terça-feira, 30 de abril de 2013

O corriqueiro

Um amigo o chamou ontem de corriqueiro, por certas confissões de natureza sentimental que ele anda fazendo. Segundo o amigo, estaria lhe faltando etiqueta. Ele não acha. O amor, para ele, nunca foi um assunto social, desses que são tratados com luvas de pelica e conselhos de Glorinha Kalil. O amor foi um tufão que sacudiu cada hora dos seus três últimos anos e estremeceu suas relações familiares, deixando-as à beira da ruptura. Nunca mais elas serão como eram. Nesses anos o amor foi o grande acontecimento de sua vida, e ele, não tendo olhos nem coração para nada mais, só falou e só escreveu sobre isso. Foi uma obsessão que o levou várias vezes do paraíso ao inferno e do inferno ao paraíso. No blog que mantém há cinco anos, uma espécie de diário, ele tentou, em respeito aos leitores, dar um tratamento literário ao tema, praticamente o único que o ocupou nesse período. Como escritor, embora autorreconhecidamente limitado, julga ter o dever de ser sincero. Não pode apresentar como ficção o que a percepção dos leitores reconhece imediatamente como real. Não pode, nem quer, transferir tudo para uma terceira pessoa. Não encontra outro modo de proceder e não vê por que, tendo sido tantas vezes tentado até a dar cabo de si por uma situação que não foi criada só por ele, deva sofrer calado. Feriu pessoas muito próximas e é culpado disso, sem dúvida. Mas se sentiria pior se houvesse agido de má-fé. É triste, mas real, não ter como desculpa senão a velha impossibilidade de resistir ao amor, quando o amor vem com a força dos verdadeiros. Embarcou no amor com honestidade, pisando em cinco décadas de relações afetivas consolidadas, e calar-se seria como reconhecer que fez isso por algo banal, por alguns encontros voltados ao entretenimento, como se o amor pudesse ser isso. Para ele, o amor não foi jamais encarado como um convite para horas agradáveis, com tempo determinado para durar e acabar. A história talvez não seja conhecida por mais de duas dezenas de pessoas, mas ele julga conveniente dizer, para não excitar indevidamente imaginações, que tudo ficou só no espírito, na alma e no coração - com todo o espírito, toda a alma e todo o coração. Foi bom ter sido assim.

Se esse dia houver

Reconhecerá o Amor se um dia tiver ainda a ventura de passar por ele? Houve tempo em que o sentia na pele, como um marujo velho sente a borrasca espreitando o navio numa manhã de sol imaculadamente azul. Sua pele hoje só tem sensibilidade para o frio e seus olhos distinguem apenas a treva. Talvez os ouvidos, se lhes chegasse a voz única, que ele reconheceria entre os bilhões de outras vozes do mundo, lhe dissessem, alvoroçados: é ela. Mas os ouvidos, hoje, não ouviriam um tiro de canhão, ainda que o disparassem a cem jardas deles. Receia que os ouvidos não ouçam sequer o chamado da Morte, que ele aguarda dia e noite, enquanto sopra suas chagas. Espera que a Morte tenha braços compridos e não tarde. Nos momentos em que a vida lhe dói mais que de costume, ele é tomado por um pavor: e se a Morte tiver morrido?

Bairros

Brás é aquele bairro que teve a sorte e a glória de ser cantado por um morador chamado Lourenço Diaféria. Jardim da Saúde é o bairro onde moro eu.

Um trecho de Luiz Carlos Cardoso

"Nas poucas situações passadas em que mulheres estiveram à disposição da minha libido e esta à delas, não como fantasia mas como carne real, tive dúvidas quanto ao desempenho na hora agá e tive-as depois, quando em rememoração me interroguei a respeito da bravura demonstrada. Não se tratava, para valer-me de uma metáfora antiga e cinicamente cabível aqui, de "negar fogo", oh, não. Fogo foi sempre afirmado, embora me parecesse menos efetivo do que gostaria, e nunca por limitação orgânica. Tal como Vasari dizia da pintura, que é assunto do intelecto e não da mão que conduz o pincel, eu atribuía ao intelecto as más pinceladas nesse outro assunto." (Do livro "Crime improvável", publicado pela Ficções.)

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Eu também...

... tive a minha Pasárgada. Tive algumas, para dizer a verdade. Não me invejem ainda. Leiam até o final. Eu tive a promessa de Japões e de Índias e, arrebatado pela loucura desse sonho, fui me desfazendo de minha Vila Santo Estéfano. Fui me desfazendo também de tudo e de todos os que me cercavam. Quem levaria a família, quem levaria os amigos para a sua Pasárgada? Nem tive tempo de sentir-me indigno. Meu coração batia Índia, meu coração batia Japão, e nada mais me importava a não ser isso: a Índia, o Japão, minhas Pasárgadas. Senti-me feliz, confesso isso. Muito feliz. Quem, recebendo a promessa de Pasárgada, tem o direito de se sentir infeliz? Prometeram-me Pasárgada, e eu me julguei um ser superior, a quem ninguém haveria de cobrar explicações. Quem me prometeu Pasárgada jamais há de admitir que fez essa promessa. E perguntará: vocês vão acreditar em mim ou naquele louco? E eu não poderei negar a minha loucura, tão fácil de se comprovar com a simples leitura diária do blog. Tão evidente é esta loucura na qual me afundo, tão palpável! Mas ela não é recente. Ela nasceu no dia em que, tendo renegado tudo para me entregar a Pasárgada, soube que jamais haveria Pasárgada para mim. Jamais olharei para os que me eram caros como olhava, e eles jamais olharão para mim como antes. Eu sou, eu serei sempre aquele que ousou dizer que ia para Pasárgada. Eu sou o tolo que acreditou em Pasárgada e que, mais tolo ainda, conta hoje a história e é capaz de repeti-la pelo resto da vida, por mais que riam da história e escarneçam dele, perfeito otário. É uma história tola, mas não é uma história concebida por um louco. Quem me prometeu Pasárgada me prometeu Pasárgada em nome do amor. Eu o sentia, quem me prometeu Pasárgada jurou senti-lo também. Choro ainda hoje quando leio as arrebatadas palavras com que foi feita a jura. Julguem-me como quiserem. Eu há muito tempo não tenho condições de julgar-me. Quem acredita que o amor possa ainda, no século XXI, enlouquecer um homem, talvez encontre no meu relato algum subsídio.

Há pessoas...

... que nos ensinam a surpresa da vida. Tornam-se mais importantes do que tudo, para nós. Quando aparecem, perguntamo-nos como conseguimos por tanto tempo respirar, sem elas. Abandonaríamos tudo por elas, se não achassem irrisório tudo que é nosso, até o nosso mais lancinante sacrifício. São essas, também, que nos matam. Nos matariam, quero dizer. Jamais sujariam suas mãos com nossa carne de terceira qualidade. A nós cabe fazer isso, para que um dia digam: "Esse não foi o único que se desgraçou por mim. Ah, se eu me abrisse com vocês..."

Nunca mais...

... lamber a mão da dona, em reverência. Lamber por lamber, que seja o serviço completo. Não há meia depravação. Depravação por depravação, que sejam uma e meia, duas, três, com direito a repetição. Chega de sonetar, de poetar, de buscar riminhas, enquanto abigeatários, indianistas e chantagistas de extensa laia se esparramam na cama e gozam às escâncaras.

