terça-feira, 31 de janeiro de 2012

La vie en rose

Cantar a vida, exaltá-la,
Mentir a torto e a direito,
Não lhe encontrar um defeito,
Louvá-la sempre, cantá-la.

Nunca mais

Pensa sempre no cruel paradoxo que Borges enfrentou quando Deus lhe deu a direção da biblioteca de Buenos Aires, pondo todos os livros à sua disposição, e ao mesmo tempo lhe impôs a cegueira. A ele ocorreu coisa similar. O amor lhe acenou da outra margem do rio quando ele já não podia alcançá-la a nado, e nem a pé, mesmo se a benevolente Providência secasse as águas. Seus passos já estavam, então, todos destinados a trilhar o caminho que leva à morte.

Nova imagem

A doença acabou com seu orgulho, suas presunções, e mudou a imagem que tinha de si mesmo. A atual é a de um pássaro velho que gostaria de estar morto para não precisar ouvir os pássaros jovens cantando.

Um momento

Chega um momento em que não
Se espera nada de nada,
Em que a vida é uma maçada
E a morte, uma aspiração.

Questão de justiça

Cantamos já tanto a rosa
a flor formosa
o homem escrupuloso
o jardim oloroso
e a mulher majestosa

Cantemos agora a erva daninha
a mente mesquinha
o cara escroto
o cheiro de esgoto
a puta e a putinha.

Fogo e flor

O tempo não me afetou por igual. No coração arde o fogo da juventude quando te imagino ou vejo, mas a minha mão te estende uma flor murcha.

Verde, ainda

Eu te agradeço. Não me fizeste crescer, nem amadurecer. Contigo não adquiri a consciência de nada, a não ser a de que, para o mal ou para o bem, eu continuo imutavelmente infantil.

Fechado

Se houvesses feito o que tantas vezes te propus aqui, se tivesses sido a meta alcançada e não o caminho para ela, há muito estaria desfeito o encanto, como se desfazem todos, eu estaria incapacitado para a emoção e para a poesia e seria preciso estar abrindo hoje o blog, como se faz com os imóveis, com os tristes "aluga-se" ou "vende-se", ou então com o seco e definitivo "fechado". Eu te agradeço por seres como és, tão distante e inatingível.

Marcas

Foram anos, tantos. Esperavas que não deixassem marcas, se às vezes um toque recíproco e casual de dedos é lembrado tanto tempo depois, assim como a árvore recorda a passagem de um vento morno em certa noite de primavera? Podes não vê-las, podes até não tê-las em ti, mas em mim as marcas do amor estão vivas.

Aquele outro sono

Dormi tão bem hoje, depois de tantas noites em claro, que foi inevitável pensar naquele outro sono, aquele deleitoso que nos deixará suspensos, fora do tempo e do espaço.

Perdas ganhas

A economia não é compreendida nem pelos economistas. Mas daí a dizer, como os jornais, que transgredir normas de trânsito rende multas ao motorista ou que aqueles que aplicam mal o dinheiro ganham dores de cabeça...

Ciúme

"Faz um ano e meio, este mês. Foi como eu te disse, Vera. No começo, era como se tivesse morrido um parente, sei lá, meu pai, minha mãe. Eu pensei que ele fosse voltar, mas cadê? E tudo por ciúme. Eu não devia ter posto a saia vermelha naquele dia. Ele já tinha dito que não gostava, que ela era escandalosa. Mas eu, minha amiga..."

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

E nunca

Eu sempre fui tolo assim,
Neguei-me, me apequenei,
E nunca me perguntei
Se tu és digna de mim.

Chaga

Aqueles que o amor escolheu têm no corpo uma chaga, visível apenas em noites de lua plena, e que, quando tocada pelas mãos certas, se transforma primeiro numa rosa e depois numa estrela. A quem beija a rosa e a estrela é reservado o segredo da bem-aventurança.

Melhor será

Se danos não te causar, se feridas não te abrir, se não te sangrar, se não te dessangrar, se não te romper, se não te esvaziar, se não te atirar ao chão em convulsões, melhor será substituíres o amor por um dia na praia ou uma noite no parque de diversões.

Tristes como

Do amor ficarão as lembranças, tristes como a neve caindo sobre o caixão branco de uma menina.

A glória de morrer por amor

Porém é quase uma felicidade lembrar que te amei tanto. Minha mente, sujeita a devaneios, me imagina pálido, mas sorrindo, com o peito rubro de sangue como uma rosa assassinada, e o punhal enterrado pelo amor faiscando glorioso, cantando vitória sob o incendiado sol da tarde.

Hão de ser

Hão de ser longos os dias
E neles hão de caber
As dores, as agonias
E os ímpetos de morrer.

Novilha

Tu te cansaste dos poemas a ti dedicados. O que podem versos falando de ouro exprimir além de alguns reflexos dourados? Te cansaste de ser como rainha aclamada, a princesas comparada, e bocejas hoje, como se fosses a mais mouca das criadas. Aborrecem-te as palavras que te enaltecem, as estrofes que te exaltam, e preferirias ser, sentada no feno, uma camponesa complacente com os gracejos de um carroceiro, boçal entre os boçais, dotado porém de braços capazes de esmagar uma novilha e fazê-la mugir de amor.

Como um rio

Para aqueles a quem, estando em coma dois ou três anos num hospital, só resta a morte, o tempo passa como um riacho imobilizado diante de uma casa, numa tela pendurada na parede.

Cerimônia

Que esteja tudo adequado:
As quatro velas, as flores,
Bem distribuídas as dores
E o morto bem-comportado.

Humor negro

A viúva, olhando o marido enquanto o maquilador o preparava para o funeral: "Dá pra deixar parecido com aquele... como é o nome... o Tom Hanks, sabe, aquele?"

Sobre o amor

Sobre o amor morto cresceram
Arbustos tristes, mirrados,
E ventos frios gemeram,
Soturnos, desalentados.

A janela

Chegou o momento em que, tendo padecido atrozmente com a doença do amor, ele sentiu que começava a convalescer e, pela primeira vez em muito tempo, agradou-lhe ir até a janela e abri-la.

O nome do amor

Ele continuava gritando o nome do amor quando lhe puseram a camisa de força e o enfiaram na ambulância. Um dos dois enfermeiros, novato, impressionou-se com os berros cada vez mais agoniados e disse ao outro se eram comuns internações por problemas de amor. "Pelo menos duas por semana", respondeu o segundo. "São os que mais fazem escândalo. Mas você vai ver. Lá na clínica a gente dá um trato neles e eles se acalmam num instante. Aí eles choram, que nem criancinhas. É tudo gente sem fibra. Sabe de uma coisa? Eu respeito caras que ficam doidos por falta de dinheiro, ou porque são drogados, coisas assim. Mas desta raça aqui, que tem chilique por amor, eu não tenho pena, não. É tratar logo na porrada, no choque, não tem outro jeito. Amor? Tanta gente passando fome e os caras vêm com essa frescura de amor? Comigo não."

domingo, 29 de janeiro de 2012

Deixá-lo

Deixe-o ir, o amor, com aquela máscara de maltrapilho. Não lhe ouça as súplicas, não lhe abra a porta. Negue-lhe pão, recuse-lhe água. Que ele vá vender seu charme a alguém que não o conheça ainda. Deixe-o ir. Se for preciso, atice o cachorro contra ele. Que ele morra de fome, sede e frio. Ah, que possa estar nevando quando ele for embora com aqueles passos traiçoeiros.

A última

A vida oferece milhões de possibilidades. Talvez a mais fascinante seja a última.

Convalescer

Se eu morresse naquele hospital, teria te poupado de dizer tantas amabilidades que eu não mereço, minha amiga. De qualquer forma, obrigado. Convalescer é tão bom, às vezes.

Perguntas

Ela nunca precisou perguntar se ele a amava. Deixava as perguntas para ele, e ele perguntou, ah, quantas vezes perguntou, e pergunta ainda, e ainda espera por uma resposta que jamais virá.

Tão pouco

Um beijo, um abraço, pensava ele. Não mais que isso teria bastado para fazê-lo feliz. Um afago, um dar-se de mãos, um sorriso de vez em quando. No entanto, ele caminhava pela chuva sozinho, querendo encharcar-se, afogar-se, morrer levado pela enxurrada. Como podia alguém negar tão pouco?

O Astolfo deu?

Hoje um jornal traz um título dizendo que a lei seca ganhou uma batalha. As pessoas estão nascendo surdas? Na minha época isso se chamava cacófato. Seria como escrever que o Astolfo deu ou que naquele tempo tinha...

Rota

Seja qual for tua rota,
Seja qual for o teu norte,
Teu fim será a derrota,
Teu porto será a morte.

Capitu

Como pôde uma mudança tão pequena, um corte de sílabas, transformar a insípida Capitolina na excitante Capitu?

Messe

Sei que estes amargos dias
Eu os mereço. Plantei
Rancores e os semeei,
E colho melancolias.

Beleza igual

Beleza jamais existe
Igual à feita de pranto,
De dor e de desencanto,
Beleza imortal e triste.

Do contra

Sou um homem que procura sempre não ver o lado positivo das coisas.

Também

Um dia o amor morreu nele.
Morreu também nesse dia
A velha esperança e aquele
Último fio de alegria.

Contradição

Existe ainda quem queira
Dar ao amor importância,
Dar conteúdo e substância
A essa supina besteira.

Bentinho e Escobar

Não sei se Capitu traiu Bentinho. Se traiu, fez bem. Era o que merecia aquele santarrão. Mas que ela não o tenha traído com Escobar, aquele insosso. Que ela o tenha feito - e muito - com um personagem não mencionado, oculto nas famosas entrelinhas de Machado, e que fosse digno de se afogar naqueles olhos de ressaca.

