sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Algumas estrofes de Alberto de Oliveira

"O SONHO DE BERTA

Soltando o cabelo de ouro
Ao deitar-se, ondeante e farto,
Viu Berta entrar-lhe no quarto
Um besouro.

"Já agora" - exclamara ela -
"Não me levanto, é capricho,
Para mostrar a este bicho
A janela;

Nem da toalha um açoite
farei contra este besouro...
E sem mais, senhor agouro,
Boa noite!"

Despiu-se. Cândida e lisa,
Quente ainda de sua pele
Tirou, mesmo diante dele,
A camisa.

Deitou-se. É um mimo de Berta
O corpo, que a vista inflama,
Assim como está na cama
Descoberta.

Cerra os olhos. Entretanto
O besouro, tonto, inquieto,
Zumbe da alcova no teto,
Zumbe a um canto,

Ao pé do espelho inclinado
Zumbe, zumbe na parede,
E de Berta agora - vede! -
Zumbe ao lado.

Ai dela! rente ao cabelo
Sente-lhe as asas... que inferno!
Quem a livra desse eterno
Pesadelo?

Ai dela! - Noite sombria,
As tardas horas apressa!
A luz da aurora apareça!
Venha o dia!

Sobre o leito, em que deitada
Está, volta-se ofegante
Berta insone, a cada instante,
De assustada.

Pobre Berta! enfim sucumbe,
Desmaia... Entretanto, às voltas,
O besouro de asas soltas
Zumbe, zumbe..."

(Do livro Poesia de Alberto de Oliveira, coleção Nossos Clássicos, da Livraria Agir Editora.)

Soneto da identidade

Quando a ti eu me amarrava
E teu chicote pedia,
Minha alma me censurava
E honra de mim exigia.

Livre hoje do teu feitiço
E dono da própria sorte,
Minha vida agora é isso,
E isso é bem pior do que a morte.

Como eu hoje me arrependo
De não estar mais me doendo
Tudo aquilo que me doeu

E me culpo porque agora
Quem sofre por ti e chora
Não sou eu, ah, não sou eu.


Menos

Já devias saber
que o amor pode te dar
aflição agonia
rimas pobres
desilusão melancolia
mas nunca te dará
ainda que venhas a implorar
o dom da poesia.

O poeta em sua torre

Mesmo que viessem a ti
Os berros do matadouro,
Continuarias aí,
Pensando em chaves de ouro.

Um soneto de Mário de Andrade

"Tanta lágrima hei já, Senhora minha,
Derramado dos olhos sofredores,
Que se foram com elas meus ardores
E a ânsia de amar que de teus dons me vinha.

Todo o pranto chorei. Tudo o que tinha
Caiu-me ao peito cheio de esplendores,
E em vez de aí formar terras melhores,
Tornou minha alma sáfara e maninha.

E foi tal o chorar por mim vertido,
E tais as dores, tantas as tristezas,
Que me arrancou do peito vossa graça,

Que de muito perder, tudo hei perdido;
Não vejo mais surpresa nas surpresas
E nem sofrer sei mais, por mor desgraça."

(Do livro Poesia de Mário de Andrade, coleção Nossos Clássicos, da Livraria Agir Editora.)

Um poema de Fernando Pessoa

"O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado -
Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe."

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malha que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe."

(Do livro Poesia de Fernando Pessoa, coleção Nossos Clássicos, Livraria Agir Editora.)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Um soneto de Antero de Quental

"NO TURBILHÃO

No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus próprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
Arrebatado em vastos turbilhões...

Numa espiral, de estranhas contorções,
E donde saem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições...

- Fantasmas de mim mesmo e de minha alma,
Que me fitais com formidável calma,
Levados na onda turva do escarcéu,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões misérrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!..."

(Do livro Poesia e prosa, de Antero de Quental, publicado pela Livraria Agir Editora.)

Um poema de Mário de Sá-Carneiro

"FIM

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!"

(Do livro Poesia de Mário de Sá-Carneiro, coleção Nossos Clássicos, publicado pela Livraria Agir Editora.)

Animais e homens

Trecho do livro Elizabeth Costello, de J.M. Coetzee:

"As pesssoas reclamam que tratamos os animais como objetos, mas na verdade tratamos os animais como prisioneiros de guerra. Você sabia que, quando foram abertos os primeiros zoológicos, os tratadores tinham de proteger os animais dos ataques dos espectadores? Os espectadores sentiam que os animais estavam ali para serem insultados e humilhados, como prisioneiros em uma marcha triunfal. Já promovemos uma guerra contra os animais, que chamamos de caça, embora, na verdade, guerra e caça sejam a mesma coisa (Aristóteles percebeu isso claramente). Essa guerra foi travada ao longo de milhões de anos. Só a vencemos definitivamente faz algumas centenas de anos, quando inventamos as armas de fogo. Só quando a vitória foi absoluta é que pudemos nos permitir cultivar a compaixão. Mas a nossa compaixão é muito rarefeita. Por baixo dela existe uma atitude mais primitiva. O prisioneiro de guerra não pertence à nossa tribo. Podemos fazer o que quisermos com ele. Podemos sacrificá-lo aos nossos deuses. Podemos cortar seu pescoço, arrancar seu coração, atirá-lo ao fogo. Não existe lei quando se fala de prisioneiros de guerra."

(Elizabeth Costello é um alter ego de Coetzee, uma personagem de estilo panfletário por intermédio da qual ele reflete sobre problemas essenciais sem tirar os pés da ficção, sem incorrer no ensaio puro e simples. O livro foi publicado em 2004 pela Companhia das Letras, em tradução de José Rubens Siqueira.)

"A fantástica vida breve de Oscar Wao"

Se isto fosse um diário daqueles clássicos, com anotações, eu escreveria: "Dia maravilhosamente justificado pela leitura de A fantástica vida breve de Oscar Wao, de Junot Díaz." Eu comecei a ler o romance três semanas atrás e por algumas páginas cheguei a pensar que se tratasse de mais um desses "fenômenos" criados mais pelo estardalhaço da mídia do que pelo valor literário. Quase parei ali pela página 80. Felizmente, continuei. Lembro-me dos adjetivos que às vezes aparecem na contracapa de certos romances - notável, extraordinário, magnífico, único - e quase nunca traduzem a realidade. No caso de A fantástica vida breve de Oscar Wao, todos eles são cabíveis, e até modestos.

Kama Sutra - LXVI

Na lanchonete, a mulher, depois de quatro tentativas, conseguiu puxar com a língua uma migalha de pão do lábio superior. Ele, na mesa vizinha, acompanhando as quatro rápidas fisgadas, sentiu uma inquietação morna, igual à da tarde, anos antes, em que vira na aula de educação física uma garota tirar meticulosamente do joelho uma casca de ferida.

Natalina

No Natal eu te mandarei uma mensagem. Serão palavras simples, dessas de ocasião, esses carimbos sociais cuja tinta já quase não se enxerga, um recado de amigo para amiga. E no entanto meu coração amordaçado tentará gritar socorro, como um sequestrado num porão.

Assim mesmo

Não, eu não exagerei nada. Os outros é que não souberam ver-te como és.

Propostas

As flores não têm ouvidos. Se tivessem, até as brancas ficariam rubras, com as propostas que o vento lhes faz.

Pernoite

Na primeira vez em que o viram deitado ao pé do túmulo do filho, pensaram em chamar a polícia. Agora se acostumaram com a sua presença e o cumprimentam quando chega. Um dia se cansará, imaginam. Já faz mais de um mês que todo fim de tarde ele aparece, com o cobertor e o travesseiro.

Acompanhante

Quando, já com o doente dentro, a ambulância saiu, o cachorro da casa pôs-se a correr atrás dela. O doente voltou na manhã seguinte. O cão nunca mais apareceu.