Que eu...

... esta noite seja abençoado com sonhos de luxúria, coxas generosas, seios úberes, folhagens exuberantes e suavemente olorosas. Cansei de poetar sobre estrelas e a lua. Arre, por que continuar sendo essa coisa antiquada cheia de estrofes e rimas? Já passou o tempo de cobrar a minha parte. Se falar de rosas, falarei delas em outro contexto, como, por exemplo, falou o poeta Jamil Almansur Haddad quando escreveu o verso "bundas que parecem rosas". Ter setenta e quatro anos é ser inimputável. Não tenho imagem pela qual deva zelar e quem sabe me apliquem, no fim, a atenuante de chamar-me de escritor erótico. Não concorrerei mais a cargos públicos, e ser cronista já era. Nada de árvores, de flores, de bairros, de histórias edificantes (e paulificantes). Enquanto Seu Câncer não vem, cantarei quadris tomados pelo fogo do Inferno, lábios ávidos de saliva e sacanagem, pernas que aprisionam outras como tenazes, desmaios, palavrões soando como cânticos no momento do gozo, e rios imensos, leitosos, correndo de madrugada e arrastando-nos para a mais deliciosa de todas as danações.

Agradar-me-ia...

... contar uma história de sequestro em que o sequestrado fosse eu. Seria um sequestro de amor, cometido por uma mulher que de preferência fosse parecida com Monica Bellucci. Eu ficaria 48 horas em poder dessa criatura tresloucada, que me exigiria tanto amor (físico) que em mim, depois de a polícia me libertar, contra a minha vontade, se comprovaria no exame de corpo de delito um estado de inanição semelhante ao que era perseguido pelo Mahatma Gandhi. Os jornais dariam fotos minhas (antes e depois das 48 horas) e uma revista feminina exaltaria o novo método de emagrecimento, chamando-o simpaticamente de dieta do amor. Eu, cavalheirescamente, diria aos policiais e à imprensa tratar-se de um engano tudo aquilo e isentaria minha amada Monica de responsabilidade. Todos os ossos do meu sobrevivente esqueleto se dedicariam então, até o fim da vida, a cantar esse amor dadivoso em frutos. Aí, sim! Versinhos de graça, sem compensação corporal, tó (gesto de banana). Nunca mais!

Dor de cúbito

Permitam-me de vez em quando uma dorzinha de cotovelo (perdão, dor de cúbito, segundo a nova nomenclatura) e algumas coisas piores. Sou rancoroso, ressentido, invejoso, e cometo o possível equívoco de não me achar muito diferente dos meus semelhantes. Gostaria de me dizer rico, bonito, talentoso e alvo de paixões abrasadoras (com lugar-comum e tudo) de mulheres altas, esguias e misteriosas. Elas não precisariam conhecer a conjugação de verbos defectivos. Talvez precisassem ensinar-me a beijar, uma atividade da qual tenho descurado, e a fazer outras coisinhas das quais confesso gostar, apesar de minha fama de nefelibata.

Baú

O Rei teme que algum pesquisador descubra sua beleza espiritual, tão bem oculta há tantas décadas, por modéstia, e os livros que lê quando não está entretendo seu público. O Rei só quer exibir seu belo rosto, que parece, como já sabemos, o de um serafim.

Sexo

Não mais o retinir de espadas, o fragor/ Encarniçado da batalha pela nau./ Agora, só um vento leve, sem calor,/E uma bandeira esfarrapada, a meio pau.

Paulo Vanzolini

A mídia, agora à tarde, resssaltou a perda sofrida pelo samba paulista com a morte de Paulo Vanzolini, citado como compositor e cantor. Vanzolini parece ter sido também zoólogo e pesquisador, mas, pelo noticiário, não fará falta em nenhuma dessas atividades. Einstein, se houvesse composto a valsa Danúbio Azul, não precisaria ter se esfalfado para criar sua Teoria da Relatividade.

Gente como a gente

O Rei gosta que falem dele, mas só as coisas boas. Às vezes se parece tanto conosco que até dá a impressão de ser nosso semelhante.

Beleza

Quem é mais belo? O rei Ricardo III ou o rei Roberto I?

Alguns reaizinhos por um cruzeiro

Qualquer súdita do Rei pode, se juntar alguns trocados durante o ano, fazer um cruzeiro com ele. Não é uma conquista dos novos tempos, é uma concessão de Sua Majestade. E Deus sabe como o Rei sofre por essa generosidade. Além dos enjoos causados pelo mar, suas vassalas sofrem de tosse, bronquite e rouquidão e, com seus ruídos pulmonares, deturpam as melhores passagens das canções. O proprietário da Ultrafarma, farmácia preferida dessas senhoras, prometeu ao Rei e a elas breve solução para isso. Quanto à surdez da maioria dessas súditas, é um fenômeno do qual o Rei não tem se queixado. Dizem seus inimigos que é uma bênção para ele, visto estar cantando cada vez pior.

Da decadência dos reis

Nos romances antigos, jovens idealistas e perturbados tramavam regicídios como forma de alcançar em um só ato o heroísmo e a glória. Hoje, eles teriam maiores possibilidades de escolha no catálogo, se bem que a qualidade dos artigos tenha se amesquinhado. Os reis atuais são tão despidos de majestade quanto seus súditos, e a maior parte deles precisa cantar para viver.

Um trecho de Scott Fitzgerald

"Olhei para Miss Baker e perguntei a mim mesmo o que seria que ela "conseguira fazer". Agradava-me olhá-la. Era uma moça esguia, de seios pequenos, porte ereto, que ela mais acentuva lançando os ombros para trás, como um jovem cadete. Seus olhos cinzentos, um tanto contraídos pela claridade, retribuíram-me o olhar com recíproca e cortês curiosidade, fitando-me do alto de um rosto pálido, insatisfeito, encantador. Ocorreu-me, então, que já a havia visto antes, ou um retrato dela, em algum lugar." (Do livro "O grande Gatsby", tradução de Brenno Silveira, publicado pela Editora Record.)

Ombudsman

Bom dia, Suzana Singer, ombudsman da Folha. Da Folha ou do Estadão? Desde ontem estou em dúvida. Espero que você, cara Suzana (se me permite usar o adjetivo), não perca o rumo hoje. A Caetano Álvares não é a Barão de Limeira, felizmente. Que você desfrute muitos mandatos mais. Lendo sua coluna de ontem, é fácil prever que eles estão ainda no começo. Ah, como é doce badalar sinos, como é prazeroso o som deles!

O vento...

... também hoje não me trouxe notícias tuas. Falou-me de flores que beijou ontem à noite no parque, contou-me a história possivelmente falsa de um passarinho, um beija-flor que há três dias não come por amar sem esperanças uma andorinha (há andorinhas, ainda, ou morreram todas com Carlos Gomes?). Já vou me habituando a isto. Será mais uma segunda-feira melancólica, que tossirá à tarde como uma menina tuberculosa. Sempre soube que a vida é triste. Eu me preparei para estas manhãs, para este olhar de sol frio em minha janela. Eu me preparei para tardes como a que virá logo mais e passará lenta, muito lenta, para que eu não deixe de ver nenhuma de suas feridas. Preparei-me também para a noite, que me dirá (e eu acreditarei) ter visto morto num barraco da Heliópolis um menino que sonhava tocar piano com João Carlos Martins. Eu me preparei para tudo isto - não só para a tristeza de não receber notícias tuas por tanto tempo, mas para a possibilidade de jamais vir a recebê-las, ainda que viva o bastante para exibir minha habilidade para andar de cadeira de rodas no parque, girando uma pequena manivela.

