecido
e diz aos garotos de nossa rua
que fui para um lugar desconhecido
fazer uma reportagem sensacional."

(Do livro Quarenta dias, quarenta noites, Editorial Satori, Ltda.)

Despeito

Dói-te saber que a tristeza
Nos olhos da bem-amada
Não é, com toda a certeza,
Por teu amor provocada.

Tu muito bem poderias
Abraçá-la, dar-lhe a mão.
Sei até que gostarias,
Porém teu coração não.

Tu receias abraçá-la,
Tu receias consolá-la
E ouvi-la, ao agradecer,

Com o rosto ao teu rosto unido
E os lábios em teu ouvido,
O nome de outro dizer.

Bestialógico (Pirro)

Por uma gripe letal,
Pirro, de espirro em espirro
Até o espirro final,
De Pirro virou ex-Pirro.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O erro

Sei qual foi meu erro, já:
Esperei muito de ti.
Por tudo que sei e li,
A vida é só Deus quem dá.

Instruções

Um lugar bom, adequado,
De preferência bem alto,
Um nó seguro, apertado,
Depois uma prece, e o salto.

De dentro

As piores notícias não me chegam por e-mail nem pelo celular. Vêm de mim, de dentro de mim, do meu coração desafortunado.

Hoje

É muito triste o resumo:
Não há mais ilusões, mais
Quimeras nem ideais,
E sonhos, só de consumo.

Ponto final

Da vida, boa ou sofrida,
A morte é o último estágio.
Se início for de outra vida,
Não será mais do que um plágio.

Prêt-à-porter

Terrível é a sina diária de acordar com a obrigação de continuarmos fazendo tudo aquilo que nos cabe para sermos o que os outros julgam e esperam que sejamos. O mundo há muito nos rotulou, nos lacrou e não admite falsificações.

Megalomania

Os suicidas são presunçosos. Pensam poder fazer o que nem as guerras nem as pestes conseguiram: querem acabar com o mundo e sua opressão usando um revólver, uma corda, uma gilete ou meia centena de comprimidos.

Teu nome

Deves ficar quieto, no teu canto. Ou irás te prostituir, esperar à porta das editoras, dos produtores de tevê, das redações de jornais? Estás doente demais, cansado demais, e teu nome não é William Shakespeare. Ninguém deixa subir pelo elevador um velho desconhecido que morrerá na poltrona da recepção.

Protagonista

Se lhe dessem a oportunidade, não decepcionaria. Ficaria quieto, não respiraria. Só abriria os olhos quando fechassem a tampa sobre ele. No final da peça, quando a plateia exigisse a reabertura da cortina, para aplaudir de pé o elenco, ele continuaria no caixão. Lázaro não se levantou à toa.

Promessas

Se quiseres ser feliz,
Não creias nunca em promessas.
Vãs foram aquelas, e essas.
O amor não cumpre o que diz.

Floração

Em minhas costas, as cicatrizes deixadas pelo teu chicote já criaram raízes e, nutrindo-se do meu sangue, preparam a floração de uma futura dor, que latejará como uma suave lembrança toda vez que eu pensar em ti.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Dois poemas de Eugenio Montale

"Cobri de alpiste a sacada
para o concerto da madrugada de amanhã.
Apaguei a luz e esperei pelo sono.
E já na passarela se inicia
o desfile dos mortos grandes e pequenos
que conheci em vida. É difícil distinguir
quem eu gostaria ou não que
regressasse entre nós. Lá onde estão
parecem inalteráveis por um algo mais
de decomposição sublimada. Nós fizemos
o melhor de nossos esforços para piorar o mundo."

.................................................................................
"O homicídio não é o meu forte.
De homem nenhum, talvez de algum inseto,
algum mosquito esmagado com um chinelo
na parede.
Durante muitos anos usei os mosquiteiros
para protegê-los. Depois, por muitíssimo tempo,
tornei-me eu próprio um inseto, mas indefeso.
Acabei descobrindo que viver
não é questão de dignidade ou de outra qualquer
categoria moral. Não depende,
nunca dependeu de nós. A dependência
pode até exaltar-nos, mas não nos alegra nunca."

(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

Aquele êxtase

Já sofri mais, já sofri melhor. Houve um tempo em que teu chicote me levava a um êxtase que explodia em lágrimas de gratidão. Hoje, se sofro é nas lembranças que provoco, em busca daquelas lágrimas e daquele êxtase. Porém são poucas as lágrimas e o êxtase é frouxo, como o dos falsos santos.

Cúmplice e instrumento

Não citará o nome dela no bilhete que deixará bem à vista, embaixo do vaso no centro da mesa da sala. Não a premiará com essa culpa gloriosa. Acusará o amor. Ela é não mais que uma cúmplice, um instrumento dele, graciosa cúmplice e belo instrumento. Mas só isso: cúmplice e instrumento.

Sonhos de um escritor

Às vezes ele reconhece que lhe falta algum talento, certo preparo, talvez um pouco mais de  dedicação. Mas insiste em continuar escrevendo e há momentos em que se julga com maior condescendência e pensa que talvez possa haver ainda alguma esperança, se ler mais Shakespeare, se isto acontecer, se isso ocorrer, se aquilo suceder e, principalmente, se Lucia Riff talvez, ou se Luciana Villas-Boas quem sabe...

Kama Sutra - LXVIII

O dedo dele voltou com cheiro de mormaço e um instante depois a cama começou a balançar como se estivesse sobre ondas.

Perseverança

Eu nada espero de mim.
Sou tolo, desajeitado,
Nasci já assim, fracassado,
Sempre fui e sou assim.

Presentes

Sou como aqueles gatos que às vezes pegam um rato na rua e o carregam para dentro da casa, jogando-o aos pés da dona, como se fosse um presente. Eu também levo para ti poemas sujos e arranhados, esperando que tu os vejas como se fossem brincos do mais faiscante ouro.

O recolhedor de estrelas

Passava as noites na areia da praia, olhando para o céu. Às vezes, punha-se subitamente a correr. Não falava com ninguém, mas dizia-se que ele julgava ver estrelas caindo e ia recolhê-las. Nunca ninguém viu uma sequer na sua mão, e ele mesmo admitia que uma coisa era ver, outra pegar. Talvez tenha tido melhor sorte numa noite em que correu para dentro do mar. Nunca mais apareceu.

Matinê

Podias ter ido pelo menos uma vez comigo ao cinema, onde, quando se apagassem as luzes, eu na certa descobririria que, assim como na adolescência, minhas mãos continuam inquietas e cheias de desejos, porém covardes.

Carona

Essas esperanças que nos acenam no fim da vida são como a mulher de pernas longas e brancas a quem damos carona no pesadelo e que no meio do caminho se revela um homem de coxas peludas que puxa uma faca e ordena: "Agora, meu lindo, desvia e entra naquele mato ali."

Clown

Tão ridiculamente exprimiu seu amor que, relendo os versos escritos no tempo agudo da paixão, ele se vê como um palhaço abaixando-se no picadeiro para apanhar uma estrela e exibindo ao público, entre as abas do fraque, as nádegas murchas como as de um prisioneiro de campo de concentração.

