quarta-feira, 31 de outubro de 2012

De novo não

O vento passa e te diz
Assim como disse outrora
Que se queres ser feliz
Tu deves segui-lo agora.

Mas tua alma, que ainda chora
Aquela ideia infeliz
De ouvir o vento e deplora
Ter desejado o que quis,

Implora que tu atento
Fiques aos ardis do vento
E não te deixes levar

De novo para um pomar
Pleno de frutos dourados
Que te serão recusados.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

A voz

Em prosa nem sequer boa
E em versos sem qualidade,
Em mim a voz que ressoa
É a voz da mediocridade.

Último parágrafo

Mas é sempre possível
nós nos jogarmos
lá de cima
bem lá do alto
e ajudados pelo vento
voarmos por um momento
e nos despedaçarmos no asfalto

Talvez tenhamos a sorte
de suicidas principiantes
e na queda levemos à morte
um transeunte dois circunstantes
e num cantinho de jornal
se reconheça afinal nosso valor:
escritor em voo louco
mata três de uma vez.

O essencial

Em muita história que se ouve,
Do seu início ao seu fim,
Nem tudo que se conta houve.
(E a nossa história é assim.)

Intuição

Olha para as mãos
pela artrite deformadas
e dá razão hoje
à intuição que outrora mostraram
as carnes e as polpas jovens
que adivinhando a iminente ruína
da sua pele macia
recusaram-se a ser tocadas.

Conselho

Pensa bem no que te digo:
Jamais desdenhes das flores.
No dia em que tu te fores,
São elas que irão contigo.

Lorde Gagá

Velho, ages como um rapaz.
Mais uma vez te dirão
Que és tal qual um garanhão -
E tu acreditarás.

Aspiração

Ser comum, mais que comum,
Modesto na aspiração:
Não ter intuito senão
Não ter intuito nenhum.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

É tudo que se quer

Verônica Sabino
sabe que um hino
se de amor for
melhor será se tiver
nem retumbâncias
nem estrondos
mas notas leves como o vento
que levem o sentimento
de um amante
próximo ou distante
até onde o outro amante estiver.

Verônica Sabino
sabe que um hino
se de amor for
se essa simpleza
se essa delicadeza tiver
só isso nada mais
é tudo que se quer.

Para que viver

Que mais queres? Fatigado,
Por mais que venhas a andar,
Estás fadado a ficar
Onde já estás: no passado.

Em tudo estás superado,
Nada mais tu tens a dar
E ainda que tentes negar
Teu tempo está terminado.

Sem sonhos, sem esperanças,
Por acaso não te cansas
De persistir em viver?

Nessa idade com que estás
Tudo o que tu viverás
Viverás para morrer.

Na árvore

Na árvore em que ele se enforcou, os pássaros cantam como nas outras e, na estação das flores, elas despontam no galho em que ele se atou. Passaram-se já vinte anos e quase ninguém mais se lembra de que ele esteve pendurado ali, balançando ao vento, naquela manhã.

domingo, 28 de outubro de 2012

Surdo

Suspenso ainda na corda,
A campainha tocou,
O celular o chamou,
Porém ele não acorda.

Escritor

Doente, febril, quase delirante, ele, madrugada a madrugada, continua a escrever seu primeiro romance, aquele com o qual espera não só modificar sua vida, mas justificá-la. Todo dia pensa em parar, porque no escritório já notaram suas olheiras e começaram a falar delas. Mas à noite, como se fosse um santo cumprindo seu inelutável martírio, volta a escrever, e escreve até que surja a manhã. Terminará o romance daqui a oito meses, quando estiver com doze quilos a menos e desempregado. Conseguirá abrir meio sorriso de triunfo, envelopará o original e o encaminhará a oito editoras. Esperará três meses, seis, um ano, dois. Ficará ligando, ligando. E, sempre que ligar, saberá que o editor está em uma bienal de literatura no exterior, em férias ou numa daquelas reuniões que começam na segunda e na sexta ainda não acabaram. Não é maltratado. Quem atende as ligações nas editoras é sempre gentil e, delicadamente, pergunta o nome dele antes de dizer que desculpe, mas o editor infelizmente...

Disseram...

...  que a vida é bela, e tu acreditaste.

Alma

Pelo que temos na consciência, que a alma continue invisível, imaterial, intangível e - principalmente - inodora.

E daí?

A viúva de Jorge Luis Borges, María Kodama, revela que ele lhe dizia que Adolfo Bioy Casares não passava de um dejeto humano. Como escrevia bem esse dejeto...

... que eu gosto

Finjamos então também
Que a vida é bela e que Deus
E todos os anjos Seus
Só querem o nosso bem.

Presunção

Jamais houve em mim um poeta. Houve sempre um tolo que poeta se julgava.

Ideal

Um poema só há de ser feito
Se for mais doce que o sumo,
Mais puro que o suprassumo,
Perfeito mais que o perfeito.

Marinha

Eu gostaria de estar em uma tela tua, ser um veleiro que à luz do dia riscasse de branco as ondas verdes e à noite, com a sala embrenhada nas sombras, descansasse como as gaivotas, o vento e as árvores da praia, à espera de que abrisses as janelas da manhã para o sol.

Resolução

Não escrever mais. Deixar a literatura ficar como a fizeram os antigos e como os novos virão a fazê-la. Como consolo, ler muito, ler acreditando na teoria de que todo leitor exerce uma espécie de coautoria.

