quinta-feira, 31 de maio de 2012

Paz

Às vezes sinto um alívio
Que nasce não de uma glória
Nem de um sucesso ou vitória,
Mas de um abençoado oblívio.

Submissão

Para fruir meu quinhão
De dores e de agonias
Acordo todos os dias
Tolo e feliz como um cão.

Roteiro

Fazer-me ao longe, fazer-me
Ao largo, errar pelo mundo,
Despedaçar-me no fundo,
Não emergir, esquecer-me.

Sade-Masoch

Numa relação sadomasoquista, talvez no início seja possível definir com clareza quem é quem. Depois, o chicote e a carne rasgada são uma coisa só e já não sabem conscientemente se gozam pelo que achavam que eram ou se pelo que deixaram de ser. Mas creio que ainda não se descobriu forma tão equilibrada, em seu desequilíbrio, de amor ou de (vá lá) sexo.

E grito

Sonho que corro pela noite, no rumo que você tomou ao dizer adeus. Corro pelas avenidas, pelas alamedas, pelos parques e pelos jardins. Grito teu nome, e grito com tanto desespero que acordo assustado pelo grito. Abro os olhos e no escuro que vejo não está você, nem o caminho pelo qual você desapareceu. E como poderiam estar, se a noite em que você se foi caminhando por ele é tão antiga que nela eu ainda estava vivo e pensava conhecer o significado da palavra esperança?

Frases de Fernando Pessoa sobre o amor

"Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço a dizê-lo."

"És o que falta a tudo. És o que a cada coisa falta para a podermos amar sempre. Chave perdida das portas do Templo, caminho encoberto do Palácio, Ilha longínqua que a bruma nunca deixa ver..."

"Eu não sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para plebeu o meu sonho. Possuir um corpo é ser banal. Sonhar possuir um corpo é talvez pior, ainda que seja difícil sê-lo: é sonhar-se banal - horror supremo."

"Aprende a desligar as ideias de voluptuosidade e de prazer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as ideias e os sonhos que provoca. Porque nada é o que é: os sonhos são sempre os sonhos. Para isso precisas não tocar em nada. Se tocares, o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação."

"Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aristocracia é nunca tocar. Não se aproximar - eis o que é fidalgo."

"Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia."

"Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma é a nós mesmos - que amamos."

(Do "Livro do desassossego", publicado pela Editora Brasiliense em 1986. Quanta beleza nele! Vontade de o ter na cabeceira, nas mãos, na rua, todo o tempo. Vontade de ter escrito ao menos um de seus parágrafos, uma frase.)

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Desconhecido íntimo

Se numa rua eu me vejo,
Finjo não me conhecer.
De mim o que mais almejo
É nunca me pertencer.

Comunicação

A vida inteira lidei com as palavras, quis fazer-me amigo delas e, no entanto, não sei me comunicar com ninguém. Enquanto me ocupava em estudar as mil formas de construir uma frase, deixei de aprender a arte do sorriso, e minhas mãos, quando querem chamar as pessoas, as afastam como se estivessem dando adeus.

Tão frágil

Quando penso no amor, penso em algo terno e frágil, em um gato recém-nascido que me tivessem dado para cuidar e que já na primeira noite de inverno eu deixasse morrer por mantê-lo no quintal, para discipliná-lo a não rasgar o sofá nem enxovalhar a cama.

Volte sempre

Não apalpou os bolsos da calça comprida, a primeira da sua adolescência. A nota que ele economizara abstendo-se de comprar o lanche por um mês, no colégio, tinha ficado no criado-mudo da mulher de olhos encovados que agora, devolvendo-o à rua, lhe beijava o rosto, como se ele tivesse sido também no quarto, como era sempre, um bom menino, e sugeria que voltasse quando quisesse, para refazer aquilo de que ele, pelos seus passos acabrunhados e ombros caídos, já começava a sentir, no estômago e na garganta, uma aflição de nojo.

Para que haja literatura no blog

Para que haja no blog literatura, aquela que sempre persegui e jamais alcancei, vai um pouco mais de Fernando Pessoa:

"Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural da vida inteira, com as suas Índias naturais e os seus países incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sórdida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa mais quando não tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandes esforçados é o pior de todos. Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer, mais tédio há que sentir."

"O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas ilusões - a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim."

"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida."

(Trechos extraídos do "Livro do desassossego", de Fernando Pessoa, publicado pela Editora Brasiliense em 1986.)

terça-feira, 29 de maio de 2012

Coloque-os

Por Deus, por mim, me socorra.
Coloque os braços em mim,
Coloque-os agora, assim,
E deixe-os, até que eu morra.

A glória

Dizia ter matado um homem outrora e, quando dizia, havia nele algo que reivindicava essa morte como uma superioridade. Contava e recontava o caso com minúcias de relojoeiro como se, esquecendo-se de uma delas, pudesse ver ressuscitado o homem e ser destituído da glória dos disparos.

Evolucionismo

Darwin livrou Deus da única acusação séria que Lhe fizeram, a de haver criado o homem.

Pureza

Deixou o que ainda lhe sobrara de pureza num quarto de luz mortiça e paredes de papel florido, para as quais a mulher, enquanto ele se esvaía em convulsões, olhava com atenção, como se na saída precisasse dar a alguém conta de quantas flores havia em cada metro quadrado.

Pelo pior

Se tens de dor a alma cheia,
Aguarda uma dor maior.
Em nós há algo que anseia
Em tudo pelo pior.

Realidade

Contigo ninguém se importa.
Quem há de os passos travar,
Quem há de o rumo alterar
Por uma barata morta?

Cinco segundos

O melhor que as viagens podem oferecer é aquela hora da madrugada em que acordamos, abrimos os olhos e por uns momentos não sabemos nem onde estamos nem quem somos. Dura isso cinco segundos, não mais, e que ventura são esses cinco segundos nos quais somos dispensados de vestir aquela personalidade que desde os primeiros anos forjamos para nós, com a abjeta intenção de que nos amem ou ao menos nos aceitem.

Dois trechos de Fernando Pessoa

"A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo que é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto."

"Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade."

(Do "Livro do desassossego", publicado em 1986 pela Editora Brasiliense.)

Incompatíveis

Já me recusaram por eu ser triste. Era uma dessas noites que se esforçam para se fixar na memória, que vêm com a brisa certa, uma lua terna e a porção exata de estrelas. Havia também o mar, dócil, sonolento. Na praia, meia dúzia de garotas e rapazes dançava ao som de um rádio escandalosamente alegre. Eu estava sentado num daqueles bares perto da areia, tinha entre minhas mãos as mãos da amada, e nos lábios, inquieta, uma daquelas frases simples que nos soam tão épicas quando amamos. Toda vez que a primeira sílaba ensaiava dizer-se, a emoção a travava e eu, olhando os verde-azulados olhos que também me fitavam, receei - e ao mesmo tempo desejei - chorar. Teria sido bom morrer naquele instante, o mais doce de minha vida. Apertando um pouco mais as mãos da amada, senti-me encorajado a dizer enfim as três ou quatro palavras que me palpitavam na boca. Eu as teria dito, se a amada não me dissesse antes: "Olhe, eu andei pensando, não vai dar. A gente não se acerta, não combina. Eu gosto de festa, de barulho. Você, não. Você é muito triste. É melhor a gente ficar por aqui." Eu ia responder, mas ela havia puxado já suas mãos e olhava para os casais dançando na areia. Nunca mais nos vimos.

Body and soul

Costuma-se tirar o chapéu, ao menos simbolicamente, quando se fala da alma. Ela é sempre reverenciada, como se fosse a melhor parte de nós, a única a merecer respeito, e há até quem a considere superior demais para ser incluída num conjunto, como o corpo, no qual há órgãos tão prosaicos quanto o baço, o fígado, os pulmões e os intestinos. Certamente por esse alto conceito é que ela nos oprime, nos tiraniza até, escarnece de nós como se fosse um violino obrigado a conviver com bumbos, tambores, banjos e maracas.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Às vezes

Sabe, há certos dias em que acordo sem querer acordar, pressinto o sol, sem querer vê-lo, e preparo-me para viver, como se quisesse. Levanto-me, tento respirar fundo, como se ainda soubesse, espero que alguma coisa aconteça - talvez o toque do telefone para anunciar minha morte - e só quando não tenho mais esperança tomo banho e me visto. Às vezes, saio. Às vezes, desisto de fingir, não tomo banho, não me visto, deito-me de novo, ajeito-me com a melancolia no travesseiro e volto a dormir. Não me lembro da última vez em que saí.