Alma

Por que a alma se apega tanto ao corpo e demora tanto para deixá-lo? Por que a todo instante ela nos suplicia, dizendo-se superior, censurando a grosseria das nossas mãos ávidas e desdenhando os sabores que nossos lábios febrilmente procuram?

Requinte

Tendo-lhe caído repentinamente às mãos uma fortuna, ele se empenha em refinar seus gostos. Depois da ceia, por exemplo, afunda-se na chaise-longue e arrota lagostas e caviares ouvindo Chopin.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Menos

Nem quero mais quem me entenda,
Essa época passou, já.
Basta alguém que o fone atenda
E diga alô ou olá.

Aventura noturna

No sonho
ao som do baile
seu coração remoça
se alvoroça
e ele tira uma moça
outra moça
todas as moças
para dançar
e como antigamente
dança dança dança
até o sol chegar


Acorda e nos lábios murchos
tem ainda a última sílaba
de um bolero e o gosto
do batom colhido numa boca jovem

No meio das pernas
sente uma mornidão
uma frouxidão
que há algum tempo não sentia

Não ele diz não
não é possível
outra vez não
ele não quer acreditar

A filha quando vier
colocá-lo na cadeira de rodas
balançará a cabeça
(você andou sonhando
outra vez pai?)
e indignada apontará
a cama toda mijada.

Um poema de Anna Akhmátova sobre o adeus

"Não somos bons de despedidas.
Passeamos lado a lado, os ombros tocando-se.
Já está começando a escurecer.
Estás pensativo, eu não digo nada.

Entramos nesta igreja para ver
alguém sendo enterrado, batizado, se casando;
depois vamos embora, sem olhar um para o outro.
Por que é que para nós nada dá certo?

Vamos sentar na neve pisoteada
do cemitério, suspirando de leve.
Com a ponta da bengala, traçarás palácios
em que viveremos felizes para sempre."

(Do livro Antologia poética, tradução de Lauro Machado Coelho, publicado pela L&PM.)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Grandes causas

Se quem sou queres saber,
Te digo: sou este traste
A quem tu deste e tiraste
A vontade de viver.

Pensaste em tudo: nos teus
Amigos, nos teus parentes,
Nos planos teus, tão coerentes.
Pensaste acaso nos meus?

Tantas baleias salvaste,
Das focas não descuraste,
De tudo cuidaste, enfim.

Fizeste tantas cruzadas,
Tão nobres, tão abençoadas.
Fizeste alguma por mim?

Quando

Quando nos sufoca a vida
E o sofrimento nos cansa,
Morrer é nossa saída
E a derradeira esperança.

No amor

No amor, aos que infligem dores
Convém sempre celebrá-los.
Se são cruéis os senhores,
Felizes são os vassalos.

Passarás

Daqui a dez anos passarás por mim num desses fins de tarde em que São Paulo consegue ser triste como nenhuma outra cidade. Será num lugar por onde andamos outrora. Tu estarás tão igual ao que sempre foste que eu estranharei notar tudo mudado na rua, nas árvores, na galeria, nas lojas, no café. Se olhares para mim, baixarei os olhos. Não quero que vejas meu rosto. Não há ruínas cujo aspecto não possa piorar.

Seis meses

Há doze anos o médico lhe garantiu no máximo mais seis meses de vida. Ele estava, na época, com setenta e um anos. A sentença de morte hoje lhe parece uma promessa não cumprida.

A cadeira de rodas

Dia a dia ele se torna mais ágil. Já não esbarra nas cadeiras, nem nas mesas. A sala e a cozinha são territórios dominados por ele. Se quiser, pode até fechar os olhos. No parque, aonde o levam quando não chove, ele às vezes ainda sente dificuldade. No piso há umas irregularidades que ele ainda não mapeou. Mas dia a dia ele se considera mais seguro. Tem tempo para melhorar. Faz dois meses que anda com a cadeira de rodas. Está com sessenta e quatro anos e os homens da sua família costumam chegar pelo menos aos oitenta.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Autossuficiência

O amor efeito não traz.
O amor é seu próprio efeito,
O amor já nasce perfeito,
O amor jamais se perfaz.

A deliberação

O Amor nos perguntou o que faríamos. Pedimos-lhe um tempo. Enquanto ele esperava lá fora uma resposta, ela e eu começamos a decidir. Foram dias e noites de ponderações e deliberações. Era um assunto sério demais para nos precipitarmos. Sempre que chegávamos a uma decisão, um de nós acabava levantando uma dúvida e retomávamos o debate. Quando finalmente nos resolvemos e saímos para fazer a comunicação ao Amor, não havia sinal dele. Perguntamos a um menino da casa vizinha se o tinha visto. Ele disse que sim, mas algum tempo atrás. "Que dia é hoje?", eu perguntei. Ele disse. Três anos tinham se passado. O Amor havia nos pedido uma pitada da loucura sem a qual ele não vive. Nós dois queríamos dar-lhe bom-senso e ponderação.

Sim e não

Se o amor celebras, não nego:
O amor celebro também.
Se dele não falas bem,
Sou surdo, sou mudo e cego.

O rosto do Amor

O Amor exaure tudo o que tem de bom o ser que ama: o sangue, o coração, a alma. Quem quiser saber onde está o Amor, não o procure nesses rostos saudáveis, indecentemente corados, nessas bocas que se escancaram em gargalhadas. O Amor estará sempre nos olhos encovados, nos rostos pálidos, nos lábios que murcharam depois de implorar em vão.

O nome dele

Havemos de dizer o nome do Amor sempre, enquanto vida houver em nós. E dizê-lo depois, também, como consta de alguns relatos antigos sobre mortos que, ao serem velados, revelaram o nome do assassino. Dizer, revelar o nome dele, do Amor, o mais doce e gentil dos assassinos.

Outrem

Ser outro me conviria:
Um que morrido tivesse,
Não este, a quem apetece
Viver mais do que devia.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Mais um poema de Anna Akhmátova

"Tarde da noite, em minha mesinha,
a página está irremediavelmente branca.
As mimosas cheiram a Nice e a mormaço;
à luz da lua voa um grande pássaro.

Enquanto faço as tranças para ir deitar -
como se amanhã ainda fosse usar tranças -
olho, sem suspirar, pela janela,
para o mar e as suas brancas dunas.

Mas que poder tem esse homem
que nem sequer me pede ternura...
Mal posso erguer as pálpebras cansadas
quando ele pronuncia o meu nome."

(Do livro Antologia poética, tradução de Lauro Machado Coelho, publicado pela L&PM.)

Refilmagem

Foste para um lado, eu para o outro. Quando me lembro daquela remotíssima tarde, penso que havia um poente ensanguentado, daqueles que os maus, e às vezes os bons poetas celebram. Talvez não o tenha visto naquele dia, porque estava com os olhos molhados e porque nada me importava no mundo senão o meu drama. Seria uma boa moldura para o fim. Mas era só o meio. Houve voltas, reviravoltas, transtornos, retornos, contratempos, contemporizações. E, quando chegar o inevitável final, sem o qual os amores não são amores, quem sabe se terei outra vez aquele poente apunhalado e se as lágrimas não serão substituídas por um adeus protocolar e um sorriso de falsa maturidade.