Traça

Tudo que alegra, e o que dói,
Morre, cessa, finda, passa.
Tudo que é vivo uma traça
Traça, ataca, fere, rói.

sábado, 27 de outubro de 2012

Av. Paulista, 2.073

Não viverei para ver
o que o tempo certamente fará
com a galeria
com a cafeteria
com o acesso à Livraria Cultura

Não viverei para ver
como tudo se modificará
como a estante de poesia
mudará talvez para onde havia
a seção de arquitetura

Não viverei para ver
a manhã em que para mim não sorrirá
aquela atendente esguia
que para nós fazia mesura após mesura
naquele tão longínquo dia

Não viverei para ver
com quem você nessa manhã entrará
para perguntar à atendente esguia
diante dos livros de arquitetura
onde foi parar a estante de poesia.

Abrigo

Quando alisa os negros cabelos dela, finge que seus dedos são órfãos pobres, muito pobres, esgueirando-se pela noite para ocultar-se dos inimigos. Ontem, talvez porque a escuridão estivesse mais densa, ou por malícia, o menor dos órfãos pôs-se a chorar, e os outros quatro desceram com ele um pouco, até chegarem a uma carne alva como o dia, que os recebeu afetuosa e tranquilizadora como um seio de mãe.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Quadrinha pífia

Há quem escreva por fama,
Há quem escreva por pão.
Melhor que os dois é quem ama
E escreve pela paixão.

Kama Sutra - LXI

Primeiro distraidamente, depois com intenção  e ritmo, alisou o pescoço dela, quando notou notou que ambos imaginavam como seria se, em vez de ali, os dedos dele estivessem fazendo eriçar-se outra penugem, mais espessa e macia.

Romance e cinema

A existência cada vez maior de escritores-roteiristas e roteiristas-escritores torna tediosos certos romances, pela exacerbada descrição de cenários, quase sempre sem nenhuma necessidade. Alguns desses romances me fazem lembrar um recurso que eu e os outros meninos usávamos para atingir as habituais vinte linhas pedidas no colégio pelos nossos mestres, falando de coisas que pouco ou nada tinham a ver com o tema tratado. Essa artimanha, que chamávamos de "encher linguiça", parece ter sido retomada por grande parte dos romancistas atuais, com as extensíssimas descrições do cenário em que se desenrola a ação. Eles falam das árvores, do vento, da temperatura, dos relâmpagos que no horizonte anunciam a chuva. E, como se as cenas contassem com a assessoria de alguma das belas moças do tempo da tevê, no parágrafo seguinte, sem aparente utilidade para o desenvolvimento da trama, descrevem a chuva, que chega fraca e se torna intensa, ou que vem forte e vai amainando. Há livros em que cada abertura de capítulo reserva ao menos três longos parágrafos para o desenho do cenário externo, e até do interno (às vezes um bar em que o protagonista nada vai fazer além de tomar um suco). Romance e cinema têm linguagens próprias, e essa tendência de o cinema imiscuir-se sem necessidade no romance talvez se deva à intenção do romancista de,  pressupondo a adaptação cinematográfica do livro, ir já facilitando o trabalho do roteirista (que, afinal, poderá ser ele mesmo).

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Que eu não te cite

Hoje me pediste
que jamais fale de ti
que não te cite em versos
que não te mencione em prosa
que nunca mais pronuncie
nem sequer balbucie
o teu nome

Te obedecerei
minha querida
te obedecerei
mas se de ti eu já não posso falar
de que então falarei?

Falarei da natureza
de suas belezas
do homem
de suas glórias
de suas venturas
e desventuras
de suas lutas inglórias

Falarei do sol
da lua das estrelas
do céu da terra do mar

Falarei minha querida
de todas essas outras coisas
às quais eu não dava atenção
e que hoje com tua proibição
tu me obrigas a chamar de vida.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Cena muda

Na sala, em cima da mesa,
No bilhete em dois dobrado,
A confissão da tristeza.
No quarto o amor, enforcado.

Incompatível

Não tendo o dom de viver,
Nem o de ser mentiroso,
Viver lhe dói, e morrer
Parece-lhe venturoso.

Fulgor

O escritor deve ser honesto. É o mínimo que se espera dele. Escrever por escrever é inconcebível e inaceitável. Deve haver, no ato da escrita, alguma entrega da alma, algo que, por pequeno que seja, acenda em quem irá ler o texto um fulgor, uma centelha, uma insinuação de que aquelas letras,aquelas palavras, aquelas frases não foi exclusivamente a mão que as escreveu.

Conduta

Deves o amor respeitar.
Se doer, deixa doer,
Se roer, deixa roer,
Se matar, deixa matar.

O que você fez

Na adolescência você leu Dostoiévski, Steinbeck, Pessoa, Nabokov. Você deveria ter sentido que a decisão tomada naquela época não era um sonho, era uma estultície. Se você tivesse ao menos pressentido, não estaria lamentando essas seis décadas de páginas lastimavelmente escritas por você.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Ninando

Chegou a noite, e a brisa, mãe carinhosa, embala os ramos mais jovens da pitangueira, para lá, para cá, para lá, para cá.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Sede

A janela ficou aberta, e a ameixeira, do lado de fora, estendeu um galho até o jarro na mesa da sala e roubou um pouco de água das rosas.