Louvação

Amor, mereces encômios
Por esses teus bons ofícios:
Tantos mandaste aos hospícios
E tantos aos manicômios...

Fica

Se não se respeita o amor,
Não ficam somente as penas,
E nem as dores apenas,
Fica também o rancor.

sábado, 28 de janeiro de 2012

(f)

Pois foi assim, minha amiga internauta. Consideraste o amor um episódio, alguns meses de troca de e-mails, de telefonemas, de fotos, às vezes de sentimentos pueris. Consideraste o amor algo que se pode conservar no âmbito da internet, um joguinho jogado com o mouse e o teclado. O amor não pode ser um episódio, o amor é sempre todos, a trama toda, todos os capítulos. De qualquer modo, mando-te, cara internauta, uma daquelas flores que, apertando três teclas, tão graciosamente se conseguem. Não conheço nada melhor que se possa obter com uma letra "f" entre parênteses.

Relendo a história

Sejamos francos então:
Por mais que o negue a memória,
Todo "sim" em nossa história
Deverá ser lido "não".

Digamos

Digamos que o amor não tem a importância que habitualmente lhe dão. Digamos, até, que não tem importância nenhuma. Agora é só acreditar.

Um pouco mais

Depois de três anos insanamente dedicados ao amor, ele acha que tudo deu errado porque lhe faltou justamente um pouco mais de insanidade.

Masoquista

O masoquista é aquele que, não conseguindo exercer o sadismo com os outros, é sádico consigo mesmo.

Ao menos um

Se os dois não sofrem, ou ao menos um, será um disparate falar-se em amor.

Antônimos

Das palavras que conheço, o amor é a única que contém mais duas, antônimas uma da outra: vida e morte.

Quando os fizesses

Quando, na primeira manhã, olhaste para os meus olhos dizendo que querias definir se eram verdes ou azuis, já estavas certamente imaginando como eles ficariam quando os fizesses chorar.

Ver embalagem

Bom saber que o amor, assim
Como o perdão e a verdade,
Todos eles têm um fim,
Um prazo de validade.

O amor foi

O amor foi impiedoso comigo. Atirou-me de rosto ao chão, pôs-me o joelho na nuca, supliciou-me, feriu-me, humilhou-me. Não me matou.

Ambidestro

O amor pergunta a você
(Na mão direita um martelo,
Na mão esquerda um cutelo):
"Ei, você prefere o quê?"

Falar ou não

Falar contigo é um tormento. Não falar é um tormento redobrado.

Completo

Chegares a isso tardou,
Mas sabes agora que és
(Foi o amor que te ensinou)
Tonto da cabeça aos pés.

Noite de chuva

Trataste o amor como um jogo de salão numa noite de chuva. Ganhavas uma partida, perdias outra e, enquanto ganhavas e perdias, eu tentava te transmitir algo que insististe em não entender. Na quinta partida, ou na sexta, eu já não olhava para as cartas, olhava para as tuas mãos, que as distribuíam com a mesma displicência com que olhavas para mim. Por algumas vezes as três pequenas palavras estiveram nos meus lábios e quando enfim consegui dizer a primeira - "eu" - tu me interrompeste e, olhando para fora, disseste: "O tempo melhorou." Não era verdade, mas eu me despedi, substituí as duas palavras que teria ainda para te dizer por outras - "boa noite" - e saí para a chuva, para os relâmpagos e para a desolação.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O sentido

A vida é tão ridícula e estúpida que eu não estranharia se o seu sentido fosse esse mesmo: ser ridícula e estúpida.

Boa noite, tristeza

Carregas a tristeza como se ela fosse um troféu. Como te faz bem senti-la no peito desde o momento em que acordas até aquele em que, deitando-se para dormir, lhe dizes boa noite e lhe agradeces, porque sem ela serias só mais um desses tontos que, embriagados de alegria, babam até durante o sonho.

Assunto

Sei que não é bom assunto
Falar de alguém que nos mata,
Mas o amor fez-me defunto
E é disso, aliás, que se trata.

Enquanto

Enquanto sofro as insônias
E amargo as pragas e a peste
Por tudo que me fizeste,
Tu dormes, eu sei, e sonhas.

A porta

Toda noite é assim. De longe vêm o vozerio, as canções, as gargalhadas. Vão se aproximando. Teu coração se alvoroça: quem sabe hoje. Mas sempre seguem adiante as vozes, as notas, os risos. Tu ficas só, sempre: quem sabe amanhã. Mas, no íntimo, tens a certeza de que, se um dia baterem à porta, não a abrirás.

Diz que diz que

Eu digo que você disse,
Você responde que não.
No amor, suprema tolice,
Nunca ninguém tem razão.

As duas ou três

São os últimos passos. O sol, que incendiou o sangue no início da caminhada, ficou para trás, e é bom que seja assim. Venturoso é andar sob a sombra das árvores, e é uma bênção que não haja frutos nelas. O tempo dos frutos passou. A boca, outrora ansiosa por beijos e sumos, hoje se guarda para as duas ou três palavras que dirá no final. Não sabe quais serão essas palavras, mas quer que elas soem claras, e talvez ternas, quando precisarem soar.

Heróis mortos

Sempre tive simpatia pelos heróis que se imolaram pelo amor, que se acabavam em expectativas frustradas e definhavam em madrugadas insones. Sempre tive a compreensão de que a recompensa deles pelo seu martírio amoroso jamais poderia ser a conquista. Aclamadas sejam, cantadas e decantadas, as condessas, as duquesas, as empregadinhas do comércio e as cortesãs que nos romances se deram a todos, menos ao rapaz pálido, ao poeta tuberculoso, ao oficial de cavalaria e ao insignificante escrivão que por elas morreram em duelos do corpo e da alma e aos quais o benevolente destino abençoou, não os deixando descobrir que o prêmio almejado, se recebido, teria não o fulgor de uma estrela, mas o brilho baço de um berloque.

Comparsaria

Minha eficiente comparsa,
Que hábeis nós fomos: pegamos
O amor e tanto o mudamos
Que o transformamos em farsa.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Graças

O tempo, a velhice, o Alzheimer, o Parkinson e a morte acabam com tudo, até com as lembranças mais vivas do amor. Graças a Deus.

Viciados em amor

Aos viciados em amor qualquer noite morna, mesmo sem lua, qualquer sussurro de brisa, ainda que não venha do mar, qualquer farfalhar de seda, qualquer roçar de dedos, quaisquer sons que saiam úmidos de uma boca bastam para mexer com a alma e desarvorá-la.

O amor lá fora

Às vezes o amor ainda passa sob a janela, bem devagar. Há noites em que até assobia e cantarola. O homem, porém, com a luz apagada, finge que está morto. Talvez esteja.

De pedra

Inútil pedir-te ajuda,
De pedra é teu coração,
De pedra áspera e pontuda,
Imune a toda emoção.

Aporrinhação

Que saco tudo isso, toda
Essa angústia que o amor traz.
Cuide de você, rapaz,
E deixe que o amor se foda.

Alguma coisa

Talvez, quando te lembrares de mim - se é que te lembrarás -, tu sintas alguma coisa: por exemplo, vontade de rir.

Homem

Ele era tão forte, sabedor de todas as coisas e de tudo, tão sólido. Um homem. Era o que ele era, aquilo que todas as pessoas deveriam ver quando pensassem num. Era o que as amigas diziam a ela, como era grande sua sorte de tê-lo em casa, sempre ao alcance das mãos, e piscavam: como seria ele à noite, naquela hora em que os homens são mais homens? Ela não dizia, não contava que ele a fazia atingir os cinco estágios do êxtase. Ontem à noite, sozinha no quarto, apertando desalentadamente os seios, chorou ao lembrar que jamais sentirá o que sentia quando as mãos dele se apossavam de seu corpo - aquelas mãos que pareciam de cera, assim como o rosto, naquela manhã em que a chamaram para vê-lo, morto no pronto-socorro.

Testemunha

Já quase não lembro em que ano foi. Sei que era uma manhã, sim, era uma manhã, se bem que tenha sido tão diversa das mais de vinte e cinco mil que vivi, que às vezes penso em ligar para ti, única testemunha, e perguntar se era mesmo manhã aquilo, aquilo tudo que eu jamais conseguirei definir nem esquecer. Não ligarei. Não atenderias.

Balanço

Como tudo agora são números e porcentagens, iniciei hoje nossa contabilidade sentimental. Coloquei num lado o mal que me fizeste e no outro o bem que não me fizeste e ia começar a juntar algarismos quando o coração me alertou que se de amor se trata não há lugar para mesquinharias.

O certificado

Num verso admirável, Boris Pasternak diz que viver não é passear por um jardim. Porém os tipos aos quais Fernando Pessoa se referia como aqueles que nunca reconhecem ter levado porrada estão por aí, essa súcia de bobocas dispostos a garantir que viver é exatamente como passear por um jardim florido e, se duvidarmos, sacarão do bolso, na hora, um certificado de felicidade plena e o esfregarão em nossa cara.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Parágrafo final

"Por essas coisas todas, minha querida, hoje resolvi dizer-lhe isto: você contou com a minha ajuda, sim, mas, se a alguém cabe mérito por meus olhos tristes e minha alma desesperançada, é a você."

Meu erro

Meu erro não foi entregar-me inteiro ao amor. Foi não entregar-me ainda mais.

In pace

Melhor assim. Quanta paz.
Não mais aquele tormento,
Não mais dor, nem sofrimento.
O amor, enfim, aqui jaz.

Ego sum

Se queres alguém para folguedos, procura um folgazão. Sou triste. Jamais me arrastarás para bailes ou festas. Sou triste, orgulhosa e imutavelmente triste.