Cresce lentamente...

... em mim a flor da ternura. Demorará para se fazer e perfazer, mas vai crescendo em silêncio, pouco a pouco. Um dia estará pronta, simples em sua beleza, e talvez eu possa levá-la a você e dizer que é filha daquela outra ternura, exagerada e antiga, que eu confundi com outra flor, de outra espécie, e tão desajeitadamente lhe ofereci. Cresce em mim, lenta, lenta, essa flor com a qual eu um dia me escusarei diante de você. Cresce com delicadeza. Estará bela, espero, na tarde em que a puser em sua mão. Não direi que foi regada com minhas lágrimas, embora seja a mais absoluta de todas as verdades.

Mãos

Se um dia se reencontrarem, nossas mãos poderão bastar-se. Por pudor, receio, falta de oportunidade ou de jeito, nunca nós dois as fizemos percorrer nossos corpos, e o tempo de fazê-lo se foi. Nunca elas se aventuraram em nós e, não tendo trilhado os rumos que poderiam desviá-las de sua inconcebível pureza, elas se satisfarão em lembrar o que sentiram na manhã em que se conheceram, tão tolinhas que não pensavam em prazer nenhum além daquele de estarem se tocando, nos inefáveis momentos em que uma passava o açúcar à outra, ou o pãozinho de queijo, na cafeteria.

Sésamo

É um pecado dizer a alguém, principalmente a um jovem, que sésamo nada mais é senão gergelim. Descobri isso na idade madura e foi uma das grandes decepções de minha vida. Nunca mais o abre-te sésamo soou para mim com a antiga magia: abre-te milho, abre-te cevada, abre-te centeio, abre-te sésamo, abre-te porta amaldiçoada.

Sousa, Silva, Nascimento?

A multimilenar pergunta ontológica "quem sou eu?", presente em toda a nossa vida, no final dela se torna ainda mais constante. Só muda o nosso modo de procurar a resposta - não mais nos livros de filosofia, mas em nossos documentos de identidade.

Freud 100%

Freud tinha um método certeiro para descobrir a causa dos distúrbios psíquicos: tentava o pai, depois a mãe.

A melhor idade

Acordou tão agudamente triste que decidiu: vai ser hoje, não aguenta mais. Enquanto planeja como fará, toma café. Distrai-se por um momento, surge uma dúvida sobre quantos anos tem e ele pensa em que gaveta estará a identidade, para consultá-la depois e ver se são setenta e quatro, setenta e cinco ou oitenta e dois. Não vê pão nenhum na mesa. Não se lembra de tê-lo comido. As migalhas talvez sejam do pão de ontem. Levanta-se, passa-lhe pela cabeça que tinha resolvido fazer uma coisa importante agora de manhã e a caminho do banheiro tenta lembrar-se do que era.

Seda na garganta

O amor nos mata lentamente, não por pena de nós, mas para requinte do seu prazer. Cada um de nós é morto de uma forma. No meu caso, ele escolheu o estrangulamento. Todo dia aperta um pouco mais meu pescoço. Para não se contaminar com minha pele abjeta, usa luvas. Aperta-me, aperta-me e, quando imagino ter chegado meu último dia, ele para. Imploro-lhe pela morte, ele não me atende. Julga não ter me castigado ainda o suficiente. Suplicar que me mate é uma astúcia minha. Se pedir que me deixe viver, me matará. Ele não sabe, mas o único prazer que me resta é sentir suas mãos enluvadas em minha garganta.

De Ernest Hemingway, sobre Paris

"Se você teve a sorte de viver em Paris, quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa móvel." (Do livro "Paris é uma festa", tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)

domingo, 28 de abril de 2013

Hora de aproveitar...

... as ofertas do Habib's e curar nossos males da alma com esfirras. Pegar a oferta do dia, doze esfirras pelo preço de dez, e sentir por meia hora que talvez a vida ainda tenha remédio - e, se tiver, poderemos comprá-lo com um bom desconto na Ultrafarma ou no Conde. Ah, o prazer de derramar limão em cada esfirra, de mordê-la sem piedade, de fazer escorrer sua gordura em nossa camisa. Nada de esfirra de queijo. Gozemos os prazeres da carne, embora preferíssemos fazê-lo não exatamente desse jeito, mas como fizemos ontem, comendo a ninfômana Nádia Alesseieva. Esfirras, esfirras, nosso reino por vós!!! Ao Habib's, já, antes que comam tudo. E que no caminho não nos deixemos influenciar pelo mau conselho da poesia que, amante das belas palavras, certamente nos sugerirá que troquemos as esfirras por um prato Primavera ou Verão.

O amor é...

... importuno como aquela garota do telemarketing que liga todo dia às 14h, tenta vender cogumelos do sol, usa por meia hora todos os seus recursos e, depois de nossa recusa cada vez mais fundamentada, promete ligar amanhã, e liga. E nós atendemos.

O amor deveria...

... ser assim como um trabalho, só de segunda a sexta. Aos sábados e domingos, uma folga para as coisas boas da vida.

A ociosidade

... é a mãe de todos os vícios, e o amor é o seu filho mais famoso. Capinar é preciso.

As primaveras

Acredito ainda, se bem que cada vez menos, na ressurreição das primaveras, e com essa esperança acordo todas as manhãs. Estas mãos frias, que com esforço abrem a janela, não se lembram de ter sentido o afago de nenhum sol primaveril. Os olhos, envoltos já pela névoa do tempo, dizem recordar-se, mas não sinto convicção em suas palavras.

O rio

O amor é agora para ti como a memória de um rio. Olhas teu antebraço e quase acreditas que ele correu mesmo outrora por algumas das veias que apertas. Encostas a orelha nelas e, se é pouco o ruído na rua, tens a impressão de ouvir o movimento das águas ainda, e imaginas as margens, as árvores, os pássaros em cima, e o sol.

A ternura é...

... bem mais nobre que o amor. O amor é transitivo, o amor não se basta, o amor quer conquistar, dominar, possuir, reinar. O amor quer súditos, o amor anseia por vassalos. A ternura, não. Ela fica quieta, e é capaz de viver a vida toda em torno de um sofá, na casa de um poeta, dentro da cela de um presidiário que divide o pão com ratinhos ou no quarto com grades no qual vive uma mulher considerada insana pela família e que lembra, vinte anos depois, o nome de todos os que a internaram e reza por eles toda noite. A ternura se alimenta não de carne, como o amor, mas de essências leves, de perfumes, da brisa que traz o cheiro das maçãs, e, quando se manifesta, não ruge nem arreganha os dentes. A ternura, quando diz o nome do que ou de quem a enternece, diz baixinho, como se sua interlocutora fosse, e é, a alma. A ternura persiste depois que o amor rasgou todas as peles para nelas marcar suas iniciais.

O amor...