Bidê

A mulher abriu o bidê e começou a esfregar-se com vigor. Era um desses gestos que se repetem mecanicamente, por hábito profissional. O menino, vestindo-se melancolicamente, sabia que dentro dela não havia sequer uma gota dele e, puxando a nota que ela lhe mandara deixar na pia, pensou como seria melhor ter ido ao shopping gastar tudo no cinema, no Mc Donald's e no fliperama.

A aventura

Um ar de maresia impregnou o quarto quando a mulher acabou de se despir. Tinha na coxa um buraco de bala, que fez questão de gabar, e um dente de ouro opaco. Enredado nas meias e tentando decidir se a etiqueta da ocasião exigia que ele entrasse ou não de cueca na cama, o menino começou a sentir que, ao contrário do que imaginara, não estava preparado para a aventura.

Investimento

O melhor investimento que fiz, tantas décadas atrás, foi na tristeza e na melancolia. Quantas lágrimas me rendem elas até hoje, quanta beleza. Se houvesse optado pela alegria, não teria nada a dizer nem a contar agora. Como são medíocres certos risos, como são infames e vulgares algumas gargalhadas. Inspiram-me tanto nojo que, se não vomito, é só pelo mais ferrenho autocontrole.

O espelho

Existirmos requer de nós que, se não verdadeiros, sejamos ao menos verossímeis para os outros. Por isso nos concentramos tanto, antes de sair. Que ninguém, na rua, nos interpele, duvidando de que, pela testa um pouco mais ou menos franzida, nós sejamos nós. Somos atores todo o tempo, principalmente na hora da manhã na qual aquele que melhor nos conhece nos olha e nos investiga no espelho e nos libera para que saiamos ao sol.

Livro do desassossego

Talvez o melhor de Fernando Pessoa - se algo nele pode ser menos - esteja nesse livro. Uma prosa simples, e rica nessa e por essa singeleza, com uma musicalidade de notas tocadas em surdina, como se pedissem desculpas por soar. Parágrafos que nos repousam, que silenciam em nós o apelo à pompa e à grandiloquência. Frases que redescobrem para nós o tesouro da modéstia e da quietude, como esta:

"Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever - dormir - que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?"("O livro do desassossego", de Fernando Pessoa, publicado pela Editora Brasiliense em 1986.)
Ver a notável introdução de Leyla Perrone-Moisés, que abre preciosas trilhas para a melhor compreensão e percepção dos múltiplos Pessoas.

domingo, 27 de maio de 2012

Venenos

Se tens de morrer, que seja
De amor, ciúme ou então
De outro veneno que esteja
À sua disposição.

Esta calma

E de repente esta calma,
E de repente este olvido
Que vem não de encontrar a alma,
Porém de havê-la perdido.

Se um dia

Se um dia, amiga, voltares,
Ouvindo o chamado meu,
Dispenso-te de chorares.
Deixa que chore só eu.

A marca

Marcado com ferro em brasa pelo amor, sabe que essa marca nem o fogo do inferno apagará, e sente o êxtase que só os santos aliciados pelo demônio são capazes de desfrutar.

Os cinco poemas

Dos cento e vinte poemas que publicou, acha que cinco são extraordinários. Os críticos também, tendo mesmo um deles dito que são tão benfeitos que não parecem escritos por ele.

Nos rochedos

Fui tolo, ainda bem que fui. Despedacei-me, destruí-me, destrocei-me. Mais tolo é quem embarca na prodigiosa aventura do amor querendo fazer-se de entendido. O amor, o verdadeiro, é para quem não teme despedaçar-se nos rochedos, para quem neles almeja despedaçar-se. A única história possível para o amor é essa, o barco desmantelado nos rochedos. O resto são passatempos, exercícios tão prosaicos quanto aqueles com os quais se pretende modelar os corpos na academia.

Balanço

O amor realizado, o amor consumado entre suores e convulsões, acaba por se tornar tão maçante quanto um texto de contabilidade com seus deves e seus haveres, com o parecer dos auditores e a aprovação do conselho fiscal.

sábado, 26 de maio de 2012

Estes sábados

São tristes estes sábados em que
Alheio ao sol, em casa enclausurado,
Eu sigo o meu destino atormentado
E choro me lembrando de você.

A mesa

Em torno dela sentaram-se
três gerações de endinheirados
com sua empáfia perfeita
feita de fraques e cavanhaques
com suas mulheres atraentes
fulgentes como berloques
e seus filhos de cachos dourados

Três gerações de criadas
em noites das quais
nem a mesa se lembra mais
fizeram brilhar sobre ela
travessas abarrotadas
de iguarias selecionadas
e copos de raros vinhos
para os festivos comensais

O tempo democraticamente
matou em partes iguais
os endinheirados e suas mulheres
seus filhos amados e as serviçais
e o palacete antigamente morada
de tão importante gente
abriga melancolicamente
passadores de craque
mendigos de pernas ulceradas
crianças de barrigas verminadas
e putinhas de dez reais

Faz muito frio hoje
e a mesa num canto
do extenso quintal largada
pelos cupins carcomida
pelas chuvas e pelo sol devorada
teve as suas pernas arrancadas

À noite os que lá dentro
não têm um lugar
colocarão fogo na mesa
naquela mesma mesa em redor da qual
outrora os nobres endinheirados
com seus ilustres convidados
com suas mulheres
e com os filhos adorados
se sentavam para jantar.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Bem sabes

Já me doeste mais. Já me supliciaste, me martirizaste, me crucificaste. Que saudade eu tenho desse tempo, daquelas agonias. Que pena eu não ter morrido, que triste eu ter sobrevivido, ter sido poupado para viver esta meia-vida, na qual meu martírio maior é imaginar que amanhã eu possa sentir que me dóis ainda um pouco menos que hoje. Ah, queres saber? Esquece tudo que leste, a quem eu quero enganar? Bem sabes que estou mentindo, bem sabes que a cada dia eu sofro mais e abençoo cada espinho, cada farpa, cada cravo que enterras em meu corpo ávido de os receber.

Bestialógico

Digo sem nenhum desaire:
Quando Espinosa estava indo,
Rousseau já tinha ido e vindo
E Kant estava a voltaire.

Carma

Não tenham pena de mim.
Já desde o início eu sabia
Que o amor só me levaria
Para uma desgraça assim.

Anfiguri

Tudo era rir e cantar,
Era tudo hilaridade,
Até Newton inventar
As normas da gravidade.

Conselho

Qualquer esforço é frustrado,
Qualquer ilusão é fútil,
Qualquer anseio é errado,
Qualquer ideal é inútil.

Roteiro

Dormir à noite, dormir
De dia, dormir, deixar
O tempo manso fluir,
Deixar a morte chegar.

Autoimolação

Chamar-me Ivan, entrar num romance de Dostoiévski ou Tolstói, ser punido com trabalhos forçados na Sibéria, padecer frio, fome e humilhações e não morrer antes da página 300.

Manual

Melhor perder que ganhar,
Melhor não ter que querer,
Melhor morrer que sofrer,
Melhor cremar que enterrar.

Se tardardes

Como as noites, como as tardes
E como os dias se vão,
A vida e os sonhos se irão,
E irão sem vós, se tardardes.

Acerto

Não há verdade mais clara
Nem evidência mais certa:
O tempo tudo repara,
A morte tudo conserta.