Kama Sutra - LX

"Que lindo! Parece de um menino", ela disse quando o viu nu. E, porque era a primeira mulher que se referia àquilo sem desdém, e até com entusiasmo, ele - sem saber o que dizer - disse obrigado e começou a chorar. Como um menino.

O amor é

O amor não leva a nada. O amor é o caminho, as dores e os tormentos da jornada. O amor jamais chega, ele sempre é, sempre está. O amor é uma árvore que não dá frutos. O amor se basta a si mesmo. Não quer nada. Já tem tudo de que precisa - o sofrimento venturoso -, se bem que não lhe desagradasse supliciar-se um pouco mais.

domingo, 21 de outubro de 2012

Soneto do amor e do ódio (versão definitiva)

Quando ao amor tu te entregas,
Eu observo, com aflição,
Que sentes menos paixão
Do que quando o amor me negas.

E quando dizes odiar-me
É bem maior teu fervor
Do que esse débil calor
Com que tu juras amar-me.

Nesse contraste é que eu vivo
E sofro, como cativo,
Essa constante tortura,

Sem saber se é um mal ou bem
Tu me amares com desdém,
E me odiares com ternura.


O estilo

Aquilo que se chama de estilo pode ser uma armadilha para o escritor. Muitas vezes, aquilo que parece a expressão de uma legítima conquista nada mais é do que preguiça e falta de ousadia.

sábado, 20 de outubro de 2012

Entrem no meu sítio

Volta e meia ressurgem movimentos que pretendem defender a língua portuguesa da invasão de estrangeirismos. A intenção pode ser boa, mas as propostas habitualmente são tão descabidas que chamá-las de ridículas é o mínimo que se pode fazer. A bizarria tem sido a marca desses movimentos, quando assumem essa feição extremada. Caçar (e cassar) palavras oriundas de outros idiomas é o deleite desses puristas há muitas décadas. Lembro-me de gramáticas que propunham a substituição de jeep não por jipe, mas por "automóvel rude", de garage não por garagem, mas por "recolha de autos", de maillot não por maiô, mas por "fato de malha", e de reporter não por repórter, mas por "relator". Uma das mais estapafúrdias dessas sugestões é a de usar "sítio" em vez de site. É caso de rir ou de chorar?

Frases "criativas"

Como desalenta ler e ouvir frases como esta: "Quando Pelé nasceu, ninguém poderia imaginar que ele seria o Rei do Futebol." Ou como esta: "Se estivesse vivo, Shakespeare teria hoje quatrocentos e quarenta e oito anos."

A vitória do amor

A maior ventura que o amor nos concede é a de esperar por ele, implorar por ele, mortificar-se por ele. Humilhar-se por amor, ajoelhar-se, diminuir-se, anular-se, não são derrotas. Quem por amor já se humilhou, quem se ajoelhou, quem se diminuiu e se anulou sabe que são essas as vitórias que o amor, e só ele, proporciona. Dar-se inteiro a ele, sem esperar recompensa, não é uma escolha da razão. Quando o amor é desse tipo do qual falo, exige uma submissão semelhante à dos mártires místicos, e, se há esperança, não é a de que a alma seja aliviada dos seus tormentos, mas a de que estes se tornem tão agudos e lancinantes que a dor, atingindo seu limite, possa dar, a quem ama, o êxtase gozoso que a alegria jamais poderá trazer.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Trigal

Alisa-lhe os cabelos e instrui a mão a se comportar como a primeira brisa da manhã despertando o trigal.

Tivesses

Tivesses tu pressentido
Que o amor seria negado,
Não o terias pedido,
Não o terias sonhado.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Herói ainda

Posso ainda
com esta idade
antes de ir para o caixão
esquecer meus reumatismos
tentar certos heroísmos
subir na escada
trocar uma lâmpada queimada
repintar uma parede descascada
tapar no telhado um vão

Com esta idade
posso ainda
quebrar as costelas
fraturar a mão
escorregando na cozinha
abrindo uma janela
fechando-a
ou prendendo-a
ao bater o portão.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Uma gota

Há quem se afogue no mar
E morra em plena doçura.
Eu, se um dia me matar,
Me matará tua ternura.

Uma gota há de bastar,
Nada mais do que uma, pura,
Para eu feliz me afogar,
Minha querida criatura.

Guarda essa gota preciosa,
Protege-a com teu amor
Enquanto preciso for,

Guarda-a com tua mão zelosa,
E que eu a possa tomar
Quando a triste hora chegar.

O amor em 2012

Pela trama derrotado
no fim do terceiro ato
o amor lentamente
caminha para o fundo do palco

Fosse outro tempo
a plateia  o aplaudiria
e as mulheres certamente
começariam a fungar
e a tirar das bolsas os lenços

Se fosse um tempo
mais propício aos amores
é possível que gritassem bravo
e lhe atirassem flores

Hoje porém caminhando
para o fundo anônimo do palco
esperando ainda aquela simpatia
da plateia pelo mais fraco
ele ouve o início de uma vaia
e da última fileira um vozeirão
grita fora fora cai fora canastrão.

