domingo, 31 de março de 2013

Quando...

... a tristeza e a descrença nos afligem, como nos faz bem qualquer frase, mesmo que tenha só uma palavra, uma palavra de quatro letras apenas, ou mesmo três. Para quem teve um tesouro e o perdeu, uma palavra basta, uma boa palavra é um tesouro. Acumular tesouros é um engano do qual a idade nos livra. Uma palavra, uma só, basta para ser o nosso tesouro. Mais fácil cuidar dela do que de muitas, como eram aquelas todas que, por nosso orgulho, perdemos. Uma palavra que se possa ter na mão, e aquecê-la como um passarinho derrubado pela chuva, e trazê-la ao coração, porque ela e ele falam a mesma linguagem.

O tempo...

... suaviza tudo. Se eu ainda tiver memória daqui a cinco anos - é insensato pensar que eu possa contar com mais tempo de vida do que esse -, talvez eu lembre este domingo como as recordações muito cansadas lembram tudo: uma névoa, uma imprecisão, um borrão com alguma claridade opaca. A magnânima memória não me lembrará desta pontada no peito, desta aflição, do peso desta manhã, do desejo de já ter vivido e morrido num tempo bem distante, de já haver cumprido o triste caminho que cabe a cada homem percorrer. Terá sido um domingo qualquer, este, como toda vida, por mais que se queira engrandecê-la, é no fundo, sempre, uma vida qualquer.

Almoços de domingo nos asilos

São tristes os asilos aos domingos, quando os velhinhos que ainda têm alguma memória ficam esperando por filhos que nunca vão visitá-los. Os cinco ou seis que aparecem, com cara de quem faz imenso sacrifício ou paga penitência, assim que abraçam os velhos que lhes correspondem, passam a ser cobiçados pelos ávidos olhos de todos os outros. Se filhos já são difíceis de arrebanhar, netos são quase um milagre. Os adultos, se não têm namorada, inventam uma, dominical. Os pequenos, quando vão, dão um alozinho para o avô ou para a avó e começam a correr para todos os cantos e a se estapear. Ah, que saúde têm as crianças, dizem vozes carregadas de catarro. Todos os visitantes, filhos ou netos, estrategicamente, chegam quinze minutos antes de acabar o horário reservado a eles. A liberação, ufa, vem com a sineta do almoço. Os velhos esquecem-se rapidamente de filhos e netos e, caminhando para o refeitório, longos cinquenta passos para pernas cansadas, o cheiro de frango começa a resgatar as perdas da manhã. No domingo de Páscoa o almoço é melhor.

Alice na Páscoa

Quando Alice o viu, o coelho já havia passado pela frente da sua casa e estava já quase sumindo. Ela procurou por toda parte, decepcionadíssima: nenhum ovo.

Páscoas antigas

Eu não gostava quando, nas festas, apareciam velhotes de parentesco indefinido ou amigos da casa. Na Páscoa, vinham com um ovo para mim e em troca eu precisava suportar aquelas mãos suadas me abraçando, batendo em minha cabeça - como você cresceu, já está um homenzinho - e aquele cheiro esquisito que todos tinham. Velhotes, para mim, eram aqueles que haviam passado dos quarenta. Não havia velhos tão velhos quanto os de hoje. Imagino o que sentirão meus netos hoje, se eu os tocar. Uma sabedoria que os anos me trouxeram é esta: poupar os outros de minha ternura.

Uma frase de Sérgio Telles

"O fato de nos tornarmos adultos e envelhecermos não nos garante a maturidade emocional e afetiva. Nosso lado infantil continuará sempre conosco e muitas vezes tomará indevidamente o controle de nossa vida mental, provocando transtornos e dificuldades."

(Do Caderno2 do Estadão de ontem.)

sábado, 30 de março de 2013

Eu me sinto...

... como um enforcado deixado sozinho no porão, sem sequer uma brisa para balançar o corpo. Um enforcado cujo bilhete não se achará porque um incêndio destruirá toda a casa. Um enforcado que não encontrarão sob os escombros e que julgarão ter posto fogo à casa e fugido com o dinheiro da família para uma ilha exótica onde dançará com nativas como as de Gauguin. Um enforcado cuja tristeza ninguém conhecerá. Um enforcado de quem dirão: aquele nunca enganou ninguém, com aquela cara melancólica.

É triste quando ninguém...

... mais quer lutar conosco. É triste quando ninguém se vangloria de nos ter vencido. É triste quando a ninguém ocorre a ideia de nos humilhar. É triste quando já não servimos nem para isso: para alguém ter o gosto de tripudiar sobre nós.

Perder...

... sempre, perder dia e noite, perder de janeiro a dezembro, perder muito, perder tudo, perder irremediavelmente, inapelavelmente. Perder, perder, perder. A vida, para nós, consiste nisso: em termos esse perfil, esse destino, essa sina, e sabermos que isso não mudará nunca. Resta-nos aceitar tudo e, num acesso de bom humor, cortar um pedaço de cartolina e gravar, para ter sempre à nossa frente e em nossa memória isso: perder, perder, perder. Se um dia cantarmos vitória, alguém acreditará? Perder, perder, perder. É já um lema, isso: perder, perder, perder. É já uma obrigação: perder, perder, perder. É nosso papel na peça da vida: perder, perder, perder. Já nem pensamos em culpar alguém, senão nós. É todo nosso esse perder, perder, perder. Já nos tiraram tudo. Que não nos tirem também esta nossa única e modesta glória: a de perder, perder, perder. Boa Páscoa.

Amor e afeto

Existem afetos que não sabem se comportar. É dar-lhes um dedo e já querem as duas mãos. Não se conformam em ser só afetos. Estão sempre invejando o posto do amor. Insinuam-se, intrometem-se, tramam, conspiram. Caluniam o amor, fazem o que podem para depreciá-lo e, se o veem em descrédito, logo se apresentam como substitutos ideais. Esse tipo de afeto não tem conserto. Convém estarmos sempre atentos a ele. Melhor ainda é deixá-lo a certa distância. Tratá-lo bem, sim, mas não muito, para ele não imaginar que é um convite para se achar mais do que é. Podemos dizer-lhe que amor é amor e afeto é outra coisa. Mas quantas vezes ele já ouviu isso? E quantas vezes ele obedeceu?

Última vontade

Então ele me olhou com os olhos ainda mais tristes: "Sabe? Eu já estou bem no meu tempo de morrer." Antes que eu pensasse em dizer alguma coisa, ele completou: "Vontade não falta."

Tristeza polaca

O sangue polonês é triste. Batalhas perdidas, ultrajes, o sofrimento do povo, tudo eu herdei dos meus pais. A minha tristeza é antiga, multissecular, não posso resistir a ela. Quem resistiria a uma tristeza que vem trazida pelas notas de Chopin? Mesmo que eu soubesse como, não tentaria.

Menu

"Aqui Serviço Antivida.
Teclar a opção desejada:
Morrer de morte morrida,
Morrer de morte matada."

Quantas vezes mais...

... você terá, depois de dizer "até", no msn, voltado e pedido a alguém que esperasse um pouco? Quantas vezes você terá dito, após essa pausa, que precisava dizer uma coisa? Quantas vezes mais, antes daquele dia e depois, você terá escrito que essa coisa era "te amo", "te amo muito"? Quantos você terá feito feliz assim? E fazer a felicidade de alguém, ainda que brevemente, será um pecado, uma coisa abominável? Só se for na cabeça de velhos ranzinzas.

Bom dia a...

todos, sejam quais forem as faces que vocês assumirem hoje. Tenho medo, quase vergonha, dos meus raciocínios. Sei que não sou bom nisso. Minha área é mais a das sensações, a dos sentimentos. Sinto, logo existo. Mas estive aqui pensando nessa necessidade que sentimos de saber quem somos efetivamente. Gostamos de dizer que somos afáveis ou grosseiros, determinados ou hesitantes, crédulos ou incrédulos. Estamos adultos e achamos que ser adultos é isso: sabermos nos definir, termos consciência do que somos. É o que nos vêm ensinando desde o colégio. Não sei quanto a vocês, mas eu venho sentindo a necessidade de me desviar desse trilho. Cansei de viver preso a uma personalidade. A personalidade, no fim das contas, é construída menos por nós que pela sociedade. Estou tentando sair dessa. Talvez essa rebeldia  venha do fato de, com a velhice já instalada em cada poro, eu poder a qualquer momento declarar-me afetado pela demência senil e isentar-me de tribunais. Não me importa mais, como me importou durante a vida toda, saber se pensam mal ou pensam bem de mim. Descobri que posso ser vários num dia só: lírico, romântico, pornografico, abominável, sincero, falso. Vocês talvez ainda não possam. A cada idade corresponde uma gravata. Eu vou tentando afrouxar o meu. O que tenho a perder? Velho maluco não é uma definição tão pejorativa assim. Vou às alfaces. Volto à tarde, não sei com que espírito - talvez com vários. Bom dia, boa manhã.

Papo na internet

"Dinheiro eu não tenho e estou desempregado. Desculpa, mas eu sou assim, direto. Pra que perder tempo com enrolação? O que eu posso te dizer é que o meu, sabe?, aquilo, é grande e eu sou bom de cama. Se você abrir o Skype, eu mostro. Aí você aproveita e vê minha cara, também".

Kama Sutra - CLIX

"Só uma vez, vai. Agora, que ninguém está olhando. Dá uma seguradinha. Ele não morde. Vai. Não precisa abrir o zíper, não precisa tirar ele. Aproveita agora, o cara da moto não está mais de olho. Só pega ele, uma vez.Vou te avisar. Depois você vai querer e aí eu não vou deixar. Vai, agora. Última chance. Pega, vai."

Frases complementares

"Como me aborreceu aquele homem!"
"Como aquela mulher me enlouqueceu!"

São Paulo

Aqui existe organização. As balas perdidas, quase todas, são encontradas. No peito de uma criança ou na barriga de uma mulher grávida.

São Paulo

O gigolô vai pôr hoje à noite uma nova garota para se virar na esquina. Ela é burrinha, e ele recomenda mais uma vez: "Não fala que você tem dezesseis. Eu sei, eu sei que você tem isso. Mas diz que tem catorze. Funciona melhor."

Um parágrafo de Anaïs Nin

"Só vou alcançar minha redenção sexual quando eu for capaz de procurar sexualmente os homens que não me tratem com ternura. Afinal, me sinto atraída pela delicadeza porque tenho medo dos brutos e então me decepciono com a delicadeza, com o excesso de sensibilidade, com o sentimentalismo, a devoção, a adoração!"

(Do livro Incesto, tradução de Guilherme da Silva Braga, publicado pela L&PM Editores.)

sexta-feira, 29 de março de 2013

Boa noite...

... a todos. Transformei meu micro numa espécie de escritório, bem modesto, é verdade, em cuja porta, quando saio, deixo anotados num papelão grudado com durex o motivo de minha ausência e o horário de minha volta. Acredito que haja quem leia o blog, ainda que poucos,  e devo-lhes, acho, essa espécie de gentileza, que só retribui a que os leitores me demonstram. Sinto-me bem, assim, como se conversasse diretamente com vocês. É estranho eu dizer isso, justamente eu, que pela incompetência para lidar com as novas (!!!)  mídias, não aprendi ainda o caminho nem do facebook e, para disfarçar isso, costumo dizer que não gosto do face... De qualquer forma, aceitem meu boa-noite, que vai por aqui mesmo (e acreditem que, para mim, é uma proeza enviá-lo). Até

Ainda Sade, ainda Masoch

O masoquista, quando geme sua humilhação, não está admitindo sua derrota; está proclamando a sua vitória, que é a vitória também do sádico. Deixando de lado o aspecto físico, no qual a relação sadomasoquista pode dar-se entre parceiros circunstanciais, o sadomasoquismo assume sua completude e sua beleza em convívios longos. É uma equação construída momento a momento, sutil, rica em nuances psíquicas, psicológicas, emocionais e equilibrada, no sentido de que nela, tendo as duas partes sua satisfação, não há como pensar em egoísmo. Visto assim, o sadomasoquismo só é possível entre parceiros de uma sensibilidade delicada, quase artística. Isso difere flagrantemente da imagem vulgar com que costuma se apresentar o sadomasoquismo - como se fosse uma depravação, uma aberração moral, uma relação puramente animal. O sadomasoquismo é uma das mais altas manifestações do espírito. Não tenho nenhuma base teórica para afirmar isso, mas o sadomasoquismo, como eu o sinto, está diretamente ligado à esfera do afeto e do amor.

São Paulo

Os urubus logo estarão dizimados aqui. As pessoas já os expulsaram dos lixões e estão devorando tudo o que antes eles comiam.