Menos

Ser diferente hoje. Falar de flores, sim, como sempre, mas não as comparar contigo, para que finalmente elas comecem a perder um pouco de sua presunção.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Desblogando

Este blog - nascido, como quase todos os projetos humanos, do entusiasmo - estampou em 2010 seus primeiros textos, que somados atingem agora quase seis mil. Dediquei a ele aproximadamente mil dias de minha vida. Como se ele fosse uma criança, acompanhei seus tropeços, seus passos certos, os sorrisos que despertava, seus bons e maus momentos. Afligia-me quando não tinha com que alimentá-lo e também quando o alimentava mal. Referências a ele, algumas de países muito distantes, me deixavam cheio de orgulho paterno. De uns tempos para cá, venho tentando fazê-lo passar a impressão de ser simpático e sólido, como aparentava ser no começo, e, se ele perdeu essa aparência inicial, a culpa coube a mim. Não consegui mantê-lo como o projetei - um espaço que tratasse de literatura e pudesse de algum modo ser útil ou ao menos prazeroso para os leitores. Fui aos poucos deixando de cuidar, como deveria, da literatura em seus aspectos gerais e permitindo que meus rabiscos pretensamente literários fossem ganhando terreno. O blog acabou por se tornar uma espécie de muro das lamentações para mim, e era inevitável que os leitores fossem se afastando. Tentei ainda me desvencilhar dessa tendência egotista, mas sucumbi novamente sob o peso da infame versalhada. Devo admitir que, ao menos no momento, não tenho nada a oferecer a quem se dispuser a acessar o blog. Poderia preenchê-lo com citações de escritores que realmente mereçam o título, mas isso seria um subterfúgio, nada mais que isso. É hora de me escusar perante aqueles que seguiram o blog até agora e, para não continuar a ludibriá-los com literatices, dizer que ele não está propriamente extinto, mas que sua periodicidade não será mais diária, mas ocasional. Hora também de dizer que, por persistirem as circunstâncias que me levaram ao atual estado de espírito, é bem provável que os textos porventura colocados esporadicamente aqui venham a padecer do mesmo mal: o de serem meras confissões de um homem que não consegue - e talvez nem queira - livrar-se da tristeza, nem consiga torná-la, com o toque da arte, interessante para os outros. Do início de 2010 até aqui, o menino percorreu algum caminho e contou com a simpatia alheia. Que ele agora, já sem os encantos da primeira idade, quando ensaiar outros passos, desprovidos de graça, não queira chamar para si as atenções que não merece.

A trégua

Todas as manhãs, depois da abençoada trégua do sono, logo com o primeiro raio de sol que entra no quarto o corpo, antes mesmo de se dar conta de onde está, sente que a lembrança do amor extinto já se reapossou dele e o supliciará em cada instante do dia, até que venham outra vez a noite e o generoso alívio do sono.

Nossos sonhos

Somos pequenos demais para os nossos sonhos. Que alívio é quando os ideais, já mortos, não nos espicaçam mais e nos deixam enfim dormir, como se no dia seguinte não tivéssemos nada a fazer a não ser respirar e caminhar ao sol.

Atitude

Não há mais nada a fazer.
Somente o corpo deitar,
Somente os olhos fechar,
E desistir, e morrer.

Reflexão

Que sentido há em viver
Se morreram os ideais,
Que resta senão morrer
Se o amor não existe mais?

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O último

Morramos todos, menos um, que ficará para contar nossa história. Não nos preocupemos. Nós nos conhecemos bem e sabemos que, por pior que nos pinte, jamais ele nos retratará mais execráveis do que somos.

O prêmio

Abriam-se ao sol ontem e moviam-se ao sopro da brisa, que lhes contava histórias. Deus concedeu-lhes como prêmio a honra de ornarem hoje o peito de um defunto ilustre e ouvirem, além dos cochichos sobre o testamento, o zumbido monótono das quatro luminárias.

Dica do dia

Agarre o amor e lhe enterre
A estaca no coração,
Antes que ele o mate e encerre
A sete palmos do chão.

Sua melancolia

Não conseguiria viver sem a melancolia. Como poderia suportar as tardes longas e vazias passadas no sofá, como um mutilado de guerra, sem o braço dela em seu ombro, como aguentaria as noites que pingam minuto a minuto no quarto a insônia, sem ela no travesseiro vizinho? Ele ama sua melancolia e, quem quiser vê-lo furioso, basta sugerir que tem uma melancolia mais profunda e mais intensa que a dele.

domingo, 20 de maio de 2012

Que outro fique

Que outro fique com os bocejos dela, as eructações, os borborigmos, os nomes de homem que ela diz dormindo, os mornos odores que seu corpo exala de madrugada, o rosto que a manhã revela sem retoques, marcado pelo sono e pelo travesseiro. É o preço da intimidade. Para ele, distante, ficará o melhor dela: a imagem idealizada, a essência, a silhueta esguia, os traços desenhados por ele com a perfeição que só o amor propicia, a voz cálida, lânguida, profunda, como se o veludo falasse.

Conversa no metrô

"Aí eu disse à doutora: obrigada, hem? Quando entrei aqui, faz dez minutos, eu não tinha nada. Agora estou saindo com um câncer. Amanhã é meu aniversário e eu tenho um almoço com os meus filhos. A senhora estragou tudo."

Paraíso

Prepara-te, não para aquela sempre curta época em que a alguns homens é dado conhecer aquilo que muitos chamam de paraíso. Prepara-te para o tempo que virá depois, prepara-te para as noites geladas em que a memória insistir em fazer desfilar diante dos teus olhos embaçados pelas lágrimas a visão dos dias dourados.

A moça

Já decidiu. Ainda que fique a manhã inteira no café, não olhará mais para a moça. Olhou duas vezes e foi mortalmente atingido pela luminosa juventude dela. Obriga os olhos a fixar-se nas próprias mãos e nunca as viu tão envelhecidas. Começa a doer-lhe algo que ele não sabe se é o estômago ou o fígado, talvez os dois, e ele sente uma tristeza aguda, profunda. Que a moça não olhe para ele agora, que ninguém olhe. O que dirão se virem um homem da idade dele chorando com o rosto entre as mãos?

sábado, 19 de maio de 2012

As borboletas

Sempre que chega a noite, ele acende as luzes da sala, abre a porta e deixa entrar as borboletas. Elas ficarão esvoaçando em torno das lâmpadas enquanto tiverem forças. Ele sabe que ali dentro elas, como as outras que ali já entraram, não sobreviverão mais que um dia. Mas inveja, e observa fascinado, a intensidade que elas vivem agora, a embriaguez insana, a vertigem. Ele também viveu isso, um dia só, ele também morreu por esse momento, buscando a luz e a chama do amor.

Resumo

Que queres? Já disse tudo:
Em ti não me importa a forma.
Ela muda, se transforma.
Eu amo teu conteúdo.

Os gatos

Houve um tempo em que me achei - e surpreendentemente os outros me acharam também - um cronista. Escrevi para jornais, para revistas, para a televisão. Não sei se os leitores e os telespectadores ganharam alguma coisa com isso. Eu posso dizer que a repentina necessidade de ter sempre um assunto à mão me fez voltar os olhos para as árvores, para as flores, para os mendigos, para os cães, para os gatos. Tornaram-se os meus heróis, aqueles aos quais eu recorria para tentar salvar a reputação de escrevinhador. De todos eles, os que mais amei foram os gatos. Jamais um gato me deixou sem ao menos um bom parágrafo. Se uma lição aprendi, talvez válida para algum cronista principiante, foi esta: naqueles inevitáveis dias em que a falta de assunto angustia, uma boa solução é pegar o papel e escrever - ou abrir o micro e digitar - a palavra gato. O resto vem sozinho.

Milagre

Se um dia me prometesses um beijo, eu gostaria de ir ao teu encontro bem devagar, te acenar de longe, continuar com meus passos lentos e trôpegos e, a trinta metros de ti, acelerá-los, como se fosse um aleijado descartando inacreditavelmente as muletas, e correr afinal para ti, gritando: milagre, milagre.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

O resultado

Em tudo em que me meti
(E em tudo tenho me enfiado)
Das duas uma: ou perdi
Ou então fui derrotado.