Descobertas gramaticais

Uma noite o revisor disse ter descoberto uma simples e infalível regra de acentuação. Consistia em ler em voz alta as palavras e, nas sílabas em que o pescoço se levantasse, acentuá-las. Deu uma demonstração.  Disse Catanduva e acentuou: Catandúva. E continuou: Botucatú, diréto, majestôso, Európa, inconstantemênte, ráio. O sistema parecia mesmo simples e ele o utilizou até que uma noite o chefe da revisão o chamou e perguntou que diabo estava acontecendo. Ouvimos os gritos do chefe - "que isso não se repita" - e, quando o descobridor da mágica norma de acentuação voltou para sua mesa e nós imaginávamos que estivesse assustado e decepcionado, ele sorriu e nos disse que o chefe era antiquado, descípulo de gramáticos do século anterior. Depois, numa surpreendente autocrítica, admitiu haver uma falha no seu sistema de acentuação: um simples torcicolo poderia impedir o pescoço de apontar a sílaba sobre a qual recairia o acento. Disse-nos que, por respeito ao chefe e à sua idade, não iria mais usar sua descoberta, e em voz baixa, marotamente, anunciou outra, talvez mais revolucionária ainda: um esquema de virgulação baseado única e exclusivamente no funcionamento dos pulmões. Também, como a regra da acentuação, recomendava a leitura em voz alta, aplicando-se as vírgulas sempre que houvesse uma interrupção para a retomada do fôlego. Uma semana depois, foi novamente chamado à sala do chefe.

O jovem escritor

O jovem, quando tem a pretensão de ser escritor, é tentado a confundir arte com artifício e, como está na maravilhosa fase da descoberta de palavras, procura usá-las todas nos seus textos, tenham elas cabimento ou não. E os textos se carregam de festas feéricas, colheitas opíparas, estrelas iridescentes. E aproximar-se vira apropinquar-se, dificultar se torna obstaculizar, alimento saboroso transforma-se em iguaria, ambrosia ou - !!! - cibo. Depois dessa época em que vê a literatura como uma árvore de Natal e a enfeita com os mais exóticos penduricalhos, o candidato a escritor começará a notar, se tiver bom-senso, que o caminho é o inverso: despir a árvore dos balangandãs.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen

"Era quase no inverno aquele dia
Tempo de grandes passeios
Confusamente agora recordados -
A estrada atravessava a serra pelo meio
Em rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava -
Tempo de retratos tirados
De olhos franzidos sob um sol de frente
Retratos que guardam para sempre
O perfume de pinhal das tardes
E o perfume de lenha e mosto das aldeias."

(Do livro "Poemas escolhidos", seleção dos poemas feita por Vilma Arêas.)

Pintor

O pássaro risca o espaço
risco a risco
traço a traço
e continua a riscá-lo
a rabiscá-lo
e a tracejá-lo
com seus traços
com seus riscos
com seus rabiscos
até o espaço tragá-lo.

Cordato

É tímido, não tem voz própria, não gosta de contrariar ninguém. Se alguém lhe diz boa noite, ele olha para o céu azul, para o sol, e tenta não vê-los. Depois, concorda: "Boa noite."

Reflexão

Ter consciência de minha idiotice me torna menos ou mais idiota?

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A voz das folhas

No tempo em que nos amávamos,
Os frutos se ofereciam
E as flores todas se abriam
Quando no parque passávamos.

Na grama nós nos sentávamos
E nossos lábios diziam
E nossas almas ouviam
As juras que nos jurávamos.

E de dentro dos seus ninhos
Gorjeavam os passarinhos
Que hoje não gorjeiam mais.

Morreu todo o encantamento
E agora, ao sopro do vento,
As folhas gemem: jamais.

A obrigação

Ter nascido
num ano muito distante
de um século esquecido

Ter sido soldado
ter combatido com destemor
no exército de um cruel imperador
ou de um déspota esclarecido

Ter lutado incansavelmente
e com glória ter vencido
ou ter sido derrotado ingloriamente

Tantos séculos depois
já não importa
a vitória ou a derrota

Importa ter morrido
estar morto enterrado esquecido
e não precisar nunca mais sofrer
a aflição de ser ou parecer
e a insuportável obrigação de viver.

Shakespeare e Dickens genéricos

Reescrever clássicos para facilitar a leitura de jovens é o mesmo que dizer a eles que o importante na literatura é a história, e não o modo de contá-la. Ler Shakespeare ou Dickens reescritos por João Soares da Silva ou José Pereira de Sousa é não ler Shakespeare nem Dickens. O pior, porém, não é nem isso. Nessas edições simplificadas, o nome de Shakespeare e o nome de Dickens aparecem na capa em letras menores que as dos nomes de João Soares da Silva e José Pereira de Sousa. É uma dessas estranhas lógicas de mercado: João Soares da Silva e José Pereira de Sousa são conhecidos pelo público jovem; Shakespeare e Dickens, não. Muitos desses leitores chegarão aos sessenta, aos setenta anos, julgando que "Romeu e Julieta" é uma peça de João Soares da Silva e "David Copperfield" é um romance de José Pereira de Sousa.

Uniforme

Perdeu a flama
e noite e dia para ele
não são mais
que uma coisa só
sempre a mesma
monotonia
noite e dia
o mesmo desencanto
a mesma desalegria

Perdeu a flama
e noite e dia para ele
são uma coisa só
uniforme
sem valia

É nulo seu combate
e sua trincheira é a cama
e seu uniforme é seu pijama
dia e noite
noite e dia.

Bom-senso

Penso, cada dia mais seriamente, que a maior contribuição que eu poderia dar à literatura seria parar de escrever.

domingo, 14 de outubro de 2012

Aquelas manhãs

Aquelas claras manhãs
Plenas de sol e alegrias
São hoje memórias vãs,
Fontes de dor e agonias.