Sala D

A menina de quatro anos entrou com o pai e a mãe, sorriu para os parentes, e também para os desconhecidos, e perguntou: "Por que toda essa gente veio ver o vô dormir?"

Das flores

Chegou para ti o tempo das flores. Não precisarás nem colhê-las, nem poderias. Tuas mãos estão entrelaçadas para sempre. E não poderás também sentir-lhes a fragrância, com esse algodão nas narinas.

O que sabemos

Nascemos para nos comunicar. Aperfeiçoamos nosso vocabulário, enriquecemos nossas formas de expressão. Fazemos isso há milênios, e o que temos a transmitir, uns aos outros, essencialmente, é o que Sócrates já sabia: só sabemos que não sabemos nada.

Ambivalência

O livre-arbítrio não é essencial só para a vida. Ele também torna a morte uma questão de escolha.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Um soneto de Augusto dos Anjos

"APÓSTROFE À CARNE

Quando eu pego nas carnes do meu rosto,
Pressinto o fim da orgânica batalha:
Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol-posto...

E o Homem - negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama física trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de mônadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!"

(Do livro "Eu e outros poemas", publicado pela Bedeschi, Rio de Janeiro.)

Sentença

Amor, afável carrasco,
A pestilenta água e o pão
Que tu me dás na prisão
Eu bebo e como sem asco.

Paz

Onde nós logo estaremos
Vedada é toda impostura:
Não mais o amor fingiremos
Nem mais a literatura.

O tempo

Tudo tem seu tempo

A grama o seu
de crescer
a chuva o seu
de regar
o cordeiro o seu
de pascer
a faca o seu
de matar.

Amor e vida

O amor não é um episódio da vida. O amor é maior que a vida. A vida é um detalhe do amor e dele depende para ser boa, maravilhosa, má ou intolerável.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Nós somos

Somos escritores
poetas
contistas
romancistas
artistas de renome

De tanto poetar
de tanto contar
de tanto romancear
alguns leitores
até conhecem
o nosso nome

São poucos
é verdade
duzentos
trezentos
poucos demais
para os milhões
para os bilhões
que compõem a humanidade
mas todos são
leitores de qualidade

Somos escritores
fazemos o que fizeram
Shakespeare e Dante
e também como
Machado de Assis e Homero
buscamos a beleza
da natureza
e a natureza
da humanidade

Fazemos isso
que nascemos para fazer
por prazer
e sem vaidade
embora prometamos
não nos aborrecer
nem nos lastimar
se nosso ofício nos oferecer
a glória
e a imortalidade.

Científico

Em nosso tempo avançado,
Em nossa científica era,
Um fiasco bem planejado
É o mínimo que se espera.

Fim de linha

Agora que o amor morreu,
É inútil tudo que eu fale.
O que eu te digo não vale
Nem o que eu disse valeu.

Crença

É tolo quem, no amor crendo,
Não importa em se humilhar
E nem rejeição sofrendo
Desiste de acreditar.

A história de sempre

Os sonhos meus, os teus, nossos
Ingênuos ímpetos, não
Vingaram e hoje não são
Mais nada além de destroços.

De tudo

De tudo, do amor eterno
Que nós ousamos sonhar,
Restarão, se algo restar,
Alguns versos num caderno.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Esconderijo

Na gaveta esquecida, onde
As cartas amareladas
Estão, e as juras goradas,
O amor, como um réu, se esconde.

Um soneto de Raimundo Correia

"APRÈS LE COMBAT

Entrei, e achei-a a sós, sobre um estrado
Sentada, em frente ao reposteiro erguido;
Livres do laço as tranças, e o nevado
Seio abundante livre do vestido...

Muda, estendeu pra mim com ar de enfado
O braço frouxo, lânguido, caído -
E levantou o negro olhar rasgado
De uns violáceos círculos tingido...

Num gesto frio, tímido, indeciso,
O lábio seco, machucado e exangue
Abriu em triste e mórbido sorriso...

Tudo era o vosso efeito perigoso
Ó explosões da pólvora do sangue!
Deliciosa síncope de gozo!"

(Do livro "Poesia completa e prosa", publicado pela Aguilar.)

Vergonha de ser juvenil

O Estadão de hoje publica texto sobre um escritor que está fazendo sucesso com um livro juvenil e que quase pede perdão por isso - não por modéstia, mas por temer ser "rotulado". Fazendo questão de deixar bem claro que é um autor de obras para adultos, ele dá, porém, uma "esperança" para seus leitores jovens. Diz: "... Se ficar rico com isso, não me incomoda continuar enquanto escrevo outras coisas." É preciso fazer algum comentário? Talvez uma interjeição como "argh!"

domingo, 25 de novembro de 2012

Conversa em Varginha

Amanhã, segunda, às 16h, e na terça, às 9h30, estarei no Colégio Santos Anjos, em Varginha (MG), para conversar com os alunos e professores sobre leitura e literatura. O encontro é promovido pela Editora Ática.

Eu também

Eu também me envergonharia de dizer que estou com o coração despedaçado - se não fosse exatamente isso que sinto.

A doença

Hoje, graças à evolução dos costumes e ao contínuo trabalho de prevenção, o amor é uma doença que não mata mais. Alguns historiadores dizem que com ele, por efeitos colaterais ou por solidariedade, morreu também a poesia.

Ainda Augusto dos Anjos, para encerrar um domingo triste

"ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum,
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!"

(Do livro "Eu e outras poesias", publicado pela Bedeschi, Rio de Janeiro.)

Duas estrofes de Heinrich Heine

"Ambos se amavam, contudo
Nenhum ao outro o dizia.
Viam-se como inimigos!...
E um por outro morria.

Separaram-se enfim!... nos sonhos
Talvez um ao outro via;
Já tinham morrido n'alma...
Nenhum do outro o sabia."

(A tradução, feita por Gonçalves Dias, está no livro "Poesia completa e prosa", editado pela Aguilar.)

A mulher ideal

Quiseste nádegas firmes
seios duros e pontudos
pernas compridas e fortes
coxas de seda feitas
afáveis ao toque

Folheaste o manual
da mulher ideal
e a tua escolheste
item a item
meticulosamente
olho a olho
dente a dente
como se escolhesses
um animal saudável
um cão ou um cavalo
a nenhum cão
e a nenhum cavalo
comparáveis

Quiseste o melhor corpo
o corpo dos corpos
a mulher das mulheres
e agora que a tens
tu queres também
que para mais agradar a ti
ela leia Dostoiévski
e ouça Débussy?

J.M. Coetzee, Elizabeth Costello, Augusto dos Anjos

A mais notável personagem de J.M. Coetzee, Elizabeth Costello (a comovente defensora dos animais), gostaria de ler isto que Augusto dos Anjo escreveu há cem anos.

"A UM CARNEIRO MORTO

Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu  teu sangue grosso
Teus olhos - fontes de perdão - perdoaram!

Oh, tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!"

(Do livro "Eu e outras poesias", publicado pela Bedeschi, Rio de Janeiro.)

Soneto da flor derradeira

Amor, que belo jardim
Tu tens, com essas raras flores
E suas múltiplas cores.
Existirá outro assim?

Amor, que rico pomar
É o teu, que esplêndidas frutas
Tu colhes e tu desfrutas.
Algum o pode igualar?

Que as frutas sigas negando
E as árvores resguardando.
É teu direito, afinal.

Mas que reserves, amor,
Pelo menos uma flor
Para o meu dia final.

O beijo como véspera do escarro

Augusto dos Anjos é sempre um espanto para quem o lê pela primeira vez - e até para quem o relê. Na sua época, enquanto os poetas, como sempre, exaltavam as flores, ele falava de vísceras, pus, pústulas. Seu mais famoso poema vai abaixo, extraído do livro "Eu e outras poesias", editado pela Bedeschi, do Rio de Janeiro.