Divã

"Sonho com ela toda noite, doutor, tem noite que sonho duas vezes. Ela vai andando na minha frente, eu vou seguindo, ela olha para trás, ajeita os cabelos, parece até que pisca e faz charme. Eu vou me aproximando, me aproximando e, quando estou para tocar o braço dela, vejo que ela está abraçada com um homem. Eu quero então me esconder, ir para um lado, para o outro, sumir, acordar, mas uma coisa me obriga a continuar andando atrás dela e do homem. O homem nunca é o mesmo. Eu nem olho para eles, de tanto ciúme, mas sei que cada noite é um. E sei que todos, todos eles são melhores do que eu, doutor."

O assunto

Se pego a caneta e me ponho a escrever sobre qualquer assunto que não seja o amor, o coração, este velho casmurro que tenho no peito, começa a resmungar.

Gentil

Que gentil tu és, amor, em me deixares descansar a cabeça assim em teu peito e em me permitires dizer o teu nome. Que gentil tu és, amor, em me olhares e, no meu último instante, me dares a mão que sempre me negaste.

Órgãos

Pensar em ti já é tão natural, em mim, que já nem sei se é o cérebro que cuida disso ou se é o coração, em cada batida, ou os pulmões, em cada inspiração e em cada expiração.

Vazio

Um dia terei dito tudo que sinto por ti, e tantas vezes, como já venho dizendo há tanto tempo, que o meu coração, murcho, não servirá nem para ser atirado aos vira-latas.

Maneira de viver

Me dóis desde que acordo. Me dóis de manhã, à tarde, me dóis muito, sempre, mas, quando chega a noite, esforço-me para manter os olhos abertos, para que continues me doendo, porque me doeres é a única maneira de viver que conheço.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Um pouco mais para o centro

Um beijo rápido e medroso, no canto daqueles lábios que, se não se ofereciam, também não se negavam. Nunca ele esteve mais perto da felicidade, nunca ele se lamentou tanto por não ousar.

O pão de cada dia

Passei hoje o dia inteiro escrevendo poemas em teu louvor. Gostaria de tê-los mandado todos, para que não me pese na consciência, embora me inspires diariamente, enviar-te amanhã ou depois alguns versos amanhecidos. Tudo menos dar-te a impressão de ser um daqueles que requentam o pão ou enviam, como prova de amor, duas vezes a mesma estrela.

Transformação

Pudesse eu agora estar não dizendo "eu te amo" pela primeira vez, mas a cinco segundos de dizê-lo. Pudesse eu sentir de novo aquilo tudo que palavra nenhuma jamais expressará, aquilo que alguns dizem ser a maior ventura da vida e que eu digo ser a própria vida. Palavras criam encantamentos, mas também os rompem. Um abre-te sésamo, depois de dito uma vez, jamais terá novamente seu mesmo efeito miraculoso. Nunca digas à tua amada que a amas. Deves, quando muito, sussurrar as três pequenas palavras, se possível sem abrir muito os lábios, para que o vento não te traia e não transforme em proclamação o que é só um suspiro da alma.

Chorar-se

Quando se entrega, entrega-se inteiro. Até dois anos atrás, definhava pelo amor. Depois, jogou-se nos braços da autocomiseração e lastima tanto seus infortúnios que é como se fosse não um homem, mas os cento e tantos que eram Fernando Pessoa ou os trezentos e cinquenta que Mário de Andrade dizia ser.

A tigela

O amor cansou-se de gritar, de suplicar, de pedir. Sua voz já não soa, não provoca mais que uma comichão na garganta, e ele agora, com as unhas também já gastas, se limita a arranhar de vez em quando a porta. Contenta-se com a comida que sem muita frequência lhe põem e já nem ousa olhar para o rosto de quem lhe empurra a tigela, nem tenta mais lamber a mão de quem a enche.

Se

Se isso pudesse ser para você uma vitória, uma prova de afeto, a suprema, ou um aborrecimento a menos, eu pensaria com mais frequência em venenos, cordas, revólveres, e minha imaginação se balançaria mais temerária no parapeito dos viadutos.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Irmãozinho

Hoje vi no tabuleiro do camelô um cachorrinho de pelúcia marrom, que seria um perfeito irmão para o branquinho e para o branco e preto que te dei há algum tempo. Cheguei a pegá-lo, mas o devolvi. Andas tão zangada comigo que é melhor perguntar-te se ainda tens os dois ou se eles pagaram pelos meus pecados.

E no entanto

Por pudor, por timidez, por covardia, por um talvez tolo respeito, beijei-te as luvas, toquei-te os brincos, rocei-te os cabelos. E no entanto era a estação dos frutos, e o vento, balançando-os, instigava: colhei, mordei, devorai. Foi a minha última estação dos frutos.

Perdão

Teu perdão tarda tanto que, se um dia o deres, bom será que o faças por escrito, para não teres de berrá-lo ao ouvido de um surdo ou de um morto.

Em mim ainda não

Me dizes que está extinto
E eu até creio que sim,
Mas só em ti, porque em mim
O amor vive ainda, eu o sinto.

Livro da obsessão

Pensei em reunir o que venho escrevendo em uma coletânea à qual imaginei inicialmente dar o título de "Livro das obsessões". Não sei se levarei adiante o projeto, mas o título eu já alterei para "Livro da obsessão", porque de uma apenas se trata e é, como adivinhaste, a que me prende inelutavelmente a ti.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Teus dedos

Meus dedos poderiam aprender muito com os teus: a facilidade que eles têm de, com quatro ou cinco movimentos, recriar o mundo, o feitiço que os faz donos de um azul único, tal como o azul deveria ser sempre, a magia de colocar nas telas mulheres que seriam exatamente iguais a ti, se fossem tão belas. Meus dedos poderiam aprender tantas coisas com os teus, e poderiam talvez ensinar-lhes como estrangular-me docemente e me propiciar, quando o dia vier, uma morte tão venturosa quanto a vida que me dão quando me acenam ou pousam no meu rosto.

Sacrário

No território do amor, tudo se torna sagrado: um livro que as mãos amadas tocaram, um rabisco que ela fez nele, um sachezinho de adoçante que ela esvaziou e nós astuciosamente surrupiamos, um sorriso que nossos olhos se recusam a esquecer. Amor, como são simples os teus tesouros, como é valioso o teu sacrário.

Aspiração

Poder viver novamente aquelas noites nas quais eu esperava em febre, além do nascimento do sol, a tua primeira mensagem do dia, cujas letras apareciam no monitor levemente borradas pelo orvalho e com os olhos ainda meio fechados de sono.

De ouro

E todas as manhãs são sempre e serão aquela em que teus dedos, como um passarinho bicando uma faísca de ouro, puxaram da estante da livraria aquele romance de Philip Roth.

Calçada

És aquele canto de calçada que os pés dela pisaram certa manhã, na entrada da galeria, e esperas ainda, tantos anos depois, que, dos milhares de passos diariamente dados sobre ti, dois possam ser um dia, novamente, aqueles cujo eco ressoa ainda em teu insuspeitado coração de pedra.

Chagas

Aqueles aos quais o amor infligiu suas marcas puseram-se a caminhar no rumo da montanha na qual, diziam, o amor apareceria para mitigar-lhes as dores. Depois de semanas de jornada, chegaram e lá já estavam, também esperando o amor, outros homens, muitos. Estes disseram que já se encontravam ali fazia anos. À decepção inicial seguiu-se uma comparação - os recém-chegados exibiam suas feridas e examinavam as dos outros. Logo estavam todos sorrindo - os sorrisos mais abertos eram os dos que tinham maiores e mais profundas chagas - e esqueceram-se todos de que haviam ido ali para livrar-se delas.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Ainda bem

Por itinerários tortos
Ou por caminhos normais,
Nós logo estaremos mortos
E não sofreremos mais.

Em último caso

Convém manter certo orgulho, algum amor-próprio, um pouco de autoestima, e só renunciar a eles em último caso, e em uma única hipótese: por amor.