Bom fim de tarde

As alfaces estavam retraídas, de manhã. Talvez pelo dia triste, não sei. Não vou chegar ao absurdo de lhes atribuir algum sentimento religioso, isso não. Mas, se algum legume ou hortaliça tivesse esse sentimento, seriam elas. Acredito que outras pessoas já tenham notado nelas essa sensibilidade. Só não tiveram coragem de narrar essa descoberta. Eu as entendo. Já há, quando ando pelo bairro, quem me olhe com suspeição. Se fizerem um abaixo-assinado, estou perdido, eu sei. Enquanto o abaixo-assinado tarda, mando a todos um abraço. Se eu não aparecer à noite, vocês já sabem: o abaixo-assinado foi feito e os homens de jaleco branco vieram buscar-me. Até lá.

Kama Sutra - CLVIII

"Vamos aqui mesmo, em pé. Pra isso não precisa luxo. Ninguém passa aqui esta hora. Eu não tenho um puto para o motel. Vamos, vai. Você prometeu que hoje me dava. Não vai mijar pra trás agora, vai? Olha, eu trouxe até camisinha. Põe a mão aqui, vê como está o coitadinho. Aí. Viu? Parece madeira, não parece? O quê? Te beijar, antes? Ah, mulher tem cada uma. Não pode ser depois? Depois eu beijo. Fechado? Isso, tira ele. Ai, sem unhada."

Patrimônio

Se a tristeza tivesse valor monetário, eu precisaria montar em casa um esquema de segurança e dispor de uma escolta quando saísse.

Kama Sutra - CLVII

O melhor momento é sempre aquele no qual, tendo os dois se manuseado até aflorar em ambos uma inquieta umidade, ela se curva sobre ele, abre-se inteira, encaixa-se e ajusta-se para cavalgá-lo melhor, e mexe-se com todo a urgência do seu prazer, até que o mastro se encolha e se recolha, derrotado.

Bom dia

Me deem licença, que vou dizer bom dia às alfaces. Poderia não ir e dar-lhes amanhã a desculpa de ter encontrado o sacolão fechado. Não farei isso. São seres sensíveis, as alfaces. Basta ver a forma como são feitas: para lidar com elas, antes de colocá-las no prato, precisamos lavar carinhosamente folha por folha. Há quem converse com elas enquanto a água escorre. Eu converso com elas enquanto as trago para casa. São tímidas, reservadíssimas. Mas, se elas me contarem alguma história, prometo repassá-la à tarde para vocês. Até.

Quadrilha

Os dias são bem-educados
nos oferecem o sol
nos cumprimentam
nos dizem olá

São organizados
e sempre nos seguem

Estamos todos fichados
e um deles nos matará.

A revelação do amor

Pensou que seu amor se revelaria por si só: um olhar, um sorriso nervoso, a voz tremida. Mas, por garantia, resolveu declará-lo por escrito. Usou as melhores palavras, juntou-as com uma paixão que até então jamais sentira. Queria que elas soassem como um hino, com o mesmo brilho da história de Oscar Wilde sobre o rouxinol que espetava um espinho no coração para colorir com o próprio sangue uma rosa, porque assim, vermelha, a queria a amada de um poeta. Lembrou-se também de Gonçalves Dias copiando com sangue um poema, e, mesmo não sendo nem rouxinol nem Gonçalves Dias, empenhou-se com tanto sentimento no bilhete que suas lágrimas borraram o papel. Achando que as lágrimas e o sangue azul da tinta dariam bom testemunho do seu afeto, decidiu não passar a mensagem pelo micro. Levou-a à amada. Ela abriu o envelope distraidamente e também distraidamente leu. Quando devolveu o bilhete, perguntou: "Para quem é?" Ele pegou a folha. Imaginou que não tivesse escrito o nome dela, ou que as lágrimas o houvessem apagado. Mas ele estava ali, bem em cima. Abaixo, duas ou três palavras apagadas. Mas a palavra amor aparecia em quase todas as linhas, e o azul molhado dava a ela um brilho de orvalho que havia negado a todas as outras. Ele recolocou a folha no envelope e disse: "Olha, esquece. É para uma pessoa muito especial para mim. Eu queria só saber a sua opinião." Ela sorriu: "Ah, eu achei muito bom. A pessoa vai gostar." Ele olhou para ela com os olhos úmidos e agradeceu. "De nada", ela disse, começando a afastar-se. Não olhou para trás. Mesmo que olhasse, certamente não se importaria com as lágrimas dele, agora molhando o rosto e o envelope.

São Paulo

Depois da tempestade, vem o Datena.

Burocrata

Tratou o amor como um assunto. Depois de pesquisá-lo, estudá-lo e catalogá-lo, o arquivou.

Convalescença

O médico diz que ele agora está bem, em plena convalescença, e pergunta se ele já não está se sentindo melhor. O que ele sente é que as cores do mundo se apagaram. Tudo é cinza. O cinza deve ser a cor da saúde.

O menino

Mostram-lhe fotos de um menino loirinho: numa bicicletinha, na primeira comunhão, chutando bola, brincando com um gato. O menino é ele, lhe dizem. Tem pena do menino. Não sabe ainda o que a vida vai fazer dele.

Um parágrafo de Hermann Hesse

"Na rua Mostack morava uma jovem senhora, que por infelicidade perdera seu marido logo após o casamento, e agora sentava-se em seu pequeno quarto, pobre e abandonada, e esperava uma criança que não teria pai. E porque estava assim tão sozinha, todos os seus pensamentos demoravam-se na criança por nascer, e nada houve de belo e magnífico e invejável, que ela não tivesse inventado e desenhado e sonhado para essa criança. Uma casa de pedra com vidraças de cristal e repuxo no jardim pareceu-lhe já bastante bem para o pequeno, e, quanto ao futuro, ele se tornaria no mínimo um professor ou um rei."

(De Sonho de uma flauta, tradução de Angelina Peralva, publicado pela Record.)

quinta-feira, 28 de março de 2013

Os vícios...

de certa forma todos iguais. Tive com eles histórias semelhantes. É sempre aquela decisão heroica, muitas vezes adiada e, quando tomada e cumprida, sujeita à pior fase: a da tentação de recaída. Foi assim com o cigarro, foi assim com o álcool. Temos a tendência de achar que as vitórias são o triunfo final. E é preciso que caiamos várias vezes para aprender. Há sempre quem, vendo-nos firmes em nossa resolução, nos ofereça um cigarrinho, um só, uma cervejinha apenas, vá, só hoje, deixe de ser chato, estamos numa festa. Abandonar um vício, qualquer que seja, passa por essa fase, a mais difícil: recair. É quando queremos recuperar tudo de que nos privamos no período de abstinência. O cigarro, o álcool e outras drogas, vícios que eu chamarei de "psicológicos" ou "psíquicos", são, apesar de tudo, mais fáceis de vencer que os vícios "espirituais". Estes tendem a evoluir para o misticismo e para um estado de exaltação idêntico ao do fanatismo religioso. O amor é um bom exemplo de vícios desse tipo. Boa noite a quem estiver lutando contra qualquer um deles. Se estranharam esta linguagem, pior que a dos livros de autoajuda, desculpem-me. Hoje, durante o dia, escrevi coisas que me pareceram ditadas pelo Diabo, agora escrevo isto, que soa como um sermão de mau pregador. Alguns vícios nos levam quase à insanidade. Os de fundo espiritual, principalmente. É bom que assim seja. A bebida e o fumo não podem ser objeto de amor. Podemos (e devemos) livrar-nos deles sem nenhuma consideração. Já ao amor, se ele merece ou mereceu um dia o nome que tem, devemos respeito, para que jamais alguém possa pensar que era tão fútil quanto emborcar um copo ou dar uma tragada.

A ociosidade

A ociosidade é a mãe de todos os vícios, e o amor é o pior de todos os seus filhos.

Kama Sutra - CLVI

Está com os olhos baços e o rosto lívido, como os desses garotos viciados em se tocar com os dedos. Já esteve pior. Acha que devagar vai melhorando. Já consegue segurar-se até as oito, as nove da noite. Ontem manteve o controle até as dez e meia. Só então, como um condenado à cadeira elétrica, trancou-se no banheiro, embora estivesse sozinho como sempre, e logo estava já estremecendo como se o encarregado da execução tivesse ligado a chave e a houvesse programado para matá-lo lentamente, cruelmente, de insuportável gozo. Foram três minutos, cento e oitenta segundos em que ele se regozijou por ter tantas culpas e pelo rigor do juiz ao analisá-las.

Contrapartida

Levar-me a sério seria a atitude correta, se os outros me levassem também.

Curtíssimas frases de Anaïs Nin

"Trago minha alegria para todos, como um buquê."

"As calúnias que lanço contra a vida se devem ao medo que sinto dela, à sua fragilidade."

"Não fui feita para acasalar com homens sábios."

(Do livro Incesto,  traduzido por Guilherme da Silva Braga e publicado pela L&PM Editores.)

Boa tarde...

... para todos. Que o sol se mantenha simpático como deve ser um sol de véspera de feriado. Boa viagem. Cuidado ao dirigir. Há tanta gente desembestada por aí, tantos malucos. Para quem for ficar, o sossego que São Paulo tão raramente proporciona. Aproveitem o(s) dia(s). E cuidem-se. Não abram a porta nem o e-mail. Em toda parte há hordas de cães abandonados e homens tristes. Até

Como cachorros...

... perdidos, vamos arranhando portas. Talvez nos abram uma, é Páscoa. Vamos arranhando portas, arranhando. Se abrirem uma, nosso rabo treinado de cachorros vagabundos acenará e em nossos olhos nossa fome estará gritando. Pode ser que nos deem alguma coisa, qualquer coisinha serve: uma comidinha de ontem, ou um afeto já meio usado.

Há tantas horas...

... no dia. Talvez alguém nos ouça, quem sabe às 11h34, às 11h47.

A paz...

... é esse cachorro velho, cego e aleijado no quintal. Para que nos serve? A paz não foi feita para os vivos. A paz é um assunto dos mortos.

Depois das...

... crises emocionais - não dessas que são um charmezinho, um jeito de atrair atenção, mas daquelas grandes, que atormentam e devastam - há um momento de trégua, em que nos perguntamos por que não é sempre assim. E vivemos alguns dias em que parecemos estar à beira de um lago, sem ruído nenhum, um lago de pintura impressionista, com o ar desmanchando-se em camadas tênues, pelas quais o pincel passou sem fixar-se. É bonança isso, paz, devaneio, bem-aventurança. Descansamos encostados a uma árvore e não sabemos se estamos dormindo ou acordados, só sabemos que é bom estar assim, à beira do lago. O pintor fez a tela para nós, como se a tivéssemos encomendado. É o tempo de recuperar as forças, de apaziguar o corpo e a alma. Dormimos. E, mal acordamos, irrita-nos a placidez, exaspera-nos o silêncio. Nosso corpo, como um viciado em drogas, volta a exigir a tristeza, o suplício, o tormento, e também a alma se eriça como o pelo de um lobo faminto. Se fôssemos sábios, nos atiraríamos ao lago e iríamos dormir no fundo, bem no fundo. Não somos sábios, e vamos buscar de novo a esquina sombria onde nos venderão o veneno certo para o nosso corpo e onde nossa alma aspirará a morrer queimada como uma serpente, contorcendo-se ainda em gozo, na sua última zombaria.

Bom dia

Suspeito que já nem as alfaces me ouçam. Mesmo assim, digo-lhes bom dia, e espero que, como antes, ao menos uma folha responda. Mas elas se mantêm como se fossem de plástico ou estivessem numa pintura.

Kama Sutra - CLV

O barco que na infância ele comandava, gritando ordens para vinte tripulantes, foi tomado agora por vinte mulheres piratas, e ele chama em vão os tripulantes, dizimados por elas na abordagem. Só se salvará com a condição de se submeter como escravo sexual de todas. A primeira, a que chefia as outras, já se aproxima dele, que, deitado e nu, se concentra para atendê-la. Honrará seu passado, não se desmerecerá, ainda que morra na cama. Para deixar clara sua disposição de cumprir o dever que lhe cabe como derrotado, faz uma bravata. Olha para a pirata que já se debruça nua sobre ele e desafia: "Podem vir todas juntas, se quiserem." E deixa que ela se deite sobre ele, que ela o monte e cavalgue, porque esse é o direito do vencedor, sempre.

Os passos

Estarmos fracos
é normal

Estamos longe do início
e nossos passos incertos
são os passos exatos
os passos certos
para chegarmos ao final.

São Paulo

Feiosinha de fevereiro a dezembro, mas incrivelmente bela em janeiro, na tevê.

Kama Sutra - CLIV

Se apertasse a mão dela, não precisaria tocar-lhe os seios, nem beijá-la, nem encostar seu corpo no dela. Se apertasse a mão dela, como aperta agora na imaginação (a dele é a direita, a dela é a esquerda), se apertasse a mão dela um pouco, um minuto, meio, se apertasse a mão dela, se apertasse, se aper... tas...se...a...se...a...se...a...a...a...sse.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Uma questão ainda o atormenta e se recusa a ir embora. Será que a mulher que destravará as reservas de paixão dentro dele, se existir, libertará também o fluxo bloqueado da poesia; ou, ao contrário, depende dele próprio se transformar em poeta e assim provar-se digno do amor dela? Seria bom se a primeira hipótese fosse a verdadeira, mas desconfia que não é. Assim como se apaixonou à distância por Ingeborg Bachmann de um jeito e por Anna Karina de outro, assim também, desconfia, a predestinada terá de conhecê-lo por suas obras, se apaixonar por sua arte antes de ser tola a ponto de se apaixonar por ele."