Retratos

Olhei-me hoje no espelho e, além desse retrato fisico, fiz um mental. E senti pena não de mim, mas de você - precisando arranjar tantos eufemismos para não dizer a verdade sobre o meu rosto, meu nariz, meu mau humor, meu egoísmo, minha grosseria.

Os ciúmes de acordo com a faixa etária

Algumas coisas têm piorado, como não? Por exemplo, os ciúmes. Antigamente, um homem atacado por eles suava frio quando imaginava o que a amada poderia ter feito aos dezesseis, aos dezoito, aos vinte anos. Hoje, a aflição é maior: o que ela terá feito aos dez, aos doze, aos catorze?

Fim de ano

De janeiro a novembro, ninguém sabe onde ele fica. Em dezembro, lá vem ele, o Próspero, o mais abonado e otimista dos proparoxítonos.

Um poema de Anna Akhmátova

"Raramente penso em ti.
Teu destino pouco me interessa.
Mas de minha alma ainda não se apagou
o brevíssimo encontro que tivemos.

Evito, de propósito, tua casinha vermelha,
tua casinha vermelha junto ao rio lamacento;
mas bem sei com que amargura
perturbo a tua ensolarada quietude.

Embora não te tenhas inclinado sobre mim
suplicando-me que te amasse,
embora não tenhas imortalizado
o meu desejo em versos dourados,

secretamente lanço encantamentos para o futuro,
sempre que as noites são de um azul profundo,
e tenho a premonição de um segundo encontro,
um inevitável segundo encontro contigo."

(Do livro Antologia poética, tradução de Lauro Machado Coelho, publicado pela L&PM.)

O mais perto

Me enganei, desde o início. Julguei-a próxima, e o mais perto que estive de você foi o mais perto que um homem consegue chegar de uma estrela, em noites de céu limpo.

Fardo

Havia ainda muito caminho à frente, o cantil estava já quase sem água e o sol do meio-dia supliciava seu corpo. Ele tirou o Amor dos seus ombros e sentaram-se os dois à sombra de uma das raríssimas árvores. Enquanto ele fazia cálculos sobre os quilômetros e a água que restavam, o Amor adormeceu. Ele se levantou sub-repticiamente e, com os pés descalços, retomou a caminhada pela areia. Com as costas livres, era fácil andar, e em poucos minutos ele chegou a um ponto de onde já não avistava nem a árvore nem o Amor.

Soneto do frágil brilho

Bonita ao menos ela era,
Não o negará ninguém.
Inconsequente, porém,
E vã como a primavera.

Brilhava como se espera
Que possa brilhar alguém
Que brilhe como quem
Somente em brilhar se esmera.

Enquanto o sol perdurou,
Brilhava, ah, como brilhava,
Brilhou, ah, como brilhou.

Pensou que o brilho bastava.
Tola, nisso acreditou,
Enquanto o sol se apagava.

Conhecimento do mundo

Eu já soube de físicas, de logaritmos, de ábacos, de 3,1416, de hipotenusas e abscissas, de triângulos isósceles e trigonometrias. Achava que o conhecimento do mundo estava nos livros. Eu os lia, eu os li nas noites e nas madrugadas em que os outros dormiam, e quando, furtivamente, pegava um livro de poemas, sentia-me como aqueles masturbadores cuja palidez era apontada na rua. Foi um tempo perdido, todo esse em que eu julgava ter na estante resposta para tudo. Hoje, se vou à estante, é à letra P que se dirigem meus dedos. Conheço muito pouco o mundo - o suficiente para saber que ele só é suportável com alguma poesia.

Privilégio

Não desfilarei no carro dos bombeiros. Não chega a tanto a minha competência. Mas um dia, tendo atrás pelo menos mais dois carros, o meu irá abrindo caminho com a sirene e talvez possa até passar faróis vermelhos. Será pena eu não poder ver. Estarei deitado e indiferente.

Assunto meu

Me fazes mal
quando queres que eu acredite
que assim como a ciática
e a bronquite
o amor pode ser assunto meu

O amor é um fruto
que mortos não podem comer.

Três poemas de Eugenio Montale

AS RIMAS

"As rimas são mais chatas do que
as damas de São Vicente: batem à porta
e insistem. Enxotá-las é impossível
mas desde que fiquem do lado de fora são suportáveis.
O poeta decente as afasta
(as rimas), as esconde, trapaceia, tenta
passá-las de contrabando. Mas as beatas ardem
de zelo e cedo ou tarde (rimas e velhotas)
soam novamente e são sempre as mesmas."

                              *


LA BELLE DAME SANS MERCI

"Sem dúvida as gaivotas cantonais esperaram em vão
as migalhas  de pão que eu lhes lançava
em teu balcão para que ouvisses
mesmo ferrada no sono os seus estrídulos.

Hoje faltamos os dois ao encontro
e o nosso café da manhã esfria entre as pilhas
para mim de livros inúteis e para ti de relíquias
que ignoro: agendas, estojos, vidros e cremes.

Maravilhoso o teu rosto se obstina ainda, recortado
sobre o pano de fundo de cal da manhã;
mas uma vida sem asas não o alcança e o seu fogo
sufocado é o lampejo de um isqueiro."

                               *


NA FUMAÇA

"Quantas vezes te esperei na estação
no frio, na neblina. Andava de um lado para outro
com minha tossezinha, comprando jornais inomináveis,
fumando Giuba depois suprimido pelo ministro
dos tabacos, o idiota!
Quem sabe um trem errado, ou desdobrado ou talvez
suprimido. Examinava os carrinhos
dos carregadores para ver se por acaso não levavam dentro
tua bagagem, e tu seguindo, atrasada.
Por fim aparecias, a última. É apenas uma lembrança
entre tantas outras. No sonho me persegue."

(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Editora Record.)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Um poema de Anna Akhmátova

"À MORTE

De qualquer jeito virás - então, por que não vens já?
Estou te esperando: tudo para mim ficou difícil.
Apaguei a luz, abri a porta
para ti, tão simples, tão maravilhosa.
Para isso, toma o aspecto que quiseres:
entra como um obus envenenado,
ou sorrateira qual hábil bandido,
ou como as emanações do tifo,
ou sob a forma daquela fábula que tu mesma inventaste
e que todos já conhecem até a náusea -
na qual torno a ver o topo do quepe azul e,
por trás dele, o zelador pálido de medo.
Para mim dá na mesma. O Ienissêi corre turbulento.
A Estrela Polar brilha no céu.
O brilho azul dos olhos que eu amo
é recoberto por esse terror."

(Do livro Antologia poética, tradução de Lauro Machado Coelho, publicado pela L&PM.)

Um poema de Eugenio Montale

"CÁ E LÁ

Há tempos estamos ensaiando a peça
mas a desgraça é que não somos sempre os mesmos.
Muitos já morreram, outros trocam de sexo,
mudam barba rosto língua ou idade.
Há anos preparamos (há séculos) os papéis,
as tiradas principais ou apenas
"a mesa está posta" e nada mais.
Há milênios esperamos que alguém
nos aclame no palco com palmas
ou até com assobios, não importa,
desde que nos reconforte um nous sommes là.
Infelizmente não falamos francês e assim
ficamos sempre no cá e jamais no lá."

(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Editora Record.)