De alguns

De alguns ela se recordará, quando o corpo se aquietar e chegar a época das lembranças. Confundirá talvez um ou dois nomes, mas de alguns lembrará até o adjetivo com que definia a personalidade de cada um: o sonso, o pirado, o afobadinho. Talvez com algum esforço se lembre daquele que lhe fazia exortações apaixonadas em versos. Como era mesmo o nome dele, daquele que ela chamava de panaca?

Quantas dessas

Quantas dessas, cantadas em versos, não se movimentaram prazerosamente sob o corpo de homens que traziam na boca ávida de beijos ainda uns restos de jantar.

Egocentrismo

Queremos conhecer o significado de todas as coisas e nisso gastamos nossa vida, esquecendo-nos de olhar a beleza que nos cerca. É o preço que pagamos pela presunção de supor que tudo no mundo foi feito para que nós o decifrássemos.

A palavra

Ele não conhece o termo, mas quando ela sorriu para ele, dividindo com o sol a tarefa de iluminar aquela manhã, ele presenciou uma epifania.

domingo, 13 de maio de 2012

A medida

Já nada mais lhe interessa.
Viveu já sua medida
E agora o que quer da vida
É que se vá, e depressa.

Oximoro

A tua falta tem sido a presença mais constante em minha vida.

Nós

Que seres desinteressantes são os homens. Mas que alarido fazem, e como se proclamam superiores. Cinquenta deles ou cem, se tanto, em toda a trajetória da espécie, realizaram alguma coisa que os deuses aprovariam sem bocejar. Todos os outros bilhões, trilhões, multilhões, nada mais fizeram senão, com seus bramidos, calar o sussurro da brisa e as histórias despetaladas pelas rosas.

A Dama

A poesia, pura e inalcançável dama, o olha do alto, da lua. Ele sabe que ela o vê, e ergue os olhos mais uma vez. Quem sabe hoje ela lhe dê algum sinal de reconhecê-lo. Enquanto isso, ele se ocupa desviando-se aqui e ali das migalhas de ouro falso que, para atraí-lo, as raparigas da noite deixam escapar de suas bolsinhas. Ele não presta atenção a elas. Continua olhando para cima, para a lua, mas, se a Dama o vê, é ainda com desdém. No entanto, ele sabe que a alguns, uns poucos e afortunados, ela permite que a apalpem, como se fosse uma das raparigas que persistem em apregoar suas quinquilharias, com suas vozes de dentes postiços.

Mais (e ainda tão pouco) de Lobo Antunes

"O que seria de nós, não é, se fôssemos, de fato, felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa de colégio?"
("Os cus de judas", página 166, publicado pela Objetiva.)

sábado, 12 de maio de 2012

Furto

Aquele que te viu esplêndida sob o sol da manhã, que ousou olhar-te nos olhos e falar-te não fui eu. Foi alguém de quem eu, astuto, furtei a preciosa memória.

Fim

O mundo já não lhe importa.
Amou muito, já não ama,
Do amor extinguiu-se a chama
E sua vida está morta.

O sobrevivente

Quero dizer que apesar
Das noites atormentadas,
Das lágrimas derramadas,
De toda a dor e o pesar,

Que após ao amor lançar
As maldições mais iradas,
E as mortes mais desgraçadas
Para ele vaticinar,

Reconheço hoje que errei,
Que fui estúpido, eu sei,
Como sempre tenho sido.

E graças dou ao amor
Por ser como ele é, e por
Ter a tudo resistido.

Sem toques, sem palavras

Houve um tempo, não muito distante, em que, quando caminhava pelo parque, eu parava às vezes diante de um canteiro de flores, tocava uma ou outra e, se não houvesse por perto quem pudesse me chamar de bizarro ou maluco, conversava uns minutos com elas. Não direi que elas me contavam as histórias segredadas pela brisa, porque estaria mentindo, mas admito que lhes contei algumas, todas tendo como tema o meu triste amor. Fui notando, com o tempo, que elas, ao contrário das outras, dos outros canteiros, definhavam, como se lhes faltasse água e sol. Não fui ao parque por uma semana. No dia em que voltei, pensei que estivesse diante de outras flores: eram, de todas, as mais belas. Não as toquei nem elogiei. Fingi nem tê-las visto e, caminhando sem olhar para trás, deixei-as brilhar ao sol, como uma majestosa dádiva.

O preço

Tivéssemos nós sabido
Que cada abraço, que cada
Carícia compartilhada,
Que cada beijo bebido

Que cada fruto colhido,
Cada delícia provada,
Cada semente lançada
Tinham seu preço devido.

Soubéssemos que com dor,
E dobrado, todo o amor
Que tivemos pagaríamos,

Ainda que nos doesse mais,
Eu sinto, eu sei que jamais
Nós dele desistiríamos.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Brilho e arte

Como eu gostaria de te dizer coisas simples, de te mandar um bom-dia, de te desejar um sol pleno como uma laranja à qual tu, menina que és, tivesses mais direito que ninguém e pudesses colher ficando na ponta dos pés. Como eu gostaria de te dizer que tenho pensado em ti com uma ternura que é talvez meu mais nobre sentimento e que me torna melhor diante dos meus próprios olhos. Como eu gostaria de te dizer que aqui está quente, ou está frio, ou nem quente nem frio, essas coisas que costumamos dizer para dar um descanso àquelas palavras que em nossos pensamentos ou em nossos lábios a todo instante se alvoroçam para exprimir o amor. Como eu gostaria de te dizer tudo que te digo sempre, mas com um pouco mais de brilho e arte, não para me enaltecer nem para me gabar, mas porque brilho e arte te cairiam bem melhor, minha amiga, do que minha desajeitada singeleza.

Como um pássaro

Podes pegar minha mão, analisar-lhe as linhas. Nelas não lerás prognósticos de glórias, prenúncios de conquistas. Há um tempo para isso, e o meu se foi. Pega minha mão entre as tuas e aquece-a como se ela fosse um órfão faminto. Não precisas levá-la ao coração, ela não está habituada a tanto carinho e morreria de doçura. Podes mantê-la assim, assim, apaziguada como um pássaro que reencontrou o ninho.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Desforra

O amor gastou sua voz
Pelas ruas nos chamando,
Nos becos investigando
E procurando por nós.

Dele nós plenos estávamos
E nada mais nós queríamos,
Por isso dele nós nos ríamos
E dele nos afastávamos.

Hoje, que nós o perdemos
E que de volta o queremos,
Ele se vinga e nos deixa

Por ele em vão procurando,
Pedindo e nos humilhando,
E não ouve nossa queixa.

A verdade

Foi tanto amor, tanto que eu,
Que só por ele vivi,
No que aconteceu não cri
No dia em que ele morreu.

Que sangue-frio tiveste.
Ninguém queria dizer-me,
Porém tu vieste ver-me,
E foste tu que disseste.

Meus olhos tristes te olharam,
Aflitos te interrogaram
E crer nos teus não queriam.

Não podia ser verdade
Tão grande infelicidade,
Mas teus olhos não mentiam.

Tempo e espaço

Minha ilusão te imagina
Caminhando pela rua
Com essa graça toda tua
E te segue, esquina a esquina.

São três horas e já sei
Que tomarás o café
E irás depois ao balé
Onde também te verei.

Contigo estando no tempo,
Enfrento um só contratempo,
Padeço de um só fracasso:

Estando sempre contigo,
Sei que estás também comigo,
Mas nunca no mesmo espaço.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Inveja

Cada vez que fecho os olhos e durmo, sinto inveja dos mortos. Para eles, o sono jamais se interrompe.

Poderias

Poderias gostar de mim
se eu te mostrasse como sou
como posso ser
afetuoso e obediente
como consigo apanhar
graciosamente no ar
o petisco que me atires
e como posso também
ladrar educadamente
com a altura e o timbre
que preferires

E como posso
enquanto dormires
zeloso guardar-te
e como posso
de manhã acordar-te
com um latido suave
como o pio de uma ave
um delicado gorjeio

E como poderia eu
se tu quisesses
exibindo minhas boas maneiras
plantar-me nas traseiras
e com as patas dianteiras
desejar-te todos os dias
o bom dia que mereces.