... não aprende nunca, não se emenda, não se corrige. Mal se refez de uma desilusão que ele prometeu a si mesmo ser a última e lá vai ele de novo, pronto para outra. O amor gosta de tocar campainhas, de contar histórias tristes e de pedinchar. Contenta-se com uma sobra do jantar, com uma empadinha que ontem caiu ao chão e ninguém quis comer. O amor agradece qualquer coisa que lhe deem. Vai com sua cesta velha, muito velha, que um dia deve ter tido uma cor, que já não se distingue. Lá vai ele, descendo a rua. O amor tem um jeito de Carlitos. O amor gosta de mulheres pálidas de rostos infantis, mulheres que, como ele, passaram fome na infância. O amor pede pouco, um beijo dado só com o bico, um beijo de passarinho. O amor é como Carlitos. Ninguém imagina Carlitos beijando Marilyn Monroe. Marilyn Monroe é para ser beijada por marinheiros. Carlitos beija uma garota desconhecida, pedinte como ele, que, para lhe mostrar como o ama, lhe oferece uma laranja que acabou de catar entre as sobras da feira. Ele e ela dividirão a laranja se alguém lhes emprestar uma faca, ou a descascarão com as unhas sujas, enquanto caminham para um horizonte ensolarado, sob uma dessas músicas, talvez "Smile", que fazem acreditar na vida e na sua beleza. Carlitos beija Paulette Godard e caminha com ela na direção do arco-íris que virá depois da chuva.

O corpo,

esse tolo, e o coração, seu mentor, enganam-se com facilidade. Não precisam nem de um sol como o de hoje para se acharem felizes. Um sorriso qualquer que recebam, um olhar, uma bobagem que lhes digam, e pronto, põem-se os dois a sacudir o rabinho de cachorros fraldiqueiros. E, se recebem tudo num dia - esse sol, esse sorriso, esse olhar, essa bobagem qualquer -, enlouquecem de felicidade. Logo querem lambiscar mãos, saltar ao colo, e mijam-se de alegria. Já a alma, não. Ela fica fria, digna, como deve ser uma alma. A alma é tão exigente que às vezes não se comove nem com um trecho de Mozart. Nosso trabalho, neste domingo, é dopar a alma, não deixá-la impor-se. Ao menos hoje, gozemos a estuporada alegria de ser fraldiqueiros. Ao ver nossa dona, mexamos nosso rabo como se fosse um limpador de para-brisa, deixemos nos dedos dela a emoção de nossa saliva, saltemos ao seu colo, mijemos nossa alegria sobre ela, inteirinha, ainda que seja só para ouvir suas reprimendas com aquela voz que recebeu aulas do mais puro veludo.

Que faremos...

... neste domingo? Luciano Huck, o bom moço, distribuiu tantas coisas ontem, e não ganhamos nenhuma ou, se ganhamos, não ficamos sabendo. Não vimos o programa. Ficamos embalando nossa tristeza à tarde, e nos agradou tanto embalá-la que à noite estávamos ainda olhando para o céu, queixando-nos à lua, sob o risco de morrer engasgados por uma estrela subitamente caída. Poderíamos ter recebido do filantrópico menino da Globo talvez quatro pneus para o nosso carro, e ele, apto novamente a circular, nos levaria quem sabe pelo menos até o quilômetro inicial do caminho da felicidade. Há de existir esse caminho, se tantos já disseram tê-lo percorrido. A nós já satisfaria ir até o meio dele. Mereceremos mais do que isso? Meio caminho bastaria. Meia esperança. Meia frase de simpatia. Meia-entrada para um cinema em que enfim um mestre da comédia nos ensinasse a dar meio sorriso.

Que bom te ver...

assim bem-disposto neste domingo, meu velho garoto. Saudável, gorducho, e com tantos cadernos, embora não haja escola hoje. Que bom ver que as pragas que te rogaram e o mau destino que traçaram para ti se desmancharam sob o sol deste dia 28. Que bom sentir em minhas mãos o teu peso, que bom ver que te transformas fisicamente e manténs a tua alma imortal. Podes continuar andando com orgulho pela Major Quedinho e pela Caetano Álvares, por onde bem quiseres. Bom sol para ti, hoje e sempre, meu garoto.

Malhação

Não anda mais pelo bairro. Não dá ao sol o prazer de sua companhia. Seu exercício é outro, agora. Passa os dias sentado ou deitado no sofá. Ou cochila ou dorme. Prepara-se para a sua mais longa jornada.

... e uma boa sopinha

Meu coração está frio, minha alma está fria, meu corpo está frio. O coração e a alma já não me importam. Para que me serviriam? Ficaram no meio do caminho as estrofes, os sonetos, os quartetos, os tercetos e os dísticos finais. Não tenho mais a ilusão da poesia. Resta-me o corpo, este velho barco que me dói em todas as latitudes e longitudes. Modestas são suas necessidades. Bastam-lhe um cobertor para estender sobre as pernas, à tarde, e uma sopa quentinha, à noite. É boa a vida, começo a acreditar nisso, agora que as as rimas são só um lixo que o caminhão já recolheu e atirou à composteira.

Finalidade

O único motivo para a existência da vida é o de ela ser uma das matérias-primas da arte.

Um poema de Lord Byron

"ESTROFES DE MÚSICA Não ha filha da Beleza/ Com mágica como a tua/ E, tal música nas águas,/ Tua voz em mim atua:/ Quando, com seu som vem motivar/ O encantado oceano a vacilar,/ As ondas pairam calmas e brilhando/ E os ventos em sossego divagando:/ E a lua à meia-noite elaborando/ Seu luzente colar sobre a descida;/ O seio docemente palpitando/ Como criança adormecida:/ Assim o espírito inclinado a ti/ A fim de ouvir e adorar a ti/ Com plena mas suave comoção,/ Como o inflar do oceano do Verão." (Do livro "Grandes poetas da língua inglesa do século XIX", tradução de José Lino Grünewald, publicado pela Editora Nova Fronteira.) Minhas desculpas por, problemas de configuração, irem os versos divididos assim com barras. Perdi também o itálico. Bem, são perdas menores, como um braço fraturado no corpo de um defunto. Bom dia a todos.

sábado, 27 de abril de 2013

Ler John Cheever

Ler "28 contos de John Cheever" é uma experiência inesquecível para quem ama a literatura. Para dizer pouco - e dizer tudo -, Cheever é considerado o Tchekhov americano. A edição, da Companhia das Letras, tem uma preciosa introdução de Mario Sergio Conti, que, tomando como base dados biográficos de Cheever, lança luz sobre textos que durante algum tempo causaram estranheza, por fugirem ao que era considerado seu padrão, não só pelos temas, mas pelos protagonistas. É um caso em que a citação de episódios da vida do autor não se faz por sensacionalismo, mas pelo que traz de esclarecimento para sua obra.

Com o defunto, no carro

Sonhou que dirigia um carro de defunto. Estava escuro, o cemitério era longínquo e ele se perdeu, fazendo com que se perdessem também os carros que o acompanhavam. Além da treva, formou-se uma cerração abrupta e, quando ele chegou ao cemitério, já havia nascido o dia. Ele abriu a porta para descarregar o morto. O sol bateu sobre os frisos dourados do caixão e, ouvindo um ruído vindo de dentro, ele abriu a tampa. Colocou a mão no rosto do morto, sobre a verruga acima do lábio superior. Depois, apalpou a própria. Também o bigodinho ruivo era igual.