(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Dizer boa noite...

... antes que as horas de dizer boa noite passem, como tantas coisas importantes na vida. Um dia se foi. O que vale, o que pode valer um dia? Num dia se pode construir muito, no outro se pode destruir tudo. Ou construir muito e destruir tudo num dia só. Imagino, talvez por autoestima, que construí alguma coisa hoje. Venho construindo há alguns dias, já. E descubro que construir é algo que vem de dentro, que nasce de abrirmos o peito e mostrarmos: olhem, é assim que eu sou. Pode, claro, estar falando por nós um impostor. Talvez amanhã ele seja desmascarado, talvez não. Se formos rigorosos demais com os impostores, logo será mais uma espécie ameaçada de extinção. Penso ter dito hoje exatamente o que sinto. Se for o caso, posso chegar amanhã aqui e dizer algo como: admito, com toda a sinceridade e com a visão que hoje tenho das coisas, que sou um impostor. Para que um impostor atinja o que quer, aquilo que ele supostamente nasceu para fazer, é preciso que acreditem na sinceridade dele. Acho que tudo isto aqui está enroladíssimo, cheio de sofismas e de palavras ocas. Talvez eu esteja meio doido, talvez eu esteja inteiramente doido. Melhor parar por aqui. Isto era só para dizer boa noite. Boa noite, então.

Juntar...

... todas as loucuras, acrescentar as que ainda virão, e deixar que falem delas o que bem entenderem. Reunir todas as humilhações, fazer uma pilha bem alta, subir até seu topo e proclamar: "Todas são minhas, não renego nenhuma." Espremer a tristeza toda, tirar-lhe completamente o sumo, despejá-lo numa jarra imensa e bebê-lo até que ele comece a correr pelo pescoço. Que aplaudam ou que vaiem, não importa. Há um ponto além do qual as loucuras, as humilhações e a tristeza deixam de ser assunto alheio e tornam-se nossas, inteiramente nossas. E que as amemos como coisas nossas e que extraiamos delas o que nos puderem dar. Que as cantemos enquanto houver palavras em nós. Que as exaltemos. Nada de fazer besteiras. Mortos não cantam nem exaltam.

A perturbadora literatura de Anaïs Nin

Dizer que Anaïs Nin era uma lésbica ou uma ninfomaníaca - esse, no geral, é o estereótipo que a tornou conhecida - é de uma simplicidade atroz. Lendo seus diários, não são necessárias muitas páginas para se reconhecer que, nela, a literatura não é um embuste. Assim como Henry Miller, um dos seus múltiplos amantes (aqui incluídos os dois gêneros e seus meios-tons), ela foi rotulada como uma máquina sexual permanentemente ligada, e esse carimbo foi aplicado também sobre seus escritos, talvez por sugestão dos próprios editores, quase sempre fascinados por escritores "malditos". Seus diários, de leitura muito agradável, são uma importante fonte para se conhecer o comportamento sexual humano, sim, porém são bem mais que isso.

Sobre a veracidade dos diários

Nos escritos confessionais - caso típico dos diários -, os acontecimentos são geralmente narrados de maneira simples. O autor não se preocupa com o estilo, porque sua atenção se concentra nos fatos. Mas, se ele é um escritor, a veracidade poderá ser retocada em determinadas passagens em favor da forma - essa obsessão de todos os que escrevem procurando, ainda que minimamente, um resultado artístico. Sobre o diário de qualquer escritor, há de pairar sempre certa desconfiança. É muito provável que, acordando no meio da noite, ele vá sorrateiramente, mesmo que esteja sozinho, mudar aqui ou ali uma frase e transformar um pardal em rouxinol.

Kama Sutra - CLIII

No meio do beijo, soprou para dentro da boca da mulher a palavra amor. Ela lhe retribuiu com uma mordiscada na língua.

Um trecho de "Lolita", de Nabokov

"E a menos de quinze centímetros de mim e de minha vida em brasa estava a difusa Lolita! Após um longo período de imobilidade, meus tentáculos novamente moveram-se em direção a ela, e dessa vez o estalido do colchão não a despertou. Consegui trazer a massa voraz de meu corpo tão perto dela que sentia a aura de seu ombro nu como um sopro cálido em minha face. De repente, ela sentou, deu um suspiro profundo, murmurou com insana rapidez alguma coisa sobre uma canoa, repuxou as cobertas e voltou a mergulhar em sua doce e jovem inconsciência. Agitando-se naquela corrente abundante de sono, num momento ruiva, no outro lunar, seu braço bateu contra meu rosto. Segurei-o durante um segundo. Ela se libertou da sombra de meu abraço - fazendo-o de modo instintivo, sem violência, sem repugnância, mas com o sussurro neutro e queixoso de uma criança que exige seu descanso natural. E outra vez voltamos à estaca zero: Lolita oferecendo a Humbert suas costas encurvadas; Humbert, a cabeça apoiada na mão, incendiado de desejo e azia."

(Tradução de Jorio Dauster, Biblioteca Folha.)

Boa tarde a...

... todos. Desculpem-me por ter permitido à minha tristeza que se lamuriasse tanto. Ela é como uma dessas veteranas atrizes dramáticas, já aposentadíssimas, que no entanto pensam estar representando ainda e tratam todos de vós, até o limpador de peixes do supermercado, e em um minuto são capazes de narrar todas as calamidades do mundo e da vida. Quando me distraio um pouco, ela me escapa e fica se expondo. Felizmente eu a apanhei a tempo de ela não ameaçar fazer nenhuma besteira. Ela é uma dessas baratas chantagistas emocionais, tão comuns hoje. Peço-vos que a perdoeis, e a mim, vós que tendes sido tão compreensivos comigo. Boa tarde. Até.

Numa tarde como...

... esta, triste como o enterro de uma criança, quem nos dará alívio, quem nos confortará, e com o quê? Fomos abandonados pelo amor e o nosso orgulho nos impede de chamá-lo. É quando estamos assim que sentimos ter alma. E ela se encolhe, porque tem frio e porque não quer pôr à mostra sua humilhação. Como machucam as dores da alma! Como é insuficiente esse ponto de exclamação da frase anterior, e mais este! Não há no teclado uma letra ou um sinal que possam exprimir verdadeiramente uma dor de alma. A alma é tão frágil, tão delicada. A alma é tão vulnerável. Que vantagem há em se ter alma? Já não nos basta este corpo, já não nos basta ter estes dois olhos que insistem em chorar? E quem disse que chorar alivia? Nesta tarde, triste como o enterro do menino que a insanidade matou, eu - egoísta - não choro por ele. Choro inutilmente por mim e por minha alma.

Se formos fortes...

... se formos lúcidos, se formos conscientes, se formos equilibrados, sobreviveremos. Se formos doidos, se padecermos pelo amor, se fizermos loucuras por ele, viveremos.

Chegar...

... diante de uma árvore recentemente plantada, adotá-la como nossa e recear que ela possa ser derrubada por chuvas ou pelo vento. Vê-la crescer centímetro a centímetro, já visitada por esporádicos passarinhos, e tê-la como única razão para irmos ao parque. Chamá-la por um nome que só nós sabemos e sentirmos no contato com suas folhas a alma da seda. Tê-la como símbolo da vida e a encontrarmos um dia derrubada por mãos grosseiras ou ver, à sua incipiente sombra, encostados no seu ainda frágil tronco, dois homens empenhados em dar cusparadas cada vez mais sibilantes e longas. Coisas assim acontecem.

Vício fatal

Ter aquilo que se chama de temperamento poético pode ser um drama. Lembro-me de uma menina, na minha infância, que era maravilhosamente pálida. Eu, já viciado em literaturas, a achava uma fada e, se soubesse fazer versos na época, penso que poderia ter feito os mais belos de minha vida. Um dia, uma mulher grosseira, vendedora de frangos, que os matava diante do freguês cortando-lhes a cabeça pousada num cepo, disse à minha mãe: "Aquela menina lá deve ter lombriga. Como ela é branca!"

Kama Sutra - CLII

Agora que serenou minha chama e sobre o vulcão famílias armam piqueniques aos domingos, talvez não te importes de sentar em meu colo e permitir que eu sinta nos lábios a mornidão deixada neles pelo sol. Não tenhas medo. Isto, aqui, assim. Estás sentindo um calor diferente? Pode ser que seja o teu. O meu há muito está morto. Nem o gato mais vem aqui quando sente frio.

E poderíamos...

... estar conversando, fosse qual fosse o assunto. Poderíamos estar falando, falando. Poderíamos, se as palavras em nossos lábios não fossem punhais, estar fazendo isso: conversando, falando, não vendo nada, no mundo, melhor e mais necessário do que falar e conversar.

Reynaldo, Ronaldo

Reynaldo Gianecchini é como Ronaldo Fenômeno. Podem dizer o que disserem deles, podem chamá-los do que quiserem. São amados por noventa e nove pessoas em cem e isso não mudará. Ponto. Há pessoas assim. Não conseguiriam magoar alguém, mesmo que tentassem.

Duas frases de Anaïs Nin

"O que são filhos? Abdicação diante da vida."

"Só quando nos libertamos de nosso ego é que começamos a amar."

(Do livro Incesto, tradução de Guilherme da Silva Braga, publicado pela L&PM Editores.)

Sair daqui...

... e ir comprar alfaces. Quando comprar alfaces se torna uma terapia, o paciente está muito mal ou nem tanto? Os normais estão comprando fuzis, balas, granadas. Vivo sempre em descompasso com o mundo.

Um trecho de Diogo Mainardi

"Passei o dia na UTI.

Acariciei o rosto de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei o peito de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei a perna de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei as costas de Tito. No momento em que acariciei suas costas, deu-se o inesperado. Subitamente ele contorceu o corpo e arqueou a coluna.

Tito ressuscitou.

Chorei por meia hora. Depois de ter chorado por meia hora, chorei por uma hora. Depois de ter chorado por uma hora, chorei por duas horas."

(Do livro A queda, publicado pela Editora Record.)

Disse bom dia...

... e ia desligar isto para andar um pouco e seguir na rua alguém que no rosto tivesse alguma alegria. E roubá-la, se ele se distraísse. Mas sinto hoje, agora, às 10h34, que estou, como bilhões de pessoas, dependente deste monitor, deste teclado. Descobri que andar rabiscando coisas para depois transcrevê-las aqui é quase uma desonestidade. Isto é para ser usado sem premeditação, sem covardia. É como se encontrássemos repentinamente um amigo. Isto aqui é para dizer ao amigo que encontramos repentinamente aquilo que se diz aos amigos que encontramos repentinamente. Olá, tudo bem? E é para sabermos dele que tudo vai indo, como tudo sempre vai. E para lhe dizermos que nós também vamos indo. Fútil, isso? E a vida, o que é? Ah, se eu conseguisse ser assim, descomplicado, direto, despretensioso, se eu não tivesse a mania de querer carregar o mundo nas costas e de apregoar: vejam como carrego bem o mundo. Se eu pudesse abrir isto aqui e dizer só alô e não esperar de volta nada além de alô. Se eu pudesse escrever mensagens de três toques, nada mais, e dizer alô.

Digo bom dia...

... para parecer um homem cortês, civilizado. Os poloneses e seus descendentes costumam ter a fama de gente meio rude, embora a delicadeza de Chopin e a de Wislawa Szymborska devessem bastar para refutar esse preconceito. Falo da Polônia e sinto uma pontada no peito, um mal-estar, um sentimento de filho que com a morte dos pais rasgou o álbum de fotos do casamento deles. Nunca fui à Polônia, nunca irei. Se eu for sincero, a Polônia não me faz falta, a não ser em raríssimos dias, como este, em que algo no meu sangue se inquieta e me incita à viagem. Talvez seja como acontece com os elefantes que - dizem - começam a voltar para o lugar de onde vieram quando sentem aquele primeiro tapinha da Morte no ombro. Escrevo isso e sinto como a minha vida tem sido toda metafórica e irreal. Voltar à Polônia como, se nunca estive lá? Mas nestes últimos dias tenho sido atacado por uma nostalgia, por umas aguilhoadas de culpa. É, acho, esse sangue polonês que anda por dentro de mim, esse sangue de povo triste, essa fonte de melancolia que destruiu a minha vida, mas sem a qual ela seria como um voo de mosca na cozinha, antes de a cozinheira acertá-la com o pano. Disse tudo isso para dizer o quê? Para dizer o que acabei de dizer. Sou triste, estou triste, irremediavelmente triste. Que eu seja a exceção e vocês a regra. Bom dia.