Um poema de Mirian Paglia Costa

"LIRA-LIRA

invejo poetas que esparramam
palavras em delírio

ovo que cai da geladeira
estrela no ladrilho

admiro quem fala de quindim
o sol na boca
metafísico prato do cotidiano

amo os poetas:
devoram baratas
engolem fogo
cospem maravilha."

(Do livro Notícias do lugar comum, publicado pela Editora 34.)

Um poema de Edgar Allan Poe

"ANNABEL LEE

Há muitos, muitos anos, existia
num reino à beira-mar, em que vivi,
uma donzela, de alta fidalguia,
chamada Annabel Lee.
Amava-me, e seu sonho consistia
em ter-me sempre para si.

Eu era uma criança, ela era uma criança
no reino à beira-mar, em que vivi.
Mas tanto o nosso amor ultrapassava
o próprio amor, que até senti
os serafins invejarem
a mim e a Annabel Lee.

Por isso mesmo, há muitos, muitos anos,
no reino à beira-mar em que vivi,
gélido, de uma nuvem, veio um vento
matar Annabel Lee.
E seus nobres parentes se apressaram
em tirá-la de mim; encerrarem-na vi
num sepulcro bem junto ao mar, que chora
eternamente ali.

Foi inveja dos anjos: mais felizes
éramos nós aqui.
Sim, foi por isso (como todos sabem
no reino à beira-mar em que a perdi)
que veio um vento, à noite, de uma nuvem
matar Annabel Lee.

Mas nosso amor, imenso, era mais forte
do que o tempo e que a morte,
do que a própria esperança em que o envolvi.
E nem anjos celestes nas alturas,
nem demônios dos mares abissais
jamais minha alma afastarão, jamais,
da bela Annabel Lee.

Pois quando surge a lua, em meus sonhos flutua,
no luar, Annabel Lee.
E, quando se ergue a estrela, o seu fulgor revela
o olhar de Annabel Lee.
E junto a ela eu passo, assim, a noite inteira,
junto àquela que adoro, a esposa, a companheira,
na tumba à beira-mar, do reino em que vivi,
junto ao mar que por ti
soluça eternamente, Annabel Lee."

(Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado - do livro Ficção completa, poesia e ensaios de Edgar Allan Poe, publicado pela Companhia Aguilar Editora.)

A marca

Então, amor, tu chegaste.
Teus verdes olhos ardiam,
Tuas narinas fremiam.
Tentei fugir, não deixaste.

Tu me alcançaste e pegaste.
Teus braços me constrangiam
Enquanto as mãos imprimiam
A marca que em mim gravaste.

Te foste. De ti restou
A chaga que em mim ficou,
Amor, do teu ferro em brasa.

Por que, depois de marcar-me,
Tu não quiseste levar-me,
Amor, para a tua casa?

Colheita

Quem pedincha amor semeia o asco e, se colher algo, será a piedade.

Definição

Não, tu não és ridículo com teus versos apodrecidos na estufa; não, tu não és bizarro com tua pretensa sabedoria, teu sorriso ensaiado, tua falsa doçura; não, tu não és risível com tua afetação, teu pernosticismo e tua pose de escritor. Tu és repugnante.

Um soneto de Y. Fujyama

"Quero amar sobriamente
sem paixão adolescente.
Não ver na mulher a pura
fonte ou tranquila figura.
Aceitar mesmo o enfastio
às vezes, e mesmo um frio
abraço à noite, na cama.
Contudo, sei que me amas.
Amanhã volto a sorrir,
E se te deixas despir
ri também a carne nua.
Então, por que esse amuo?
Logo estaremos cantando
neste quarto, vasto mundo."

(Do livro A manhã e seus deuses, publicado pelo Clube de Poesia, São Paulo.)

Um poema de Edwaldo Cafèzeiro

"A NOVILHA

Apascentada em ruivo campo
e pardo assento plano
deposita-se, calma e gorda,
sob o sol e repasto
dos insetos...

Cavo sonho branco
de pelo e pele brancas,
recebe a tarde
e comunga
o concurso dos viços,
mugindo lento e doce.

A espera e pouso
das estrelas - enxame
tenro e morno de luz -
desce
à cabeça e à fronte

golfa e afaga,
até que, de novo,
um novo sol
retenha a calma
e desça no campo
touro e dia."

(Do livro O tempo, publicado pelo Clube de Poesia, São Paulo.)

Kama Sutra - LXVII

Quando ela fala, uma abelha zumbe, embriaga minha nuca, e minha espinha parece estar besuntada de mel, e sobre ela começam a se mover formigas morosas, lerdas, lentas, enquanto a abelha zumbe, zumbe, e eu espero que ela zumba mais, mais, mais, e que as formigas continuem a se mover morosas, lerdas, lentas, enquanto mel houver.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Do amor

Que o amor seja um vício se entende, e se perdoa. O que o amor não pode, nunca, é ser um hábito. Antes o manicômio que o matrimônio.

A idade do amor

É belo o amor quando nasce,
Belo também quando cresce,
E belo quando floresce
Qual se de flor se tratasse.

E é triste quando enfraquece,
Como se ninguém o amasse
Ou dele ninguém cuidasse,
E malignamente adoece.

E dói vê-lo no final,
Já um doente terminal,
Anêmico e agonizante.

Que possa o amor belo ser
E, viva quanto viver,
Não viva mais que o bastante.

Pensares

Sou feliz, sou muito, sim,
Quando penso em ti e quando,
Ao estar em ti pensando,
Penso que pensas em mim.

Solidão

Aproxima-te devagar. Cada dia dois passos, não mais. Deixa que se acostumem com tua presença. A visão deles é cansada, como a tua, e talvez demorem para notar que tens rugas também. Um dia notarão, numa tarde ou manhã em que houver faltado ou morrido um deles, e te convidarão para jogar. Deves estar pronto para ser agradável. Talvez consigas e te arranjem um lugar fixo na mesa. É provável que até venhas a gostar de dominó.

Um soneto de Fernando Pessoa

"AH, UM SONETO...

Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou agora
Com almirante em vez de sensação?..."

(Do livro Poesia de Fernando Pessoa, coleção Nossos Clássicos, publicado pela Livraria Agir Editora.)

A hora

Deixa o amor para os jovens. Eles têm todo o tempo para tolices. Não te amofines pensando no que eles estarão fazendo agora. É quase meia-noite, hora de tomares os remédios e ires dormir.

Garoto

Quando se vê no espelho, pálido e enrugado, acha espantoso estar conseguindo respirar, ainda. No entanto, à noite, com o coração sobressaltado como o de um garoto que vai fazer uma travessura, escreve sonetos de amor.

RSVP

... até que um dia o amor se transformou num hábito, e as palavras que antes saíam como lava dos lábios apaixonados são hoje escritas num papel fino, timbrado, e colocadas num envelope. São poucas, sempre, e seguem estritamente as normas da cortesia.

As palavras do amor

No início, as palavras do amor jorravam como a agitada água de uma cachoeira. Era formidável ouvi-las e ver a espuma à qual o sol dava caprichosos matizes. Hoje elas continuam iguais, mas os ouvidos, já cansados de seu fragor, as recebem como se fossem as engroladas e débeis frases de um bêbado num bar vazio, de madrugada, contando uma história da qual nem ele se recorda.