E aquele vivo fulgor
Das nossas tardes serenas
Perdeu a luz e o calor
E é hoje lembrança apenas.

Venceu-nos a escuridão
E hoje, quando nos lembramos
Dos dias que desfrutamos,

Parecem ser ilusão
Tanto as manhãs luminosas
Quanto as tardes venturosas.

Autoimolação

Quando ele se impõe castigo,
Sempre escolhe o mais atroz.
É tão severo consigo
Que não precisa de algoz.

Nos casos em que perdão
A outros daria, e clemência,
A si aplica o padrão
Da mais estrita consciência.

Sempre que se julga, imbui-se
De toda a severidade,
Humilha-se, diminui-se,

E, ao invés de inocentar-se,
Sem compaixão nem piedade
Anseia por condenar-se.

sábado, 13 de outubro de 2012

Soneto da difícil compreensão

Difícil é compreender-te
Se quando dizes amar-me
Dizes sempre sem olhar-me
E sem que me deixes ver-te.

Difícil é conter a ânsia
De teus cabelos afagar
Se teimas em me afastar
E em ter-me sempre à distância.

Se queres ver-me feliz,
Reflete um pouco e me diz:
É justo que eu assim pene,

Sem poder sequer olhar-te
E não conseguir falar-te
A não ser pelo msn?

Tua vã filosofia

Quando passas hoje pelo parque
as árvores quando te veem te escarnecem
e os frutos que o sol doura com sua chama
e as moças deitadas na grama
zombam de ti também

Olhem só quem vindo ali vem
vejam que passos trôpegos
que braços frouxos
que mãos débeis
e que lábios murchos ele tem

E tu que nos galhos
não podes mais trepar
nem os frutos no alto colher
nem as cascas descascar
e nem a doce polpa comer

Olhas para o garoto
que pedalando pelo parque vem
e pensas que de bom grado trocarias
todo o teu improvável saber e tua filosofia
pela juventude que ele tem.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um poema de Sylvia Plath

RIVAL

Se a lua sorrisse, teria sua cara.
Você também deixa a mesma impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são peritos em roubar a luz alheia.
Nela,  a boca aberta se lamenta ao mundo; a sua é sincera

E na primeira chance faz tudo virar pedra.
Acordo num mausoléu; te vejo aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Desconfiado como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco pra dizer algo irrespondível.

A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas reclamações, por outro lado,
Pousam na caixa do correio com regularidade encantadora,
Brancas e limpas, expansivas como monóxido de carbono.

Nem um dia se passa sem notícias suas,
Vadiando pela África, talvez, mas pensando em mim.

(Do livro "Poemas", tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicado pela editora Iluminuras.)

Um poema de Florbela Espanca

Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir...
Que se sonhasse a chorar...

Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca... um lamento...

Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho:
E depois vir ver a morte

Despedaçar esses laços!...
... É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!

Cada dia

Cada dia rouba um pouco de ti
alguns cabelos algumas lembranças
alguma esperança alguma alegria

Cada dia deixa alguma coisa em ti
um tumor uma tosse uma gripe forte
com pretensão de tornar-se pneumonia

Cada dia a morte faz germinar em ti
a semente que plantou no dia em que nasceste
e virá colher no teu último dia.

Ciclo

Germinar crescer frutificar
alguns atributos são
do plantar

Murchar definhar morrer
são outras formas suas
de ser.

Lógica

Tu dizes
que não há nenhum nexo
nenhuma lógica nisto

É verdade

Se houvesse algum nexo
alguma lógica nisto
estaríamos falando de algo
que poderia ser tudo
mas nunca seria algo
que se pudesse chamar de amor.

Um soneto de Florbela Espanca

Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!

Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que te não vejo, amor! Meu coração
Morreu já, e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma palavra d'oração!

"Amo-te." Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e ternas de boninas,
Um poema d'amor e felicidade!

Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então... brandas... serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade.

Soneto do navio e de sua falsa majestade

Quando eu, tal qual um navio,
Fingia ser soberano,
Já de mim se desprendia
O cheiro forte do guano.

E quem andou nos conveses,
Mesmo não sendo verão,
Sentiu o ardume das fezes
Subindo do meu porão.

Por muito tempo iludi
E bem melhor pareci
Do que jamais eu serei.

Hoje, tão perto do fim,
Sei que será sempre assim.
Fedi, fedo e federei.

Ao relento

Que falta faz teu afeto,
Ele que me recolheu,
Ele que abrigo me deu
E foi meu lar e meu teto.

Hoje atirado ao relento
Por minha falta de siso,
Lembrar-me do paraíso
É meu castigo e tormento.

Tudo que gozei um dia
É mera lembrança, agora,
De algo que eu não merecia.

E o amor, que tens me negado,
Humilha-se, grita e chora
Como um menino enjeitado.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Um poema de Wislawa Szymborska

FOTOGRAFIA DE 11 DE SETEMBRO

Atiraram-se dos andares em chamas
um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra rumo à terra.

Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.

Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.

Ainda estão no âmbito do ar,
ao alcance dos lugares
que acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer:
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.

Quando

Quando não há mais ideais,
Nem sonhos, nem ilusão,
Quando se sofre demais,
Morrer é uma aspiração.

Mérito

Lutei muito. Passo a passo,
Com devoção e bravura,
Lancei-me à literatura
E conquistei meu fracasso.