Jornal do Carro

Sou um homem usado. Se fosse um carro, eu seria classificado como seminovo (melhor que homem da terceira idade, convenhamos) e sairia de casa só para dar uma volta pelo quarteirão ou uma esticadinha até o sacolão, de preferência de manhã, quando o sol ainda não tem a pretensão de parecer saariano. Se eu fosse um fusca 73, faria um percurso diário de uns trinta minutos. É o que faço. Sou econômico: dois quilômetros com um copo dágua.

Estrelas, alfaces

Bilac conversava com as estrelas. Era um poeta, e da ilustre linhagem dos parnasianos. Eu, escrevinhador do Jardim da Saúde, falo com as alfaces no sacolão da Cursino. Não me queixo. Não fossem elas, com quem eu conversaria?

Avô

Sonha
que em horas soturnas
em esquinas noturnas
ainda caça
mulheres pintadas
de saias curtas
e bocas desbocadas

Sonha que elas
com seu jargão escroto
o chamam vem meu bem
vem machinho vem
vamos fazer neném

Sonha que pega
uma grandona
a mais cavalona
para aproveitar bem
cada vintém

Faz tudo como fez
quando na zona
aos catorze de idade
deixou a virgindade
dentro da cavalona
e geme e grita

Acorda com uma voz aflita
vem gente rápido rápido
onde estão vocês
o avô teve outro infarto

Títulos

Para colocar entre os concorrentes de melhor título de livro: Sonho de uma flauta, de Hermann Hesse.

Brevíssimo perfil de Scott Fitzgerald, por Ernest Hemingway

"Scott era nessa época um homem de aspecto juvenil, com um rosto entre simpático e bonito. Seus cabelos eram claros e ondulados, a testa era alta, erguendo-se acima de olhos matreiros e cordiais e de uma boca de lábios tão delicados e longos como os de um irlandês; se fossem de moça, seriam os lábios da própria beleza. O queixo era bem construído, as orelhas eram perfeitas e o nariz, de linhas finas, era quase elegante. Tudo isso não bastaria para compor um rosto bonito, mas a impressão de beleza era acentuada pelos cabelos muito claros e pela boca delicada. Tão delicada que nos intrigava enquanto não a conhecíamos e, então, nos intrigava ainda mais."

(De Paris é uma festa, traduzido por Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)

terça-feira, 26 de março de 2013

Boa noite...

... para aqueles que conseguirem finalmente se submeter à razão e, libertando-se da paixão amorosa, se convencerem de que a loucura é para os loucos e para os artistas. Boa noite também para os que tiverem a coragem de aceitar sua derrota e, mesmo fingindo, concluirem que foi melhor perder, e, sem remorso, colocarem o amor ao relento, como se faz com um gato que nos sangra a mão. Para os outros, que continuarem sob o feitiço amoroso, que estes ardam no fogo de todos os infernos e que não durmam e que andem pelas ruas como cães danados - que é o que eles desejam e merecem. Até.

Mulher no metrô

No metrô, de volta do Centro Cultural, vi uma mulher que, se me perdoarem o gongorismo, chamarei de esplendorosamente bela. Logo me ocorreu o pensamento de que não era mulher para fazer um homem feliz; era mulher para infelicitar muitos.

Kama Sutra - CLI

Ela pede que ele pare. Deitado sobre ela, já quase ancorado no fundo, ele para. Sabem o que farão agora. Contarão mentalmente até dez e então ele recomeçará. Imediatamente ela pedirá, agora quase ordenando, que ele pare. Ele parará de novo (um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez) e, acabada a contagem, procurará ir mais fundo. Então ela, com raiva, gritará para que pare e, ao mesmo tempo, se acomodará melhor debaixo dele, levantando o corpo e implorando que não pare, não pare, não pare, enquanto a cama, sacudida agora pelos movimentos dos dois, gemerá como se fosse um barco cuja madeira estivesse sendo chicoteada pelas ondas.

Um trecho de Anaïs Nin

"O escritor é o duelista que nunca luta na hora combinada, que guarda o insulto como a um objeto curioso, coloca-o em sua escrivaninha e só então luta, sozinho. Há quem chame isso de fraqueza. Eu chamo de adiamento. As fraquezas no homem são a glória do artista, sua qualidade. O que revelo ao conversar ou ao agir poucas vezes é restituído no papel. O que é preservado, guardado, é o que explode mais tarde na solidão propícia. E por isso o artista é o homem mais solitário do mundo: porque ele vive, luta, guerreia, morre, renasce sozinho, e sempre sozinho."

(Do livro Incesto, traduzido por Guilherme da Silva Braga, publicado pela L&PM Editores.)

Boa tarde...

... para aqueles que ainda acreditam em boas tardes. Para aqueles que não creem mais, por desilusões de todo tipo, principalmente as amorosas, uma frase, um pequeno mantra: o amor não é tudo isso. Repitam isso cem, duzentas vezes. Talvez vocês se convençam. Até a noite, se Deus e as balas perdidas forem benevolentes conosco.

Tatuagem

Já tem vinte anos de esquina, mas está sempre seguindo as tendências. Há pouco tempo fez uma tatuagem no ventre: um sorvete de casquinha. Como imaginara, seus fregueses mais jovens, entre os catorze e os dezesseis, ficaram encantados. Mas quem mais gostou foram os da faixa entre sessenta e sessenta e cinco.

Mais um título notável

Disse ontem que, para mim, o mais belo título de livro é O coração é um caçador solitário, de Carson McCullers. Hoje, no Centro Cultural, vi outro tão bom, talvez até melhor: A mão esquerda da escuridão, livro de ficção científica de Ursula Le Guin. Não sei o que vocês acham. Talvez vocês tenham algum que supere esses dois.

Tema para pintura

Uma mulher nua tocando piano. Aos pés dela um gato dormindo. Na parede uma reprodução de Picasso (que entra aqui por motivos exclusivamente pictóricos).

Centro Cultural

Esta manhã, deixei-me enganar outra vez pela vida em seu permanente esforço para me provar que é bela. Permiti que ela me pusesse no ônibus e no metrô e quarenta minutos depois eu estava no Centro Cultural, na Vergueiro. Fui rever os mais frequentes e melhores interlocutores de minha vida: os livros. Nós nos entendemos bem. Alguns me conhecem desde quando eu era menino e me desejam bom dia. Outros são amigos novos e, não tendo ainda intimidade comigo, sorriem apenas, como se faz no início das amizades. Perto das estantes vi uma armação de ferro que talvez fosse uma escada para auxiliar no conserto de infiltrações de água no teto e tinha aspecto semelhante ao de uma jaula. Pensei imediatamente em Beckett e em Kafka. Primeiro em Kafka.

Brigitte Bardot, Scarlett Johansson

Em Scarlett Johansson há o que havia em Brigitte: certa ingenuidade que absolvia o apelo da carne. Essa quase puerilidade foi, por astúcia dos produtores e diretores, transformada numa incitação sexual ainda mais intensa que a da carne. Scarlett parece ir para o mesmo caminho, se já não foi.

Um poema de Dylan Thomas

"A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e reduziram à metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um rei.

A mão soberana chega até um ombro descaído
e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;
uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte
que pôs fim às palavras.

A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;
maior se torna a mão que estende o seu domínio
sobre o homem por ter escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar."

(Do livro A mão ao assinar este papel, traduzido por Fernando Guimarães, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

Bom dia...

... para todos, principalmente para aqueles que têm a bondade de se preocupar tanto conosco que nos dão todos os dias a síntese da vida: a esperança e o sofrimento. Vou ver como estão minhas alfaces, perguntar-lhes como anda a vida. Conversar com alfaces é sempre uma boa forma de começar o dia. Temos nos entendido bem. Até a tarde

O palhaço

Nada disto, nem a aflição nem o desespero, terá importância daqui a um ano, talvez menos, ele pensa. Quando isso acontecer, sua última ilusão terá morrido. Tudo que hoje o fere será ridículo amanhã. É assim sempre, será sempre assim. E, não suportando imaginar as gargalhadas que daqui a um ano, talvez menos, estará dando, ele se sente um impostor, e chora. Achando poucas as lágrimas, pensa que gostaria de morrer agora, antes que chegue o dia em que começará a zombar deste sentimento, como no circo se zomba de um homem de terno e gravata que no meio da pantomima se descobre ser um palhaço disfarçado de executivo e contra quem, então, se atiram ovos, tortas e tomates, para que aprenda a não se fazer passar pelo que não é.

Uma letra

Numa mudança de letra, a equação do amor: afeição = aflição.

São Paulo

Conheci ontem, na rua de baixo, uma raridade: um homem de cinquenta e dois anos que nunca foi assaltado. E já faz um mês que mora em São Paulo.

Filha, pai

Verônica é a obra-prima de Fernando Sabino.

DNA

Sim, Sandra. Meu pai teve demência senil e meu irmão se matou. O que isso quer dizer? Não sei, mas obrigado pela preocupação.

Estômago e afeto

Uma das cenas mais pungentes que vi foi meu pai, já semidevorado pela demência senil, na casa de repouso (talvez este seja o mais cruel de todos os eufemismos). Foi um dos seus últimos dias. Meu irmão e eu só podíamos visitá-lo semanalmente, se não me engano às sextas-feiras. Nesse dia, assim que chegamos ele sorriu e nos disse: "Hoje vai ter peixe no almoço." Conversamos um pouco na pequena sala de recepção, cinco minutos, não mais. Tocou a sineta no refeitório e ele se levantou instantaneamente do sofá. Não olhou para nós, não se despediu. Com a rapidez que seus passos doentes lhe permitiam, arrastou-se na direção de onde vinha, salgado, o cheiro de feixe frito. Vi, nesse dia, que sentimentos como o afeto e o amor são um tanto postiços em nós. O animal e seu instinto de preservação prevalecem em nós, acima de todos os outros.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Será que T.S. Eliot, por exemplo, podia ser secretamente comum no fundo, e será que a afirmação de Eliot de que a personalidade do artista é irrelevante para a sua obra podia ser apenas um estratagema para esconder a própria falta de graça? Talvez; mas não acredita nisso. Se tiver de escolher entre acreditar em Wilde e acreditar em Eliot, vai sempre acreditar em Eliot. Se Eliot escolhe parecer comum e chamar a si mesmo de J. Alfred Prufrock, isso deve ser como um disfarce, como uma peça da manha necessária ao artista da idade moderna."

(De Juventude, publicado pela Companhia das Letras.)

segunda-feira, 25 de março de 2013

Hora de dizer...

... boa noite. De dizer boa noite como quem diz boa noite com o coração puro. Gostaria de ter esse coração. Já o tive, mas foi há tanto tempo que eu mesmo às vezes penso se não é só mais um blefe meu. É triste isso - saber que tudo piora e tudo se corrompe. Eu não era assim, eu não queria ser assim. Eu não nasci para ser assim. E no entanto sou assim. Um homem em quem ninguém mais acredita e que também não acredita em si. Um homem a quem seria lícito perguntar: e por que você não muda? Tarde demais, sentencia o corvo pousado na minha alma. Por que digo isso a vocês? Porque preciso dizer isso a alguém. Se não há brilho no que escrevo, que haja ao menos sinceridade nestas confissões feitas na primeira pessoa. Não é importante, para vocês, lê-las. Para mim, escrevê-las é vital. Boa noite.

Síndrome do pânico

Nunca me afoguei, e sei que vocês também não. Mas, se há entre vocês alguém que sofra de síndrome do pânico, esse dirá a vocês que, quando a crise ataca, a sensação é a de que estamos nos afogando. E, se no início lutamos para subir à tona, depois agradeceríamos a Deus se nos afogasse de uma vez, sem mais alarmes falsos, para que nunca mais nos víssemos diante daquela aflição. Que eu possa dormir em paz hoje e, se o mar me aparecer em sonho, que seja o da minha infância, aquele mar que eu reproduzia no meu caderno de desenho, com o sol quase à beira da água e o barquinho confiante sobre as ondas, como se brincasse de pular corda.

Vilões e vilões

Não sei quem terá sido eleito o vilão do dia pela mídia. Há tantos, e tão qualificados, no Brasil e no mundo! Deveríamos deixar de entupir a memória com os nomes desses bandidos, por maior que seja sua folha corrida. São todos primários, vazios, sem brilho. E a literatura nos oferece outros, completos, perfeitos, cada um representando um temperamento, um caráter, um protótipo. Celebremos o casal Macbeth, Ricardo III, Fagan e tantos outros que resistiram ao tempo e continuarão a resistir.