De Lobo Antunes, sobre os amores ocasionais

Poucas vezes minha necessidade de tristeza foi tão satisfeita quanto na frase de António Lobo Antunes que reproduzo abaixo:

"De tempos a tempos, mulheres encontradas por acaso no canto de sofá de uma reunião de amigos, como quem descobre trocos inesperados no bolso do casaco de inverno, sobem comigo no elevador para uma rápida imitação do deslumbramento e da ternura de que conheço já de cor os mínimos detalhes, desde o desenvolto uísque inicial ao primeiro soslaio de desejo suficientemente longo para não ser sincero, até o amor acabar no chapinhar do bidê, onde as grandes efusões se desvanecem à custa de sabonete, raiva e água morna."

(De "Os cus de judas", página 109, publicado pela Objetiva.)

Teu sol, só teu

Hoje cedo, bateu-me à porta um jovem pálido e triste que, proclamando-se poeta, me pediu que eu lhe arranjasse ao menos um pedacinho de sol, para mandá-lo à amada, que já não se satisfaz com os versos apaixonadamente escritos por ele. Armei-me de astúcia e dissimulação e disse-lhe que havia algo estranho naquilo, porque eu jamais tivera nenhum domínio sobre o sol. Era uma informação errada que ele recebera, consegui convencê-lo disso, e respirei aliviado quando ele se foi. Mas tomarei mais cuidado a partir de agora. Não quero privar-te de um centímetro de sol que seja. Se um dia tu, como a amada do infeliz poeta, te aborreceres com meus poemas, que me reste, como forma de homenagear-te, a única que na verdade é digna de ti: a madura exuberância do sol pleno.

Discrição

Talvez não queiras dizer-me
Que já são outros os dias
E que não sentes ao ver-me
Aquilo que antes sentias.

Talvez receies contar-me,
Temendo que o sofrimentro
Seja capaz de matar-me,
Que de outro é teu pensamento.

Não temas. Se o que eu vivi
Vivi só graças a ti,
E a ti liguei minha sorte,

Posso acaso lamentar
Se tu me vierea-s a dar
Após tanta vida a morte?

terça-feira, 8 de maio de 2012

Uma frase de Lobo Antunes

A pieguice como forma de apego ao passado dificilmente terá sido mais bem descrita do que nesta frase de António Lobo Antunes que reproduzo abaixo. Serviu-me a carapuça, como se diz, ou, se calhar melhor, caiu-me a máscara:

"A pieguice, sabe como é, substitui com frequência em mim o desejo genuíno de mudar, e vou ferindo imperturbavelmente as pessoas em nome dessa espécie peculiar de autocomiseração e arrependimento que reveste a maior parte das vezes a forma de um egoísmo feroz."
(Do romance "Os cus de judas", página 87, publicado pela Objetiva.)

Admirador matutino

Durante seis meses, no seu obstinado afã de conquista, ele enviou toda tarde meia dúzia de rosas ao endereço da mulher pela qual se apaixonara. Assinava no cartão ora "seu fã", ora "seu admirador", ora simplesmente "um amigo". Na manhã seguinte, favorecido pela circunstância de pegar sempre o mesmo ônibus que ela, sorria-lhe tão abertamente que era como se lhe perguntasse: recebeu as flores? Ela, porém, nem o olhava. Ele contou o que estava lhe sucedendo a um amigo que, depois de pensar um pouco, lhe disse que ele devia estar fazendo algo errado. Nessa tarde mesmo, em vez de seis mandou doze rosas e escreveu no cartão, achando-a poética, a expressão "seu vizinho matutino". Na manhã seguinte, no ônibus, sorriu mais significativamente para a amada e, para que não ficasse dúvida, mostrou-lhe os dez dedos abertos e em seguida adicionou dois, num gesto cuja execução lhe custara uma hora de treino noturno. Não recebendo nem um "ah" de volta, decidiu ser mais explícito e, se bem que em voz baixa, disse: "Olhe, meu nome é Altair e eu notei que todo dia você toma este ônibus." Seu rosto encheu-se de uma nova esperança.

A rosa

Bem vês, pela hora em que te mando esta mensagem, que passei mais uma noite em claro. Ia falar em insônia, mas quando se diz insônia se pensa em uma noite atormentada, e a minha eu não posso dizer que tenha sido assim. Posso, no máximo, dizer que ela foi docemente ocupada por tua presença e que, enquanto pensava em ti, fui imaginando os dois quartetos e os dois tercetos em que te compararia - se bem que a ideia fosse já um tanto batida - a uma rosa. Atrapalhei-me nas rimas, no arranjo das estrofes, e a manhã chegou sem que eu concluíssse o soneto. Ficou-me a imagem da rosa, plena, que me apresso em te mandar, ainda com um pouco do orvalho que a noite juntou e o sol não pôde ainda desfazer.

Kuala Lumpur

Dizem que em Kuala Lumpur há homens belos como em nenhum outro lugar. Aos seus ancestrais, feiticeiros, bastava-lhes olhar para uma mulher e ela se tornava irremediavelmente escrava deles. Hoje, nem de feitiços precisam. Uma mensagem pela internet, mesmo sem foto, é suficiente para que qualquer mulher de qualquer país ligue para o agente de viagens e reserve passagem, antes mesmo de perguntar onde diabos fica Kuala Lumpur.

Filosofia

Como ela estivesse com quarenta, e o professor com sessenta, pareceu-lhe mais adequado ter como interlocutor o estudante de vinte e dois. Eram proveitosas e longas as tardes, embora ele, adepto de Epicuro, nem sempre estivesse disposto a falar de Platão.

As marcas

Se em nosso rosto mortificado alguém adivinhar as marcas de um vício, que sejam elas as das longas noites em claro por martírios de amor ou por desenganos da literatura.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Soneto dos velhos conhecidos

Devo ter te conhecido
Em outro tempo, outras eras.
Tu deves ter me esquecido
E eu não me lembro como eras.

Mas já nos vimos, querida,
Ou como se explicaria
Tamanho amor? Uma vida
Somente não bastaria.

Se um poema terno te escrevo,
Sei que pago o que te devo,
E o que há muito merecias.

E tu não sentes também
Que se me dás tanto bem
É porque há muito o devias?

Terramarear

Uma das paixões que tive na adolescência foi uma coleção chamada Terramarear. Eram aventuras de piratas, usurpadores de tronos reais, heróis legendários, desbravadores de selvas e territórios inóspitos. Minha imaginação - ou o que eu viria a chamar depois de imaginário - e meu vocabulário básico se nutriram nessa fonte. Até hoje, se leio palavras como flibusteiro, espadachim, tilintar ou retinir (de espadas), amurada, vagalhões, recifes de coral, convés, um arrepio me leva de volta àquele tempo, em que eu, rapazola, começava a descobrir o mundo pela mais eficaz de todas as formas: a leitura. O fascínio provocado pela coleção já principiava pelo título. Numa época em que não tinha sido dado ainda o grito inicial do concretismo e as artes visuais e a linguagem não estavam tão ligadas, Terramarear era um achado. Em minhas lembranças mais antigas, Terramarear brilha como uma invocação mágica, um abre-te sésamo.

Pecado original

As primeiras histórias que li tinham elefantes, camelos, formigas, ursos falantes, baleias brincando de esguichar água umas nas outras. Foi o que me deram inicialmente para me viciar. Logo eu estava lendo relatos sobre o que o homem faz de melhor: roubos, violência, assassinatos, guerras. Pegaram-me como pegaram todos os outros. Levaram-me como se fossem conduzir-me ao paraíso e deixaram-me no inferno. Com as palavras devia ser permitido contar só histórias de bichos, peixes, pássaros e talvez também daquelas nuvens claras que parecem carneiros.

História

Um dia, quando viu, não tinha mais o amor e sobrava-lhe toda a sua triste história para contar.