Explicações

Que queres saber? É o fim.
Que conta darei do amor
Ou seja lá do que for,
Se conta não dou de mim?

Há muito já não sou eu.
Eu morri (tu não sentiste,
Não percebeste, não viste?)
No dia em que o amor morreu.

Eu fui com ele sepultado
E hoje estamos lado a lado,
Não há mais o que explicar.

Se insistes para que eu fale,
Manda a razão que eu me cale.
Mortos não devem falar.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Voz de pedra

Tentei ser poeta. Melhor seria que eu fosse uma pedra, uma qualquer, pequena, sem pretensões a rocha, e só me fizesse ouvir nos dias em que uma chuva, de preferência fraca, bem fraca, pingasse sobre mim. Melhor ainda seria se eu tivesse sido uma pedra que num dia de chuva forte, bem forte, fosse arrastada para um rio próximo e ficasse no fundo dele, bem no fundo, por muito tempo, de preferência para sempre.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Onde o amor está

O amor nunca estará
olhando para nós em retratos na sala
nem nos sorrirá no álbum
folheado num domingo de chuva no sofá

Do amor não haverá
áudios nem vídeos
nem escuta aí ó
nem olha lá

E se vídeo e se áudio
e se fotos houver, lá
onde o rosto mais triste estiver
lá é que o amor estará.

Kama Sutra - LIX

Estão nus e, ajoelhados na cama, abraçam-se. Faz uns momentos que estão assim. Hesitam. Esqueceram-se de algum detalhe e olham ao mesmo tempo para o criado-mudo. Ela estica o braço esquerdo, ele estende o direito, mas não chegam a pegar o livro. O súbito movimento - talvez o abrupto roçar dos joelhos ou quem sabe o balançar dos seios dela ao mexer o braço - acendeu nos dois uma desajeitada urgência que os faz deixar para depois a leitura do Kama Sutra. Com o que já sabem, darão conta daquilo, com um pé nas costas, ele pensa - e precisa concentrar-se, porque a metáfora o leva a se lembrar de algumas das ilustrações do livro de iniciação amorosa e o instiga a rir.

Me doeres

Antes de me apareceres,
Tão morna era minha vida
Que é uma bênção me doeres,
Assim, como uma ferida.

domingo, 7 de outubro de 2012

Os vencedores

Exaltam a mesmice
teclam sempre a mesma tecla
e defendem-se da velhice
com sua gorda presunção
e sua gabolice

Olham para mim e vão desfiando
aquela meada de histórias
aquelas paulificantes memórias
que começam sempre
com a palavra quando

Quando eu era professor
quando eu exerci o magistério
quando eu fui vereador
quando eu tive meu nome indicado
para assumir o ministério

E eu quando fui engenheiro
construí um bairro inteiro
e eu quando fui secretário
mudei todo o itinerário
do ônibus Sé-Vergueiro

Quando quando quando quando
eles vão começando suas frases
e vão os feitos decantando
de quando fizeram o que fizeram
para tornar-se vencedores contumazes

Enquanto assim vão se endeusando
eu me mortifico imaginando
como vão me encarar quando eu disser
que sou nada agora e nada também fui
quando alguma coisa eu poderia ser.

Revelação

Descobri enfim quem sou,
E o que em mim de puro havia
Abjeto se revelou,
Como lixo à luz do dia.

sábado, 6 de outubro de 2012

Desencontro

Não chegaremos a nada.
Não em partir e chegar,
Mas em chegar e voltar
Consiste a nossa jornada.

Ele, ela

Quando ele vai, ela vem.
Os dois jamais serão um.
Não terem nada em comum
É o que em comum eles têm.

Velhice

Como é a velhice? É assim:
Se ao rio lanço um anzol,
De mim escarnece o sol
E os peixes zombam de mim.

Estrela

Inatingível estrela,
Às minhas súplicas fria,
Que dor é, e que agonia,
Poder vê-la, apenas vê-la.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Cantiga de ninar

Ser uma folha
uma flor
em teus cabelos pousar
embrenhar-me em teu trigo
ali ficar escondido
e quando o sol se for
anoitecer contigo
adormecer contigo
ouvindo a brisa ninar
sussurrantemente o trigal.

Memória

Tão poucas vezes te vi
Mas tantas imaginei,
E tantas outras sonhei,
Que a conta até já perdi.

Trés meses

Aquele amor que juraste
A mim três meses atrás,
Três vezes já o negaste,
Quantas mais o negarás?

Assim

Há muito, já, aprendi
Que a vida há de ser assim:
Se em ti penso, penso em mim,
Se em mim penso, penso em ti.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Sorriso

Eu imagino que às vezes te canse estares assim todo o tempo demonstrando alegria. Bem gostarias de desarmar o sorriso, mas te custaria tanto fazê-lo que, mais por preguiça que por convicção, tu o manténs, esse engodo que com os outros - o sol, a brisa, os bem-te-vis - faz parecer aceitável a vida.

Se és jovem

Se não és jovem e me disseres que és feliz, te direi que és mentiroso, e nem precisaria dizer: tu bem sabes que és.