Pros quintos

Depois de tantos adeuses,
Só tenho consolo quando
Eu ao inferno o amor mando
E ao diabo todos os deuses.

E vivo como

Já nada mais me socorre.
Descrente do amor e da arte,
Eu vivo como quem morre
E escrevo como quem parte.

Aos diabos

Cansei-me de ser capacho.
Jamais me mostrarei fraco.
Afetos, todos ao saco,
Amores, todos ao tacho.

Se um dia

Se um dia não houver nenhum texto aqui, será porque o amor, como derradeiro menosprezo, não me atormentará mais a alma e não me doerá.

Prima rica

Disseram-lhe que a prima está milionária porque casou com um turco velho que tem loja na 25 de Março. E ela agora não responde mais aos olhares dos rapazes bonitões que assobiam quando passa. Fixa os olhos nos quarentões calvos e barrigudos. Dará preferência a quem se chamar Jamil, Fuad ou Nagib.

Está chorando por quê?

Ela o censurava, lhe dava conselhos, o orientava, tratava-o como se fosse um filho. Explicava-lhe a vida sob o prisma da lógica e da filosofia. Ele se mostrava grato e a amava por sua atenção. Mas jamais teve dela o que desejava. Bastaria que uma vez, só uma, ela lhe pegasse as mãos e dissesse: "Pra que chorar, meu querido? Eu estou aqui." Não precisaria nem abraçá-lo nem beijá-lo.

Contraindicações

O amor é como os remédios. Melhor não ler a bula.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Masoquiano

Chorava sob a chibata
E gemia ai que gostoso
E repetia no gozo
Ai me mata amor me mata.

Lucro contábil

Como se tornam tristes esses falsos amores que se arrastam durante anos, quando um dos impostores ou os dois - como se fosse uma manobra de contabilidade - para não confessarem prejuízo lançam tudo à conta da amizade e se dizem tão felizes, ah, tão maravilhosamente felizes.

Aluno

Talvez me lembre de ti,
Talvez te execre, não sei.
Faça o que fizer, farei
O que contigo aprendi.

Tão intoleravelmente tolo

Nunca direi a mais ninguém o que te disse. Jamais direi a alguém aquilo tudo que a alma me ditou, aquelas palavras que pensei exprimirem o que eu tenho de mais íntimo e puro. Jamais direi aquilo, jamais falarei de amor a ninguém. Tu me ensinaste que tudo que eu imaginava ser ouro não era mais que ouropel. Tu me apresentaste a mim e, quando me vi, nenhuma de minhas crenças resistiu. Tu me mostraste afinal o que deveriam ter me mostrado há muito tempo: que sou tolo, tolo, irremediavelmente tolo, inadmissivelmente tolo.

Talião

O amor sabe que, se um dia seus súditos se rebelarem, precisará implorar por água, alimento e piedade. E sua experiência de tirano lhe diz que morrerá implorando.

Chicote

Se por um instante o tumulto da cidade se atenuasse, seria possível ouvir - como outrora se ouviam em Roma as súplicas dos escravos remando nas embarcações - as lamentações aflitas daqueles que o amor mantém agrilhoados, e o som das chicotadas, os gemidos e as imprecações pela liberdade, todas falsas, todas feitas apenas para que o carrasco aumente o ritmo e a fúria das prazerosas vergastadas.

Brincadeirinhas do amor

O amor brincou comigo, como um gato com um rato. Atirou-me para um canto, foi buscar-me, jogou-me para outro, foi pegar-me, deixou entreaberta a porta, fingiu que me daria a liberdade, retomou-me, deixou-me quase morto, reanimou-me uma, duas vezes. Um dia, não suportando mais a humilhação e a dor, morri. Mas ele me conserva ainda ao seu alcance, e é em mim que afia as garras, apesar do meu aspecto e do meu cheiro.

Amor no quinto andar

Vi uma agitação, uma correria, e perguntei o que estava acontecendo. Disseram-me que um louco ameaçava atirar-se de um prédio. Como os outros, corri para ver. Havia já uma multidão com os olhos concentrados na sacada do quinto andar. Sorri. Se alguém ali esperava ver um espetáculo grandioso, iria se decepcionar. Era um espécime velho de amor, chamando a atenção como um menino mimado. Tantas vezes eu já o vira assim, patético, implorando colo... Se não morrer de caquexia, um dia talvez se mate, mas então nem ele mesmo saberá por quê. Alguém dirá que foi por um mal insidioso, outro sugerirá que foi por um carnê não pago de geladeira, uma banalidade qualquer. Os amores deveriam morrer jovens.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Conceito

O amor, se for de verdade,
Há de ferir, de doer,
E nunca se parecer
Com afeto ou amizade.

Fardo

Desde que ruiu o amor,
Suporto sobre os meus ombros
Seus destroços, seus escombros.
E como pesam, Senhor!

Quase tão

O amor vela por mim enquanto durmo e, para abreviar minha espera, insinua-se nos meus sonhos e os torna quase tão reais quanto a realidade.

Quadrinhas azedinhas

Sentado aqui no sofá
Seria quase feliz
Se não houvesse Paris
E nem Belém do Pará,

Se eu fosse forte o bastante,
Se a mágoa não me matasse
E o ciúme não perguntasse
Onde estás, a cada instante,

Se em Roma estás, Bombaim,
Se no Canal de Suez
Com teu gentil holandês,
Lembrando e rindo de mim.

Porém não

Chegará um dia em que a alma atormentada e o coração dilacerado tentarão renegar o amor. Não conseguirão, porém. Não conseguiriam jamais, ainda que se atormentassem mais e mais se dilacerassem.

Até as primaveras

Vivi demais. Tudo me pesa, agora: cada dia, cada noite, cada outono, cada inverno, e até a lembrança das antigas primaveras.

Se não fosse

A vida é uma ilusão. Se não fosse, quem a suportaria?

Doxomania

Morreu achando-se superior a Shakespeare, opinião compartilhada pela família e por alguns vizinhos, que estranharam não haver um repórter no velório.

Revisor

Sempre que encontrava uma opinião diferente da sua no dicionário, ele o arremessava longe, com um "bah!" de indignação. Toda vez que ele se aproximava, o Aurélio se encolhia e, se falasse, diria: "Consulte, por favor, o Houaiss."

O garoto

Apontando o céu estrelado, o menino de três anos pergunta ao pai por que não estão acesas todas.

Gaivota

Sou como um peixe na tela. O pintor não me colocou ali, não sou visível, mas a gaivota, lá em cima, já me pressentiu e prepara o bote.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Com os outros

Tão fácil estar bem com os outros, rir com eles, admitir que a vida é uma dádiva diariamente renovada, que tudo está sempre certo, mesmo quando não parece, e que chorar é uma indecência dos fracos, e estar sempre com os que sabem de verdade o que é viver, e cantar com eles, trá lá li lá lá, e sentir nos ombros aquelas mãos pegajosas de felicidade.

Meu tesouro

Guardei tuas duas fotos, o estojo, a agenda, os livros que me deste - o Roth, a Jutta, o Primo Levi, o Dalton, os poemas do Benedetti, os mais amorosos que alguém já escreveu -, guardei tuas ilustrações, tuas complexas e intrigantes singelezas, guardei um papel de presente, um cartão em que puseste com tua caneta dois traços verticais de modéstia sobre teu nome impresso. Guardei coisas assim, num lugar especial. Nos olhos guardei teu sorriso, tão ensolarado quanto o das fotos. São esses meus tesouros. De coisas poucas e miúdas é feita a riqueza dos afetos.

Meus semelhantes

De más intenções e de equívocos meu caminho sempre esteve cheio. Quando em algum texto aparece a palavra "homem", procuro imaginar alguém que tenha sido exatamente o meu oposto. Mas quase sempre, a não ser quando se trata de uma autobiografia, eles acabam se assemelhando a mim.

Conde de Sarzedas

Houve um tempo em que frequentei o mais sórdido de todos os bares de São Paulo, na Conde de Sarzedas. A palavra escória era a mais adequada ao lugar, e eu fazia parte dela. Queria aniquilar-me e, além do álcool, contava com os tiroteios que toda madrugada estouravam em volta do bar. Mas o álcool foi insuficiente e os disparos não foram certeiros.

Estadão

Devo ter sido amaldiçoado pelas vírgulas que suprimi em todos esses anos. Esta noite, de novo, sonhei que vagava pelo prédio da Major Quedinho, sem conseguir encontrar a sala dos revisores.

Zona

Não era necessário mapa. Perto da Santa Ifigênia, da Guaianases e da Helvétia, pairava um mormaço espesso, uma maresia, como se a qualquer momento fosse surgir o mar, e as narinas dos homens fremiam.

Melhor amigo

Recebeu um telefonema. Seu maior amigo da adolescência, agora com oitenta anos, como ele, estava morto. Chorando, procurou alguém para contar a desgraça, mas a mulher, as duas filhas e as três netas tinham ido ao jardim para ver como estavam bonitas as rosas. Quando voltaram, perguntaram-lhe por que estava chorando, mas ele havia esquecido. A neta mais nova disse: "Vó, a gente não pode mais deixar o vô sozinho, porque ele fica triste, olha como ele está."

Pecados

Tão presunçoso é o homem que até seus pecados ele os pinta maiores do que são, para enaltecer-se. Se for um crápula, há de ser o maior de todos.