Formas de amor

Li tantos poetas e para quê? Um dos primeiros foi Casimiro de Abreu e ele me bastaria. Casimiro fala de amor como quem fala da mais importante dádiva da vida. Há melhor maneira de falar dele? Se houver, não me digam, por favor. Prefiro desconhecê-la. Quem? Vinicius de Moraes? Bom, pode ser. Vá lá. Um amor um pouco mais avançado, mais... interesseiro. Já que a moda são as faixas etárias, fiquemos assim: dos doze aos dezesseis, Casimiro; dos dezesseis aos vinte, Vinicius. E dos vinte em diante? Dos vinte em diante, recorram a sinônimos, já sabendo que qualquer um deles será não mais que uma imitação, um reflexo. Esses sinônimos, se posso sugerir alguns, seriam, em suas formas mais significativas, o prazer, a paixão, a luxúria, e, nas manifestações mais benignas, a simpatia, o afeto e a amizade, sendo esta a mais morna e desinteressante de todas.

Para que o vento noturno não o proclame

Peço-te que me perdoes, mas quando ouço a palavra amor eu imediatamente penso em ti e, se alguém me perguntar de chofre o que há de mais belo no mundo, pronunciarei uma a uma as sílabas do teu nome, mesmo que tenha prometido a mim mesmo, tantas vezes, só murmurar essas sílabas naqueles raros instantes em que apenas meu ciúme e eu possamos ouvi-las, para que o astucioso vento noturno não as proclame para ouvidos indignos de conhecê-las.

domingo, 6 de maio de 2012

O amor entre rochedos

Depois de tantos percalços,
De destroçados conveses,
De pugnas e reveses,
De tantos triunfos falsos,

Depois de tantas jornadas
Seguindo vagos roteiros,
Buscando vãos paradeiros,
Em incursões malogradas,

O amor renegou o mar.
Mas ainda às vezes, saudoso,
Leva uma concha ao ouvido

E se põe a recordar
Seu som cruel e furioso,
Seu majestoso alarido.

Talvez tu leias

Não sei se lerás isto. Gostaria que sim, embora não vá pôr aqui mais nenhuma daquelas palavras com as quais por tanto tempo eu tentei despertar tua ternura. Todas voltaram sem resposta e eram todas pombos de que cuidei desde pequenos e aos quais ensinei a certeza dos caminhos e o modo mais gentil de carregarem no bico, e entregarem, mensagens de amor. Talvez algum acaso, uma reunião de sílabas que esteja numa frase, um modo, uma diferença na maneira de escrever este bilhete, mais simples, possa fazer mais por mim do que aquelas normas todas de estilo que tomei como científicas, como se o amor se deixasse seduzir por ciências, o amor, que é o mais imponderável e o mais escorregadio de todos os sentimentos.

Cecília

"Cecília, Cecília", os gritos começaram a ressoar pelo corredor, e os que estavam internados no hospítal já havia uns dias se puseram a perguntar que enfermeira podia ser aquela, que eles não conheciam, até que afinal, com os gritos já cessados, souberam que o alarido tinha sido causado por um homem de uns sessenta anos que havia lembrado o nome de uma namorada de infância e chamado por ela até morrer.

Tal qual o amor

Reconhece em si os mesmos sintomas que viu no amor quando ele se foi há um ano: as febres repentinas, o frio que o fazia gemer, a tristeza que o levava a encolher-se como um gato louco embaixo dos móveis, as alternâncias de humor, os silêncios cada vez mais longos, os olhos olhando cada vez menos para tudo. Tudo vai seguindo o mesmo rumo, cada manhã o sol, mais pálido, parece querer dizer-lhe que o dia é o último, e ele espera, tal qual o amor, ter gastado todas as queixas e ir embora dignamente, sem uma palavra nos lábios, como se jamais tivesse aprendido alguma.

Revisão

Certas vírgulas, principalmente aquelas que numa frase muito longa introduzem obstáculos entre o amor e seu objeto, deixam-no furioso e, quando ele trabalha de madrugada revisando livros, os vizinhos intrigam-se ao ouvi-lo gritar, como se estivesse se dirigindo às suas gatas: "Malditas! Malditas! Malditas!"

sábado, 5 de maio de 2012

Desperdício

Aqueles frutos que depois de uma ou duas mordidas displicentes atirei aos pássaros, quanto sabor teriam para mim, agora que as árvores, para me castigar, me escondem avaramente todos, camuflando-os com seus galhos e homiziando-os em seu verde, enquanto os passarinhos que outrora favoreci com minha prodigalidade escarnecem de mim com seus gorjeios.

Coerência

O que sei de mim é a minha ignorância, o que conheço de mim é o meu desconhecimento. Ando me desandando, me desencontrando, me tropeçando. Se alguma virtude tenho, é a coerência: sempre fui assim.

A contagem

Ela se afeiçoou a um dos carneirinhos e agora, quando chega ao número 163, conta depressa até o 200, que era sua cota diária, e reinicia a contagem, e chega de novo ao 163, e volta a avançar até 200 e abençoa sua insônia, que a faz viver toda noite o encantamento de ver duas e até mais vezes o centésimo sexagésimo terceiro carneirinho.

A borboleta

Teve finalmente coragem de pousar o braço no ombro dela e sentiu outra vez, como tantos anos antes, a certeza de que não há pior inimigo para o homem do que o tempo. Sabia que não havia eternidade e que sua mão acabaria precisando se afastar daquele ombro, assim como precisara soltar, quando menino, a borboleta que por uns instantes ele julgara o mais precioso dos tesouros do mundo.

Rima

Não, teu sorriso não me levou ao paraíso, mas eu continuo imaginando que seja uma rima possível.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O mesmo produto

Já te mandei apelos de amor desesperados, brados aflitos do coração. Já te pedi tantas coisas, já te censurei por tantas recusas. É hora, eu penso, de pelo menos simular que o amor pode ser aquietado, pode encolher-se um pouco, ou bastante, e até fingir-se de morto, para que sua ansiedade não o faça tornar-se tão importuno quanto aquele vendedor tocando diariamente a campainha para apregoar sempre e sempre o mesmo produto e suas incomparáveis propriedades.

Apostando no sol

Naquele tempo, convenhamos, eu era confiante, otimista até. Levantava-me, abria o micro e mandava-te um bom-dia, anexando o sol, mesmo que ele não houvesse aparecido ainda. Ele nunca me faltou, é verdade, mas não deixava de haver certa ousadia naquilo. Como enviar-te bons-dias quase sempre me rendia um retorno teu, era inevitável que me ocorresse a astúcia de mandar-te também boas-tardes e, por que não, boas-noites. Tornei-me um modelo de afabilidade e um exemplo de amigo fiel. Embora fossem três essas oportunidades diárias, assim que aproveitava uma começava a me sentir ansioso porque me parecia tardar demais a ocorrência da seguinte. E passei a tentar preencher os intervalos com mensagens para as quais sempre arranjava pretexto: um livro que havia lido, um programa visto na véspera, uma notícia de jornal. Penso que foi nisso que me perdi. Um dia, ou uma tarde, percebeste, apesar de toda tua gentileza, que era muito tempo gasto com uma pessoa só. E alguns - e depois todos - os meus truques começaram a falhar. Hoje acordo tarde, cada vez mais tarde, e não me animo a apostar na aparição do sol, nem tenho sempre pronto para dizer-te o que aconteceu ontem na tevê ou o que eu de madrugada, tentando não pensar tanto em ti, li no jornal.

Ternura

Gostaria que me visses num dos momentos, como este, em que penso em ti e se apossa de mim um sentimento que me aniquila docemente, que me dissolve e que não creio poder exprimir-se com a palavra ternura. É ternura, sim, como costumamos entendê-la, e no entanto é muito mais do que só ternura. É ópio, é absinto, é algo insuportavelmente e deliciosamente lânguido, um tempo sem espaço, algo talvez semelhante com um êxtase místico, uma deliquescência espiritual, uma beatitude, um desses instantes únicos e fugidios em que o corpo parece ser tocado pela alma e reconhecê-la. Gostaria que me visses nessas ocasiões e me dissesses se eu fico com ar de santo diante de uma revelação ou, como sempre imagino, com esta cara de pateta atingido por um raio de felicidade.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Espera ainda

Espera ainda, não sabe
O quê. Mais amor não há
De ser, pois mais amor já
No coração nem lhe cabe.