Ele e seu rifle

Deus é o grande caçador. Nos cria com carinho de pai e nos ensina tudo, principalmente o instinto de sobrevivência. Não Lhe agradam presas fáceis. No dia em que nos solta na mata e empunha o rifle, sabe que faremos o melhor para que Ele realmente se divirta.

A beleza

A beleza, como tudo, nasce para a morte. Tenho no coração uma que, se eu conseguisse expressá-la, seria como um pássaro voando numa tarde de sol dourado e despencando morto, de repente, sobre um lago azul.

A bailarina

Faz dois anos que mora sozinho. Talvez um pouco menos, provavelmente bem mais. Estar só, sem jornal nem tevê, é abolir o tempo. Vive apenas no espaço, num apartamento de cinquenta metros quadrados, grande demais para ele. Passa os dias na sala, no sofá, e dorme também nele. Conversa com os objetos, principalmente os bibelôs. Estão cobertos de pó, desde que a mulher morreu. Fala muito com a bailarina espanhola, pergunta-lhe se o pé está melhor. Tem remorso, porque foi ele que o quebrou quando ela era jovem e poderia ainda pensar numa carreira. Fala também com o moinho e não consegue entender como Dom Quixote pôde indispor-se com criatura tão dócil. Se alguém entrar no apartamento, mesmo que só por uns instantes, dirá que ele é louco e que é urgente interná-lo. Certamente o trancarão se souberem que, quando bebe, põe a bailarina no colo e diz, entre lágrimas: "Te quiero mucho, sabes?"

Matarão

Hoje continuarão matando pessoas, porque essa é desde o início a principal vocação do homem na Terra. Para que consumir anos compondo uma sinfonia ou uma peça que será a definitiva? Beethoven e Cervantes, quem os conhece? Beethoven e Cervantes são itens de currículos, temas de cultura geral. A imortalidade é construída num dia. Descobrimos isso, finalmente. Mostremos as nádegas e logo estaremos com quinhentos mil acessos na rede. Digamos que comemos Dária Vassilieva e pularemos para seiscentos mil. Admitamos que Dária Vassileva nos comeu e chegaremos a setecentos mil. Ainda não sabemos o nome de quem está matando neste momento uma grávida, uma dentista ou uma garotinha de seis anos porque ela está surpreendentemente desenvolvida para a idade. Hoje à tarde saberemos seu nome inteiro, com todos os Sousas e Silvas, e diremos "que coisa, você viu o que fez esse cara?". E nos dirão: "Claro, em que mundo você pensa que eu vivo?" E o que fizemos nós, e o que faremos? Nenhum de nós estará nos smartphones, entrando numa loja de conveniência, com nossa imagem reproduzida oitocentas mil vezes em cinco minutos. Continuar a sinfonia, retomar o romance? Ah, comamos Nádia Vassilieva. Ah, deixemo-nos comer por Nádia Vassilieva. Não nos esqueçamos de registrar tudo e arquivar. Nossos netos gostarão de, daqui a dez anos, mostrar aos amiguinhos como era o tempo em que nos contentávamos com seiscentos ou setecentos mil acessos.

O amor

O amor - esse de juras, arrufos, bravatas de suicídio e reconciliações - é o melhor modo de duas pessoas se destruírem, ao menos para o mundo. Apesar de tudo que lhe atribuem, do afeto cantado e decantado, das estrofes maravilhosas, o amor, tenhamos a coragem de reconhecer, é mesquinho e destrutivo. Duas pessoas unidas por essa obsessão não têm olhos para mais nada e para mais ninguém. Tsunamis, danceterias incendiadas, refugiados matando-se por um pãozinho, tudo passa diante de nós como se fosse um filme em que morressem só robôs. Quantos desgraçados morreram nos últimos anos sem que eu sequer olhasse para seus rostos cheios de pavor no jornal ou na tevê. O amor - esse que exige posse, exclusividade e vigilância contínua, esse que dói sem cessar no peito e na alma - é um vício, uma droga, uma danação. Mas é esse o único que vale. Se duvidam, perguntem à nossa carne flagelada, e ela mostrará cada marca como uma bem-aventurada conquista.

Um trecho de Diogo Mainardi

"Eu soubera que minha mulher estava grávida exatamente um ano antes. Tratei do assunto em 23 de fevereiro de 2000, em minha coluna na revista 'Veja'. Comecei dizendo que, até aquele momento, a recusa da paternidade fora uma das raras certezas que eu jamais questionara em minha vida. Em seguida, comentei que meu desejo - reproduzo palavra por palavra - era ter um 'filho tartaruga: toda vez que ele se agitasse demais, bastaria revirá-lo de barriga para cima, e ele permaneceria parado, silencioso, sacudindo os bracinhos'. Eu tive meu filho tartaruga."

De Katherine Mansfield sobre o ódio

"Está um dia lúgubre aqui, com nuvens selvagens esfarrapadas, e um miserável vento paralisador. Estou com meu casaco preto - não totalmente por causa do dia. Cristo! Odiar como eu odeio. O ódio me domina. Você não sabe o que é ódio, porque sei que você nunca odiou ninguém - não da mesma forma que amou. É o que faço. Meu mortal, mortal inimigo arrebatou-me hoje, e sou simplesmente uma força cega de ódio. Odiar é uma outra paixão. Tem todos os efeitos opostos do amor. O ódio abarrota as pessoas com morte e corrupção, e as faz sentirem-se repelentes, degradadas e velhas, e as faz desejar DESTRUIR. Tal como um é luz, o outro é a escuridão. Eu odeio desse modo: um milhão de vezes multipicado. É como estar sob uma maldição." (Do livro "Diário & cartas", tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

As tormentas do amor

As tormentas do amor o afligiram a noite inteira, em pesadelos sinistramente iluminados pelos relâmpagos e sacudidos pelos estouros aterradores dos trovões. Acorda e por um instante julga que se afogou. Quando se vê salvo em sua cama, tenta voltar para o sono e o pesadelo marítimo, mas o despertador do celular o traz para a realidade de mais um dia no escritório. Vai para lá, cumprir seu medíocre destino. Às duas horas, depois do almoço, ainda com a aventura e o quase sucesso da madrugada na memória, debruça-se no janelão aberto do terceiro andar e, vendo as pessoas que andam na rua, sente que ou se atira neste momento ou daqui a vinte anos estará no mesmo janelão aberto, fitando melancolicamente a calçada lá embaixo, míope demais para distinguir o lugar que ele define agora como um possível alvo para o seu voo.

Dormir...

... com a morte no peito, com gelo na alma e desesperança no coração, não será isso apenas presunção de quem, jamais tendo sido sequer notado pelo amor, joga sobre ele a pecha de ingrato? Mas dormir com a morte no peito, com gelo na alma e com desesperança no coração, se não for por amor, é muito triste, meu Deus. Conceda-nos ao menos isso, a presunção do amor. Deixe-nos dormir esta noite com essa presunção, por mais falsa que seja. E mate-nos amanhã, já não importará.

Toda vez que...