"Meus amores"

A mulher colheu um punhado de flores, colocou-as num vaso no centro da mesa da sala, elogiou-as ("vocês estão lindas, meus amores") e depois mandou o marido pegar as duas galinhas mais gordas e matá-las, porque teriam visitas para o jantar. Quando ele estava saindo com o facão, ela recomendou: "Guarda o sangue na bacia, que eu vou fazer ao molho pardo."

sábado, 21 de janeiro de 2012

O nome desse sentimento

O amor há de ser como um tirano, cobrando atenção nos mil quatrocentos e quarenta minutos do dia, não abrindo mão de um segundo sequer, supliciando, submetendo, atormentando. Se essa parecer uma face cruel do amor, perguntem aos que a ela se entregam se desejam trocá-la por outra, mais amena. Eu lhes digo que o amor, como é habitualmente visto, não merece dar nome a esse despotismo que faz de cada amante um mártir satisfeito com seu martírio. Mudem o nome desse sentimento, chamem-no de paixão, êxtase, arrebatamento, loucura, e estarão mais perto da verdade.

Podes ainda

Podes ainda aspirar o aroma das flores deste canteiro, mas apressa-te. Amanhã bem cedo virão buscá-las e elas irão enfeitar o mal-agradecido peito dos mortos e sufocarão embaixo da terra, como se pudessem redimir a carne pecadora.

Confissões

Tenho exposto aqui tão adolescente e imprudentemente meu coração que acredito poder chamar os quarenta ou cinquenta leitores diários de meus confidentes, meus caros confidentes.

Cartolina

Gostaria de pegar um pedaço de cartolina pequeno, que coubesse em tua mochila, e escrever nele uma palavra tão bela que, ao lê-la, pudesses esquecer-te de meus defeitos, ou dar-lhes perdão, e olvidar-te de minha gorada tentativa de parecer um homem.

Um só

Se tivesse colhido um fruto, um só, poderia olhar com menos desgosto agora para a mão que segura um poema - um dos tantos que escreveu enquanto o tempo lentamente ia deixando nus todos os galhos.

Saudade

Jamais aquela aflição,
Aquela paixão sofrida,
Nunca mais a danação
Que deu vida à minha vida.

Ilusão

Às vezes, ainda, quando acordo, sinto o coração alvoroçado como outrora. Eu me deixo enganar por alguns instantes e inspiro o ar como se a manhã fosse uma daquelas antigas. Logo, porém, a realidade se impõe, o coração se aquieta desgostoso e eu me levanto, sem vontade de me levantar, para mais um dia sem ti.

O veleiro

Posto no sofá das oito às seis, deixado ali para não atrapalhar quem tem o que fazer na casa, ele fixa os olhos no veleiro da tela. Nas dez horas em que permanece sentado na sala, só o veleiro lhe interessa. Não o atraem as ondas, as gaivotas, as montanhas ao fundo, as nuvens claras. Fita o veleiro e sabe que ele se move, embora lentamente. Às vezes faz cálculos. No último, concluiu que o movimento tem a velocidade de um milímetro por trimestre. É quase nada, porque o veleiro está no centro da tela, cujo comprimento deve ter dois metros. Provavelmente estará morto quando o veleiro conseguir finalmente escapar, mas continua a fazer cálculos. Chegou a pensar na hipótese de um repentino vento impelir o veleiro em um dia de tempestade, mas jamais viu as ondas encapelar-se. Deve contar só com o moroso avanço, tão moroso que nem merece o nome. Sabe que, embora sentado sempre ali, caminha também para a libertação. Gostaria de ser ao menos um pouco mais rápido. Começa a ficar ansioso e, se estivesse no veleiro, saltaria para dentro do mar.

Apatia

Quando menino, esperava pelos parques de diversões, pelas quermesses juninas, pelos circos que, fugindo de credores, acabavam se instalando em algum terreno do bairro por uma semana ou duas, para conseguirem dar de comer aos homens e aos bichos estropiados. Hoje, velho e doente, espera pela morte e decepciona-se por lhe faltar o antigo entusiasmo. Sua espera é feita mais de paciência que de ansiedade e, se esfrega as mãos, é porque as sente frias, sempre.

Em branco e preto

Um dia, acordamos e vimos o mundo como o víamos outrora: parecia uma foto em branco e preto. Nós nos olhamos e não nos dissemos nada. Havia vergonha e culpa em nós. O amor nos abandonara.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Viver

Viver deve ser uma dessas coisas que as pessoas fazem e as deixam tão felizes.

Os lábios que dizem adeus

Os lábios que dizem adeus jamais deveriam poder pronunciar palavras como flor, mel, amor. E para eles os beijos deveriam ser sempre amargos, como a mais profunda de todas as desilusões.

Ladrões

Alguma coisa deve haver entre nós, que os lábios não dizem e os olhos procuram negar, mas que nossas mãos, talvez mais sábias do que tu e eu, sentem quando se buscam, quando se aproximam, quando se tocam, furtivas como ladrões.

Receita

Não ter fé nem esperança,
Não aspirar ou querer,
Querer jamais é poder,
Quem nada quer tudo alcança.

Na grama, entre as árvores

Estava no banco da frente do carro da dona, como duas vezes por semana ocorria, quando ela ia visitar a mãe, e repentinamente se encontrou sozinho num lugar cheio de grama e árvores. Viu o carro se afastar e correu atrás dele por algum tempo. Começou então a jornada de volta. Imaginava como a dona estaria desesperada sem ele, ela que chorava por qualquer coisa e ultimamente estava esquisita, porque sua barriga crescera. Ele, um gato caseiro, enfrentou a fome, o frio, atravessou ruas, avenidas e, seguindo aqui um cheiro, ali um ruído que parecia familiar, na terceira noite estava arranhando a porta da casa. "Tico, você voltou", exclamou a mulher, deu-lhe uma tigela de leite e, pegando-o no colo, entrou no carro e, chorando, pôs-se a dirigir para dentro da noite. Nos três quilômetros que ele havia levado três dias para percorrer ela gastou três minutos e ele se viu novamente sozinho, na grama, entre as árvores.

Distração

Viveu até hoje não sabe para quê. Não viu as maravilhas que os outros viram, nem espera mais vê-las. Deve ter estado distraído todo esse tempo, como aquele garoto que na sala de aula fica olhando para a janela, como se do lado de fora estivessem todas as matemáticas, as histórias e as geografias.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

No entanto

No entanto eu ainda te sinto
E se disser sentir pouco
Tu saberás que ou eu minto
Ou estou ficando louco.

Perenes

O tempo do amor -
se houve esse tempo -
passou
e é hoje história

Os frutos
que penderam nos galhos
pendem agora
na memória

Balança-os a brisa
e são belos assim
não colhidos
não provados

Frutos imunes
ao tempo e à estação
pendendo puros e perenizados
como uma ideia de Platão.

Sozinho

Estou melhor assim, sozinho. Não preciso de mais ninguém além de mim para achar-me tolo e, embora isto me constranja, posso de vez em quando sentir pena de mim e abraçar-me com ternura.

Foste

Foste um acontecimento em minha vida. Uma manhã como deve ter sido a primeira de todas, com as suas cores puras e intactas, antes de o homem começar a misturá-las com seus olhos presunçosos e suas mãos. Foste a primeira das tardes, aquela que, orgulhosa, se descobriu mais bem bafejada pelo sol do que a manhã e enlanguesceu morna até que a noite veio acalentá-la. Foste a noite primordial, abrindo pela primeira vez os olhos estelares para contemplar, com a lua, o mundo recém-criado. Foste manhãs assim, tardes e noites que nem um sonho de Rilke jamais pôde contemplar. E de repente foste o tumulto veetiginoso dos elementos, a convulsão, a mescla atormentada de todas as cores num negro fatal, o primeiro tsunami, aquele que ainda não tinha esse nome e que, se tivesse, os homens temeriam pronunciar.

Mas o que dura?

Abençoadas sejam as mentiras que me disseste. Elas me fizeram feliz. Por pouco tempo, é verdade, mas o que dura na vida?

Lógica

Amas e, porque amas, achas que deves ser amado. Te parece uma questão de lógica, e é - ao menos a tua lógica.

Aptidão

Ele nunca beijou os lábios dela. Lastima-se. Devia tê-los beijado, ao menos por curiosidade. Talvez tivesse descoberto neles alguma aptidão além da habilidade de fazer juras desatinadas e dizer falsas palavras.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Assunto

Um dia, ele vai parar de falar das venturas e desventuras que o amor lhe trouxe. A partir desse dia, não terá mais o que dizer.

Omnívoro

Dentro de mim há um inimigo que me rói as vísceras, mastiga meu coração e martiriza minha alma dia a dia, hora a hora. Alimenta-se de mim e afia as garras em minhas entranhas. Me diz todas as manhãs que logo cantará vitória e tudo que fui estará contido em seu estômago. Depois que ele se acumpliciou com o amor, noto nele maior confiança.

Non ti scordar di me

Imagino que jamais te esquecerás de mim. Talvez não te lembres do meu nome, é quase certo que não, nem do meu rosto e nem da minha voz. Mas certamente virão à tua lembrança, e causarão gargalhadas, algumas das tolices que fiz, como aqueles versos - ah, e foram tantos - que tu, por gentileza, sempre fingiste apreciar.

Dostoiévski

Se não fosse romancista, Dostoiévski poderia muito bem ter sido o pai da psicanálise, ou um daqueles pacientes cujos casos se tornam clássicos.

Vide bula

Deixar-te louco é o mínimo que o amor pode fazer por ti. Se ele não tiver esse efeito, há algo muito errado, ou contigo ou com ele.

Tributo

Desconfie daqueles que dizem amar demais. Quem ama sabe que qualquer tributo pago ao amor é sempre irrisório, ainda que esse tributo seja a própria vida.

Os gregos

Os gregos foram uma tentativa de Deus para dar aos homens algo parecido com o raciocínio e conceder-lhes aos poucos a chave para decifrar os enigmas do universo. Mas eles se entusiasmaram demais, julgaram ter inventado a verdade e, com sua mania de democracia, resolveram dividir o poder de Deus, distribuindo-o entre vários deuses e semideuses. Deus interrompeu aí o processo e, desde essa época, tudo que os homens têm feito é reapresentar, sob milhares de formas, o que os gregos conseguiram saber antes de presumirem saber tudo.