Modo de falar

Sua frase preferida é "nunca eu falo sério". Ele a ouve há muitos anos e até hoje não sabe se esse não falar sério vale quando ela diz nunca falar sério.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Sonhos de um letômano

Atira-se no metrô,
Pula da ponte estaiada,
E, num impulso retrô,
Afoga-se na enseada.

Literateiro

Fracassaste, e falas tanto do teu fracasso, e o contas, e o recontas, e o reconstróis tão meticulosamente, tão entusiasticamente, com tanta presunção artística, que é como se esperasses, a cada nova versão, uma explosão de aplausos para o sucesso do teu infortúnio.

Terra

Sou terra
nada tenho de especial

Achar-me bela
exige um prodígio poético
um esforço intelectual

Sem mim é certo
não poderia a rosa existir

Mas se eu disser
isso a ela
ela gargalhará

E crueldade maior não há
do que uma rosa gargalhando
do que a beleza
zombando da fealdade.

Só um dia

Esplêndida juventude,
Quando vens a nos faltar,
Não há dom nem virtude
Que possam te compensar.

Brilhas um momento ou dois
Porém teu brilho é tanto
Que avivas o desencanto
E as trevas que vêm depois.

Hoje eu só te vejo quando
Os jovens, por mim passando,
Sorriem como eu sorria,

E penso, para magoá-los,
Em ser cruel e avisá-los
De que só duras um dia.

Receita

Com dois quartetos
dois tercetos e algumas rimas
tu podes fazer
um soneto parnasiano
uma obra-prima

E com três quartetos
e um dístico final
tu podes fazer
um soneto shakespeariano
uma obra sem igual

Coragem, meu rapaz, coragem,
mostra que tu és capaz
de contar doze sílabas
sem nenhuma transgressão
ao tratado de metrificação

E visto que Musas já não há
talvez te seja útil
deixar crescer um cavanhaque
comprar um monóculo um fraque
e te vestires como Olavo Bilac.

Cão e gato

Eu não consigo entender,
Se as afeições que me movem
São essas que te comovem,
Como pode acontecer

Estarmos sempre a brigar,
Assim como cão e gato,
Por nada e por qualquer fato,
Em todo e qualquer lugar.

Me move o amor, e também
Por ele tu és movida.
Para nós, o amor é a vida

E tudo estaria bem
Se o amor que te dou, querida,
Não o desses a ninguém.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Tudo tão certo

Melhor só sermos amigos.
Tão simples, tão conveniente,
Nada de sustos, perigos,
Tudo tão claro e decente.

Tudo assim, público e certo,
Nenhuma trama ou disfarce,
Tudo totalmente aberto,
Nada com que envergonhar-se.

Que entre nós, seja onde for,
Haja a correta distância
Entre a amizade e o amor.

E, seja qual for minha ânsia,
Minha obediente mão não
Toque senão tua mão.

Três anos

Dezembro traz ao seu peito
O sentimento doído
Daquele sonho desfeito,
Seu Paraíso Perdido.

Se do metrô ele desce,
Depois sobe a escadaria,
Tudo ainda hoje lhe parece
Como era naquele dia.

Na livraria, as estantes
Parecem as mesmas de antes,
E são; e o resto também.

Três anos já se passaram
E as coisas se conservaram,
Mas espere - falta alguém.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Sobre o coração

Ter pena do coração
Quando o amor o suplicia
E lhe impõe dor e agonia,
Vai contra toda razão.

Viver ele apenas sabe
Estando muito infeliz.
Ser venturoso e feliz
É coisa que não lhe cabe.

Ao coração não apraz
Em calma ficar, e em paz
O seu amor desfrutar.

Se vive assim, em conforto,
O coração está morto
Muito antes de morto estar.

Orgulho

A prosa é o seu forte. Orgulha-se dela. Até sua poesia é prosaica.

Uma quadrinha para ti

Gostaria de te mandar
uma quadrinha
bem simples
bem doce
que no caminho se transformasse
e a pudesses acolher
como se fosse
uma gata
uma cachorrinha
e miasse
ou latisse
tão ternamente para ti
que ligarias
para agradecer
e me dizer
que em vez de quadrinhas
eu te mandasse sempre
ou gatas ou cachorrinhas.

Soneto da igualdade do amor

Se estou um amor louvando,
Canto todos os amores,
E uma flor, se a estou cantando,
Vale por todas as flores.

Esse é o meu processo usual
E com ele é que vejo tudo,
No simples vejo o essencial,
E no miúdo o graúdo.

Em ti eu louvo as mulheres,
Todas, ou, se tu preferes,
Aquelas que, fascinantes

Como tu, merecem ter
O privilégio de ser
Chamadas de semelhantes.

Soneto da memória das batalhas

Os dias todos, os meses,
Os anos que se passaram
Em mim a marca deixaram
Das lutas e dos reveses.

Lutas bisonhas, as minhas,
Batalhas chochas, inglórias,
Sem feitos e sem vitórias,
E com derrotas mesquinhas.

Triste é ter tanto lutado,
E tanto ter batalhado
Desde o início até aqui

E chagas nem troféus ter
Que possam por mim dizer
Que lutei, que combati.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Soneto da causa de viver

Queres saber por que vivo
E eu só lhe posso dizer
Que é pelo mesmo motivo
Pelo qual hei de morrer.

Dou-te um exemplo, guria:
Olha para os teus cabelos
E pensa quanta alegria
Eles me dão sempre, ao vê-los.

Pensa em teus olhos também,
No teu sorriso, e no bem
Que olhá-los provoca em mim.

E diz se vou suportar
Se um dia não os olhar
Como os olho agora, assim.

O encontro

Havia de ser proibido,
Como um velhote assaltado,
Um mausoléu arrombado
Ou um garoto agredido.

Havia de ser pecado,
Como um resgate exigido
Um depoimento extorquido
Ou um dinheiro furtado.

Mas fomos puros, ah, fomos,
Mais do que em verdade somos,
E, sem uma explicação,

Nada de nada fizemos
E o máximo que nos demos
Foi um beijo de raspão.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Uma tristeza assim

É preciso ter vocação para a tristeza, certo jeito, paciência. Ela há de ser cultivada sem pressa e regada por poucas lágrimas, para crescer silenciosamente, quase anônima, de tal forma que, quando tiver ocupado nosso coração, só então percebamos que não sobrou nenhum dos espaços outrora habitados pelo amor. Uma tristeza assim, serena, abençoada, é um dos dois únicos substitutos para o amor. O outro é a morte.

No dia

Que eu possa à Morte dizer,
No dia em que ela chegar,
Que, ansioso para morrer,
Eu me cansei de esperar.

E que cheguei a temer,
A ponto de me alarmar,
Que, por um erro ocorrer,
Não me viesse ela buscar.

E vou pedir-lhe perdão
Por não ter me antecipado
E não ter, sendo um poltrão,

Um refém da covardia,
A ela inteiro me entregado,
Mais cedo, quando podia.

Soneto da inutilidade

Inúteis são tuas preces
E todos os sacrifícios
Que agora tu ofereces,
Assim como teus auspícios.

Se formulado os tivesses
Naqueles tempos propícios,
Creio que hoje tu pudesses
Abster-te desses ofícios.