... ele se abre, toda vez que ele se expõe, toda vez que puxa a alma lá de dentro e a exibe como um açougueiro mostrando à freguesa o melhor frango para o almoço de domingo, toda vez que se dilacera e se pica em mil pedaços, sente depois um cansaço enorme, mortal. Como é mais fácil mentir... Mentir requer só um sorriso e algumas palavras dessas que estão sempre nos lábios, para o gasto do dia a dia. Para extrair palavras do coração é necessário usar as mãos para trazê-las aos lábios, o que às vezes as faz vir com um pouco de sangue, e sangue é sempre considerado de mau gosto. Abrir a alma e o coração constituem uma imperdoável gafe e um desperdício de força. Ele está cansado, ele não suporta mais.

Um dia...

... pode ser que nos respondam. Nesse dia, não acreditaremos. Nascemos para lançar interrogações, nascemos para não ser ouvidos, criamos essa imagem para o mundo, e o mundo, gentil, não quer desfazer essa imagem. Seria bom ouvir um boa-noite, ainda que fosse uma vez só. Mas quem nos der esse boa-noite precisará estar preparado. Nós abraçaremos essa abençoada pessoa, molharemos de lágrimas seu ombro e a seguiremos como um cachorro, ainda que nos leve direto para uma indústria de fazer sabão.

Talvez seja...

... hora de calar. Que diabo pretendemos nós? Cada palavra nossa soa ridícula, cada gesto nosso provoca risos abafados, de piedade. Todo dia chegamos à beira do palco para declamar um drama e ninguém nos avisa que nos esquecemos de pôr a calça. Choramos todo o tempo e, verdade se diga, no final nos aplaudem de pé, e choram também, mas de rir. Quando nos curvamos para agradecer, o público, depois de um minuto de palmas calorosas, pede que nos viremos de costas e nos concede mais um minuto de palmas, tão calorosas quanto as anteriores. Nossa frente e nosso verso, murchos e desgraciosos, quem diria, são um sucesso. Quem há de querer ouvir nossa alma?

Será um...

... belo sábado. A meteorologia garante, a astrologia assegura e não há nada que negue. Devemos acordar cedo, para aproveitar. Deus, como é maravilhoso o mundo, o que fizemos nós para merecer tanta felicidade?

De manhã...

... o sol se recusará a entrar em nosso quarto. Na cama estarão flores que nossas mãos, no pesadelo, terão roubado de túmulos.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

De madrugada...

... um desses meninos que moram embaixo de um dos viadutos da cidade acordará e verá confirmada sua pior suspeita: o pai e a mãe terão fugido dele. Levarão só os dois irmãos menores que, por terem um rosto mais sofrido, conseguem esmolas melhores. Ele é desajeitado, meio metido a besta, tem vergonha de ser pobre, e começará a pagar hoje por sua presunção. De madrugada, uma garrafa de cachaça será dividida por três homens que serão mortos logo depois com trinta e tantos tiros e à noite deixarão em dúvida o foquinha na redação: três homens mortos são uma chacina? De madrugada, uma estrela parecerá cair lentamente e por um momento uma senhora insone pensará ser um sinal de que enfim haverá redenção para a humanidade. De madrugada uma menina puxará para a cama sua cachorra doente e, dormindo no meio de uma oração, terá um pesadelo horrível. De madrugada um homem chamará por Deus e um homem chamará pelo Amor, e seus apelos serão negados. De madrugada, num quarto humilde, um menino de cinco anos chorará, mas o pai e a mãe berrarão com ele, mandando-o parar, porque a madrugada de sábado é a única em que o trabalho dele como vigia e o dela como enfermeira permite que se entreguem ao sexo. Os dois gerarão esta madrugada uma menina estranha que aos dez anos será considerada santa por uns e abobada por outros.

Digo boa noite...

... a quem talvez possa estar me ouvindo. Pode ser que haja alguém me ouvindo agora e talvez seja a pessoa, entre todas as outras, a quem me agradaria especialmente dizer boa noite. Talvez ela o esteja ouvindo agora, talvez ela possa guardar essas oito letras como algo muito simples, mas que vai com uma dessas ternuras que o coração e a alma se empenham em tornar únicas.

É mais difícil,

para as palavras, encontrar seu destino à noite. Estão cansadas, já, e são distraídas e desencaminhadas pelos luminosos da cidade. Tantas coisas importantes, tantos produtos, toda a grandiosidade do mundo: automóveis, companhias aéreas, redes mundiais de lanchonetes. Pobres palavras, nascidas em outros tempos e habituadas ao pergaminho, ao papel, aos cadernos. Palavras ternas, de amor, que maluco as solta assim na noite, ao vento? Não ocorre a esse doido que há e-mails, que há celulares? Que torturado fantasma de poeta há de estar confiando suas palavras ao acaso? De que século virão essas palavras que caminham cegas pela noite, que tropeçam em estrelas e se acham representantes do amor? Que Deus as guie, que elas cheguem ao coração da amada certa, aquela única que é dona de nós e de nossa vida.

Se tivesse...

... vergonha na cara, um pouquinho que fosse, não estaria agora teclando estas coisas aqui. Teria ficado no sofá, com a cortina fechada, escondido como deve ficar um homem como ele, tão desfibrado. Se tivesse vergonha na cara, teria resistido mais um dia, pelo menos, e não estaria de novo entregue a este exercício de se expor como uma donzela de convento, suspirando estrofezinhas de amor. Se tivesse vergonha na cara, um pingo que fosse, teria sumido da rua, do bairro, da cidade, do país, do mundo. Se tivesse vergonha na cara, o mar já o teria engolido, e ele estaria livre deste suplício de bater no peito diariamente e proclamar-se culpado, culpado, culpado. Há tanto tempo já faz isso que quase nem sabe mais, exatamente, do que se acusa. Espera que o sentenciem, afinal, ou que lhe digam que foi um engano, ou, então, que seu crime prescreveu. Deve ter feito algo terrível, só pode ser. Olha para as mãos, para o rosto, e gostaria de ver neles a marca mais infamante que possa ter estado nas mãos e no rosto de um homem, desde Caim. O seu tormento é não lhe dizerem o que ele fez, afinal. Morrerá condenado pelo silêncio, esse silêncio que o assombra nas madrugadas às quais Deus, sem piedade, o submete. Espera o dedo no rosto, espera o veredicto, espera a zombaria satisfeita dos que tudo julgam no mundo, não para defender-se, porque não tem mais forças para isso, mas para gozar o mérito que há de caber a cada pecador.

Volta sempre, humilhado

Volta sempre, humilhado, aos ideais renegados, aos hábitos antigos, ao amor amaldiçoado. Volta sempre, e o seu rosto já nem precisa de maquiagem. É um bufão, um palhaço reles, um atirador de farinha que no fim do teatrinho sempre está com o rosto mais enfarinhado que o do rival. Sente-se repulsivo, gostaria de vomitar na pia, olhando-se no espelho. E no entanto volta, e volta, e volta. Jamais teve um trunfo, jamais teve uma possibilidade, jamais teve um curinga na mão, jamais teve uma chance. Foi sempre assim, medíocre, e, nas vezes em que resolveu se apresentar melhor do que é, recebeu aplausos ainda maiores. Um palhaço de fraque, haverá melhor número para as plateias de bairro? Existirá melhor alvo para os ovos e os tomates que aliviam os espectadores e compensam os quinze reais do ingresso? Não tem mais esperança de nada. O leão parece mais velho que ele e não o devoraria nem se Deus estivesse num daqueles dias em que barateia a compaixão como se fossem batatas em oferta no supermercado. Ele está sempre de volta. Nunca ninguém o levará a sério. Se um dia meter um balaço no ouvido, rirão como nunca: "Ah, como ele é desajeitado, veja só. Que tirinho mixo, de espoleta molhada. E aquela massa de tomate ali! Nem escorre direito!" Ele voltou. Aos sábados e domingos o público é maior e é preciso dar alegria a quem trabalhou a semana inteira.