Os frutos

Eram belos os frutos. Lembro-me deles, esplêndidos, dourados. Lembro-me deles dia e noite, evoco-os em sonhos, e minha obstinada memória pinta-os cada vez mais belos, esplêndidos e dourados aos meus olhos reminiscentes. Lembro-me deles. E como poderia deixar de lembrá-los? Eu os contemplei naquela manhã e soube, ao contemplá-los, que jamais vira ou viria a ver outra imagem que me fizesse acreditar tão plenamente que a vida não existe senão para que contemplemos a beleza e a louvemos. Contemplei os frutos. Não toquei em nenhum, porque a nenhum homem é lícito tocar a beleza. Contemplei-os naquela manhã tão distante e hoje, quando olho minhas mãos, me conforta vê-las vazias. Mas a memória traz ainda, às vezes, as instigações do vento para que elas os colhessem, e os lábios, aos quais neguei o mel que adivinhavam na polpa, ameaçam queixar-se. Contemplei os frutos, belos, esplêndidos, dourados, naquela manhã. Contemplo-os ainda, contemplo-os sempre, sempre.

Ler por prazer

Um pecado que um livro destinado ao público jovem não deve cometer é o de não entreter. Outro é o de ser explícita e deliberadamente didático. Se passar alguma lição aos seus leitores, haverá de fazê-lo pela voz e pelos atos dos personagens, jamais pela voz do autor. Aulas devem ser dadas por professores e especialistas em educação. Que o escritor se preocupe em ganhar os leitores com um enredo que não os faça abandonar o livro na segunda página. Sendo agradável, ou não sendo maçante, um livro infantojuvenil terá cumprido, se não tudo, a maior parte daquilo que basicamente se espera dele.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A peça

Há muito soou
o terceiro sinal
e na plateia lotada
a garotada
pergunta afinal
quando começa a peça

Atrás da
cortina fechada
um enfarte
matou a bruxa malvada
e enquanto a morte
impede a arte
e aborta a peça
a garotada na plateia
inicia a pateada
começa começa começa.

Soneto da amizade

Sou réu mais que declarado
E nunca me absolverei
Pelo pouco que te dei
Em troca do que tens dado.

Não sei quanto viverei
Mas serei sempre culpado
Por não te haver compensado
Pelo que de ti ganhei.

Talvez tu me dês perdão,
Minha amiga, mas eu não.
Levarei sempre comigo

Como triste realidade
Ter tido a tua amizade
Sem ter sido teu amigo.

Fernando

Bom seria
fernando meu
caro pessoa
se tu mesmo ou
um heterônimo teu
me visitasse em meu sono
e me ditasse
três versos ou dois
ou mesmo um
que ao despertar eu
no papel lançasse
e houvesse tanta poesia
nesse verso que me desses
que com ele apenas
de todos esses meus anos
de frustradas messes
e de frutos gorados
eu pago eu me sentiria.

O tom

Aquele tom com que dizes
Que me amas é o mesmo tom,
Sem tirar e nem pôr, com
Que o que disseste desdizes.

Cara e coroa

Tão débil era sua autoestima que, por sugestão do psicanalista, sempre que se via sozinho, dizia em voz alta: "Eu sou, eu posso." Dois meses depois, voltou ao psicanalista, com um problema diverso: estava se achando presunçoso demais.

Tal qual

Entendo-te muito pouco.
Não mais do que o suficiente
Para saber cabalmente
Que não me entendes tampouco.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Negro sobre negro

À meia-noite na sala
no centro da treva
mo âmago do escuro
um escuro mais trevoso
um negro mais tenebroso
vem e vagarosamente se instala

Essa escuridão espessa
feita de fios lustrosos e seda
por um instante reina

Depos de alcançar a perfeição
cansa-se da imitação
acende dois faróis verde-amarelados
boceja e abandona a sala

Mas antes de abandoná-la
deixa na treva um miado
que arrepia a espinha da escuridão.

Delicadeza

Quando o rapaz, com o revólver apontado para ele, pediu pela segunda vez o dinheiro e acrescentou "por favor", o homem riu e disse: "Você está brincando, não está? Você não tem cara de bandido."  O rapaz, delicadamente, lhe deu três tiros.

Preservação

Há alguns anos visitei um colégio cuja biblioteca ficava trancada, para que os alunos não estragassem os livros.

Vizinhança

Era a terceira vez, naquela semana, que o funcionário do cemitério via o senhor de terno escuro caminhando por ali. Naquela manhã ele estava parado diante de um túmulo. "Bom dia", disseram-se. O homem apontou um retrato no túmulo: "Esta é a minha mulher." O funcionário elogiou a beleza da mulher e perguntou se ela havia morrido fazia muito tempo. "Ah, dez anos", respondeu o homem, com o dedo na data de falecimento registrada no mármore. "O senhor vem sempre aqui?", interessou-se o funcionário. "Não, eu comecei a vir faz um mês, mais ou menos. Agora venho todo dia. Mas não é por ela." Enquanto o funcionário imaginava qual poderia ser a razão das visitas, o homem olhou para os lados e sorriu: "Eu ando sentindo umas dores aqui no peito, sabe? E é bom já ir conhecendo a vizinhança." Solidário com o bom humor, o funcionário disse: "Pode ficar sossegado. O pessoal aqui costuma ser bem tranquilo."