"VERSOS ÍNTIMOS

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!"

Jugo

Se tenho bem observado,
O prazer maior, no amor,
Não é do dominador,
É sempre do escravizado.

Submissão

Devemos voltar a usar, quem sabe, aquelas palavras que o escárnio expulsou da linguagem amorosa: mágoa, aflição, queixume, sublime, anjo, idolatrada. Devemos talvez tentar comover com elas a indiferente amada. Não ter vergonha dos lugares-comuns, dos chavões, de chamar de rainha quem rainha é, nem pudor de nos chamarmos de súditos e de nos colocarmos de joelhos, ainda que seja só para receber a misericórdia de um olhar real. O amor também é uma palavra antiga, e nós por acaso evitamos dizê-la? Ousemos, enquanto é tempo. Humilhar-se por amor é uma honra da qual devemos nos orgulhar e exibi-la como ferimentos de um santo combate. Chamemos a doce amada de alteza, de majestade, de rainha, e sintamos a ventura que há nessa submissão.


sábado, 24 de novembro de 2012

Encontro

Todo ano, ao menos um dia,
Às vezes por compaixão,
Às vezes por distração,
Na agenda ela me incluía.

E, quando me recebia,
Mostrava tal atenção,
Tanto carinho e emoção,
Que logo eu me comovia.

Apenas ela falava.
Encantado, eu só a olhava.
Quando, enfim, ia falar,

Ela dizia "Eu agora
Vou precisar ir embora"
E dava o rosto a beijar.

Mediano

É bom em alguns assuntos. Sabe tirar ou pôr uma vírgula, colocar uma crase, conjugar um verbo inconjugável. Tem também certa habilidade para escrever e às vezes alguns de seus rabiscos lhe parecem poesia. Sabe também outras coisas. Viver não sabe. Apostou tudo no amor e espera. Outonos, invernos, primaveras e verões passam e ele, parado à frente da roleta, espera. Esperará muito, ainda. É tão tolo que nunca reconhecerá sua tolice.

Oferenda

A ti, poesia, eu dedico
Minha indefinida essência,
Meu sofrimento mais rico,
Minha saudável demência.

Definição

Quem diz é sua mulher:
"Ele só chora, por uma
Coisa qualquer ou nenhuma.
Um homem assim quem quer?"

Mais quatro poemas de Gustavo Adolfo Bécquer

"Hoy la tierra y los cielos me sonríen,
hoy llega al fondo de mi alma el sol,
hoy la he visto..., la he visto y me ha mirado...
hoy creo en Dios!"

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"Por una mirada, un mundo;
por una sonrisa, un cielo;
por un beso..., yo no sé
qué te diera por un beso!"

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'Asomaba a sus ojos una lágrima
y a mi labio una frase de perdón;
habló el orgullo y se enjugó su llanto,
y la frase en mis labios expiró.

Yo voy por un camino, ella por otro;
pero al pensar en nuestro mutuo amor,
yo digo así: 'Por qué callé aquel día?'
Y ella dirá: 'Por qué no lloré yo?'"

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"Una mujer me ha envenenado el alma,
otra mujer me ha envenenado el cuerpo;
ninguna de las dos vino a buscarme,
yo de ninguna de las dos me quejo.

Como el mundo es redondo, el mundo rueda.
Si mañana, rodando, rodando, este veneno
envenena a su vez, por qué acusarme?
Puedo dar más de lo que a mí me dieron?"

(Do livro "Rimas", publicado pela Aguilar, Madrid.)


Pior idade

Desde menino ama o mar.
O barco, que lhe faltou,
Veio hoje, e tarde chegou:
Não pode mais navegar.

As máximas do marquês

As máximas do Marquês de Maricá, pseudônimo de Mariano José Pereira Fonseca (1773-1848), que foram mencionadas por alguns benevolentes críticos de sua época como dignas de lhe garantir um lugar na filosofia, ao lado de Rousseau, Voltaire e Pascal, são notáveis apenas pelo que têm de pungentemente simplório. Uma delas diz que nem todo fogo é benéfico e cita como exceção as chamas de um incêndio. Outras máximas são tão fracotas que rivalizam com as piores frases dos livrinhos de autoajuda. Esta, que está no Aurélio como abonação da palavra "alteza", é um exemplo de que o Marquês de Maricá não tinha nada de Rousseau, Voltaire e Pascal: "A alteza dos pensamentos anuncia a nobreza dos sentimentos." Frasista é o qualificativo que lhe cabe, e quem ler seu livro de máximas, se acreditar que elas têm alguma filosofia, encontrará em qualquer livraria centenas de obras similares, dessas falsamente profundas, que elevam à condição de lemas e de indesmentíveis verdades frases como aquela segundo a qual toda grande jornada começa com o primeiro passo. Livros que prometem acabar com a obesidade, com a depressão e com o vício do fumo estão abarrotados delas. Nelson Rodrigues talvez dissesse que uma formiga é capaz de atravessar com água nos joelhos a profundeza da filosofia do Marquês.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Só isso

Queres saber o que eu quero
E eu te respondo, com escusas:
Exceto o amor, que recusas,
Nada mais de ti espero.

Plantio

Não queres minha semente.
Teu solo para outro lavras.
Teu corpo o meu não consente,
Só queres minhas palavras.

Kama Sutra - LXV

Foi há muito tempo. Eu era humilde, como hoje. Não me distinguia em nada, embora me considerasse, como agora, poeta. Assim como a de hoje, era obscura minha vida. E, assim como nesta, apaixonei-me absurdamente por uma rainha. Afortunadamente, favorecido por um deus benigno, eu, o mais insignificante dos lacaios, do palácio, era em certas noites furtivamente introduzido na alcova real e, pela madrugada adentro, em tons que a paixão me ditava, murmurava minha alteza, minha rainha, minha majestade, e ouvia, em resposta: poeta, meu poeta, poeta.

Três poemas de Gustavo Adolfo Bécquer

"Qué es poesía? dices mientras clavas
en mi pupila tu pupila azul.
Qué es poesía? Y tu me lo preguntas?
Poesía... eres tú."


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"No me admiró tu olvido! Aunque de un día
me admiró tu cariño mucho más;
porque lo que hay en mí que vale algo,
eso... ni lo pudiste sospechar."



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"Los suspiros son aire y van al aire.
Las lágrimas son agua y van al mar.
Dime, mujer: cuando el amor se olvida,
sabes tú adónde va?"

(Do livro "Rimas", publicado pela Aguilar, Madrid.)

Pedido final

Te peço por gentileza
Mais ódio e mais rapidez:
Que me mates com presteza,
Sem piedade e de uma vez.

Um poema de Gonçalves Dias

"MEU ANJO, ESCUTA

"Meu anjo, escuta: quando junto à noite
Perpassa a brisa pelo rosto teu,
Como um suspiro que um menino exala;
Na voz da brisa quem murmura e fala
Brando queixume, que tão triste cala
No peito teu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Quando tu sentes lutuosa imagem
D'aflito pranto com sombrio véu,
Rasgado o peito por acerbas dores;
Quem murcha as flores
Do brando sonho? Quem te pinta amores
Dum puro céu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se alguém te acorda do celeste arroubo,
Na amenidade do silêncio teu,
Quando tua alma noutros mundos erra,
Se alguém descerra
Ao lado teu
Fraco suspiro que no peito encerra;
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se algém se aflige de te ver chorosa,
Se alguém se alegra co'um sorriso teu,
Se alguém suspira de te ver formosa
O mar e a terra a enamorar e o céu;
Se alguém definha
Por amor teu,
Sou eu, sou eu, sou eu!"

(Do livro "Poesia completa e prosa selecionada", Editora Aguilar.)