Sente-se perseguido...

... pelo amarelo que matou Van Gogh. Não abre mais as janelas, de manhã. Só sai de casa se vê o sol ofuscado por nuvens. Mas, mesmo assim, sente o olho diabólico segui-lo. Volta rápido para casa, entra a tempo de salvar-se. Liga o micro e, assim como de manhã, é logo atingido em cheio pelo amarelo assassino do msn. Será morto por ele, já sabe, por esse amarelo sinistro no qual se escondem pássaros negros. Ele os pressente, ouve o ruflar das asas, o palpitar dos bicos. Será triturado pelo amarelo, devorado por ele, e só então terá paz. Dizem que enlouqueceu. E que mais poderia fazer, dia e noite perseguido por esse amarelo? Pode alguém suportar tantos anos, tantos, ah, tantos, perseguido por esse amarelo que mesmo agora, à noite, enfia os dedos nas frestas da janela de alumínio? Ele entrará, ele acabará entrando, esse amarelo, esse maldito amarelo, esse bendito amarelo, esse abençoado amarelo que o libertará.

Sorriu de tantos

Sorriu de tantos, e amanhã será dele que sorrirão o atendente da farmácia e os que estiverem próximos. Será ele quem, olhando para baixo, pedirá, como quem confessa um crime guardado por cinquenta anos, "uma daquelas pílulas". O atendente repetirá em voz alta o nome do comprimido, especificará os tipos de embalagem disponíveis, os preços, falará sobre a eficácia dos genéricos, explicará que funcionam mesmo (dando ênfase à palavra "funcionam") e, como se oferecesse balinhas contra a tosse, perguntará: "Quantas caixas?" Ele dirá que uma só, aparentando desdém, como se na verdade não precisasse de nenhuma, e, acompanhado pelo olhar estupefato da vovó que ao lado dele comprava um xarope para o neto, irá pagar. Ouvirá atrás de si um burburinho maligno e, quando estender o cesto com a caixa de pílulas, a menina novata repetirá o nome do produto à moça do lado, para conferir o preço e o desconto, e ele sairá com a embalagem, curvado como nunca esteve, andando com a consciência de não merecer o glorioso sol vespertino sob o qual, no ponto de ônibus, um rapazola de dezesseis anos estará enfiando a língua na boca de uma garota de treze.

A pequena glândula

Extraíram-lhe uma glândula de pronúncia proparoxítona e quando, cinco dias depois, ele saiu do hospital, não sentiu falta nenhuma dela, exatamente como lhe tinham dito os médicos. Seu corpo continuava o mesmo, tudo no lugar, respirando e caminhando. Apenas o braço doía um pouco, onde ficara enganchado o soro, e sentia um pequeno incômodo na pelve, causado pelos esparadrapos do curativo. Somente algumas semanas depois ele teve a dolorosa revelação de que pequenas coisas às vezes podem ser tudo. E passou a baixar os olhos quando por ele passavam mulheres, especialmente as belas. Hoje, no shopping, ao subir a escada rolante, viu na escada oposta uma mulher esguia, com um cinto largo que ressaltava seus seios e suas nádegas. Ela sorriu, um sorriso inequivocamente dirigido a ele, e isso o obrigou a parar quando chegou ao piso superior. Não enxergava mais nada. Lágrimas desciam-lhe pelo rosto. Sentou-se num banquinho e ali ficou até a crise de choro passar. Quando recuperou a visão, notou que estava diante de uma vitrine de moda íntima feminina. Manequins exibiam sutiãs e calcinhas. Desviou rapidamente os olhos, levantou-se, pegou a escada rolante para descer, chegou ao saguão, saiu. Felizmente a noite havia chegado. Não havia ninguém por perto, na rua. Ele então encostou a testa no muro de uma casa e, descobrindo ter lágrimas ainda, chorou e soluçou como só podem chorar e soluçar homens que de uma hora para outra se sentem trapaceiros quando, ao preencher uma ficha, depois do pontilhado que se segue à palavra gênero escrevem a palavra masculino.

As duas

Vi hoje à tarde numa lanchonete um casal feminino: uma loira espigada, de braços finíssimos e olhos encovados, e uma japonesinha bem mais jovem. Esta, enquanto não vinha seu sanduíche, beijava o braço da loira, a blusa, na parte que cobria o ombro, e, pondo-se na ponta dos pés, subia para o pescoço, e ia para a boca. A loira não retribuía. Olhava para a namorada com desconfiança, e eu imaginei que talvez a cena fosse uma repetição, com algum detalhe suprimido ou acrescentado, de muitas outras. A japonesinha parecia desculpar-se. Quando chegou seu sanduíche, ela se esqueceu do braço da companheira, do ombro, do pescoço e da boca, e seus lábios procuraram vorazmente o queijo quente no meio do pão. A loira olhava para ela, para o sanduíche, e eu adivinhei fome nos seus olhos e pouco dinheiro na calça jeans. Pedi a conta. Não vi, mas aposto que a loira pagou o sanduíche. Nos seus braços finos li, além de noites de insano amor, toda uma história de privações, de dinheiro contado para oferecer agradinhos a amantes que, como a de hoje provavelmente fará, acabam por deixá-la sozinha. Já na porta da lanchonete, saindo para a Cursino, voltei-me e tive a última visão das duas: a que comia com avidez o sanduíche e a que melancolicamente imaginava quantas vezes veria ainda aquela boca amada e quantas vezes ainda a sentiria na pele, aquela boca que puxava com a língua o fio de queijo quente.

O impossível calor

Magnífica juventude, procuro-te ainda em mim, nestes dias em que, encolhido no sofá, minhas mãos, ansiando pelo calor que tiveram de outras mãos, se tocam, se tateiam, se investigam. Uma acusa a outra de haver-te furtado e de estar contigo, mas é sempre inútil o tocar, o tatear e o investigar. Não estás em nenhuma delas. Já disse às duas que, se te quiserem de volta, devem buscar-te entre as garotas que te levam nos cabelos ensolarados e entre os rapazes cujo sangue incendeias. Que procurem esse calor, mas sem o ímpeto antigo e sem a cantilena do amor. Que se estendam com as palmas para cima e recolham o que a compaixão lhes quiser dar. Se nem isso conseguirem, ao menos um par de luvas hei de ter guardado em alguma gaveta, talvez naquela em que estão fotos de alguém que presumivelmente deveria parecer-se comigo e um boné que não posso ver sem chorar. Que uma calce a outra e que, como duas velhas amigas, se aqueçam. Pena não haver luvas para o coração.