Heroicos vilões

No início, eram os heróis. Em torno deles se desenvolvia a trama. Os vilões eram coadjuvantes, figurantes. Por mérito, porém, os vilões passaram a ter maior destaque e já ninguém se importava se eles ocupavam cinquenta ou oitenta por cento da história. O bem acentuava-se pelo contraste com o mal. Os leitores gostaram tanto que vilões passaram a ser os protagonistas e, quando morriam na história, seus criadores eram instados a, assim como acontecia com os heróis, ressuscitá-los. Hoje, até porque é um retrato do mundo atual, os vilões se tornaram tão soberanos que, não raramente, eles são convocados a enfrentar outros vilões, para que os leitores não bocejem com os heróis. Os heróis antigos - como os de Dickens, por exemplo -, examinados sob os olhos de hoje, parecem monótonos e artificiais. Abençoados vampiros, monstros descomunais, alienígenas, extraterrestres. Que continueis vos combatendo, mas que não vos aniquileis nunca, nossos queridos heróis. E que haja para cada morte vossa uma possiblidade de ressurreição.

Tua tristeza

Não te preocupes, não estão interessados em ti. Estão ocupados em cantar, em dançar, em aprimorar o riso e a gargalhada. Podes passar, não precisas ocultar a tristeza que tanto amas. Ninguém a cobiça, ninguém a quer, ninguém se apossará dela, mesmo que lhe dês um banho de ouro.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A poesia, nua como deve ser

Descobri, com muito atraso e vergonha, que desde os doze anos venho procurando não a poesia, mas a melhor forma de vesti-la, de empetecá-la, de emperiquitá-la como se ela fosse uma boneca russa. Aprendi a adorná-la, a enfeitá-la. Tratei-a como se fosse uma menina preparada para ser a mulher de um príncipe. Matriculei-a em aulas de piano, de balé, de boas maneiras. Que orgulho me deu vê-la sofisticada, reconhecida e, melhor que isso, sabendo retribuir tudo com a majestade de uma rainha. E com que prazer eu ia lhe acrescentando vestes e enfeites. Tudo com que a ornei, e com que eu imaginava poder destacar-lhe a beleza, a sufocou durante todo esse tempo. Tudo não passava de miçangas, berloques, ouropéis. Como pude ser assim estúpido? As vitórias dela me encantavam e, como vampiro, eu ia bebendo seu sangue. Só recentemente notei a palidez do seu rosto, por baixo do ruge e do batom que eu a obrigava a usar. E, observando como fracas pareciam suas pernas e seus pés, livrei-a das meias e das sapatilhas. Suspeitei que deveria despojá-la de tudo. E finalmente a vi, simples, frágil, autêntica como ela era antes, quando eu ainda não tinha começado a afogá-la com os penduricalho de minha falsa arte.

Uma folha

Ser uma folha tão anônima como aquela única que o vento, ao fazer cantar todas as outras folhas de todas as árvores do parque, evita sempre tocar - à noite por alegar não enxergá-la, de dia por ser cegado pela excessiva luz.

Dezembro, 2009

Ousei olhar-te no rosto.
Sei hoje que não devia.
Que triste foi meu sol-posto
Diante do teu, que nascia.

Ali perto

O homem tocou o ombro do motorista de táxi parado no ponto e perguntou se o banco estava longe e se passava por ali algum ônibus que levasse até ele. Distraído, o motorista apontou uma direção: "Ônibus? Não precisa. É logo ali, está vendo? No fim daquela subidona. Dá uns vinte minutos, a pé." Ouviu o agradecimento e só então percebeu que o homem tinha uma perna só.

A poesia

O poeta quase pisou no menino que dormia na calçada, em cima de uma cama de jornais. Não olhou para ele. Seus olhos, que buscavam a poesia, fixavam-se no céu e, no meio das nuvens, tentavam enxergar a lua.

As três mortas

O rosto das mortas sorri nas fotos do celular. O homem que as tirou há meia hora no aeroporto, antes de o grupo embarcar, está de novo em sua agência e olha para as fotos das três garotas que vieram fazer testes para modelo e voltam agora para a Bahia. Prometeu mandar a resposta daqui a uma semana. É o tempo que tem para arranjar as desculpas. Rejeitará todas. Nenhuma tem o perfil que tornou famosas as modelos da agência. A maior dificuldade ele terá com Leni, a morena de olhos verdes e coxas mais grossas que as das outras. Num dos três dias em que se submeteram aos testes, ele a levara a um motel e agora ela, no avião, deve estar lembrando que ele prometeu fazer dela não só uma modelo, mas também sua mulher. Enquanto ela lembra, um ruído estranho põe os passageiros em alerta e, logo em seguida, em pânico.

O que nós queríamos

Queríamos ser advogados
médicos engenheiros jornalistas

Ainda não se falava
de astronautas nem de lobistas
e os mais extravagantes de nós
queriam ser artistas

Queríamos ser advogados
médicos engenheiros jornalistas
e no nosso sorriso aos onze anos
na desbotada fotografia
da quinta série
estavam nossa esperança
e a esperança
que em nós se podia ter

Fomos advogados
médicos engenheiros jornalistas
mas nosso sorriso naquele dia
em que foi tirada a fotografia
revela que nenhum de nós
precisava ter mais
do que tínhamos naquele dia

Não sabíamos o que jovem nenhum
em nenhum tempo desconfia

Que os adultos querem sempre
que os jovens logo sejam adultos também
e se desiludam como eles
porque aos adultos incomoda
a intolerável alegria juvenil
que eles já tiveram
e que começaram a perder
quando os adultos do seu tempo
lhes disseram como felizes haveriam de ser
quando fossem advogados
médicos engenheiros jornalistas.