Na outra calçada

Há canções que amamos muito, que nos fizeram chorar e que, pela inconstância dos nossos sentimentos, acabamos esquecendo. Elas não se queixam, recolhem-se a um canto da memória e ali ficam, esperando o momento em que ressurgirão para nos mostrar como fomos ingratos com elas. O Loyola fala hoje no Estado de uma canção que mudou sua vida. Influenciado provavelmente pela leitura dessa história, tornei-me a vítima ideal para uma daquelas melodias que há tempo havia esquecido. Peguei-me a cantarolar Vous qui passez sans me voir. Era Charles Trenet quem a cantava, acho (preguiça de ir ao google). Estava saindo do supermercado. Olhei para a outra calçada e, embora os raios do sol se interpusessem entre mim e ela, vi uma moça bem moça, talvez até uma garota, que o feitiço da canção transformou imediatamente na mais bela mulher vista por mim em toda a vida. Além de estarmos em calçadas opostas, caminhávamos para lados contrários. Pus as sacolinhas com as compras no chão e voltei o rosto a tempo de vê-la ainda de frente. Sei que meus olhos suplicavam: um sorriso, por favor, pelo menos um sorriso. Mas ela se foi. Não custava ela ter sorrido para mim, embora não devesse ser nada encorajadora para ela a visão de um velho comido pelo tempo, erguendo as sacolas e retomando o caminho. Menina, moça, mulher, eu só queria um sorriso. Não lhe pediria nada disso que, quando a veem, os rapazes se põem a elogiar com o entusiasmo que você sempre causa.

O marido da atriz

Das entrevistas na tevê pouco se aproveita. São bate-papos, só, que preenchem nossa necessidade de fugir ao tédio. Mas alguma coisa às vezes fica. Lembrei-me agora há pouco de uma entrevista em que uma atriz colocava o marido na seletíssima categoria dos estetas. Na ocasião - a entrevista é antiga -, a frase me pareceu fútil. Hoje ela me voltou modificada, verdadeira e séria. O marido da atriz só poderia ser um esteta, não precisava de documento para provar. A atriz era Christiane Torloni.

Um pouco mais de Rubem Fonseca

"Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.
     Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar."

(Do livro O cobrador, publicado peça Editora Nova Fronteira)

Aviso na porta do micro

"Saí por alguns instantes. Voltarei logo, espero, porque estar aqui escrevendo é minha única esperança de me salvar dos homens de avental branco. Talvez recolha na rua alguma história mais agradável do que essas que venho contando. Talvez descubra afinal que o mundo não gira para mim. Talvez eu veja um bebê esforçando-se para com seus poucos dentes abrir um sorriso para a mãe, na padaria. Talvez eu seja atendido pela caixa que me chama de moço. Talvez alguém me diga boa noite. Não estou em condições de querer mais. Basta-me pouco, qualquer coisa. É até bom que seja assim. Se alguém me disser uma frase amável, corro o risco de chorar. Até já."

Você estava certa...

... quando me disse que escrever poderia representar uma solução para mim e até me fazer feliz. Estou seguindo o conselho. Sento-me aqui, ouvindo a algazarra dos meninos e meninas do colégio, e escrevo. Tem sido fácil. Sou meu personagem e, com a liberdade que se costuma tolerar em qualquer autor, seja qual for seu nível, posso fazer o que quiser com minhas histórias (os meninos ensaiam agora o Hino Nacional, com uma desafinação exemplar). Poderia até ser feliz nelas. Mas, você sabe, continuo com aquela mania de fazer pouco de mim (agindo assim acho que estou sempre mais perto da verdade). Você estava certa. Mantenho-me ocupado agora, quase on line, e narrar minha infelicidade, se não me torna feliz, pelo menos me alivia um bocado. No mais, ir à padaria pegar o pão quentinho das cinco e meia continua a ser um bom passeio, embora muito curto. Tomar café também é ainda um agradável programa. Não devo me queixar, nisso você estava certa, também. O café pode ser uma pausa, se eu o considerar assim, e quem sabe eu consiga deixar de pensar em certas coisas. Mas sei que pensarei nelas e voltarei aqui com o que de pior tiver para contar. Mas melhorei um pouco, sim. Obrigado e até.

À moda da casa

Histórias de amor lancinante com protagonistas femininas, como a de Adèle O. e Camille Claudel, são exceções clamorosíssimas. Sofrer por amor, enlouquecer por ele, martirizar-se,  são especialidades masculinas.

Papo de velho

"Eu estou muito melhor agora, te digo com toda a sinceridade. Não fico mais dando vexame atrás de mulher. Foi como aconteceu com o cigarro. Acabou e pronto. Queria que fosse assim quando eu era moço, te juro. Mas eu pensava com a cabeça de baixo. Três mulheres, quatro filhos, pensão, pensão, pensão. É vida, isso? Imagina como eu podia estar numa boa agora. Sem depender dessa bosta de aposentadoria. Escuta o que eu te digo. Quando o teu bicho sossegar também, você vai ver só que beleza."

Papo de trabalho

"O pior de todos é um velho que vem às terças de manhã e me diz que eu sou o tesouro dele. Vem com um palavrório todo afrescalhado e no meio da massagem me chama de filha. No fim eu sou filhinha querida, idolatrada. Velho pervertido. Um dia eu ainda arranco aquela coisa mole dele, com bola e tudo."

Ainda fazer aquilo

"Vai querer um pouco daquilo hoje?", ela pergunta sempre que ele passa na frente do prédio. Foi ele quem, depois da primeira vez, pediu que ela passasse a lhe fazer o convite com essa frase (a que ela usara na primeira noite em que o aliciou era incompatível com os cabelos brancos dele). Agora, quando ele vai, espera até que ela se aproxime e faça o convite com as novas palavras. Isso faz parte do prazer que as visitas trazem a ele. Só então entram no prédio e, no quarto, ela o abraça e lhe diz palavras afetuosas, até que ele chore, aliviado e feliz. Às vezes ele pede que ela faça outra vez. Ela faz. Ele paga também a segunda, chora logo e, como a pedido dele nunca tiram a roupa, compensa abraçá-lo e murmurar-lhe frases ternas. Quando ele desce com ela, a rapaziada o olha com respeito: ele ainda faz aquilo.

Atenção, srs. clientes

A esperança pôs um aviso no seu escritório: pelo acúmulo de trabalho, não está mais atendendo casos de amor.

Meio difícil

Pedir sensatez a um homem tomado pela paixão amorosa é pedir à chuva que não chova.

Descobri no supermercado...

... que pelo menos as cebolas e as alfaces ainda não fogem de mim, como tudo e todas as coisas vêm fazendo. Pensei na possibilidade de estar readquirindo certo controle dos nervos e da autoestima, porém quebrei a chave do armário em que guardara compras feitas em uma loja (a Nipon, vá lá o nome). A moça que abriu com a chave reserva me disse que nunca viu coisa igual e que eu devo estar carregado de algum malefício. Em casa, notei ter esquecido de pegar cebolas e a Pepsi.

Boa tarde

É hora de levar minha depressão para uma voltinha. Talvez ela se conforte vendo árvores, embora às vezes as árvores pareçam também tão tristes. Como ainda não proibiram a entrada de depressões no supermercado, ela poderá me ajudar a escolher uma alface verdolenga, um caqui cheio de sementes que eu possa abrir e ver se dentro de cada uma há há uma faca ou um garfo (a maioria estranhará isso, é coisa do meu tempo de criança, se é que eu fui criança em algum tempo). Depois voltarei e almoçarei, com aquela sensação de quem oferece leite a um gato que só tem um miado, o último, a dar. Retornarei então a este micro, meu confidente. Quem sabe eu encontre algum leitor que se disponha a ouvir com benevolência estas coisas que vou deixando aqui ao acaso, de acordo com a minha tristeza maior ou menor. Até

Se todos os humilhados...

... pensassem em suicídio, os donos de funerárias entrariam rapidamente nas listas dos maiores milionários do mundo. Os mais bem-sucedidos seriam os que se especializassem no sempre garantido segmento dos humilhados por amor.

Há quem...

 ... de vez em quando se distraia e, apesar de toda sua autodefesa, ceda um pouco de afeto. Deve-se aproveitá-lo imediatamente. Um minuto depois a defesa já foi reerguida e, além dos jacarés no fosso, agora há cães que, a um sinal da dona, devorariam até Jesus Cristo.

Sinto-me hoje...

... como uma empregada que, tendo ficado um minuto a mais na sala, depois de servir os convidados, ouvisse da patroa: "Vai, vai, está olhando o quê? Teu lugar é na cozinha."

Os extremos se tocam

O ridículo e o patético se correlacionam. O patético exagerado se torna ridículo, e o ridículo levado além do limite se torna patético.

Flerte

Jamais te pedirei nada,
Eu te prometo. Contudo,
Se deres uma piscada,
Aí te pedirei tudo.

Eu te agradeço...

... por enfim teres me mostrado qual é a minha idade e qual é o meu lugar.

A mudança

Fazendo uma pesquisa de campo nos covis noturnos, notei que houve uma pequena mudança no mercado. Os velhotes de pescoço de frango continuam dando em cima das garotas: eles ainda mais repugnantes, elas ainda menos garotas.

Pequena oração

Senhor, sei que sou ressentido e rancoroso. Sei que desejo má sorte às pessoas, principalmente às que fazem sucesso, sei que as odeio, e que odeio também as que não fazem sucesso. Castiga-me, Senhor, fere-me, dá-me uma doença pior do que aquela. Mas não me prives deste ódio, deste rancor, deste resentimento. Não me despojes, Senhor, por piedade, eu imploro. Tenho direito a cada migalha, a cada gota, a cada pedacinho deste ódio, deste rancor e deste ressentimento. Que maldade farás, Senhor, se tirares de um derrotado, como eu, os únicos sentimentos que me mantêm vivo.

Bom dia...

... para os que conseguirem tê-lo. Eu certamente não conseguirei. Depois de quarenta e oito horas de euforia, acordei sentindo que recaí na depressão e na desesperança. E volta-me aquela tristeza, aquela aflição de não ter sido um soldado a serviço de César, de Aníbal, de Napoleão, e não haver sido morto em combate, com ou sem honra. Me bastaria a paz de estar morto ou - para usar um eufemismo e não chocar os leitores - a paz de não estar vivo.

Autoajuda

Uma das máximas de um livro de autoajuda que ganhei ontem é a de que, para amarmos os outros, devemos, antes, nos amar. Eu, que estou sempre reaprendendo e desaprendendo essas coisas de amor, preferiria passar logo para a segunda parte e amar os outros (principalmente as outras). Mas, como o livro veio muito bem recomendado, decidi que vou segui-lo sem nenhuma transgressão aos seus mandamentos. Vou tentar amar-me, ainda que corra o risco de me apaixonar perdidamente por mim e não sobrar amor para mais ninguém.

Mário de Andrade

Não sei se naqueles anos todos fiquei mais tempo na sala imensa da biblioteca ou bebendo nos bares da Bráulio Gomes e da Consolação. Imaginava estar aprendendo a viver.

Caso

Desta vez é o fim, ela e ele dizem sempre, antes de cada inútil recomeço.

Amor e sexo

"Amor? Bom, como eu vou explicar?, amor é como isso que eu tenho por você, minha filha, esse..."
"Não enrola, mãe. Eu estou querendo saber daquele outro."
"Ah, bom, aquele outro é um pouco diferente, ele é assim uma... um..."
"Ai, mãe, depois você diz que eu posso perguntar tudo."
"É que é uma coisa assim meio antiga... Eu já te falei o que é sexo?"
"Mãe, eu já pedi, não enrola."

Um parágrafo de Rubem Fonseca

"A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita. Rua Marechal Floriano, casa de armas, farmácia, banco, china, retratista, Light, vacina, médico, Ducal, gente aos montes. De manhã não se consegue andar na direção da Central, a multidão vem rolando como uma enorme lagarta ocupando toda a calçada."

(Do livro O cobrador, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

domingo, 24 de março de 2013

Boa noite...

... a quem sabe que o amor, se fosse uma criatura, seria a mais dócil de todas. Tão escarnecido, tão amaldiçoado, e no entanto de uma doçura, de uma candura, de uma ingenuidade que só ele mantém, entre todos os sentimentos. O amor é uma corça que, apanhada numa armadilha, quando vê o caçador vir para recolhê-la porque o jantar está próximo, abençoa sua chegada, como se fosse o maior de seus benfeitores. Boa noite para as corças - e também para os caçadores, que fazem sua parte para o amor ser o que é.

Kama Sutra - CL

A bala de morango havia trocado de boca já várias vezes quando, de repente, ela não a devolveu. Ele  sabia que o joguinho tinha terminado. Estava começando o filme. Era sempre assim. Ela gostava dele, mas gostava mais de cinema. Porém não a ponto de impedir que ele passasse a mão nas suas pernas finas e nos seios que finalmente davam a ela um aspecto de mulher quase feita.

Kama Sutra - CXIL

Quando ela o beijou, ele sentiu uma excitação que era uma novidade nos sete meses de convivência amorosa. Era como uma comichão, uma cócega, acima do lábio superior. Ele quase interrompeu o beijo para olhar o que havia mudado nos lábios dela, mas a sensação era tão enervantemente gostosa que ele prendeu o fôlego e continuou trazendo aquela boca para dentro da sua. Enquanto desfrutava assim o melhor beijo de sua vida, decidiu: se depois do beijo visse, como imaginava, que eram pelinhos, não diria a ela, ou pediria que nunca os aparasse.