O amor, o ciúme e a cobiça,
Quando a morte vier, serão
Restos de demolição:
Só pedra, pó e caliça.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Sacrifício

Pensa em despedaçar-se
em retalhar-se
em ofertar-se assim
pedaço a pedaço
ao amor e seu fracasso

Pensa em imolar-se
em sacificar-se
em apresentar-se assim
como um mártir crucificado
ao amor e seu lastimado fim

Pensa nisso e ocupado em pensar
não tem tempo de notar
que já está despedaçado
retalhado morto e mais ignorado
que o morto mais olvidado.

Citadino

Eu sou um homem urbano,
Exato, rígido, isento,
Cada vez menos humano
E cada vez mais cimento.

Cordeiro

Bem no lugar desta aqui
Havia uma escura escada
Por onde um dia eu subi
Com a alma sobressaltada.

E naquele canto ali
Numa porta malfalada
Eu uma noite bati
Com a mão atemorizada.

No prédio, hoje reconstruído,
Naquele dia mais que ido,
Aqui, no primeiro andar,

Eu vim, tal qual um cordeiro
Com o meu contado dinheiro
Minha inocência entregar.

Um poema de Sylvia Plath

"NATIMORTO

Estes poemas não vivem: triste diagnóstico.
Seus pés e mãos já cresceram o normal,
As testinhas enrugaram, de concentração.
Se não se perdem ou passeiam como gente
Não foi por falta de amor maternal.

Ó, não posso entender o que há com eles!
São exatos em número, forma e partes.
Ficam tão lindos curtindo como picles!
Ficam sorrindo e sorrindo e sorrindo pra mim.
Mas os pulmões não enchem e o coração não bate.

Não são porcos, nem mesmo peixes,
Embora o ar de porco e peixe que os revela -
Quem dera fossem vivos, como um dia foram.
Mas estão mortos, e sua mãe quase morta de descaso,
Encaram como estúpidos, e não falam dela."

(Do livro "Poemas de Sylvia Plath", tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicado pela Iluminuras.)

O tênis

Em dezembro, mandaram-lhe a foto de um menino pobre e pediram que ela fizesse uma sacolinha de Natal para ele: uma camiseta, uma bermuda, um brinquedo qualquer, que podia até ser usado, e um tênis. O sorriso triste do menino a comoveu, e ela comprou duas camisetas, duas bermudas, um Homem-Aranha de cem reais e um tênis bem caro também. Entregou a sacolinha na associação. Veio o Natal e ela, comemorando com a família, sentiu-se feliz ao pensar na alegria do menino. Foi para uma semana na praia, com o marido e os três filhos. Quando voltou, no dia 2 de janeiro, lembrou-se do menino e telefonou para a associação, para saber dele. "Está morto", respondeu a diretora. "Morto? Mas como? Na foto ele parecia estar tão bem." "E estava. Ele ficou tão contente com o que a senhora deu. A mãe dele agradeceu tanto. Mas no dia 28 ele estava com o Homem-Aranha na rua e uma gangue de meninos de outro bairro tomou o Homem-Aranha dele. Ele lutou, mas bateram nele, até matar. Depois, a senhora veja como anda este mundo, arrancaram também o tênis."

Gato no asfalto

De longe, ela viu o gato. Estava estatelado na rua, amarrotado, despedaçado. Ela nem ia olhar. Estava na hora do almoço. Mas olhou, e o gato não era senão um ursinho de pelúcia. Deu graças a Deus, por ter olhos tão míopes.

Parcimônia

Ela lhe pediu perdão:
Não lhe podia dar nada.
Deu-lhe, porém, a aflição
E a morte desconsolada

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Camaleão

Temperamento farsesco,
Mudava o estilo todo ano:
Num era shakespeariano,
E, no seguinte, dantesco.

Kama Sutra - LXIV

Com tato, o homem avança. Primeiro os dedos, o tato, o contato com o ombro. Conquistada essa posição, encosta a coxa na coxa da mulher, vencendo finalmente o último milímetro. Sua mão esquerda, despeitada pelo fácil sucesso da outra, inquieta-se. Ele não sabe ainda bem como agirá quando as luzes do cinema se apagarem: se irá fazê-la aventurar-se também pelo corpo da mulher ou se a deixará  ficar no meio das próprias coxas, onde - sob o pretexto de acompanhar o ritmo da música ambiente - ela dedilha, dedilha.

Uma dessas frases

Não acreditar em nada e não duvidar de nada pode não ser uma posição filosófica nem sequer um lema, porém não deixa de ser uma dessas frases cuja ênfase, por si só, faz com que soem como a verdade das verdades.

Autojulgamento

E chega um dia, afinal, em que nos julgamos inapelavelmente velhos, com todas as circunstâncias agravantes e nenhuma atenuante.

Ei, oi, alô

Ouvidos moucos, ouvidos
Indiferentes, fizestes
Tão pouco dos meus pedidos,
Tanto desprezo tivestes.

Aflito eu vos procurei,
Vos chamei. Vós me escutastes?
À chuva e ao vento fiquei,
Trataste-me como aos trastes.

Vos chamo ainda, vos chamo
E digo-vos que vos amo.
Mas podereis me escutar,

Eu da rua vos chamando
E vós um tango dançando
No décimo quarto andar?

O sol nos chama

Todos os dias o sol aparece para nos cobrar: "Acorda, a vida te chama, o trabalho te espera." E nós acordamos, e nos levantamos. Um dia, quando ele vier, não nos encontrará. Mas não terá dificuldade para nos substituir. Nós estamos entre aqueles bilhões dos quais um dia emergiram Cervantes, Shakespeare, Dante e mais uma centena de Picassos que por empáfia e autoelogio teimamos em considerar humanos como nós.

Diálogo da melhor idade

"Estou te dizendo, Amílcar. O médico me avisou que com a minha pressão alta eu posso morrer a qualquer hora". "Ah, não vem contar vantagem. Qualquer um pode morrer a qualquer hora. Eu ontem peguei minha chapa dos pulmões e..."

Uma frase de Isaac Bashevis Singer

"O homem é a única criatura que se envergonha daquilo que é. Toda a cultura humana é um imenso esforço de cobrir e enfeitar-se; uma imensa e complexa folha de figueira."

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Latir até que

Se eu fosse um cão, latiria dia e noite, e de madrugada, uivaria todos os dias, todas as noites, todas as madrugadas, até que o Amor me abrisse a porta ou viesse até o portão para me espantar com seus olhos de fogo e seu chicote.

Estilo

Literatura não é a história. É o modo de contá-la.

O piegas

O piegas sempre me fascinou. Sempre amei a lamúria levada ao paroxismo, a tristeza agudizada, a dor chorada ao som de violinos. Sempre julguei que a beleza, para ser inteira, há de doer, há de machucar, há de pungir, há de cavar até que surjam as lágrimas. O piegas traz, na sua definição, a ideia de ridículo. Porque, quando a dor é a dor histriônica, a dor operística, a dor rouxinolesca, ela é isso: ridícula. Só Charles Chaplin - talvez mais uns três ou quatro - conseguiu, fazendo o mais desbragado piegas, torná-lo sublime. É esse piegas de Carlitos que eu amo, essa tristeza que não se envergonha de uivar, de morder as próprias mãos, de dilacerar-se escandalosamente, sem nenhum receio de que seu sangue possa ser considerado molho de tomate.

Bestialógico - 1

Como Fócrates previu
(E Fócrates era soda)
A guerra ainda está na moda,
Porém o amor já saiu.

Bestialógico - 2

Que grande foi Aristóteles!
Ele desenvolveu a ética,
Criou o triângulo isósceles
E a escola peripatética.

Bestialógico - 3

Quando o chamaram, Hipócrates
Nada mais pôde fazer.
Estava já morto Sócrates
Após cicuta beber.