Agora que o amor morreu,
E que nem tu e nem eu
Podemos ressuscitá-lo,

Melhor será se tu fores
Apanhar algumas flores
E dignamente enterrá-lo.

Falando grego

Nós dois não fomos feitos para nós.
Se digo "sim" entendes "não", e "não"
Entendo quando dizes "sim". Então,
Que tal se nós calarmos nossa voz?

Um poema de Fernando Pessoa

"CHOVE? NENHUMA CHUVA CAI

Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro em mim.
Se escuto, alguém dentro em mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior,
Ó céu mais útil que o meu pranto?"

(Do livro Poesia de Fernando Pessoa, coleção Nossos Clássicos, Livraria Agir Editora.)

Metáforas emboloradas

Sou um escritor antigo
De temas simples e amenos.
Nos cabelos ouro e trigo
Eu vejo - nos teus, ao menos.

Nos lábios eu vejo rosas
Acesas ao sol-nascente,
E são sempre mais formosas
As tuas, naturalmente.

E ao teus olhos contemplar
Eu penso no céu, no mar.
Sei que é um lugar-comum,

Mas velhos poetas assim
Enxergam o mundo e, enfim,
Eu sou apenas mais um.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Um poema de Elizabeth Bishop

"O BANHO DE XAMPU

"Os liquens - silenciosas explosões
nas pedras - crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado
com os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha se alterado.

E como o céu há de nos dar guarida
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.

No teu cabelo brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua."

(Do livro Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop, publicado pela Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto.)

Procon

Dei-me todo, ou assim cri,
Até que ontem me ligaste
E minha alma reclamaste,
Dizendo que estava aqui.

Dodecassílabo voador

O velho poeta parnasiano estava lendo o último verso de um soneto de sua autoria quando espirrou e fez voar pelo auditório gotas de saliva e cintilantes vogais de sua chave de ouro. A parte de cima da dentadura cravou-se raivosamente no braço de um rapaz que segurava o Macunaíma de Mário de Andrade; a parte de baixo, sem o mesmo espírito de revanche parnasiano, contentou-se em mergulhar no copo de água posto à disposição do poeta. Tentou flutuar mas, emaranhando-se nas doze sílabas da chave de ouro e no seu hemistíquio, foi ao fundo.

Cicatriz

Já no primeiro encontro ele notou os vestígios de uma cicatriz de cesariana. Como podia saber que por ali saíra, vinte anos antes, o homem que viria a matá-lo?

Declaração

O amor começa a morrer no instante em que é declarado. Os primeiros homens mantiveram a continuidade da espécie, mesmo sem conhecer com quantas frases se fazia um período. Imagino que gesticulassem, se tocassem, se apalpassem. De nada mais precisavam. Dirão que isso era manifestação de sexo, não de amor. E alguém retrucará, perguntando: mas não é isso mesmo que o amor é hoje?

Amigos

Ela deixou a mão no braço dele: "Amigos, então?" Ele começou a apertar os dedos dela, primeiro de leve, depois com mais força. Houve um momento em que ela olhou para ele com olhos diferentes, indecisos, mas a pequena chama que ele conseguira acender nela não se acendeu nele. "Amigos, então?", ela repetiu. "Amigos", ele disse. Sobre a mesa da lanchonete onde estavam, na calçada, a noite estendeu suas primeiras teias.

Sentimentos

Não sei dizer-lhe por que
Pude mudar tanto assim
E aquele amor por você
Tornar piedade por mim.

Um soneto de Raul de Leôni

"DECADÊNCIA

Afinal, é o costume de viver
Que nos faz ir vivendo para a frente.
Nenhuma outra intenção, mas, simplesmente
O hábito melancólico de ser...

Vai-se vivendo... é o vício de viver...
E se esse vício dá qualquer prazer à gente,
Como todo prazer vicioso é triste doente,
Porque o Vício é a doença do Prazer...

Vai-se vivendo... vive-se demais,
E um dia chega em que tudo que somos
É apenas a saudade do que fomos...

Vai-se vivendo... e muitas vezes nem sentimos
Que somos sombras, que já não somos mais nada
Do que os sobreviventes de nós mesmos!..."

(Do livro Textos escolhidos de Raul de Leôni, coleção Nossos Clássicos, publicado pela Livraria Agir Editora.)

Pássaros velhos

Os poetas morriam cedo, aos vinte, aos vinte e um. Isso era o certo. Poetas maduros são frutos apodrecidos, são bufões de ceroula e bengala. Quem há de aceitar anjos de bigode e cabelos brancos, fazendo gargarejo uma hora antes de declamar estrofes mofadas na associação de moradores do bairro? Quem há de tolerar ouvir esses macróbios de caules murchos, esses guerreiros cujas espadas apontam lastimavelmente para o chão, chamando ainda as Musas? São embusteiros, todos, e pensam disfarçar a decrepitude com gorjeios de terceira mão. Que, assim como eu, morram secos e amaldiçoados todos os que, não guardando dela mais que uma lembrança, simulam ter a juventude ainda viva e acesa no coração. Devotem-se à filosofia ou à religião e deixem de bolinar a poesia.

Tática

Apregoamos nosso fracasso mais do que exaltaríamos nosso sucesso, com a esperança de que os mentirosos de sempre digam não concordar de maneira nenhuma com a nossa opinião.

Duas estrofes de Gustavo Adolfo Bécquer

"A qué me lo decís? Lo sé: es mudable,
es altanera y vana y caprichosa;
antes que el sentimiento de su alma
brotará el agua de la estéril roca.

Sé que en su corazón, nido de sierpes,
no hay una fibra que al amor responda;
que es una estatua inanimada...; pero...
es tan hermosa!

domingo, 2 de dezembro de 2012

Um soneto de Raul de Leôni

"INGRATIDÃO

Nunca mais me esqueci!... Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança...
Cresceu... cresceu... e, aos poucos, suavemente,
Pousou os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança...

Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,

Como aquela magnífica amendoeira,
E florescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio..."

(Do livro Textos escolhidos de Raul de Leôni, publicado pela Livraria Agir Editora.)

Um soneto de Cruz e Sousa

"VIDA OBSCURA

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os seres.
Embriagado, tonto de prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste no silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!"

(Do livro Poesia de Cruz e Sousa, coleção Nossos Clássicos, publicado pela Livraria Agir Editora.)

O vaso

Boas ideias não fazem um bom poema. Pensamentos, menos ainda. Um vaso de porcelana artisticamente esmaltado, com perfeita geometria, não é um poema. O mesmo vaso, estilhaçado, pode ser.

Em paz

Ainda uma semana atrás
Tinha amor, tinha esperança.
Hoje de tudo descansa,
Plantado na terra, em paz.

Brincadeira boba

Brincamos com o amor
tratamos dele
como se fosse um idiota
que só soubesse babar
falamos mal dele
pelas costas
pusemos-lhe apelidos
jogamos-lhe pedras escondidos
rimos dele
até gargalhar

Mentimos para ele
dele fizemos
e desfizemos
pedimos que sumisse
e por favor desistisse
de nos importunar

Um dia finalmente
o recado ele entendeu
e resolveu se afastar
e agora que dele precisamos
já tantas vezes o chamamos
e tantas vezes imploramos
que talvez seja hora de aceitar
que o amor é vingativo
que o amor é rancoroso
que o amor não sabe brincar.