Perguntas

O homem nasceu para fazer perguntas. Quando ele as faz a outros, isso se chama diálogo ou filosofia. Quando as dirige a Deus, isso tem o nome de interpelação.

Melhor

Basta, agora. Eu disse tudo
Que o amor me mandou falar,
Tudo em vão. Melhor calar,
Melhor conservar-me mudo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Passado

Considerar-te passado,
Não precisar nunca mais
Olhar no mapa marcado
Onde estás ou aonde vais.

O óbvio

A vida é fácil de ler,
Sim é sim e não é não.
Se sofres, podes prever
Que dias piores virão.

Chavões

Quem escreve "tórrido romance" é por certo o mesmo que chama o calor de senegalesco. Há quem faça literatura como se estivesse carimbando duplicatas.

Esse mesmo

"Mas Dalton Trevisan não é aquele que há cinquenta anos escreve o mesmo livro?", perguntou o garoto, pretendendo ostentar conhecimento. "É, esse mesmo", respondeu o homem. "Aquele que todo ano escreve um livro que os outros escritores não conseguem escrever nunca."

Hoje

A febre, o fogo, o fulgor
Que na alma maravilhada
Acendeu um dia o amor
É cinza hoje, e pó, mais nada.

Teu nome

Se estiveres andando e ouvires teu nome, não serei eu a dizê-lo. Eu jamais o diria alto. Eu o murmuraria, para que só a brisa o ouvisse e fosse soprá-lo à rosa. Teu nome é um assunto a ser comentado entre a brisa e a rosa, talvez também um pássaro.

Os heterônimos

Não deram o Nobel a Fernando Pessoa pelo receio de que à cerimônia de entrega do prêmio aparecessem mais de cem.

Modos de entregar a alma

Só há uma coisa mais arriscada do que entregar a alma ao Diabo: é entregá-la ao amor.

O arco-íris

Sua implicância com sabichões começou quando, menino, lhe explicaram como se formava o arco-íris e lhe disseram que não era um desenho feito por Deus.

A lista

Um mês antes de ser internado, ia todas as tardes conversar com as flores no parque. Eram centenas, mas ele as chamava pelo nome que lhes tinha dado: eram Magda, Tamíris, Cíntia, Dolores, todas anotadas no seu bloquinho. Quando tinha alguma dúvida, consultava a lista, que ocupava quatro páginas e estava preenchida com sua letra miúda e esmerada.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Ah, poesia?

"Ah, poesia? Eu sei", disse a mulher. "Aquelas coisas bonitinhas, rimadas, né? Eu tenho uma porção aqui, de um rapaz que gostava de mim, imagine. Quase eu casei com ele. Morreu moço, coitado. Doido demais da conta." Ela abriu uma gaveta, enfiou a mão bem no fundo e jogou para o alto uma centena de papéis que, se fosse justo o mundo, deveriam voar como borboletas. Não voaram, porém.

Pastoril

Amena será a tarde
quando a brisa vier
ninar os pássaros
e embalar as árvores

Amenas também as memórias
quando a noite
quiser silêncio
e só permitir
palavras abafadas
e confissões sussurradas

Distante estará o meio-dia
com seu fogo
sua febre
sua agonia
e os gritos do Amor
no bosque
querendo ser ouvido
exigindo ser saciado

O Amor
esse fauno descarado
proclamando sempre
como verdade
sua carnal prioridade
e invocando
seu parentesco
com o Diabo.

Adversativas

Momentos há em que tudo
Parece estar muito bem,
Tudo perfeito. Porém,
Mas, todavia, contudo...

Esquece

Esquece. Tudo passou.
Se nos magoou essa história,
Agora que ela acabou
Que seja amena a memória.

Febre

Se acaso viesses aqui
E a minha mão tu pegasses,
Talvez enfim tu notasses
Que eu ardo em febre por ti.

Aquele riso

Porém eu espero ainda
Que aquele riso só teu
Um dia ao ouvido meu
Anuncie a tua vinda.

Diplomacia

Se ele te fere e te mata,
E nisso está seu gozar,
Que esperas para julgar
O amor persona non grata?

Será?

Por natureza e essência, o amor há de ser um tormento. O amor não pode nunca dar certo. Amor que dá certo é como um funcionário que sai toda manhã com seu terno, sua gravata, sua pasta para trabalhar e, depois de trinta anos, recebe uma homenagem, um relógio de ouro e acredita quando lhe dizem que é um exemplo de vida e não deixa que suba à tona a voz interior que há décadas lhe pergunta: será?

A mulher

A mulher viu nos olhos dele uma tristeza antiga e o acolheu com uma ternura que transgredia uma das normas do seu ofício. Abriu-se como jamais se abrira em quinze anos e passou-lhe os dedos nos cabelos enquanto ele, arquejando, repetia um nome que não era o dela e lhe dava um amor que não pertencia a ela, como não lhe pertenciam as lágrimas que ele derramou depois no seu rosto maquilado.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Adeus

De tudo, ficarão as palavras que te disse em todo esse tempo. Elas falarão por mim, pelo que senti, e, por mais arrebatadas que pareçam, sei que nunca chegaram a traduzir aquela vontade de viver, aquele desejo de morrer, aquela aflição, aquela febre, aquele venturoso tormento que só um amor malogrado pode trazer. Restarão as palavras em tantos e-mails e uma resumirá todas e há de ser dita agora sem nenhum rancor ou ressentimento, mas com firmeza: adeus.

Nenhuma

Nenhuma tristeza jamais te dará nojo, como dão certas alegrias.

Alarme falso

Levei a mão ao peito e pensei que tivesse chegado a hora do enfarte fulminante. Mas eras apenas tu, doendo-me como sempre, roendo-me, exterminando-me aos poucos. Jamais me darias uma morte rápida e piedosa.

Só então

Um dia, talvez não te recordes senão vagamente do que sofres hoje - das lágrimas, das noites em claro, dos suplícios que o amor te impõe. Te esforçarás, convocarás a memória, implorarás para que os espinhos de hoje voltem a te ferir, mas dos atuais tormentos nada terá restado. Só então saberás como foste feliz, como és feliz agora. Só então saberás o que é sofrer.

Sem

Sem sol, sem luz, sem a brisa
Que sempre beijá-lo vinha,
Sem nada do que precisa,
O amor se esvai e definha.

Estante

Que outros te manuseiem agora, já não me importa. Que te folheiem com as mãos lambuzadas de manteiga, que te descolem as páginas com os dedos molhados de saliva, que te rabisquem, que anotem telefones na margem, ou endereços. Que te achem enfadonho, que te esqueçam em algum canto, ao lado de revistinhas de palavras cruzadas e folhetos de supermercado. Não me interessa mais o que te aconteça, embora possam dizer, talvez com razão, que na minha estante o teu lugar ainda não foi ocupado.

Outro dia

Bati à porta. Chovia,
Mas tu não a abriste. Deste
Um olhar frio e disseste:
"Hoje não. Volte outro dia."

Itinerário

Acompanho no mapa onde podes estar,
Coloco o dedo em Nova York, e em Mumbai,
E te imagino em Tóquio, e em cada lugar, ai!,
Meu coração aflito se põe a sangrar.

Antípodas

Eu penso em amplexo
E tu em ardor.
Tu falas de sexo,
Eu falo de amor.

Bola de cristal

Viverás sem saber o que é a vida, até que encontres o amor. O amor será teu algoz e te ensinará.

Presságio

Enquanto as aves vivazes
Se põem a desenhar
Rabiscos ágeis no mar,
Espreitam os alcatrases.

Quem dera

Amor, que garras macias...
Quem dera tu as cravasses
Em mim e me triturasses
Nas minhas noites vazias.

Nenhum

Entre dar atenção a um homem e dar atenção a um poeta, não dê atenção a ninguém. O homem não terá nada a dizer, e o poeta só lhe dirá mentiras.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Laisser ma vie sur ton épaule

Déspota, declarou a si mesmo que, para todos os efeitos, ela não mais existia. Sempre que a presença dela se insinuava por alguma conspiração da memória, ele a afastava, embora seu coração doesse - e como doía! Uma noite, porém, um verso de uma canção enterrou tão aguda farpa em seu peito que ele revogou sua disposição, aceitou que ela existia, sim, e na sala iluminada só pelos seus olhos cheios de lágrimas dançou com a lembrança dela, ao som de uma canção de Aznavour, repetindo um verso: laisser ma vie sur ton épaule.

Na pele

Amor, me explique por que,
Se o céu azula, eu pressinto,
E o bem-te-vi canta, eu sinto
Que vem chegando você?

Até

Até a parte suja de sua alma, aquela sob a jurisdição do Diabo, se torna clara, diáfana, quando ele pensa na mulher que ocupa seus sonhos.

No escuro

Nas matinês antigas, antes da invenção da 3D, os tiros que vinham da tela não assustavam os garotos na plateia, nem nos importavam muito as disputas pelas terras do Oeste, nas quais os caubóis se empenhavam. Interessava-nos avançar cautelosamente com as mãos no escuro, deslizando pelo ombro da garota ao nosso lado, e por onde mais pudéssemos, e conquistar alguns centímetros do mais delicioso de todos os territórios.

Para o adeus

Preparo meus braços para o adeus. Não te preocupes. Eles serão macios, te abraçarão educadamente, não demorarão em teus ombros mais do que cinco segundos, não tentarão nada, nada insinuarão, embora por eles possam correr, eu receio que sim, apelos aflitos para que te apertem, te estreitem, te prendam como deveriam ter te apertado, te estreitado e te prendido já na primeira vez.