Falar, calar

Quando mal do amor tu falas,
Meus dias são infelizes,
Mas piores são se te calas
E do amor mal nem bem dizes.

Rumo

O amor não tem rumo certo.
Trilha sempre trilhas curvas
E enfia-se em águas turvas.
O amor nunca será perto.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Um poema de Olavo Bilac

SONETO XIII, DE VIA LÁCTEA

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

(Do livro "Poesias de Olavo Bilac", publicado em 1954 pela Livraria Francisco Alves.)

Um texto de William Burroughs

"Não sou uma pessoa que odeia cães. Odeio aquilo em que o homem transformou seu melhor amigo. O rosnado de uma pantera, sem dúvida, é mais perigoso que o rosnado de um cão, mas não é feio. A fúria de um gato é bela, incandescente com a pura chama felina, todo o seu pelo eriçado lançando fagulhas azuladas, os olhos ardentes e crepitantes. Mas o rosnado de um cão é feio, o rosnado de uma multidão de brancos racistas no linchamento de um paquistanês... o rosnado de alguém que usa um adesivo "Mate uma bicha por Jesus", um rosnado hipócrita e nervoso. Quando você vê esse rosnado, está olhando para algo que não tem rosto próprio. A fúria de um cão não é dele. É ditada por seu treinador. E a fúria de uma multidão em um linchamento é ditada pelo condicionamento."

(Do livro "O gato por dentro", tradução de Edmundo Barreiros, publicado pela L&PM.)

Revelações

Amanhã não será
nem depois de amanhã
igual ao dia
em que descobri
William Saroyan.

Nem aquela manhã
em que andando à toa
vi na livraria da São João
a revelação a epifania
de Fernando Pessoa.

Nunca mais me espantarei
como então me espantei
naquele dia naquela manhã.
Nunca mais descobrirei Fernando Pessoa
nunca mais William Saroyan.

Os dois

Os dois quiseram amarrá-lo, mas, como ele se debatia muito e gritava, um deles lhe deu três tiros. "Esse pessoal não aprende nunca." "É, vamos trabalhar", disse o outro, escancarando uma gaveta.

Pesadelo de escritor

Toda noite, sem falhar uma, o pesadelo volta. Muda o escritor que nele aparece, mas a pergunta é sempre a mesma. Quem a fez esta madrugada foi Paulo Coelho, que desceu do céu e estacionou a limusine voadora diante dele: "Você gosta de escrever?" Ele deu a resposta habitual: "Gosto muito." E Paulo Coelho, antes de a limusine decolar, deixando um rastro de cédulas verdes, gargalhou satanicamente: "Por que você não aprende, então?"

Para quê?

Nascemos para viver,
Vivemos para pensar,
Pensamos para saber,
Sabemos para olvidar.

Contradição

Nós não sabemos quem somos
E nunca nós saberemos.
Ah, mas quanto orgulho temos
De tudo quanto já fomos.

Solamente una vez

Que a vida cobre seu preço
E que tenhamos a sorte
De que, quando vier, a morte
Não seja um novo começo.

Barco

No barco à deriva
pelos deuses do mar amaldiçoado
e sacudido pelos furacões
se alguma coisa ainda há viva
é a esperança - e ela também
assim como os que ainda a têm
logo estará morta
e devorada pelos tubarões.

domingo, 18 de novembro de 2012

Soneto de verão

Virá de novo o verão.
Porém, se vós não voltardes,
Jamais como aquelas tardes
As novas tardes serão.

Diversos serão meus dias
Daqueles ensolarados,
Tão docemente lembrados.
E as noites, todas vazias,

Como as madrugadas vãs
E as improfícuas manhãs,
Não me servirão jamais

Senão para recordar
Que o tempo de desfrutar
Se foi e não volta mais.

Válido exagero

Quando o amor nós retratamos
Maior do que ele é realmente,
Ainda que nós mintamos,
Mintamos honestamente.

Por falta de aviso

Deviam ter te avisado.
Ninguém te disse (e devia)
Que para ti a poesia
Não era o rumo adequado.

sábado, 17 de novembro de 2012

Repassado

Fomos, fizemos, realizamos, vencemos, pontificamos. O passado é dia a dia recriado pelo presente, e quem o reescreve somos nós.

A almofada

A almofada em que o gato por doze anos dormiu foi jogada com ele na caçamba. Sempre foi macia e dócil como ele e, se nos doze anos tivesse aprendido a retribuir afagos e a miar, conservaria seu lugar no sofá e não estaria misturada com restos de tijolos e telhas, nem coberta de cimento e areia, como se, assim como o gato, precisasse de sepultura.

Heresia

Todo artista, se for artista mesmo, há de guiar-se pela heresia de que tudo, no mundo, nasce e existe para ser retratado por ele, e há de ter também a humildade de reconhecer que nem sempre dá certo.

Guichê

Poemas me ofereceram
Mas, quando fui, me informaram
Que as musas todas morreram
E os deuses se aposentaram.

Pauta

Enquanto vida tivermos,
Seja no tempo em que for,
Digamos o que dissermos,
Falemos sempre do amor.

Há quem

Há quem
dos deuses espere
nada menos que
o nome cantado
e decantado
a celebridade
a posteridade

E há quem
vá ainda além
e dos deuses exija
a imortalidade

Mas quem
no hospital agoniza
e não consegue respirar
implora aos deuses apenas
na sua última hora
um instante mais de vida
um pouco mais de ar.

Vida eterna

Há cinco anos que seu lugar no mundo é o terraço na frente do sobrado, onde a família o faz sentar-se de manhã e o recolhe quando começa a escurecer, para colocá-lo na cama. Não está surdo, embora garantam que sim, e poderia falar, se alguém falasse com ele. Para certificar-se de que ainda se lembra das palavras, diz algumas de vez em quando, mas elas saem como resmungos numa língua estrangeira. Olha para as flores do jardim, para as pessoas que passam em frente, para os garotos que jogam bola e perseguem pipas. Aos domingos o levam à missa. Quando o padre fala em vida eterna, ele implora a Deus que seja mentira.

Só o mínimo

Lançou-se do décimo primeiro andar. Nos segundos que durou sua queda, morreram no mundo cento e oito pessoas de causas naturais, oitenta e duas a tiros e facadas e quarenta e três num atentado no Oriente Médio. Ele, caindo sobre o toldo de uma loja, foi levado a um hospital onde, acordando duas horas depois, ouviu com desprazer que havia fraturado só o dedo mínimo - o mindinho, como lhe disse graciosamente a enfermeira.

Ambivalência

Escrever pode ser uma terapia, como julgam alguns psicanalistas. Mas pode ser também a doença que nos leva a eles.

O quarto do menino

Morreu na quinta e foi enterrado na sexta. Na manhã de sábado, um garoto tocou a campainha: "O Wellington está?" "Ele está doente, não pode sair", respondeu a mulher e, querendo acreditar no que tinha dito, voltou para dentro da casa e foi olhar o quarto onde, até dois dias antes, seu menino, com quarenta graus de febre, estivera deitado.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Um poema de Sylvia Plath

"BONDADE

A Bondade desliza pela casa.
Dona Bondade, ela é uma graça!
As gemas vermelhas e azuis de seus anéis embaçam
As vidraças, espelhos
Se enchem de sorrisos.

O que é mais real do que um grito de criança?
O de um coelho talvez seja mais selvagem,
Mas não tem alma.
Açúcar cura tudo, diz a Bondade.
Açúcar é um fluido necessário,

Seus cristais, uma pequena compressa.
Ah, bondade, bondade,
Juntando os pedaços com carinho!
Minhas sedas japonesas, desesperadas borboletas,
Podem ser pegas a qualquer minuto, anestesiadas.