Espera e, venha o que vier,
Apesar do amor que tem,
Conhece o que lhe convém
E menos amor não quer.

Até o maior defeito
Do amor parece perfeito,
Mesmo a pior felonia.

E ele o vive plenamente,
Ora doce, ora acremente.
Sem ele não viveria.

Destino

Se é verdade que cada um de nós faz o seu destino, tenho uma queixa: não sou importante, longe disso, mas bem que poderiam ter-me designado um administrador melhor que eu.

O que pensar

Tinha medo do que pudessem pensar dele, embora ele mesmo não soubesse o que pensar de si.

Como é teu nome

Às vezes, penso que te perdi por jamais ter sabido como te chamar. Cada pessoa há de ser chamada de uma forma, escolhida não por ela, mas por quem a chama, e quem chama uma pessoa amada deve chamá-la como jamais ninguém a chamou. Eu não soube fazer isso, não consegui atinar com o único nome pelo qual me seria lícito chamar-te, e hoje, vendo que partiste, vejo também, com a alma sofrida, que talvez jamais possa trazer-te de volta. Como te chamo, qual é o teu nome para mim, meu amor?

Que dói

Vou te dizer que dói, dói muito, dói faz tempo e dói cada vez mais. Você pode me considerar cético, mas vou te dizer que não creio quando alguém comenta que tudo, até o amor, tende a se esvair aos poucos. Sei que não se esvairá. Sei também que não deveria estar te dizendo isto tudo, eu havia prometido que não. Se digo, é para compartilhar com alguém esta dor, que me rói todo por dentro. Se digo, é também para te aconselhar que, se um dia amares, nunca acredites que o amor se esvai. Se o amor se esvai, se pode se esvair, tudo está perdido, tudo está errado no mundo.

O violino

Sonhei que tocavas violino, e tão triste era a melodia que cada nota me apertava o pescoço como se obedecesse a uma ordem de execução. Eu arroxeava, já, e no entanto era tão doce a morte que, se paravas de tanger as cordas, eu te implorava que continuasses. Ah, que decepção, que dor senti quando acordei. Por que não continuaste? Por quê?

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Invernos

Nunca mais, nem tentando subornar a memória, ele conseguiu resgatar os ensolarados dias de outrora. Todos agora lhe voltam frios, como se então, assim como agora, ele só tivesse vivido invernos.

Quando te olham

Triste é ver
quando te olham
que podem
conforme o dia
ver em ti
talvez um traço
de sensatez
talvez também
alguma sabedoria

Talvez até possa alguém
com boa vontade
um dia dizer
e alguém crer
que sim
que é verdade
que tens até
certa filosofia

Mas pode
alguém olhar-te
de alto a baixo
avaliar-te
e achar-te adequado
para ser seduzido
para levar
e para ser levado
para o fim do muro
para o canto escuro
como aquele rapaz
agora para lá conduzido
e podes como ele
dar à garota
e receber
o mais intenso prazer
o único real tesouro
que podem ter
os pobres mortais?

De vícios e drogas

Livrou-se de todos os vícios que teve. Sabe que a primeira providência contra eles é admiti-los, antes de começar a combatê-los. Fez isso com o cigarro e o álcool. Fez isso com o amor, várias vezes, e em todas também foi bem-sucedido. Mas sempre acaba, no caso do amor, vencido por uma força maior, embriagadora como uma droga: o vício da recaída. Agrada-lhe recair, ir recaindo aos poucos, negando que recai, não admitindo, ofendendo-se com quem sugere isso, e recair mais, mais, até recair inteira e gostosamente, como se estivesse caindo pela primeira vez.

Martírio

Não sofri muito, perto de outros, que pelo amor deram sua vida. Tenho vergonha de mim e inveja deles.

Razões nobres

Quando me ouviu dizer que minha desgraça, minhas chagas morais e físicas e minha penúria tinham como origem o amor, o homem balançou a cabeça: "Já sei, você é um desses que inventam sempre razões nobres para os seus infortúnios." E recolheu a moeda que ia me dar.

Cabelos

Estavas com os cabelos molhados pela chuva e, quando eu ia afagá-los, te despediste e saíste para o sol que repentinamente reaparecera na avenida. Custei a convencer minhas mãos de que talvez elas tivessem sido preteridas por outras não tão carinhosas, mas decerto mais eficazes.

Sete letras

Eu te pegaria emprestado o pincel, pediria que te sentasses e na tua testa escreveria sete letras, na cor que escolhesses. Retocaria, embelezaria, ficaria assim, retocando e embelezando durante pelo menos uma hora. Só depois deixaria que fosses olhar no espelho. E como seria bom ver-te e ouvir-te dizer, meio amuada, meio lisonjeada: "Ah, isso eu já sabia."

terça-feira, 1 de maio de 2012

Fim

O tempo é curto. Só dá
Agora para dizer
Que se você quer viver
Viva logo e morra já.

Síntese

Peneirar a dor, guardar
Dela somente o resumo,
O melhor, o suprassumo,
O que faz mesmo chorar.

Entre o Masp e a Consolação

Às vezes, entre as estações Masp e Consolação, se me alheio um pouco, e penso em ti, vem-me de repente um alvoroço como aquele que só sentimos na infância, ao subir numa roda-gigante ou numa montanha-russa. Devo sorrir nessas ocasiões, imagino. Pena que esse estado dure apenas uns momentos. Quando volto do devaneio, sinto que alguns passageiros se espantaram ao ver um homem, por um minuto ou dois, remoçar alguns anos e, como se no meio a mágica falhasse, reassumir sua face velha e tristonha.

Naquela época

Naquela época, eu tinha planos arrojados. Trazer a lua lá de cima para ti era um deles e, confesso, o que mais me agradava. Imaginava teu espanto, o modo como me olharias ("não é que o maluco conseguiu mesmo?") e a minha modéstia de herói ao pedir-te um beijo, só um, como prêmio pela façanha. Ah, quem me dera recuperar aquele espírito, aquela forma juvenil de ver a vida, aquela abençoada patetice, aquelas ilusões sem as quais - eu já começava a desconfiar então - eu não seria capaz de continuar vivendo.

O azul

Eu gostaria de ter sido o azul de um de teus trabalhos, um daqueles azuis cujo segredo só tuas mãos conhecem, azul de árdua alquimia, e ficar num cantinho da tela de onde pudesse ver-te sempre que passasses perto, ainda que jamais olhasses diretamente para mim e só tivesses atenção para as outras cores, como se eu houvesse sido uma falha na tua concepção de artista.

Distância

As mãos dela estiveram tão próximas das mãos dele naquela tarde - dois centímetros ou um, talvez meio - e ele se condena por não ter ousado, por ter sido tão educado, tão tolo, tão covarde. Hoje, ai dele, a distância é de mais de dois anos e aumenta a cada batida do seu infeliz coração.

Muito mais que ele

Faz-lhe bem a derrota

Lutou por ela
esforçou-se para obtê-la
e agora a tem completa

Ganindo
mostra ao dono
como foi ferido
onde os dentes
do outro cachorro
entraram rasgando

Gostaria que
o dono visse
o outro cachorro
tão maior que ele
mas ele já se foi
se pavoneando

Foi um mérito
escolher aquele
bem grande
capaz de em
poucos momentos
e seis ou sete movimentos
abrir tantos fundos
ferimentos

Chamou-o
desafiou-o
fingiu oferecer-lhe
resistência
como se pudesse
e ganindo
exibe ao dono
que tem na mão
um chumaço
de algodão
como está machucado
como merece
mais carinho
muito mais
do que lhe está
sendo dado
muito mais
que o gato
escarrapachado
no sofá
que indiferente
ao incidente
só não gargalha
porque não sabe
gargalhar.