Um texto de Scott Fitzgerald

"Começa-se com um indivíduo e, antes de se dar por isso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou nada. E isto porque somos todos criaturas estranhas, mais estranhas por trás dos nossos rostos e das nossas vozes do que desejamos que alguém saiba, ou do que nós próprios sabemos. Quando ouço um homem proclamar-se "um tipo mediano, honesto, aberto", fico com a certeza de que tem qualquer anormalidade concreta e talvez terrível, que resolveu esconder - e os seus protestos de que é mediano e honesto e aberto são a maneira de recordar a si próprio a sua conveniência."

De A década perdida, tradução de M.F. Gonçalves dde Azevedo, publicado pela Editorial Estampa.)

Luíza Possi

Apareceu agora à tarde, na Globo, comentando o jogo Corinthians x Guarani. Quem disse que o sol não apareceu hoje?

BBB

Já significou coisa melhor: Brás, Bexiga, Barra Funda. Antes de se tornar viaduto, Alcântara Machado escreveu um clássico com esse título.

Major Quedinho

Dizer o quê? Deixar o coração bater, forte. Caetano Álvares? Um pouco menos.

Morrer de amor...

... é, daqueles costumes antigos, o que eu acho mais bonito.

Mercado Municipal

O Mercado Municipal é aquele lugar onde vendem sanduíche de mortadela e outras coisas.

Espírito filosófico

"Boa tarde."
"Boa tarde por quê?"

Pichação

Num muro, o resumo do novo empreendedorismo: "Templo é dinheiro."

São Paulo

A chuva, infelizmente não afeita a hábitos civilizados, varre sempre o lixo para as bocas-de-lobo. Estas engolem tudo: "Se não foi você, foi seu pai."

Títulos

Se eu fosse escolher o mais belo título dos livros que li seria O coração é um caçador solitário ("The heart is a lonely hunter"), de Carson McCullers. Nas seis palavras parece estar tudo, toda a história, todas as histórias do mundo. Títulos como esse deveriam ocorrer somente depois de escrito o livro. Se surgirem antes, o escritor sentirá o peso (e a impossibilidade) de fazer algo cuja beleza equivalha à do título.

Brava gente

São Paulo é uma cidade de gente corajosa. Não há o que assuste os paulistanos. Alguns até andam de bicicleta na Paulista.

A paixão de Philip

A lembrança que tenho da Estação Vergueiro não é a dos livros, nem a das conversas com a Sandra. É a de duas horas de uma dessas chuvas selvagens que às vezes se atiram sobre homens estúpidos. Fiz  questão de me submeter a ela, e a bebi misturada com minhas lágrimas. Era, na verdade, previsível um final assim para um encontro com alguém que já me fizera sofrer muito. Como pude imaginar que ela iria? Bom, aprendi a lição, pensei. Mas não tinha aprendido. Haveria outras desilusões, mais intensas que a dessa tarde. Posso dizer que, sem nenhuma comparação literária, vivi uma história como a de Philip, personagem do romance Servidão humana, obcecado por Mildred. Ah, Mildred, Mildred! Não me perguntem se aprendi a lição

Merecimento

Artrite atroz
se nos comportarmos decentemente
e vivermos o suficiente
desfrutaremos dela

Há uma à espera
de cada um de nós.

A última palavra

Deve mesmo ter sido estúpido com ela, como ela sempre disse. Do contrário, por que a última palavra do derradeiro e definitivo e-mail, numa correspondência de quase dez anos, é perdão?

São Paulo

São Paulo é uma cidade muito respeitadora e religiosa. Todos os cinemas e teatros, aqueles antros de perdição, estão virando templos.

Restaurante

"O que é isso?"
"O couvert, senhor."
"É obrigatório?"
"É, senhor."
"E quanto custa?"
"Doze reais."
"Bom, tudo bem. Vem pouca coisa, né?"
"Depois o senhor vai querer carne ou massa?"
"Nada. O couvert já tá bom. Olha, eu estou com pressa. Então me faz o seguinte. Daqui a cinco minutos me traz o cafezinho."
"Pois não, senhor."
"Ei, ei, o cafezinho aqui é pago ou é cortesia?"

Questão de estilo

"Sabe de uma coisa? Faz uns vinte anos que eu não leio o Machado, o Dostoiévski, essa turma. Não quero ter o meu estilo influenciado por ninguém."

Escritor moderno

"Não tem nada a ver continuar escrevendo como o Shakespeare. Faz tempo que eu já saí dessa."

Na moda

Sejamos politicamente corretos. Dá menos trabalho - e é politicamente correto.

Brás

O Brás é um bairro em que talvez ainda se encontrem uns vinte descendentes de italianos e uma pizzaria.

Ibirapuera, sete da noite

"No motel é oitenta. Aqui, em pé, eu faço por trinta."

São Paulo

"Isso você dá pra sua mãe", disse o mendigo, atirando a moeda de um real de volta ao homem.

Sao Paulo

Ao ter o terceiro carro roubado, o casal decidiu não comprar mais nenhum. Quando precisam, pegam um táxi. Ontem foram assaltados pelo motorista.

Primeiro...

... quebrou o braço direito. Seis meses depois, o esquerdo. Passaram a dizer que era um homem muito equilibrado.

Quem sabe

Tem a Síndrome de Arthur Miller. Acha que um dia as mulheres mais desejáveis, como foi Marilyn, descobrirão como ele coloca bem os pronomes e como pode, em dez minutos, explicar a diferença entre conjunções coordenativas e subordinativas.

Vivos e mortos

Terminada a batalha
nenhum lado sabe ainda
quem venceu
quem perdeu

Já não importa
vitória ou derrota

É a hora em que
os que ainda podem
se apalpam
(estará ainda aqui
meu braço esquerdo
minha perna direita
ainda estará?)

Cada um vai
peça a peça
montando o quebra-cabeça

Os que estão inteiros
ou assim pensam
sorriem
(a boca parece estar
onde uma boca deve estar)

Os irremediavelmente feridos
gemem os últimos gemidos
e com os olhos quase mortos
olham invejosamente
a horizontal serenidade
dos mortos.

Biografia do mau escritor - Capítulo I

Mal começou a escrever seus primeiros poemas e contos, já escrevia mal. Era mesmo um talento precoce.

Não te queixes

Não te queixes se o amor te levar à insanidade. É o mínimo que se deve esperar dele. Quantos se sentiriam bem-aventurados se tivessem um pouco de tua loucura. Ah, quantos, com esse pouco, saberiam louvar o amor mais do que tu, que te lamurias como se estivesses doente. Ah, quantos gostariam de ter essa doença e de abrigá-la com tanto fervor que já não pudessem passar um minuto sem gemer suas dores, com receio de que, sentindo-se pouco reverenciada, ela abandonasse seus corpos ingratos e fosse ocupar outros, que aspirassem a morrer com uma agonia tão grande quanto a de um êxtase místico.

Haicai praiano

Enquanto o sol abunda/
Aproveitemo-lo/
Para tostar a bunda.

Rua Antônio Cantarella

Puseram recipientes de lixo em todos os postes da rua. Agora é ainda mais gostoso atirar tudo na calçada. As lixeiras oficializaram a transgressão. Os cachorros parecem ter apreciado os enfeites e os ccontemplam enquanto regam a base.

Curso

Quem se diz apto a ensinar a arte da escrita estará cumprindo seu objetivo se indicar as leituras adequadas a quem pretenda ser escritor. Ensinar a escrever é ensinar a ler.

Reformas ortográficas

As constantes reformas ortográficas dão o pretexto para que nos isentemos de nossa ignorância. Quando dizemos que ainda não tivemos tempo de aprender esta, estamos dizendo que nunca tivemos tempo de aprender nenhuma.

Reciprocidade zero

Os escritores aplicados passam a vida procurando as melhores palavras. Mas as melhores palavras procuram sempre escritores melhores.

Modernidade

Depois de anos de empenho, o vira-lata foi promovido a fura-saco.

São Paulo

São Paulo é uma cidade que estimula o exercício físico . Depois de terem os carros várias vezes roubados, e serem assaltados também nos ônibus, os paulistanos vão a pé para o trabalho.

A grande comédia

A vida, bem analisada, é risível. Para fingir que ela tem alguma grandiosidade, nós lhe damos um tom dramático.

São Paulo

Em São Paulo, é comum ver homens de terno e gravata treinando corrida nas ruas. Atrás, de revólver, vai o personal trainer.

Vaidade

"Quando eu morrer, não deixem publicar minha idade nos jornais."

São Paulo

Ganhar a vida é fácil em São Paulo. Pode-se dormir até as seis da tarde, tomar banho ou não, vestir uma roupa qualquer e pegar o revólver. Pode até ser de brinquedo.

E...

... pensar que eu a beijaria levemente, só, para não contaminá-la com minha rudeza.

Convalescença

Teve um surto amoroso e convalesce. A família está instruída a não dizer diante dele palavras como beijo, abraço e, principalmente, certo nome de mulher.

Um diálogo de Stanley e Blanche

"BLANCHE - Já pedi desculpas três vezes. (O som do piano desaparece.) Tomo banhos quentes para acalmar os meus nervos. Hidroterapia, como eles chamam. Você, polaco saudável, sem um nervo no corpo, é natural que não saiba o que é estar angustiada.

STANLEY - Não sou polaco. Mas o que eu sou é cem por cento americano, nascido e criado no maior país do mundo e muito orgulhoso disso. Por isso não me chame mais de polaco."

(De Um bonde chamado Desejo, de Tennessee Williams, tradução de Brutus Pedreira, publicado pela Abril Cultural.)

sábado, 23 de março de 2013

Hora de...

... sair daqui, depois de tantas horas escrevendo. Não sei o que acontecerá agora. Provavelmente a depressão, mal de que padeço há duas décadas, intermitentemente. Todos nós temos uns três ou quatro piores dias de nossas vidas. Eu vivi um deles ontem. Como se diz, jamais serei o mesmo. Perder as ilusões quando se é jovem é uma parte da rotina, ou, como se diz, um rito de passagem. Embora na época duvidemos, sempre vêm outras. Perder as ilusões quando se enxerga já o fim do caminho é saber que se perdeu a última - e é pior ainda se essa última foi a que achamos a maior de todas. Como costumam fazer os homens, hoje atirei a esmo, procurando culpados. Faria melhor se atirasse em mim, bem no meio deste rosto desprezível. É normal isso, embora não justifique que eu me escuse da covardia cometida. Não me escuso. Digo aqui que, como sempre, nessas batalhas emocionais em que me empenho, exponho a minha face mais hostil e execrável. Penso que, com isso, fica quase explícito que peço desculpas pelos excessos. Mas quase não basta. Peço então, com todas as letras, desculpas a todos aqueles que submeti a essa verborragia insana que já vai para doze horas. Para um blog que desde o primeiro dia se anunciou como um blog de literatura, é deplorável. Mais apropriado seria, pelo menos hoje, se eu o dedicasse a estudantes de psicanálise. Gostaria de me sentir um homem melhor amanhã. Mas sei que é mais uma aspiração do que uma possibilidade.

Chicle e cuba-libre

Eu sempre masquei chiclé ou chiclete, mas o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa me desmente: masquei chicle. Ah, Volp... Um dia desses, em dúvida sobre se eu nas noitadas depois do trabalho no jornal tomava um cuba-libre ou uma cuba-libre, descobri que essa, a bebida mais famosa nas madrugadas de 1960 e 1970, não mereceu dicionarização ou, no caso, vocabularização. Devo dizer então que bebi muito rum com rodelas de limão, gelo e coca-cola (também não incluída no vocabulário como substantivo comum). Já o gim-tônica, provavelmente pela ação de algum lobby, lá está, belo e formoso, ele que foi o responsável pelo maior porre da minha vida.

Dois poemas de Marina Tsvetáieva

"Para a minha pobre fragilidade
Olhas, sem dissipar palavras.
Tu és pedra, mas eu canto,
És estátua, mas eu voo levanto.

Eu sei que o maio mais terno
Não é nada, aos olhos do Eterno.
Mas eu sou pássaro - e a mal não leve,
Se sobre mim pousou uma lei mais leve."

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"Ao animal - o covil,
Ao peregrino - o caminho,
Ao morto - o cortejo,
A cada um - o seu.

À mulher - maliciar,
Ao czar - governar,
A mim - celebrar
O teu nome."

(Do livro Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, publicado pela Martins Fontes.)

Boa noite...

... poderia ser esta, com a lembrança ainda fresca da tarde, o cheiro de café, a música das colherinhas sendo lavadas, uma frase tua que eu tivesse ouvido mal e me fizesse inclinar-me e ver-me de repente perto dos teus olhos e ter o receio (e a ansiedade) de ser tragado por eles e levado longe, longe, para um lugar não mapeado, um lugar onde não houvesse nada, a não ser o ruído das ondas sobre um rochedo e sobre meu corpo transformado num peixe miúdo, filhote, morto, livre enfim de todos os tormentos. Não houve tarde, não haverá lembrança.