Liberdade

Chegou o tempo de seres mais abjeto, tão mais abjeto que tua alma deixe de ser compassiva e veja que é hora, enfim, de se libertar de ti.

Regressão

Se sabem o que eu fui ontem,
Permitam-me dizer antes:
Imploro que só me contem
Se fui Camões ou Cervantes.

Se não falha a memória...

... é assim um dos sonetos em que Camões celebrou o amor, quando este, segundo dizem os pesquisadores, existiu.

"Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela, só, por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la,
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começou a servir mais sete anos,
Dizendo: "Mais servira, se não fora
Para tão grande amor tão curta a vida."

Fruto proibido

Para Olavo Bilac, deveria ser proibido morrer num dia belo e ensolarado. Não disse, que me lembre, se seria mais proibido ainda morrer num dia que, além de belo e ensolarado, fosse um domingo. Olho pela janela e penso em quantos irão transgredir a norma hoje.

Um soneto de Camões

Alguns poemas nos comovem tão fundamente que se marcam na memória e nos acompanham pela vida. É o caso deste, a salvo de qualquer Alzheimer, Parkinson ou ingratidão literária. Dispensar-me de ir à estante para localizá-lo e transcrevê-lo não é uma jactância, tão comum nos velhotes que se gabam de ser letrados. É uma homenagem, como se Camões dela precisasse...

"Alma minha gentil que te partiste,
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo onde subiste
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa sem remédio de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te
Quão cedo dos meus olhos te levou."

Quatro ou cinco

Ter muitos amigos, cem ou duzentos, e fazer-lhes a gentileza de morrer à meia-noite de domingo, sem privá-los da sagrada pizza e a tempo de eles conseguirem, segunda de manhã, licença no trabalho para nos ver pela última vez, ainda que, dos cem ou duzentos, só quatro ou cinco apareçam, e todos já se desculpando por precisarem voltar logo ao escritório.

Um poema de Fernando Pessoa

"AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração."

(Do livro Poesia de Fernando Pessoa, publicado pela Livraria Agir Editora.)

Mais dois poemas de Gustavo Adolfo Bécquer

"Al brillar un relámpago nacemos,
y aún dura su fulgor cuando morimos:
tan corto es el vivir.

La Gloria y el amor tras que corremos
sombras de un sueño son que perseguimos:
despertar es morir."

.....................................................................

"Es un sueño la vida,
pero un sueño febril que dura un punto;
cuando de él se despierta,
se ve que todo es vanidad y humo...

Ojalá fuera un sueño
muy largo y muy profundo;
un sueño que durara hasta la muerte!...
Yo soñaría con mi amor y el tuyo."

(Do livro "Rimas", publicado pela Aguilar, Madrid.)

sábado, 1 de dezembro de 2012

Essas coisinhas

Duas boas coisas
o amor lhe fez:
foi vegetariano -
embora só por um ano,
e foi poeta -
embora só por um mês

No mais, só miudezas:
pequenas alegrias
escassas tristezas
um pouquinho disso
daquilo um tantinho
coisas todas normais

Mas por elas
pela lembrança delas
ele sorri ainda
e ainda chora -
sorri pouco
e chora demais.

Ser escritor

Ser escritor
não é mais como antes

Escrever continua igual
uns escritores escrevem bem
alguns mal escrevem
e outros escrevem muito mal

O que acontece agora
e não acontecia antes
é que todos são
escritores itinerantes
caixeiros-viajantes
sempre com o passaporte na mão

Mal esvaziam a mala
precisam rearrumá-la
reenchê-la de livros
e de novo partir
porque há palestras a dar
cursos a ministrar
simpósios a presidir
reunião após reunião
em Portugal
na Alemanha
na Espanha
e no Japão

Os livros são hoje escritos
em hotéis de cinco estrelas
em saguões de aeroportos
nas pernas nas coxas
em assentos de aviões

Pobres escritores
adiando a obra-prima
o romance ideal
escrevendo somente
no espaço entre
um continente
e outro continente
entre um evento
e outro evento
em todas essas cidades
nessa única cidade
desse mundo global.

Injustiça

Há dias em que fechar os olhos bem fechados e não morrer é, mais do que um fato normal, uma injustiça.

Há e há

Há mortos tão vivos
com sua bela feição
e há vivos tão mortos
que só lhes falta o caixão.

Por que não?

Nossas mãos talvez tivessem se entendido e, depois delas, os lábios. Mas nós dois as mantivemos tão afastadas e receosas, tão calados e vigiados... A razão nos reprimiu, e nossas mãos e nossos lábios ainda hoje se perguntam por que não ousaram, enquanto nos olhos, anuviados pelas lágrimas, não há mais nenhum vestígio da esperança que havia naquela tarde.

Máscara

Convém dizer boa noite, ainda, boa tarde e bom dia, e lamentar não se ter um chapéu para tirá-lo em elegante mesura. Convém ser amável com os outros, e continuar sorrindo, para que ninguém veja a nossa verdadeira face, roída pelo infortúnio e marcada pelas calamidades do amor.

A trinca

Assim como os corretores de imóveis, quem faz uma jura de amor nunca admitirá que existe uma trinca, uma pequena trinca que algum dia se transformará em uma enorme e imperdoável rachadura.

Solução

Com a dose certa de coragem e um instrumento adequado (nos livros de Agatha Christie encontram-se vários exemplos), podes não acabar com o mundo, que detestas, mas podes privar-te de vê-lo.

Catástrofe

A imprensa hoje noticiou
Que o fim do mundo está perto.
Deve ser erro, decerto:
Meu mundo há muito acabou.

Dois poemas de Gustavo Adolfo Bécquer

"Es cuestión de palabras, y, no obstante,
ni tú ni yo jamás,
después de lo pasado, convendremos
en quién la culpa está.

Lástima que el Amor un diccionario
no tenga dónde hallar
cuándo el orgullo es simplesmente orgullo
y cuándo es dignidad!"

.........................................................................

"Como en un libro abierto,
leo de tus pupilas en el fondo;
a qué fingir el labio
risas que se desmienten en los ojos?

Llora! No te avergüences
de confesar que me quisiste un poco.
Llora! Nadie nos mira.
Ya ves; yo soy un hombre..., y también lloro!

(Do livro Rimas, publicado pela Aguilar, Madrid.)

Sinto. Sentes?

Sinto ainda em mim o teu gosto,
Aquele que já sabias
Que nunca mais me darias.
E tu? Sentes meu desgosto?

O quê?

Queres que eu lembre o passado,
Falas até de um amor.
Perdoa-me, por favor,
Mas eu não estou lembrado.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Algumas estrofes de Alberto de Oliveira

"O SONHO DE BERTA

Soltando o cabelo de ouro
Ao deitar-se, ondeante e farto,
Viu Berta entrar-lhe no quarto
Um besouro.

"Já agora" - exclamara ela -
"Não me levanto, é capricho,
Para mostrar a este bicho
A janela;

Nem da toalha um açoite
farei contra este besouro...
E sem mais, senhor agouro,
Boa noite!"

Despiu-se. Cândida e lisa,
Quente ainda de sua pele
Tirou, mesmo diante dele,
A camisa.