Então você chega, com uma xícara de chá,
Imerso na fumaça.
O jato de sangue é poesia,
Não há nada que o detenha.
Você me passa as crianças, duas rosas."

(Do livro "Poemas de Sylvia Plath", tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicado pela Iluminuras.)

A etapa

Triste é a etapa da vida em que o homem, para se justificar diante de sua maturidade, se põe a matar, um a um, os ideais da juventude.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

As três palavras

Lábios que dizem a palavra amor devem dizê-la com o temor e a reverência com que pronunciariam as palavras deus e poesia. São essas três palavras que fazem cantar os pássaros e nascer as rosas.

Nem mesmo a morte

Os bons poemas, os verdadeiros, deveriam fixar nos olhos de quem os lê um brilho que nem a morte conseguisse apagar.

Roth, Kertész

No espaço de dez dias, Imre Kertész, Nobel de Literatura, e Philip Roth, candidato anualmente cotado para receber o prêmio, anunciaram que não escreverão mais. Não significa que deixaram de ser escritores. Ser escritor, ser artista de modo geral, é ter, ou tentar ter, um modo único de ver a vida, para expressá-la. Os que assumem consigo mesmos o compromisso de ser artistas são artistas todo o tempo. Prepararam-se, disciplinaram seus sentidos para isso e, mesmo quando dormem, são seus olhos de artista que veem seus sonhos.

Reflexão

Sem ideal não se vive, porém se dorme muito melhor.

Hoje

Hoje nas noites geladas
Não mais me abraçam teus braços
E junto aos meus, nas calçadas,
Não mais ressoam teus passos.

Por nossos erros, tão crassos,
E nossas juras goradas,
Dói-me ver hoje os fracassos
Das nossas crenças douradas.

Diz-me, por Deus, se tu e eu,
Ao sonho que hoje morreu
Nos dedicamos realmente,

Se na alma nós o sentimos,
Ou se senti-lo fingimos,
Tu e eu, descaradamente.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Lento de raciocínio

No fim, ficaram só dois
E o último que no amor creu
Só se achou tolo depois
Que o penúltimo morreu.

Lembra?

Eu sou aquele que um dia
Pela magia do amor
Em ti viu mais esplendor
Do que no sol que luzia.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Se só soberba

Soberba eu a chamaria
Se um dia de algo a chamasse.
Soberba eu a nomearia
Se só soberba bastasse.

O estoque

A primeira fase do escritor é a da acumulação. Ele guarda desordenadamente as palavras. Junta-as, junta, vai juntando e, quanto mais junta, mais quer juntar. Forma um estoque descomunal, como se as palavras estivessem correndo o risco de extinção. Depois, vem o estágio da seleção, que o escritor vai fazendo em cada parágrafo, em cada texto ao longo da vida. Quando chegam ao final da carreira, os escritores, em sua maioria, não terão usado mais do que 1% do que acumularam. Seu trabalho consiste em exibir não a monumentalidade do seu estoque, mas em reunir aqueles pouquíssimos itens básicos com os quais se costuma fazer a melhor literatura.

Conheces a mentira

Alguns ainda se deitarão sobre ti
mas quando te disserem
o que te disseram os outros
não fecharás os olhos como fazias
para que no escuro
as palavras te soassem
clandestinas e medrosas
como um murmúrio

Conheces a mentira
já por inteiro
como se ela fosse uma colega
com quem dividisses o aluguel
o quarto a cama e o banheiro

Enquanto este que hoje
em cima do teu corpo se deita
diz que és ai és ai és
tu de olhos abertos
fitas o teto para fugir
do desprazer de ver
que os olhos de quem
agora olha para ti ai és
sabem também como os lábios
e como os olhos dos outros
sempre souberam mentir.

Um poema de Wislawa Szymborska

"MUSEU

Há pratos, mas falta apetite.
Há alianças, mas o amor recíproco se foi
há pelo menos trezentos anos.

Há um leque - onde os rubores?
Há espadas - onde a ira?
Eo alaúde nem ressoa na hora sombria.

Por falta de eternidade
juntaram dez mil velharias.
Um bedel bolorento tira um doce cochilo,
o bigode pendido sobre a vitrine.

Metais, argila, pluma de pássaro
triunfam silenciosos no tempo.
Só dá risadinhas a presilha da jovem risonha do Egito.

A coroa sobreviveu à cabeça.
A mão perdeu para a luva.
A bota direita derrotou a perna.

Quanto a mim, vou vivendo, acreditem.
Minha competição com o vestido continua.
E que teimosia a dele!
E como ele adoraria sobreviver!"

(Do livro "Poemas", traduzido por Regina Przybycien e publicado pela Companhia das Letras.)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

João Antônio, Dalton Trevisan

João Antônio (com seus personagens Malagueta, Perus e Bacanaço) e Dalton Trevisan (com seus Joõezinhos e Marias) conseguiram dar à suburbanidade, ao submundo e à marginalidade a importância de temas clássicos.

A rosa de Gertrude Stein

Uma rosa é uma rosa é uma rosa é a melhor definição para uma rosa. Sem adjetivos, sem ornamentos vocabulares, dos quais sua majestade prescinde. Escrevo isto e lembro-me da reverente ênfase com que eu, no curso de latim, declinava rosa, rosae, rosae, rosam, rosa, rosa.

Aquela doença

Atribuirão a ti uma coragem que nunca tiveste e dirão que por muitos anos lutaste heroicamente contra o teu inimigo. Bobagem. Ele te encara com desdém e te matará quando bem entender.

Lagartixa

Escrevo, ainda. Sou como uma lagartixa que, morta, é sacudida ainda por espasmos de falsa vida.

Mea culpa

Sou uma fraude. Escrevi para jovens e lhes transmiti esperanças que não tinha e um entusiasmo que forjei.

Aquém

Escrever, para mim, foi no início um ideal; depois, uma ânsia de sucesso e glória e, mais tarde, um hábito. Hoje, é um motivo de desapontamento e vergonha.

Best-seller

Por muito tempo que eu viva
E me favoreça a sorte,
Minha obra definitiva
Será apenas a morte.

Atemporal

A vida sempre me põe
Num tempo que não me inclui.
Sou sempre aquele que foi,
Sou sempre aquele que fui.

Quem sabe

De tanto escrever, um dia
Quem sabe eu seja abençoado
E escreva um texto dourado,
Em que enfim haja poesia.

Macróbio

O que o contém, de verdade,
Mais que as barreiras morais,
Mais que as barreiras sociais,
São as misérias da idade.

Aberração

Amante da tristeza e da melancolia, para ele a felicidade é uma depravação da carne e uma doença do espírito.

Despeito

Que seja feliz quem for.
Imploro, só, por piedade,
Que ninguém venha me expor
A sua felicidade.

O que ficar

Quando este amor acabar,
Que nada nós lastimemos
E, se pudermos, louvemos
O que houver para louvar.

E que de tudo lembremos
Do que pudermos lembrar
E que tudo, ao recordar,
Nós outra vez desfrutemos.

Vivamos intensamente
O que nos dá o presente
Para que, quando passado

O amor for, seja lembrado,
Mesmo que em cinzas somente
Se torne o fogo sagrado.

domingo, 11 de novembro de 2012

Qual é a lógica?

Morreu Homero, morreu
Beethoven, morreu Dalí.
Foram-se os grandes, por que eu,
Escória, ainda estou aqui?

Um poema de W.H. Auden

"Hoje o inevitável aumento das chances de morrer,
A cônscia aceitação da culpa no fato do assassínio,
Hoje o dispêndio de poderes
No enfadonho, efêmero panfleto e no comício chato.

Hoje as consolações provisórias; o cigarro partilhado;
As cartas no celeiro à luz de vela e o concerto improvisado;
Os gracejos masculinos; hoje o
Abraço canhestro, insatisfeito, antes da dor.
As estrelas estão mortas, os animais não veem,

Estamos sós com o dia que nos coube, o tempo é curto e a
História um viés de derrota
Pode dizer um ai mas não nos pode absolver nem ajudar."