Como caminha um texto

Ainda não aprendi a escrever andando, embora seja uma prática diária. Já me conhecem na avenida do Cursino, e dezenas de olhos me seguem. Minha Bic, meu bloquinho e eu somos personagens, certamente da categoria dos bizarros. Por onde passamos, recebemos sorrisos, quase todos zombeteiros. Às vezes, quando a plateia é muita, uso um truque para que não me concedam o título de doido em plena avenida, com discurso e tudo: paro diante de uma casa com placa de aluga-se ou vende-se, como se estivesse anotando o número do telefone. Assim é feita a maioria dos textos do blog. Pronto, já foi: acabo de proceder como se fosse um padeiro revelando à freguesia que utiliza farinha de terceira.

Não sei...

... que diabos aconteceu hoje. Na verdade, desde ontem eu me sinto febril e em estado de pânico. Um caso familiar e outro nem tanto se reuniram para me abalar como eu jamais estive. Vim para o micro bem cedo e estou escrevendo, escrevendo, escrevendo. A única vantagem é a espantosa aceitação do blog hoje. Ainda não acabou a tarde e os acessos triplicaram. Talvez eu tenha descoberto a fórmula: textos curtos, sem adornos literários. Outra razão (provavelmente a principal) para esse salto estatístico pode ser aquele que na verdade mais me conforta. Os leitores estão achando enfim sinceridade nos meus textos, sem aquela adjetivação toda com que eu os enfeitava. Ponho aqui o que me afeta, o que me constrói, o que me destrói, e isso talvez seja mais interessante do que tentar fazer sonetos clássicos ou graciosas quadrinhas. Eu me envergonharia de falar em estatística se estivesse simulando situações. Não estou. Os dois acontecimentos de que falei lá em cima me perturbaram tanto que, numa pausa para ir comprar um mouse no shopping (na realidade nem pausa, porque fui a pé e escrevendo no bloquinho, ameaçando a integridade dos velhos postes do bairro), fui a uma loja de informática e descobri, depois da compra, que não havia saída. Fiz e refiz o percurso todo, norte, sul, leste, oeste, e, já apavorado, imaginei que quando viesse a noite eu seria o jantar do minotauro. Suando frio, resolvi perguntar a uma moça de uma das lojas onde era a saída. Milagrosamente havia uma: era só descer a escada e chegar ao térreo. Dali ficava fácil... Eu não havia me lembrado de que a loja de informática era no primeiro piso... Aprendi outra coisa nessa aventura no shopping: a moça a quem perguntei onde ficava a saída não estranhou a pergunta, não riu. Minha idade começa a me absolver de gafes - pena que só das menores.

Todo furacão tem nome de mulher

Seus amigos e você têm hoje bons motivos para rir. Talvez seja caso de se reunirem numa churrascaria, embora haja no grupo militantes de causas preservacionistas. Ah, que delícia, vejam só esse bobo alegre. Como pode, um cara dessa idade... Quantas mensagens de ridículo desespero, quantas lágrimas patéticas, quantas confissões de uma alma devastada. Um comentário inevitável será o de que não por acaso os furacões têm nome de mulher. E começarão a lembrar: Katrina, Rhonda, Ruth, Patricia, Marilyn.

Letra R

Na agenda dela, ele está na letra R, de Reserva. Quando, por uma razão inexplicável, escasseiam os contatos nas redes sociais, é provável que num sábado à tarde ela ligue para ele. Dirá estar com saudade, muita. No domingo, um dia ainda mais morninho na internet, ela se mostrará mais solta e alegre. Dirá que precisam marcar um encontro, logo. Na segunda, ela não entrará em contato e, se ele entrar, será recebido friamente, laconicamente. Ela estará sem tempo para ele. As outras letras do alfabeto estarão chamando por ela.

Quarto 206

Quando eu estiver entubado no hospital (digamos no quarto 206, o terceiro à esquerda de quem sai do elevador), não vá me ver. Meu aspecto estará bem pior do que hoje. Mas, se você quiser ir mesmo assim, não tema de mim uma reação hostil. Provavelmente não a reconhecerei. Faz tanto tempo, já. Lembro-me só de uns cabelos loiros que, pelo vício de minhas leituras poéticas, sempre comparo a um trigal.

Marafinha

Hoje estou mesmo com espírito de putinha rampeira. Com isso eu a ajudo a confirmar o que na verdade você já sabe desde o primeiro dia mas, por uma malsucedida generosidade, você me escondeu todo esse tempo: que eu sou um homem ríspido. Você também. A diferença é que eu preciso me concentrar para ser ríspido. Esse pode ser um dos motivos pelos quais você me considera um falso. A sua rispidez é mais pura, mais espontânea, autêntica.

Ações de caridade

Se eu fosse um indiano e dirigisse um centro de defesa de animais em Mumbai, você correria ao meu encontro. Interessam-lhe baleias, lobos-marinhos, rinocerontes, veados, toda a fauna terrestre e aquática. Poetas, não - especialmente os que poetam mal.

Se o encontro tivesse acontecido...

... esta seria mais ou menos a hora em que você se despediria de mim gentilmente, mostrando a satisfação de mais um dever cumprido, dentro da agenda de suas caridades, e diria que precisamos nos ver com mais frequência. Pelos seus padrões, mais frequência quer dizer daqui a um ano ou a um ano e meio - menos talvez, se eu fosse aquinhoado com um câncer e estivesse no Hospital do Rim e da Hipertensão. Eu entendo: você é muito ocupada, do contrário concederia mais tempo a uma pessoa que há pelo menos quatro anos você diz ser muito importante para você, e a quem você declarou até amor com versos de Luiz Vieira. A esta hora eu estaria pegando o metrô na Consolação, feliz como só os pobres podem ficar com ninharias. E estaria pensando: daqui a um ano, no máximo um ano e meio... E suspiraria, chamando a atenção de uma senhora que logo me definiria com precisão: um velho tonto.

Tal Coisa

Como nos alegramos quando dizemos a uma pessoa que somos Tal Coisa e ela diz que também é. E como é desagradável ver essa pessoa, cinco passos adiante, dizer a outra, apontando-nos indiscretamente: "Está vendo aquele ali? Ele é Tal Coisa."

Que bom se...

... eu pudesse celebrar todos os dias a morte de um amor. Quantas frases, quantas ideias, quanto assunto...

Vivo e morto

Vivo, o amor é aquela chatice de flores, sóis e primaveras. Morto, ele é rancoroso e ressentido. Volta a ser humano.

O óbvio

É claro: depois da verborragia do sábado virá a melancolia do domingo. É quando a família redobra a vigilância.

São Paulo

São Paulo, digam o que disserem, é, sim, um Estado presunçoso: São Paulo, capital São Paulo.

Nós, os derrotados...

... somos tão incompetentes que muitos de nós, até naquilo que pretendíamos ser nosso último ato, acabamos falhando.

Os logrados...

... pelo amor são honestos: depois de tudo, ainda passam recibo.

São tristes os sábados...

... quando lhes prometem uma história que afinal não é contada, nem nunca será.

Daqui a...

... quatro ou cinco anos, se a morte não for generosa, você estará no micro e de repente, assim como uma espécie de Lázaro informático, aparecerá uma mensagem antiga, muito antiga. Você lerá de novo aquele nome, olhará bem, mais uma vez, mais uma, e, sentindo uma palpitação de rosa no peito, saberá que todo o seu esforço para esquecer terá sido inútil.

Quando você...

... rearruma a casa depois que o Amor foi embora, descobre que cada coisa, cada objeto, cada pequeníssima bobagem exige uma longa análise antes de ser destinada ao lixo. E descobre também que, ao contrário do que você imaginava, ainda há lágrimas a chorar - e quantas.

Abrir o coração...

... para o Amor é abrir a bolsa para um salteador. Se entrares no território dele, não leves nem a Bíblia. Ele a carregará, certamente, por uma questão de princípios.

O direito de ficar calado

Quando estiveres diante do Amor, convém que fiques calado. Tudo que disseres poderá depois ser usado por ele contra ti.

São Paulo

No dia 25 de janeiro contamos tantas mentiras sobre ti, São Paulo.

Poesia

Há uma nova corrente de pensamento segundo a qual a poesia, se não for a expressão meticulosa da verdade, deve ser banida. Poetas, por favor: um suspiro é um suspiro, não dois ou três.

São Paulo

São Paulo é a cidade onde morrerei de amor, se os assaltantes não chegarem primeiro.

De tanto falar...

... em amor, receio poderem julgar que isso tenha se tornado em mim um hábito, algo automático, um aplicativo. O amor em mim, é, sim, um hábito, eu reconheço, mas a alma sabe quanto me custa mantê-lo.

Se pelo menos...

... acreditassem um pouco em mim, eu colocaria no blog o título de Confissões On-Line e ficaria todos os meus dias, até o derradeiro, sentado aqui, escrevendo. Mas sei que continuariam me chamando de falso e dizendo que alguma vantagem por certo eu haveria de estar querendo. Alguma vantagem como ser entendido, alguma vantagem como ser querido, alguma vantagem como ser amado.

E sempre...

... dirão que finges, que simulas, que ofereces rosas falsas. Prefeririam que fossem aquelas de floricultura, entregues por um rapaz educadíssimo que aceitaria a gorjeta com um bem treinado constrangimento. As rosas do coração, regadas com as lágrimas das noites de insônia, convenhamos, não são a mesma coisa. Quem acreditará que em 2013 alguém passe dezoito horas por dia fazendo poemas, e faça duzentos, trezentos, e ainda ache pouco? Ah, devem ter sido copiados de antologias. Quem seria idiota, hoje, de fazer isso por amor? Há tantas outras formas, bem mais práticas e modernas... Em que época pensas estar? Há quanto tempo morreram Dante e sua Beatriz...

E no entanto...

... haverá aquela anotação a lápis no livro de Philip Roth. Já definiram tantas vezes a literatura dele, eu sei, mas para mim ele será sempre o autor de um romance no qual alguém deixou uma marca. As traças roerão o livro, graças a Deus, e haverá um dia em que também, abençoadamente a anotação será apagada de minha memória. Ser sentimental, e admitir isso, foi a desgraça de muitos. Seja sentimental e logo arranjará quem o monte e o chicoteie.

Talvez eu...

... tenha mesmo a capacidade de estragar sábados. Tenho estragado tantos. Há em mim esse talento para o desagradável, que chega a ser quase uma descortesia. Sempre construo pirâmides com o que acontece comigo. Vivo epopeias de lamentações, sou herói dos meus dramas, sou um São Sebastião que se flecha a si mesmo. Sou especialista em estragar os dias da semana. Todos. Por que pouparia os sábados? Lamento-me até chegar àquele limite em que já começa o ridículo. Talvez hoje seja esse o caso. Ultrapassei de novo o limite. Mas que diabo! Alguém precisa se lamentar, alguém precisa ser ridículo. Ofereço esse serviço a vocês, embora vocês não o tenham pedido. Além de tudo, sou serviçal. Às vezes penso que seria capaz de enlouquecer o dr. Freud. Não, não seria. Ele classificaria meu caso como insignificante. Essa é a palavra que me cabe, que sempre me coube. Insignificante.

Curvo-me diante de vocês...

... tão superiores, tão cientes, tão conscientes, tão sábios. Não me curvo com ironia, curvo-me com humildade e lhes digo que gostaria de ser como vocês, de ser forte, de poder me deitar, à noite, sentindo orgulho dos meus dias. Sou fraco, me lastimo, choro e, quando me lastimo e choro, vocês me dizem que estou armando meu teatrinho de novo. Quantos de vocês estão sorrindo agora e dizendo exatamente isso? Pois é, estou armando meu teatrinho de novo. Que vocês nunca precisem armá-lo.

E...

... falar com os outros continua a ser aquela forma de descobrirmos como somos defeituosos, covardes, mesquinhos, maus. Tanta culpa, tanta. E somos tão pequenos e, quando choramos, nos chamam de imaturos. Cresça, cresça, é o que nos dizem. Tudo parece tão fácil para os outros.

Há sempre...

... esta possibilidade de ficar olhando aqui pela janela e, como tantas vezes, fazer aquele esforço de achar a vida boa. Melhor não. A psicologia definiu que somos culpados de tudo, sempre, e, se ficarmos mais um pouco aqui, talvez um passarinho caia fulminado diante de nossos olhos.

E no entanto...

... haverá ainda a avenida Paulista, a Consolação, a galeria, o café, a livraria. Jamais voltar lá, nunca mais, ainda que a memória insista. Jamais, nunca.

São Paulo

Dormir, dormir, esquecer que lá fora é São Paulo. Imaginar que pelo menos aqui dentro estamos seguros, apesar do ruído na porta dos fundos.

Ontem, 22 de março

Um dia de mudança extrema. A surpresa de saber que com sete décadas de vida ainda se pode ser um menino e chorar como quando nos chamavam de tonto. Até o fim a vida é uma coleção de figurinhas perdidas, de coisas que nos tomam, de gatos nossos mortos por vizinhos e jogados dentro do saco.