Deitou-se. É um mimo de Berta
O corpo, que a vista inflama,
Assim como está na cama
Descoberta.

Cerra os olhos. Entretanto
O besouro, tonto, inquieto,
Zumbe da alcova no teto,
Zumbe a um canto,

Ao pé do espelho inclinado
Zumbe, zumbe na parede,
E de Berta agora - vede! -
Zumbe ao lado.

Ai dela! rente ao cabelo
Sente-lhe as asas... que inferno!
Quem a livra desse eterno
Pesadelo?

Ai dela! - Noite sombria,
As tardas horas apressa!
A luz da aurora apareça!
Venha o dia!

Sobre o leito, em que deitada
Está, volta-se ofegante
Berta insone, a cada instante,
De assustada.

Pobre Berta! enfim sucumbe,
Desmaia... Entretanto, às voltas,
O besouro de asas soltas
Zumbe, zumbe..."

(Do livro Poesia de Alberto de Oliveira, coleção Nossos Clássicos, da Livraria Agir Editora.)

Soneto da identidade

Quando a ti eu me amarrava
E teu chicote pedia,
Minha alma me censurava
E honra de mim exigia.

Livre hoje do teu feitiço
E dono da própria sorte,
Minha vida agora é isso,
E isso é bem pior do que a morte.

Como eu hoje me arrependo
De não estar mais me doendo
Tudo aquilo que me doeu

E me culpo porque agora
Quem sofre por ti e chora
Não sou eu, ah, não sou eu.


Menos

Já devias saber
que o amor pode te dar
aflição agonia
rimas pobres
desilusão melancolia
mas nunca te dará
ainda que venhas a implorar
o dom da poesia.

O poeta em sua torre

Mesmo que viessem a ti
Os berros do matadouro,
Continuarias aí,
Pensando em chaves de ouro.

Um soneto de Mário de Andrade

"Tanta lágrima hei já, Senhora minha,
Derramado dos olhos sofredores,
Que se foram com elas meus ardores
E a ânsia de amar que de teus dons me vinha.

Todo o pranto chorei. Tudo o que tinha
Caiu-me ao peito cheio de esplendores,
E em vez de aí formar terras melhores,
Tornou minha alma sáfara e maninha.

E foi tal o chorar por mim vertido,
E tais as dores, tantas as tristezas,
Que me arrancou do peito vossa graça,

Que de muito perder, tudo hei perdido;
Não vejo mais surpresa nas surpresas
E nem sofrer sei mais, por mor desgraça."

(Do livro Poesia de Mário de Andrade, coleção Nossos Clássicos, da Livraria Agir Editora.)

Um poema de Fernando Pessoa

"O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado -
Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe."

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malha que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe."

(Do livro Poesia de Fernando Pessoa, coleção Nossos Clássicos, Livraria Agir Editora.)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Um soneto de Antero de Quental

"NO TURBILHÃO

No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
Arrebatado em vastos turbilhões...

Numa espiral, de estranhas contorções,
E donde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições...

- Fantasmas de mim mesmo e de minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!..."

(Do livro Poesia e prosa, de Antero de Quental, publicado pela Livraria Agir Editora.)

Um poema de Mário de Sá-Carneiro

"FIM

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!"

(Do livro Poesia de Mário de Sá-Carneiro, coleção Nossos Clássicos, publicado pela Livraria Agir Editora.)

Animais e homens

Trecho do livro Elizabeth Costello, de J.M. Coetzee:

"As pesssoas reclamam que tratamos os animais como objetos, mas na verdade tratamos os animais como prisioneiros de guerra. Você sabia que, quando foram abertos os primeiros zoológicos, os tratadores tinham de proteger os animais dos ataques dos espectadores? Os espectadores sentiam que os animais estavam ali para serem insultados e humilhados, como prisioneiros em uma marcha triunfal. Já promovemos uma guerra contra os animais, que chamamos de caça, embora, na verdade, guerra e caça sejam a mesma coisa (Aristóteles percebeu isso claramente). Essa guerra foi travada ao longo de milhões de anos. Só a vencemos definitivamente faz algumas centenas de anos, quando inventamos as armas de fogo. Só quando a vitória foi absoluta é que pudemos nos permitir cultivar a compaixão. Mas a nossa compaixão é muito rarefeita. Por baixo dela existe uma atitude mais primitiva. O prisioneiro de guerra não pertence à nossa tribo. Podemos fazer o que quisermos com ele. Podemos sacrificá-lo aos nossos deuses. Podemos cortar seu pescoço, arrancar seu coração, atirá-lo ao fogo. Não existe lei quando se fala de prisioneiros de guerra."

(Elizabeth Costello é um alter ego de Coetzee, uma personagem de estilo panfletário por intermédio da qual ele reflete sobre problemas essenciais sem tirar os pés da ficção, sem incorrer no ensaio puro e simples. O livro foi publicado em 2004 pela Companhia das Letras, em tradução de José Rubens Siqueira.)

"A fantástica vida breve de Oscar Wao"

Se isto fosse um diário daqueles clássicos, com anotações, eu escreveria: "Dia maravilhosamente justificado pela leitura de A fantástica vida breve de Oscar Wao, de Junot Díaz." Eu comecei a ler o romance três semanas atrás e por algumas páginas cheguei a pensar que se tratasse de mais um desses "fenômenos" criados mais pelo estardalhaço da mídia do que pelo valor literário. Quase parei ali pela página 80. Felizmente, continuei. Lembro-me dos adjetivos que às vezes aparecem na contracapa de certos romances - notável, extraordinário, magnífico, único - e quase nunca traduzem a realidade. No caso de A fantástica vida breve de Oscar Wao, todos eles são cabíveis, e até modestos.

Kama Sutra - LXVI

Na lanchonete, a mulher, depois de quatro tentativas, conseguiu puxar com a língua uma migalha de pão do lábio superior. Ele, na mesa vizinha, acompanhando as quatro rápidas fisgadas, sentiu uma inquietação morna, igual à da tarde, anos antes, em que vira na aula de educação física uma garota tirar meticulosamente do joelho uma casca de ferida.

Natalina

No Natal eu te mandarei uma mensagem. Serão palavras simples, dessas de ocasião, esses carimbos sociais cuja tinta já quase não se enxerga, um recado de amigo para amiga. E no entanto meu coração amordaçado tentará gritar socorro, como um sequestrado num porão.

Assim mesmo

Não, eu não exagerei nada. Os outros é que não souberam ver-te como és.

Propostas

As flores não têm ouvidos. Se tivessem, até as brancas ficariam rubras, com as propostas que o vento lhes faz.

Pernoite

Na primeira vez em que o viram deitado ao pé do túmulo do filho, pensaram em chamar a polícia. Agora se acostumaram com a sua presença e o cumprimentam quando chega. Um dia se cansará, imaginam. Já faz mais de um mês que todo fim de tarde ele aparece, com o cobertor e o travesseiro.

Acompanhante

Quando, já com o doente dentro, a ambulância saiu, o cachorro da casa pôs-se a correr atrás dela. O doente voltou na manhã seguinte. O cão nunca mais apareceu.

Sala D

A menina de quatro anos entrou com o pai e a mãe, sorriu para os parentes, e também para os desconhecidos, e perguntou: "Por que toda essa gente veio ver o vô dormir?"