Oração

Amor, oramos por vós,
Que Deus vos tenha e proteja,
Que sempre convosco esteja
E que vos guarde por nós.

Idem

O amor é uma bobagem, sim, mas e a vida, me digam, o que é?

O homem

O homem foi criado por Deus, mas quem melhor o entendeu foi Shakespeare.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

És inocente

Não tive nada contigo, além do que sonhei. Minhas mãos não desceram por tuas espáduas, minhas narinas não roçaram o aroma de tua pele, meus lábios não exploraram as reentrâncias do teu sal. Nada teu viveu em mim, a não ser o que imaginei, e, se a morte me vier, não será por teus dedos, mas pelos meus, presumindo desajeitadamente os contornos mortais do teu corpo.

Aptidão

Viver, para ele, é sofrer.
Gosta de afetos gorados,
De amores desenganados,
De se lanhar, se doer.

Por quem?

Os sinos dobram por quem?
Por que ressoam assim?
Badalam para ninguém
Ou se entristecem por mim?

Desassisado

Às vezes, para manter-te,
Perder-te se faz preciso.
Amor, te falta juízo,
Amor, quem há de entender-te?

Insensatez

Sob o domínio do amor, a pior insensatez é querer ser sensato.

Voz

Entre um milhão de vozes, ele reconheceria a dela e a seguiria outra vez, ainda que ela o levasse novamente pelo caminho do infortúnio.

Faz muito tempo, já, mas ele ainda às vezes olha para a mão com que deu adeus naquela tarde e a censura como se fosse não o instrumento, mas a causa de sua desgraça.

Fulgor

Amor imenso, tesouro
De rara ourivesaria,
Amor intenso, meu ouro,
Amor real, pedraria.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Seguir

Seguir, ir para o meu canto, dormir tranquilo, talvez sonhar, sem me atormentar com quem anda pelo mundo, com quem caminha por uma rua de Tóquio, talvez por uma avenida de Nova York ou por um recanto de Mumbai.

Desde

Desde o começo sabias
Que em cada frase trocada,
Que em cada jura jurada,
Que em cada instante mentias.

Salva-vidas

Pensamos que o amor pudesse
Salvar-nos. Tolos! Caímos
No mar, socorro pedimos,
E o amor na praia espairece.

Cristal

Sem a rosa, o cristal definha na sala, encolhe-se, e dia haverá de vir em que alguém dirá: "Cadê aquele vaso que ficava aqui?"

Metrô

Sentado, o garoto viu a mulher subir no vagão cheio, empinar o peito, erguer os braços e segurar-se com as mãos em cima, para não cair. Ele ficou olhando para ela e, quando pensou em lhe oferecer lugar, percebeu que já não poderia. As duas maçãs balançavam perto de sua boca e ele foi possuído por uma mornidão que lhe sussurrava palavras como Adão, Eva, pecado, paraíso, paraíso, paraíso.

Bateia

Hoje, olha para os dedos e não acredita que sejam os mesmos por entre os quais certa manhã escorreram fios dourados com cheiro de xampu.

Fim

Beijou-lhe os lábios, o rosto,
Depois os cílios molhados.
Na boca sentia um gosto
De encantos desencantados.

Peixe

Fisgado, teve seu momento de pássaro, até ser atirado ao balde e estrebuchar em espasmos de prata.

Namoradinhos

Ele: "Por ti vou viver."
Ela: "Isso é pura obsessão."
Ele: "Não diga que não."
Ela: "Não tem nada a ver."

Pretexto

Se queres um pretexto para continuar vivendo, convém que esqueças o amor: o amor não consegue salvar-se nem a si mesmo.

Sirvam-se

Sim, a vida é bela, eu sei, é um presente de Deus, eu concordo. Mas, por favor, já disse e repito: não estou interessado, me deixem, não me amolem. Peguem a vida e lambuzem-se, locupletem-se, empanturrem-se. Sirvam-se.

A mentira

A mentira, se várias vezes proclamada, assume o status de coerência.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O que eu queria

Desde os doze anos, quando achei que poderia ser escritor, não fiz quase nada além de ler e escrever. Aprendi como os grandes escritores fazem, mas não aprendi a fazer o que eles fazem. Seria simpático dizer que, tantas décadas depois, continuo tentando, mas não seria verdade. Leio ainda todos os dias e todos os dias escrevo, mas já sei que meu nível será sempre este: medíocre. Talvez possa ser considerada também simpática esta autoavaliação. É provável que me elogiem pela honestidade. Mas, com todos os diabos, eu não queria ser honesto. Eu queria ser um escritor.

Life is a tale

Não conheço nenhuma definição melhor para a vida que a de Shakespeare: uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem nenhum significado.

Sinal

Ele lhe apertou as mãos, e é estranho que ela não houvesse percebido que as dele tinham já o desapego dos que dizem adeus.

Dica

Se um homem te oferecer a vida, não o desdenhes. Melhor contar-lhe uma mentira, dar-lhe um sorriso, mesmo que fingido, um beijo, ainda que falso, uma esperança, embora longínqua. Diga-lhe - talvez funcione e talvez seja verdade - que ele merece mulher melhor.

Registro

E cada dia sem ti
É um dia murcho, vazio,
Um dia pálido, frio,
Um dia em que não vivi.

Tchekhov

Um dos mais pungentes gritos contra a falta de solidariedade humana é a cena em que um cocheiro, num dos contos de Tchekhov, não encontrando ninguém disposto a ouvi-lo, conta ao seu cavalo como lhe dói a morte do filho.

Nova versão

A velha agiota olhou para a mão de Raskolnikov e perguntou: "O que é isso aí, rapaz?" "É uma machadinha de estimação que eu trouxe para empenhar, vovó."

Resumo

Toda a esperança perdeu
E nada mais o socorre.
Dos sonhos já se esqueceu
E vive como quem morre.

Revisão

Triste é o momento em que, para não enlouquecer, precisamos reescrever a história, mutilá-la e dizer a nós mesmos que era ilusão aquilo tudo: que o amor foi uma mentira, uma ficção, que não passou de um exagero da mente desarvorada.

A causa

Pobre amor, cantado em versos tão inábeis que bem se poderia perguntar se não foram eles que o mataram.

Terceiro dia

Quando o encontraram, já era o terceiro dia, e embora todos, piedosamente, fingissem não notar, o amor fedia como uma carcaça largada ao sol.

Janela

Ferido, foi saltitando penosamente até a sarjeta, por onde corria a água da chuva. Deu duas bicadas, distraiu-se e logo estava no centro da correnteza. Por um instante pareceu que conseguiria escapar. Pobre pássaro, ninguém relatará no jornal ou na tevê tua morte. Eu a relato aqui, maldizendo a hora em que, curioso para ver a chuva, abri a janela.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Quem?

Quem há de crer na balela,
Se não um sonso, um menino,
Ou um idiota supino,
De que a vida humana é bela?

"Sim, eu cantei"

"Sim, eu cantei o amor em versos, louvei-lhe a pureza e a candura, disse não haver bem maior nem existir um ser mais admirável que a mulher", comentava o homem, com o rosto incendiado pela bebida. "Se eu estava certo? Olhe para mim, olhe. Preferiria ter insultado uma freira ou espancado um chefe de família."

Von Masoch

Amor, tu não me maltratas:
São doces tuas ofensas,
E são também recompensas
As dores com que me matas.

Rabisco

Escrever não uma dessas frases lapidares, destinadas à posteridade, mas um rabisco que seja como um pássaro riscando brevemente o céu e incorporando-se ao azul no horizonte.

Parágrafos

Os parágrafos são aquele instante em que o texto parece parar, refletir um pouco, pigarrear e empertigar-se, antes de seguir seu rumo. Por isso os parágrafos se dão tanta importância. O inicial e o final são insuportavelmente presunçosos.

Vírgulas

São formosas as vírgulas. Destacam-se visualmente num texto por sua bela aparência, por sua curva graciosa, que parece sempre sugerir uma incitação ao desenho.

Estresse

Os parênteses são o mais estressado de todos os sinais de pontuação. Assim que se abrem, não descansam enquanto não são fechados. E (ai deles) há escritores que só se lembram (quando se lembram) de fazer isso quarenta linhas adiante. Um parêntese não fechado é um grito de aflição no meio de um texto.

A história

O homem começou a me contar uma história triste: a mulher doente, cinco filhos pequenos, fome, pão disputado a tapas. Enquanto eu procurava no bolso uma nota, ele continuou falando, puxando mais desgraças. De repente, parou de falar e deu um longo suspiro: "Perdão, senhor, eu falei verdade, mas também umas mentiras. Olha, senhor, os filhos são só três, e a mulher, coitada, já morreu. E sabe o que eu fiz, senhor? Eu arranjei outra, uma cadela que bate nos meus filhos." Disse isso e foi embora, sem pegar a nota que eu tirara do bolso. Fiquei pensando se a consciência havia lhe doído mesmo, subitamente, ou se ele era novato na arte de pedinchar e não tinha ainda uma história na qual confiasse.

O nome

Nunca eu soube o nome desse sentimento. Sei que ele foi ora gentil ora despótico, que ele encantava minhas manhãs e atormentava minhas noites, e que sinto falta, hoje, de sua gentileza e de seu despotismo. Às vezes eu o chamo de amor, porque não sei que outro nome lhe daria.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Os lábios

Os lábios ainda esperam
As bocas que não tiveram,
As juras que não disseram,
Os beijos que não lhes deram.

Lupanar

Já sabe tudo de cor:
A mulher, o apartamento,
A posse torpe, o suor,
O tédio, o arrependimento.

Aspiração

Todas as reticências sonham tornar-se pontilhados...