O quadragésimo nono

Se a experiência era, como ele julgava, o melhor meio de avaliar a capacidade de alguém, ele tinha razão para estar feliz. Acabara de se casar com uma mulher que antes dele havia amado quarenta e oito homens e casado com sete deles. Além disso, dessa base que ela trouxera para o casamento, era lisonjeiro saber que, sendo o quadragésimo nono, ele podia, se ela o escolhera, considerar-se superior aos quarenta e oito anteriores. Já era alguma coisa.

São Paulo

Encontrado num paletó, no Instituto Médico Legal: "Agora vocês acreditam?"

Megalomania

Os poetas tendem a viver - e a morrer - por amores comuns que eles, com sua excitação pela grandeza e pelo belo, transformam em tema épico.

São Paulo

Aos sábados eles, como gente que são, vão divertir-se com o dinheiro que roubaram durante a semana. Talvez sua filha dance com um deles, até, e o ache vagamente conhecido e muito simpático.

Logro

Descobriu que comprara gato por lebre quando o estômago começou a miar.

São Paulo

Ainda não nasceu o garoto que crescerá alimentado pelo ódio e te matará quando chegar aos dezessete. Não precisarás esperar tanto.

São Paulo

Pois é, poderiam, além de levar o carro, tê-la estuprado. Ainda assim se poderia considerar que ela tem sorte. Eram só dois, e não três ou quatro, como geralmente acontece.

Honra

Houve uma época em que homens indevidamente chamados de mentirosos se matavam. Faziam-no com o máximo alarde e de modo a serem seus corpos vistos por todos, para que sobre esse último ato não pesasse nenhuma suspeita e não precisassem defender-se também dele.

São Paulo

Em outros lugares eu não sei. Aqui, já houve casos de quem, sem a cautela de andar só com a xérox, teve a alma estuprada.

Malfeitora

A vida só se revela
À noite, numa encruzilhada,
Com a arma já apontada.
Aí, é você ou ela.

Um trecho de Truman Capote

"Ela marcara encontro para as cinco horas daquela tarde de inverno com o dr. Bentsen, seu ex-psicanalista e atual amante. Quando o relacionamento de ambos passou do analítico ao emocional, ele insistiu, alegando razões éticas, para que interrompessem o tratamento. Não que fizesse grande diferença. Como analista, não lhe fora de muito auxílio e como amante - bem, uma ocasião ficara a observá-lo enquanto ele corria para pegar o ônibus, cento e dez quilos de baixa estatura, o protótipo do intelectual míope cinquentão de Manhattan, cabelo encarapinhado e bundudo, e não pôde deixar de rir: como era possível gostar de um sujeito tão mal-humorado, tão mal-favorecido como Ezra Bentsen? A resposta foi que não amava; detestava, aliás. Mas pelo menos não associava sua figura com nenhuma ideia de resignação e desespero. Tinha medo do marido; do dr. Bentsen, não. Contudo, era do marido que gostava."

(Do livro Música para camaleões, tradução de Milton Persson.)

Simplesmente...

não sei o que ainda estou fazendo aqui. Isso é grave, num lugar em que todos sabem o que fazem e, por serem 99,9% de todos, jamais alguém os chamará de errados. Tudo é questão de estatística e, como não desfalcarei o lado deles, é provável que me deixem cair fora. Não lhes farei falta. Há mais duas ou três exceções que poderão confirmar a regra, se bem que eu venha notando também neles certa inquietação. Há várias formas de liberdade e talvez eles me acompanhem. Para não darmos trabalho, iremos para o lago. Haverá um sol crepuscular em torno e será a única testemunha. Nada restará de nós. Moraremos no fundo, bem no fundo. Que não nos acusem de nada mais depois de mortos, a não ser de não sabermos nadar.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Há momentos...

... em que um homem se sente mais imprestável do que nunca. E é inevitável que, criado dentro do espírito da utilidade e da finalidade, ele pense naquilo. Não sejamos ingênuos. Todos sabem o que é aquilo. É então que São Paulo nos surge com toda a sua gentileza: tantos viadutos, tantas avenidas em que ser atropelado não exige nada além da vontade, tantas lojas de material de construção com cordas rijas, tantas giletes ainda naquelas embalagens antigas, com o rosto do inventor e aquele seu bigode que era quase uma antipropaganda, talvez uma boa navalha ainda, das antigas, numa dessas portinhas em que se encontra de tudo, talvez até a lâmpada de Aladim. Há momentos em que um homem - sobre quem paira a aura do fracasso e cuja verdade mais sincera, talvez a única, é tida como mentira - sente chegada a hora de pelo menos começar a pensar em tantas possibilidades que uma cidade como esta oferece. Talvez um indiano consiga fazer aquilo com delicadeza, simplesmente deixando de respirar. Seria bonito isso. Talvez se pudesse até cobrar ingressos. Mas seria desvirtuar o ato, desmerecer aquilo que às vezes nos atrai por ser o único caminho. É pesado este texto? Talvez, mas só pelo tema, o que é quase um preconceito. Aquilo é a mais legítima demonstração do livre-arbítrio. Estamos entre adultos, eu suponho, e, se fosse outra a época, eu, com a mania de cronista que tenho, suspiraria por um bonde que daria um tom romântico àquilo - quem sabe aquele fechado e vermelho, conhecido como camarão. Não quero que ninguém me imagine instigando o que quer que seja. Caio Fernando Abreu declarou num texto o desejo de ser morto por uma limusine. À falta de bonde, fico em dúvida e por enquanto continuarei escrevendo este blog. Não se asssustem nem se condoam antecipadamente. E só uma brincadeira, como toda crônica costuma ser.

São Paulo

Pelo menos não sequestraram
Pelo menos não estupraram
Pelo menos não mataram
Pelo menos deixaram os dois braços
Pelo menos não furaram os olhos
Pelo menos o menino não estava com ela
Imaginou só?

Além dos quatro ou cinco furtos sem violência, na base do upa, lá se foi a bolsa, foi a terceira vez que apontaram revólveres na cara da sua filha, que levaram o carro, os documentos, o celular, o dinheiro. Dizem a você que ela tem sorte e você, sem cinismo, reconhece. É verdade. Ela tem sorte. Muita. Os bandidos agora, quando assaltam, usam uma frase que não deixa nenhuma dúvida: "Você perdeu." É um ritual, um respeito às normas. Os nossos garotos, a nossa nova geração, são os ganhadores agora e fazem questão de nos avisar. É uma espécie de jogo: quem perdeu, perdeu. Alguns, por enquanto, têm ainda alguma consideração: não sequestram, não estupram, não matam, não arrancam braços, não furam os olhos, respeitam os meninos, principalmente se eles não estão lá. Não deixa de ser uma concessão. Mas é preciso ter sorte. Ser um eleito. Confiar em Deus talvez ajude, também. Aos poetas cabe a sensibilidade de cantar esses novos heróis que, com doze ou treze anos, já sabem ganhar seu pão desonestamente, como tantos outros.

Boa noite...

... para os que tratam o amor como deve ser tratado, que o levam nas mãos como o primeiro fruto de uma árvore plantada pelo avô mais querido ou como um passarinho que apareceu ferido no quintal. Boa noite para quem, pelo amor, tem a coragem de dizer as coisas mais piegas, de prometer estrelas e copiar versos de antologias. Boa noite para esses puros. Que eles durmam como bem merecem. Para os outros - os atormentados que veem no amor só o amor-próprio e, quando o recebem, acham sempre que poderiam receber mais, sem nunca pensar no que deram, e principalmente no que não deram - que se concedam a compreensão, a compaixão, a piedade. Por serem tão arrogantes e autossuficientes, será triste a noite deles, embora de manhã eles se recusem a reconhecer isso e possam perguntar até, desdenhosamente, o que é o amor. Que eu não seja um desses que farão a pergunta.

Uma possibilidade

Ontem, deu-se conta de que, excetuando o amor, que ele sempre julgou atributo de uma só mulher, pela qual se arrastou durante anos, pode haver outras com atrativos talvez iguais aos dela. Não era um projeto, mas quem sabe uma possibilidade, ele pensou, mas uma melancolia tão aguda tomou conta dele que a possibilidade se desfez, antes de começar a tomar forma.

O jogo do amor

Hoje, quando o Amor te apunhalou o coração, tu, como sempre, imploraste, pediste, suplicaste que ele te ferisse mais fundo e te matasse. O Amor não te dará nunca uma morte piedosa. Ele te conservará vivo, ele te dará todos os golpes, menos o último, de misericórdia. Com que outro rato ele brincará? O Amor quer te ver morrer de velhice, disforme e asqueroso como só um rato moribundo pode ficar, e balbuciando ainda para ele, como os velhotes balbuciam para as colegiais de saia azul, no parque: "Brinca uma vez comigo, brinca. Uma vez só. Brinca?"

Produto licenciado

A felicidade anda tão teorizada, metodizada, laboratorizada, que logo será vendida em embalagens como as de xampu para bebês, com a tranquilizadora, embora aparentemente desnecessária, indicação de "no tears".

A morte de Pascoal

Dar nomes humanos a gatos e cachorros pode provocar situações embaraçosas. Quando alguém que não vemos há muito tempo nos liga e informa que o Pascoal morreu, não sabemos se damos os pêsames ou não. Qual era mesmo o nome daquele tio octogenário que torcia para o Juventus? E o daquele cachorro velho que não conseguia mais levantar a pata para desenhar com sua bisnaga ornatos no poste?

O tio velho

Anteontem e ontem, os objetos da sala se mantiveram calados. Mas já sabem hoje que, além de meio cego, o tio que foi morar na casa é um bocado surdo. E já o sofá onde ele passa a maior parte do dia diz às cadeiras que, se o velho morrer, ele não vai se importar: o cheiro dele e das suas roupas é repugnante. As cadeiras estalam de rir e comentam que isso é o melhor que poderia acontecer a um sofá pretensioso como ele, enquanto as flores, no jarro do centro da mesa, se perguntam o que lhes acontecerá se aquele odor de velhice for atribuído a elas.

O narrador em Kafka

O tipo mais comum de narrador é aquele que se apresenta como quem sabe tudo de toda a trama e de todos os personagens, uma espécie de Deus no Dia do Juízo Final. Ao leitor resta confiar nesse narrador onisciente e na verdade ou na mentira que ele expõe. Em Kafka, o narrador é insciente e sua insegurança, suas hesitações e suas contradições se transmitem ao leitor. Daí a estranheza que os textos de Kafka provocam. O narrador dispõe-se a contar uma história que ele mesmo admite não conhecer integralmente. Ele não nos engana. Desde o começo deixa claro que, se decidirmos segui-lo, ele não nos levará por um caminho ensolarado, nem no sentido psicológico nem no físico. Em Kafka não existe aquilo que costuma chamar-se de entretenimento.

Caráter e arte

Às vezes, um homem tem suas deficiências morais compensadas - e até perdoadas - pela qualidade da sua arte. E, às vezes, um homem ter a pretensão de ser artista é uma agravante, uma mentira a somar-se a todos os seus outros defeitos. Na minha casa vive um homem como o segundo. É para mim um alívio vê-lo apenas quando me olho no espelho para barbear-me. Já decidi deixar crescer uma barba como a de Rasputin - personagem cujo caráter, pelo que dizem, era tão lastimável como o meu.

"E agora, José?", de José Saramago

"Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas - ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: "E agora?" Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas. "E agora, José?" Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tônico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios."

(Do livro A bagagem do viajante, publicado pela Companhia das Letras.)

Xico,

eu disse aqui, agora há pouco, que me dou mal com a informática. Na verdade, é ela que não se dá bem comigo. Acabo de mandar um e-mail a você e ele voltou como um bumerangue, com a informação de que a conexão falhou. Relevei a desfaçatez por ela ter vindo no idioma do Shakespeare, aquele goleiro do Chelsea casado com a Gwyneth Paltrow. Vamos ver se por aqui a mensagem vai e se alguém a faz chegar a você. Bom, nela eu dizia (o que ficou agora bem comprovado) que nesse negócio de informática eu sou como um zagueirão do Olaria batendo o quinto pênalti da série e derrubando um teco-teco. Ia dizer zagueiro do Íbis, mas aí esse zagueiro teria a camisa dez e seria o capitão do time. Por falar em camisa dez, você está batendo uma bola que não é brincadeira. Eu assino o Estadão, mas o Nelson Cunha, que gasta metade da aposentadoria com pastilhas Valda, de tanto berrar pelo Timbu, paga ingresso dobrado para ler a sua coluna na Folha e me manda toda semana o texto. Você deve conhecer a figura. Ele está em Olinda agora e todo dia, para zombar do frio e da chuva daqui, envia notícias de sóis e de praias que bem justificam o nome da cidade. O antônimo de Olinda, como o definiu exemplarmente o Houaiss, é Ofeia (leia-se São Paulo). Sei que depois disto jamais me encomendarão crônicas para o dia 25 de janeiro, mas, afinal, me cansei de falar do Ponto Chic, dos cachorros-quentes da Três Porquinhos e do cine Broadway. Que bom poder lhe mandar este abraço e (embora correndo o risco de ofender o Edgar) um pacotinho de alpiste. Se ele comer e começar a cantar musiquinhas da Xuxa, corretivo nele!