(Do livro "Poemas de W.H. Auden, tradução de José Paulo Paes, editado pela Companhia das Letras.)

sábado, 10 de novembro de 2012

Trajetória

Morrer é a nossa aptidão.
Em cada passo que damos
De tudo nos afastamos,
Menos da nossa missão.

Melhor

Muito melhor que lutar,
Muito melhor que vencer,
É toda glória ignorar
E nenhum triunfo querer.

Falha

Em tudo que eu poderia
Ter aprendido falhei.
Falhei no amor, na alegria,
Queixar-me é tudo que sei.

Diversão

Debaixo da ponte
no viaduto
olhar as estrelas
é para os garotos
um luxo

Olhar para quê
se não podem pegá-las
brincar com elas
de mão em mão passá-las?

Melhor como sempre
é procurar os ratos
localizá-los nas frestas
desentocá-los assustá-los
fazê-los correr até a rua
para os carros atropelá-los

Se pelo menos as estrelas
aquelas enjoadas
resolvessem descer um pouco
e eles pudessem
derrubá-las com suas pedradas.

Presunção

Julgamos que tudo foi feito para nós. Que por milênios tudo se preparou para nos receber sem uma falha. Mesmo assim, ainda em alguns dias nos parece que poderiam ser diferentes o sol e as estrelas, um pouco maior ou menor a lua e quem sabe um tanto mais rubras as rosas vermelhas. Aborrece-nos, então, que não tenhamos sido consultados antes que se fizesse isso tudo que para nós se fez.

Eloquência

Não temos nada a dizer,
Nada de nada sabemos,
Porém fingimos saber,
E com que força o dizemos!

Vendilhão

O que é, se não simonia,
Tua beleza tomar,
Teus atributos usar,
Para fazer má poesia?

Idade

Qual é a felicidade
Que podes ainda querer,
Já na miséria da idade
E no limite do ser?

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Kama Sutra - LXIII

Olha mais uma vez para a mão. Faz pelo menos meia hora, já, que ela se mostrou tão surpreendentemente audaz, mas ele parece não acreditar ainda no que ela foi capaz de fazer. Olha para ela de novo, e de novo a cheira, para que o odor marinho o convença.

O pretexto

A busca da imortalidade é o pretexto que apresentamos para acreditarem na nobreza de nossas intenções. O que nós queremos com a literatura, não mintamos, é o afago dos leitores, se possível já.

Estresse

De todas as atividades, a que mais me cansa é viver.

Quem sabe na próxima

Se houver outra vida, que nela eu seja abençoado com um dom que nesta me faltou: o de saber escrever.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Missão

Presumir que tenhamos uma elevada missão é sinal de nossa arrogância. Tentar definir qual é essa missão tem sido, há milênios, a prova de nossa incapacidade.

Literatura

Literatura é o que até ontem à noite eu supunha estar fazendo desde a adolescência.

Resignação

Resignação é uma dessas designações eufemísticas que damos ao nossso fracasso.

Licença

Viver é aquilo que a Morte nos permite fazer antes de levar-nos.

Para a alma

Alcançar a nuvem mais alta e branca, a mais ovelha de todas, persuadi-la com carinho e ordenhá-la, para dar enfim à nossa alma o alimento que ela merece.

Bons olhos vos vejam

Para ele, ela é melhor do que é. Para ela, ele é melhor do que é. Mais ninguém os vê como os dois se veem. Uns podem chamar isso de falta de percepção; outros, de amor.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O terreno

Era um terreno vazio
grande e adequado
para um parque perfeito
ou para um colégio apropriado

Era da prefeitura diziam
e em toda eleição candidatos
promessas apresentavam
de fazer algo importante ali
onde o mato crescia

Além do mato (reconheça-se)
flores urbanas ali cresciam
e formigueiros também e ratos
enquanto a cada eleição
sucedia outra eleição

Enquanto espera ainda uma construção
a fita desatada e a inauguração
o bairro hoje sentiu o alvoroço
de ver estendidos no mato
como se quisessem colher as flores
três homens-feitos e um moço
e fugindo à aglomeração
uma mulher puxando uma menina
sob o cheiro já podre do ar
e o som abafado de vozes
murmurando a palavra chacina.

Ignora-te a ti mesmo

Conhecer-te a ti mesmo
jamais te libertará

A cada passo que dás para ti adentro
mais entranhado tu ficas em ti
e quando te tiveres trancafiado
tu não te deixarás escapar

Caminha para fora de ti
caminha para longe
para um lugar tão imensamente distante
que tu não te possas alcançar
e goza então a liberdade
de não te conhecendo
não teres a responsabilidade
que têm sempre aqueles
que a alguém devendo
se sentem obrigados a pagar.

Poema de gato

Um gato no colo de uma menina
ou lambiscando leite numa terrina
merece talvez alguns versos ocasionais

Um gato perseguindo um camundongo
pulando muros e atravessando quintais
não inspira epopeias nem odes triunfais

Mas ninguém diante do mais lamentoso poema
ou da mais descaradamente triste elegia
chorará mais do que este menino
chora ajoelhado na calçada
falando com seu gato branco
que de vermelho encarnado tingido
não poderá ouvi-lo jamais.

Tributos a Morfeu

Os poetas deveriam ser sempre jovens e estouvados. Quando envelhecem, todos se envergonham dos seus cantos adolescentes, encasacam-se, enfarpelam-se e, acreditando que a idade traga por si só a sabedoria, passam a fazer uma poesia tão enfadonha quanto os ensaios de filósofos novatos, cheia de máximas e provérbios cuja única valia são suas qualidades soporíferas.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Teu encanto

Me encantas quando me dizes
Que as coisas simples, pequenas,
E as emoções mais amenas
É que nos fazem felizes.

Me encantas quando me trazes,
Se de consolo eu preciso,
O brilho do teu sorriso
E a graça de tuas frases.

Me encantas quando, me vendo
Pelos meus sonhos sofrendo,
Me pedes para escutar-te

E sugeres então que
Eu não me aflija, porque
A vida é melhor que a arte.

Dois poemas de Omar Khayyam

"Vamos gozar o Amor! Provar cada Alegria
Que a vida possa dar! Seremos Poeira um dia:
Poeira a jazer na Poeira e sob a Poeira e assim
Sem vinho e sem Amor, sem Música e sem fim!"


                       *************

"As esperanças vãs do Coração de um Homem
Ora são cinza, ora Esplendor, porém, em breve,
Como por sobre o pó dos Desertos a Neve,
Brilham somente uma hora ou duas e após somem."


(De "Rubaiyat", tradução de Jamil Almansur Haddad, publicado pela Editora Civilização Brasileira.)

sábado, 3 de novembro de 2012

1938-1961

Podia ter sido lindo,
Se não fosse esse contraste,
Se eu já não estivesse indo
Quando ao mundo tu chegaste.

Teimosia

De que mais falarei, se não de amor? Há por acaso formas poéticas que se prestem a exaltar a artrite, as dores lombares, a catarata? Mesmo correndo o risco de me acharem um sólido exemplo de demência senil, continuarei assim: um pardal velho tentando gorjear como um canarinho.

Tabela médica

Quantas consultas por sessão Fernando Pessoa deveria pagar ao psicanalista?

O conto de Dalton Trevisan

Dalton Trevisan é um dos mais fortes exemplos de que a importância da forma, na literatura, é superior à do conteúdo. Críticos dizem que sua obra consiste em reescrever o mesmo conto há cinquenta anos. Esses críticos reconhecem, também, que em cada nova versão o conto fica melhor.