Crianças

Te dás mais importância do que tens. Devias pensar que, a cada ridículo suspiro amoroso que exalas, centenas de crianças morrem no mundo, de fome e doença, crianças quase todas geradas em nome desse sentimento que chamas de amor.

Bercé par le son de ta voix

Às vezes, pensa que o que sempre quis foi que ela o acolhesse no colo e o ninasse, e o embalasse com sua voz cálida, e o levasse para aquelas regiões do sonho nas quais a realidade não entra. Recrimina-se por jamais tê-la feito entender isso, por nunca ter conseguido dar ao rosto e aos gestos o tom exato do seu desamparo.

Seus passos

Com a morte do amor, ele conta só consigo mesmo, e seus passos, não precisando mais acompanhar outros, caminham mais firmes para o fim do caminho.

Cofre

Previdente, guardou cada migalha de amor que lhe deram e as examina hoje como se fossem pepitas do mais dourado ouro.

Usura

Arrepende-se dos dias em que andou esbanjando amor como um perdulário. Conta e reconta agora cada uma das moedas que tem e, por esse amor solitário, seus olhos brilham como jamais brilharam para o amor compartilhado.

Completo

Agora que, dos dois, só ele ainda ama, apropriou-se da outra parte como se fosse uma ave de rapina e seu ego está maravilhosamente completo.

UTI

Houve tempo em que sabia o que eram um advérbio de modo e uma conjunção subordinativa. Hoje não sabe qual é seu braço direito e qual o esquerdo.

domingo, 8 de janeiro de 2012

(...)dita

Maldita sejas tu
que me iludiste
que me enganaste
que tempo me pediste
e esperando me deixaste

Maldita sejas tu
que a vida me destruíste
que a morte me apressaste
e que de mim te riste
e que me vilipendiaste

Maldita sejas tu
que me embaíste
maldita sejas tu
que de mim zombaste

E porque vivi
para ti somente
e para o que me deste
abençoadas sejam
tua calamidade e tua peste
e benditas sejas tu
eternamente.

Rosa

Custou não pouco semeá-la,
Cuidá-la por todo o prazo,
Custou tão pouco arrancá-la
E colocá-la num vaso.

Hoje ela murcha na sala,
Cuidada pelo descaso,
Melhor seria deixá-la
Sujeita ao vento e ao acaso.

Intimidade

Um passo a mais talvez fosse
Não mais que o afeto enodoar,
Em sexo o amor transformar
E em áspero o que era doce.

Capitalismo

Por cem reais, ou menos, em qualquer esquina se encontra um simulacro do amor.

Não ter

Não tenho mais esperança.
As que já tive murcharam
E só uma lição deixaram:
Quem ama, jamais alcança.

Quem sabe agora

Dizer-te o que te disse outrora e confiar em que, assim como o vinho, as palavras se aprimorem com a idade e consigam agora transmitir o gosto, o aroma e o feitiço que deveriam ter tido então.

Cavaleiro

Das batalhas em nome do amor voltou doente e esfarrapado. Tossia sangue e cuspia lágrimas. Quando lhe perguntaram se tinha valido a pena, acendeu um derradeiro verde nos olhos mortiços e disse que sim. Mas mentia, como mentira aos inimigos para se libertar do cativeiro.

Despertador

O vento assobia
E avisa ao sol que precisa
Surgir, porque é dia.

Espadachins

Ele e ela encaram o amor como se fosse esgrima. Cutucam-se, ferem-se, sangram-se, mas não se matam, porque matar-se seria acabar com o jogo e, além do mais, ainda não definiram, em todo esse tempo, quem é o gato e quem é o rato.

Imagem

Tenta pensar em outras imagens, mas a que lhe vem sempre, quando quer descrever o amor morto, é a de um gato, estendido embaixo da roda de um caminhão como um tapete encharcado de vermelho.

Na real

Pensou a vida inteira em fazer epopeias em dez cantos, odes, poemas épicos, narrativas heroicas. A vida foi lhe mostrando como era indevida sua ambição, e hoje ele se contentaria em ter escrito "batatinha quando nasce se esparrama pelo chão, menininha quando dorme põe a mão no coração".

Aleluia

Depois de tanta agonia,
De sofrer tanto e chorar,
Que bom agora entoar
Enfim um hino à alegria.

O aviso

Redescobriu o trabalho e está quase feliz. Repeliu a ociosidade, põe-se por catorze horas diárias diante do micro e é como se tivesse afixado na porta um aviso: "É proibida a entrada de todos os vícios, incluindo o amor."

Modelo

Rir não me seduz. Apraz-me
A fleuma, a circunspecção
E, em vez da alegria, pasme!,
As farpas da danação.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Personalidade

O ponto e vírgula é um ponto indeciso ou uma vírgula com mania de grandeza?

Menos

Já não penso tanto em ti: um pouco menos de manhã, também menos à tarde e bem menos à noite, se recebo a bênção de não sonhar.

Fantasiar

Ordenhar as estrelas, beber seu leite de madrugada, fantasiar tudo e tudo idealizar, porque a vida, vivida sem uma boa pitada de loucura, eu vou lhe dizer...

Anamnese

Fizeste chapas e chapas,
Exames de sangue e rim,
Só para saber, no fim,
Que desta tu não escapas.

Eram

Os dedos eram macios,
A boca, um favo de mel,
Os juramentos, vazios,
E a alma, fria e cruel.

Pierre

A garota beijou a outra com um daqueles beijos dos quais alguém espera a vida ou a morte, e murmurou: "Ah, Pierre, ah, Pierre." A outra a afastou: "O quê? Pierre?" "Me perdoe. É que às vezes eu ainda sinto aqui um gosto de cigarro, sabe? Mas logo eu esqueço, você vai ver, eu esqueço."

Ela e ela

Os homens, quando as veem de mãos dadas, lamentam aquele desperdício. Mas as duas se amam e é isso que dizem uma à outra. Se estiverem mentindo, foi com os homens que aprenderam.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Comigo só

Falarei comigo só, chorarei só para mim, agora. A idade tornou meus ouvidos moucos, porém moucos não eram também os que fingiam ouvir-me?

Revelação

De vez em quando, cansada de citar os prodigiosos jovens que fariam Rimbaud morrer de inveja, a mídia vai buscar em algum canto do Brasil um velhinho ou uma velhinha que ainda ouvem discos de setenta e oito rotações na vitrola semicentenária e escrevem versos. É uma ação quase sempre mais caritativa que literária. Estou esperando a minha vez, com meus versos escritos à mão no velho caderno espiral e Conceição na vitrola.

Diálogo

"Não lembro direito como foi. Sei que fui me desabituando, me desligando e, quando vi, já estava assim." "Assim como?" "Assim, sem jeito nenhum para viver."

Vazio

Não sonho mais e não rio.
Minha alegria secou
E o meu coração ficou
Tão frio, meu Deus, tão frio.

Alívio

Desdenhado pela amada, escreveu um poema em que falava de pungentes lágrimas da alma. No dia seguinte, reconciliado, não escreveu nada, e a literatura agradeceu.

De jeito nenhum

Uma professora de português, impedindo a filha de dezesseis anos de sair com a mala, talvez dissesse: "Você não sabe o que é um verbo defectivo e já quer se enfiar na cama de um homem?" Se, em vez de português, ela ensinasse matemática, a frase certamente seria: "Filha, já estou vendo tudo. Daqui a nove meses você volta para me provar que um mais um são três."

Tema

Um bom tema para um texto breve: imaginar-te sentada num parque, cochilando depois de ler duas ou três páginas de um romance ruim e, por um golpe da sorte e do vento, acordares tendo no colo uma flor que no primeiro momento julgarás ser uma rosa.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Definição

Pediram-me que definisse beleza. E subitamente vi que toda a minha vida eu havia procurado algo que não se pode exprimir com palavras.

Vous qui passez sans me voir

Ei, estou aqui, olhe, aqui. Não, não esse homem que sorri para a mulher com uma intimidade cansada de décadas. Aqui, aqui. Não, não esse rapaz empavonado que ainda não descobriu que o mundo nunca será dele. Não, também não esse que abre o jornal com a indiferença de quem já sabe de tudo. Eu, ei, eu, aqui. Bom, mais uma tarde em que você passa sem me ver aqui, aqui, na entrada da galeria, olhe. Quem sabe amanhã.

Heráclito

O homem saiu pelo mundo perguntando em cada rio se aquele era o de Heráclito. E sempre lhe diziam que não, que talvez fosse o seguinte.

Bênção

Quem diz que a vida é uma bênção deve saber muito bem do que fala.

Demiurgo

O homem, pelo seu hábito de nomear tudo, acredita ter criado todas as coisas.

Sinônimos

Enriquecer o vocabulário é essencial, até para saber que a melhor palavra é sempre a mais simples: se você puder voltar, jamais retorne ou regresse. E nunca chame o céu de firmamento.

Vírgulas, crases

Os que melhor virgulavam e craseavam não são vistos nas redações há décadas. Havia vírgulas, havia crases, havia revisores naquele tempo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Mourir d'amour

Parar na avenida
levar a mão ao peito
sentir sangrar de novo
a ferida
e ouvir
Aznavour repetir
mourir d'amour
mourir d'amour

Outono-verão

Que seja uma recordação amena, dessas que costumam nos vir na varanda, em tardes de outono. Mas que, uma vez ou outra, nos aflija o coração e o faça sangrar, e desate nos olhos lágrimas torrenciais, como as tempestades de verão.

Assim

Se o nosso amor já morreu,
Então nada mais importa:
Tu morreste, morri eu,
A vida toda está morta.

Pescaria

Ao tirar do anzol o peixe fisgado, viu que nas escamas ficara preso um fiapo de sol. Pensou em pegá-lo e guardá-lo no bolso, mas ele lhe escapou entre os dedos, nos quais se debatia ainda um resto de vida.

O quê

Escrever, escrever sempre, mesmo que às vezes você pense não ter nada a dizer ou sinta que talvez já tenha dito o que devia - embora não lembre o quê, nem quando.

Sina

Dar-nos ao amor, entregar-nos - porque essa, mesmo que não seja nossa vontade, será sempre nossa sina.

Os teus e os dele

Comparar teus cabelos aos raios do sol seria injusto: à noite os teus brilham ainda; e os dele?

Ela

Porque lenta
ou violenta
final
ou recomeço
fecho
ou desfecho
com direito
a último discurso
ou sem direito sequer
a se dizer um "a"
ela vem chegando
ela está se aproximando
ela chegará.

Se é

Se é meu o sonho, que eu possa ser livre para desdenhar as estrelas que o meu olhar alcança e imaginar outras, que a noite esconde de mim. Se é meu o sonho, que eu possa te ver como vejo na minha imaginação as estrelas mais inalcançáveis e fulgurantes.

Baú

E nada resta senão
Alguns e-mails arquivados,
Alguns versos mal rimados,
Passado e recordação.

Ladino

Com o pretexto de jogar xadrez em tua blusa, o sol ficou percorrendo as casas dela, diante de meus olhos cheio de ciúme e inveja.

Terias

Terias sorrido mais, se soubesses como cada sorriso iluminava e aquecia os porões úmidos de minha alma. Terias sorrido menos, se adivinhasses como, agora que não os tenho mais, me dói cada um dos teus sorrisos em minha lembrança e como qualquer claridade, mesmo a ínfima, de uma fresta, acende em mim, dolorosamente, uma absurda ânsia de sol pleno.

(Viv)ido

Meus sonhos terão morrido
E fenecido a esperança,
Mas o ido meu e o vivido
Os guardará a lembrança.

Autoavaliação

Sou mesquinho, rude, covarde, invejoso, ressentido e - ao contrário de tantos - honesto na minha autoavaliação.

Ira

Um azul tirânico apossou-se bruscamente do céu, apagou o sol e derramou-se em pingos grossos e furiosos, até se diluir aos poucos em um azul coado, amistoso e servil.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Os outros

Mais do que os frutos fruídos
Bem no apogeu da estação,
Ou outros, jamais colhidos,
Lembrados sempre serão.

Sacrifício

Ao entardecer, o vento, cúmplice dos lobos, tange as nuvens brancas, preguiçosas ovelhas, para a escuridão das montsnhas.

Se passas

Se passas as mãos pelos teus cabelos, ferve neles um alvoroço de trigo ansiando pela colheita.

Paisagem

Quando choras, teus cílios inclinam-se para beber tua água, mais pura que a da chuva.

Frase

Perder-te não seria perder a vida, mas o que a move e justifica.

Melhor pensar

Parece melhor pensar que foi tudo imaginação minha. Que não houve aquela manhã na cafeteria, o pãozinho de queijo, o capuccino, a conversa alegre com você, as horas que se passaram rápidas (ah, tão rápidas, e nunca houve outras iguais). Melhor pensar que foi só uma história como tantas que eu inventei e - sendo história - eu possa retomá-la agora, no ponto em que você se despediu, e pedir-lhe que fique mais um pouco, e convencê-la, desta vez, e conseguir dizer-lhe enfim o que deveria ter dito naquele dia.

As chaves do reino

Você me passou o café na mesa da cafeteria, e eu me senti como os heróis de minha juventude, quando eles, por matarem um dragão ou um gigante, recebiam as chaves do reino, entregues pela princesa. Por aquele café, pelas mãos que o serviam, eu mataria todos os dragões e todos os gigantes de todos os reinos da Terra.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Poodle

A garota, cheia de piercings e argolas, deu-me um olhar devastador e por ele senti o que ela premeditava: domar-me, chicotear-me, amansar-me, adestrar-me e me levar, gentil e lambisqueiro como um poodle, para alegrar as festas de suas amigas.

Prata

Puxou a linha e tirou do anzol um pedaço de prata espasmodicamente belo que atirou para o balde no fundo do barco, onde outros pedaços tinham acabado de agonizar.

És

De tudo meu és o cerne:
És a substância e o miolo,
A danação e o consolo,
És tudo que me concerne.

Não nem sim

Não dizes não e nem sim,
Não dizes sequer talvez.
E vamos, dúbios, assim,
Dia a dia, mês a mês.

Tanto, tanto

É tanto amor, tão imenso,
Tão arrebatado e forte,
Que, sempre que nele penso,
Penso que é maior que a morte.

Dizer sempre

Não ter nada a dizer que não se refira ao amor, e dizê-lo sempre, e achar sempre que é pouco o que se disse e voltar a dizê-lo, ininterruptamente, como se repetir fosse a melhor forma de renovar.

O cachorrinho

Outro dia, chegaram visitas do interior. Todos elogiaram a aparência do avô, mesmo depois de seguidos achaques, e, cumprido esse ritual de falsidade, sumiram para o quintal. Ficou na sala um cachorrinho execrável que, ao se ver sozinho com o velho, montou na perna dele e começou a arfar.

Reticências

Que noite aquela, encantada,
Em que, mantendo-me mudo,
Eu, sem declarar-lhe nada,
Consegui dizer-lhe tudo.

A lagartixa

Se as pessoas da casa fossem mais atentas, saberiam de algumas coisas. Por exemplo, que há uma lagartixa atrás do quadro grande. Às vezes ela se deixa até ver. À noite, deve passear por toda parte, talvez vá até importunar o santo de louça. Ela mora atrás do quadro e é uma prova de como a empregada limpa mal a sala.

Companhia

Às vezes, quando o avô fica sozinho na sala, enterrado na poltrona, aparece um rato pequeno. Sai de trás de um móvel e ousa andar um pouco em busca de alguma migalha. Olha para o avô, sabe que não representa perigo para ele e, enquanto não ouve nenhum ruído no resto da casa, goza o espaço provisoriamente conquistado. É mais feliz que o velho. Move-se sem ajuda e não precisa (embora lhe agradasse) que lhe ponham comida na boca.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Traste

Às quartas-feiras, dia de limpar a sala, a empregada faz questão de dar uns encontrões de aspirador nele enquanto tira o pó da poltrona onde ele se senta e - única pessoa sincera na casa - lhe diz entre dentes: "Traste!"

Ah, se

Ah, se tu pudesses crer,
Se tu quisesses, querida,
Podias ser o meu ser
E a vida de minha vida.

Bis

Para isto sobrevivi: para encalhar numa poltrona, como um fóssil, e ficar, das dez às quatro, exposto à visitação de parentes que elogiam meu estado de conservação e dizem, com a falsidade de todo ser humano, que esperam estar assim se chegarem à minha idade. Passo os dias balbuciando teu nome, mas ninguém me ouve e minha voz soa muda, como a voz dos pesadelos.

O dia

Só eu (e talvez tu, também) sei qual teria sido o dia certo para morrer. Ele passou há muito tempo e, toda vez que o evoco, me censuro por não ter compreendido que a alegria daquela manhã jamais se repetiria e era preciso sufocá-la antes que se fixasse na memória.

O que dura

O amor durou o que duram
Os amores: um momento.
Mas suas desgraças perduram:
A dor, a mágoa, o tormento.

Três tentativas

Três vezes esqueceram a porta destrancada e precisaram resgatá-lo quarteirões adiante, aonde chegara apesar dos quase oitenta anos e das pernas atrofiadas. Na primeira vez ele estava perguntando às pessoas para que lado ficava Nova York; na segunda, o caminho para Tóquio; na terceira, qual era o ônibus para Mumbai.

O poema

Talvez em algum dos teus arquivos haja um poema no qual eu dizia querer dar-te um gatinho. Faz muito tempo, e me lembrei disso hoje, com tristeza, porque não te dei ainda o gato. Quanto ao poema, não o procures. Não deve ser grande coisa.

Ah, aquilo

Quando lhe falam de amor, ele se põe pensativo. Tira os óculos, põe os óculos, olha para o teto, busca na memória algum sinal, fica assim por alguns minutos, até que dá mostras de ter encontrado o que procurava. Diz "ah, o amor, aquilo", como se tivesse se lembrado de um objeto perdido décadas atrás. Mas nos seus olhos aparecem duas lágrimas.

A divina louca

Uma amiga conseguiu para ele a rara biografia de Virginia Woolf escrita por Quentin Bell, e todo dia ele agora lê pelo menos um capítulo. Escritor medíocre, isso não melhorará em nada seus textos - Virginia, como Clarice, é inapreensível -, mas certamente aprimorará sua loucura.

Tão pouco

Do amor ficaram tão poucas coisas - alguns e-mails mal impressos, dois ou três livros presentados, um devedê de Woody Allen, uma figura africana entalhada em madeira, um poema copiado à mão, supostamente de Vinicius de Moraes - que, se não fosse a dor imensa, aguda, insuportável, nenhum dos dois acreditaria na sua propalada grandeza.

Travessia

O Amor pediu-lhes que o levassem até a outra margem do rio. Não tinha dinheiro, mas era tão belo com seus cachos de anjo que ela e ele o fizeram entrar no barco, encantados. Logo no começo da travessia, um vento forte e mal-intencionado enraiveceu o rio e ela e ele, apesar de se empenharem, não conseguiam remar com a eficiência necessária. Era mais fácil recuarem do que tentarem ir em frente. Como o barco ameaçava naufragar, pelo peso excessivo, bastou que ela e ele trocassem um olhar para decidir jogarem o Amor para fora. Assim conseguiram voltar. Isso foi há dois anos. O Amor jamais lhes fez falta e viverão felizes para sempre.