Um poema de Pablo Neruda

Meu cão.
Se Deus está no meu verso,
eu sou Deus.

Se Deus está nos teus olhos doloridos,
tu és Deus.

Neste mundo imenso não tem ninguém
que se ajoelhe diante de nós dois.

(Do livro "Crepusculário", tradução de José Eduardo Degrazia, publicado pela L&PM.)

A xícara de Wislawa

Alguns poetas conseguiram a prodigiosa alquimia de transformar pedra em ouro, e suas estrofes brilham ainda como se fossem oferendas aos deuses. A proeza de Wislawa Szymborska foi inversa e ainda mais prodigiosa. Ela era capaz de pegar uma ânfora e dela fazer uma xícara comum, dessas nas quais um homem, no fim do dia, pode pagar-se do seu cansaço compartilhando um café com a mulher amada.

Ne média

Não conheço nada de nada. Não saber é a minha sabedoria, mas não costumo me abster de opinar, seja lá sobre que assunto for. Geralmente concordam comigo.

A face real

Pelo menos por um instante, não pensar em você. Ver a vida como ela é, sem maquilagem, sem disfarces, fria, sem sentido e sem beleza.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Kama Sutra - LXII

Com os lábios carregados de batom escarlate, ela imprime a boca na palma da mão e põe-se a beijá-la. Quando o fôlego lhe falta, ela para e murmura: "Íris, Íris..." Logo volta aos beijos e, com os olhos já fechados de volúpia, sussurra: "Carla, Carla..." Quando já não sabe se é Íris, Carla ou as duas que ela beija, aperta entre as coxas a mão em que palpita a boca e, como toda noite, geme: "Obrigada, amor, obrigada."

O tempo

Para uns o tempo é ventura
E em cada novo momento
Repete-se o encantamento
Que permanece e perdura.

Para outros é esperança
E, embora muito esperado,
Pedido e até implorado,
Sua marca é sempre a tardança.

Para mim, não é senão
Do planeta a rotação,
A aparição do sol e

A dor aguda, a tristeza
Que vem sempre com a certeza
De mais um dia sem ti.

Hipócrita

Hoje, que dentes não tem
E suas mãos deformadas
São como conchas furadas,
Olha os frutos com desdém.

E com desprezo, também,
Encara as putas pintadas
Que com as bocas desbocadas
Atraem os homens: "Vem!"

Excluído da juventude,
Proclama agora a virtude
E o dom da sabedoria.

Ah, mas se ainda pudesse,
Ah, mas se dentes tivesse,
Com que prazer morderia.

Jornal da Tarde

O Jornal da Tarde, quando surgiu, foi um sopro de inovação, em tudo: a diagramação, a parte visual, a "cara" das páginas. Mas me encantava principalmente a linguagem. Estava-se na época do "new journalism", com a influência de técnicas literárias para dar sangue e vida ao texto, e foi no JT que eu tomei conhecimento dessa tendência que nos Estados Unidos, pelas mãos de gente como Gay Talese e Truman Capote, vinha dando novas cores especialmente à reportagem. Essa identificação com o novo jornalismo teve seu auge num domingo em que escritores famosos foram convidados a ser redatores da edição de segunda. A experiência se transformou em livro, assim como uma edição das primeiras páginas do jornal. Tanta coisa a ser lembrada... Tanta qualidade, tanto brilho, como o dos textos policiais assinados por Valdir Sanches. Suas manchetes pareciam flashes de filmes: "Dez da noite no bar. O homem vai entrar atirando." Ou: "Vestida de freira, a mulher anuncia o assalto". Notícias corriqueiras assumiam uma dramaticidade única. Recordo-me também da contraposição de notícias. Numa de tantas inesquecíveis edições, apareciam lado a lado a história de um goleiro que se destacou num jogo e a de um jovem goleiro, um menino que morreu sem concretizar a aspiração de se tornar um profissional do futebol. Os títulos eram "A noite do grande goleiro" e "A morte do pequeno goleiro". E os cronistas do JT? Lourenço Diaféria e Frederico Branco, dois dos três maiores que São Paulo teve em toda sua existência (o outro é Alcântara Machado), assinaram colunas no jornal. Cada edição do JT era uma lição de jornalismo dada com um bom gosto exemplar. É, ainda. A história é um contínuo presente.

Rapaziada (para Charles Bukowski)

Também andei pelas ruas
Nas quais à noite surgiam
E pródigas se exibiam
Mulheres fáceis e nuas.

Também, nas torvas esquinas,
De madrugada esperei
Por putas que me enganei
E julguei serem meninas.

Fiz o que fazem vocês
Quando foi a minha vez.
Nós somos todos iguais

E, se algo posso dizer
Do que presumo saber,
Eu lhes digo: façam mais.

Impressões digitais

Dormiste um pouco mais, hoje. Sentado num galho da jabuticabeira, o sol te esperou enquanto pôde. Antes de ir embora, deu três batidinhas na tua janela. Olha para ela, quando acordares. Ali ele deixou a dourada marca dos amorosos e impacientes dedos.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Um poema de Sylvia Plath

"A mulher está perfeita.
Morto,

Seu corpo mostra um sorriso de satisfação,
A ilusão de uma necessidade grega

Flui pelas dobras de sua toga,
Nus, seus pés

Parecem nos dizer:
Fomos tão longe, é o fim.

Cada criança morta, uma serpente branca
Em volta de cada

Vasilha de leite, agora vazia.
Ela abraçou

Todas em seu seio como pétalas
De uma rosa que se fecha quando o jardim

Se espessa e odores sangram
Da garganta profunda e doce de uma flor noturna.

A lua não tem nada que estar triste,
Espiando tudo de seu capuz de osso.

Ela já está acostumada a isso.
Seu lado negro avança e draga."

(De "Poemas de Sylvia Plath", traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça e editados pela Iluminuras.)



Um trecho de Coetzee

Tenho quase certeza de já haver reproduzido aqui este trecho do romance "Juventude", de J.M. Coetzee, mas ele me diz tanto que peço desculpas, se for o caso, e licença para colocá-lo de novo. Esse livro, autobiográfico, é recomendado a jovens leitores que tenham aspirações literárias.

"Na verdade, nem sonha fazer terapia. O objetivo da terapia é fazer a pessoa feliz. Para que isso? Pessoas felizes não são interessantes. Melhor aceitar o peso da infelicidade e tentar transformá-lo em alguma coisa que valha a pena, em poesia, música ou pintura: é nisso que acredita."

(De "Juventude", traduzido por José Rubens Siqueira e publicado pela Companhia das Letras.)

Soneto da espera

Talvez de amor se tratasse
Mas ele, menino tolo,
Não chegou nem a supô-lo,
Embora tudo o indicasse.

Talvez mais do que amor fosse,
Talvez fosse até paixão,
Mas na sua concepção
Era apenas algo doce.

Tendo todos os sinais
E mais alguns recebido,
Se fez de desentendido

E exigindo muitos mais
Para saber se amor era,
Espera ainda, espera, espera.

Soneto daquele que estará do outro lado

Se assim como no passado
Andares pela avenida,
Eu estarei do outro lado -
Ou da calçada ou da vida.

Se entrares na livraria,
Penso que, por teu conforto,
Melhor será, nesse dia,
Que eu já seja um homem morto.

Porque, se vivo ainda eu for,
Te aborrecerei com o amor,
Como sempre aborreci.

E te direi, sabes bem,
Que, vivo ou morto, ninguém
Teve tanto amor a ti.

De voz e de cabelos

Não falarei mais de vós,
De vossos cabelos de ouro,
E nem desse outro tesouro
Que é o timbre de vossa voz.

Depois de eu tanto exaltá-los,
Tanto à voz quanto aos cabelos,
Que outros possam, ao cantá-los,
Melhor que eu enaltecê-los.