Um trecho de John Cheever

"Ele não compreende o que o separa daqueles adolescentes no jardim vizinho. Foi jovem também. Foi um herói. Foi adorado, feliz e cheio de vigor animal, mas agora lá está, numa cozinha às escuras, privado de sua destreza atlética, de sua impetuosidade, de suas feições bonitas - de tudo que significa alguma coisa para ele. Tem a impressão de que as pessoas no outro quintal são fantasmas de alguma festa naquele passado onde ficaram todas as suas afeições e desejos, uma festa da qual ele foi cruelmente excluído. Sente-se como um espectro da noite de verão. A sensação de perda dói em sua alma." (Do livro "28 contos de John Cheever", tradução de Jorio Dauster, publicado pela Companhia das Letras.)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Boa noite

Cansaço, tanto...

... cansaço. Tantas palavras já saíram de nossa garganta hoje, e o sino de nossa alma, numa hora como esta, 20h51, resume com suas badaladas o que elas conseguiram: nada, nada, nada. Por que continuar falando? Melhor sair e ir a um parque. Se a Judas, o maldito, não faltou um piedoso galho de árvore, por que a nós faltará?

E novamente...

... nos cabe dormir sem que tenhamos colhido um fruto. Todos os dias, bem cedo, já estamos, bem visíveis, diante do vasto pomar. O dono nos vê, tanto que nos sorri sempre, e achamos que terá afinal chegado a hora. No entanto, o sol vem, percorre o seu caminho e se vai embora, sem que levemos no bolso um fruto sequer. Nossa boca já esqueceu o sabor de todas as cascas e de todas as polpas. Voltamos para casa jurando-nos que jamais iremos ao pomar. Mas no dia seguinte, talvez para que o dono tenha do que sorrir, lá estamos outra vez. Já não sabemos, olhando as árvores, quais são os frutos que cada uma dá. Nem salivamos mais ao contemplá-las. Nossa impressão é a de que cumprimos um castigo pelo que fizemos numa vida anterior. Talvez tenhamos sido donos de pomares e tenhamos sorrido para os que, de fora, admiravam nossas árvores e nossos frutos.

Toda vez que...

... mostramos nosso desalento e nossa vontade de desistir, o Amor enche de leite nossa tigelinha, nos arranja um bom pedaço de carne e nos diz: "Vocês precisam ter calma. Eu sou eterno, sabem? Há muito tempo, ainda, todo o tempo." E, sorrindo, olha para a nossa pelagem descolorida, para os nossos olhos esgazeados, para os nossos dentes amarelos.

Tantas vezes fomos à casa do Amor...

... que o anão do jardim gargalha quando vê que nos aproximamos, dispensando-nos de bater à porta. Antes que cheguemos à campainha, o Amor grita de sua mais alta janela, como se fôssemos um fornecedor indesejado: "Hoje não."

Em algum lugar...

... desta cidade o amor talvez esteja, num café do centro, na floricultura do Arouche ou numa livraria da Vila Madalena. Adianta procurá-lo? Melhor ficarmos aqui, batendo estas teclas e pensando nele, não como deve estar agora, mas como foi. Foi belo. Tão belo que por um breve, brevíssimo tempo, imaginamos que ele pudesse ser cantado por nós. Não pôde. Não pudemos. Era muito para nós. Tivemos dele uma visão rápida. Ele não nos deu tempo de vê-lo inteiro, tão grande, tão imensamente belo ele era. Não podemos nem dizer que ele parecia uma ave branca, muito branca. Não podemos dizer que ele era um som fino como o da pavana de Ravel. Nossos olhos não eram dignos de contemplá-lo em sua inteireza, nossos ouvidos não mereceram ouvi-lo como gostaríamos. Foi melhor assim. O que diríamos dele que fosse capaz, mesmo, de representá-lo? Dissemos alguma coisa, muitas coisas, o máximo que nossos despreparados sentimentos conseguiram. Fomos um rabisco de pichador, quando desejávamos ser um traço de mestre, fomos um tambor de bateria de colégio castigando uma marcha militar, quando deveríamos ser um acorde de violino. Podemos dizer que o conhecemos, e que conhecê-lo foi o maravilhado espanto de nossa vida. Mas às vezes duvidamos. Podemos tê-lo mesmo visto? Epifanias não são para homens comuns. Terá sido um sonho nosso, nada mais. Mas podemos nós ter sonhado aquilo? O amor que pensamos ter visto apareceu por acaso para nós e nos condenou a reverenciar até nosso último dia um deus cujas graças jamais receberemos.

Dois parágrafos de Katherine Mansfield

"Sábado. Te amo tanto. Te amo tanto. O vento uiva e as venezianas estremecem, e este velho hotel abandonado parece situado em uma ilha longe, muito longe. Mas eu te amo muito, eu te amo muito, eu te amo muito. Sou absolutamente tua para sempre. Meu tesouro, por favor, não me mande nunca sequer um centavo de dinheiro extra. Isso é a exata verdade. Economize. Guarde-o. Para o futuro. Nós vamos precisar ter os bolsos cheios. Vou poupar tudo que puder e fazer economias tanto quanto puder. Confie em mim." (Do livro "Diário & cartas", tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.) Qualquer comentário meu sobre Katherine Mansfield não poderia ser senão uma heresia. Este, portanto, é isso, uma heresia, mas não resisti ao impulso de falar do maravilhoso ritmo do parágrafo inicial, em que as declarações de amor seguem o cadenciado ruído das venezianas que batem e voltam a bater, batem e voltam a bater.

Os dois parágrafos iniciais de "Triângulo sensual", de Vladimir Nabokov

"Era uma vez um homem chamado Albinus, que vivia em Berlim, Alemanha. Era rico, respeitável, feliz. Um dia abandonou a esposa por uma amante jovem. Amava; não era amado - e sua vida terminou em desastre. Eis aí toda a história, e bem poderíamos abandoná-la neste ponto, se não houvesse vantagem e prazer em contá-la. Embora haja espaço mais do que suficiente numa pedra tumular para conter, encadernada em musgo, a versão resumida da vida de um homem, os pormenores são sempre bem recebidos." (Tradução de Breno Silveira, publicado pela Hemus - Livraria Editora Ltda.)

Tão fácil é, hoje,

... o amor! Mandar um e-mail e receber a resposta - ou receber um e-mail e responder... Tudo simples, sem a linguagem dramática das cartas antigas, sem a escolha de palavras, sem o começar, desistir e recomeçar de outrora, sem o riscar frenético, sem o rasgar implacável de versões trabalhadas e retrabalhadas durante as madrugadas que para o amor e suas desgraças se mostravam afavelmente mais longas. Tirar daqui um advérbio, por parecer exagerado, ler, reler cada trecho, e acabar repondo não aquele, mas um advérbio ainda mais apaixonado. Amada, minha amada, querida, meu mundo, meu ser, minha vida. E ficar assim, expondo o coração com a caneta arranhando o papel até o sol chegar e não se ter ainda, depois de horas, uma versão satisfatória. Era assim. Mesmo o início - amada, minha amada, querida, meu mundo, meu ser, minha vida - não estava definido nunca, e a carta acabava seguindo com a versão que, depois de enviada, se revelava, na leitura do rascunho, a mais fraca de todas ao coração aflito. Eram páginas e páginas que, no fundo, queriam dizer apenas o que estava na primeira linha: amada, minha amada, querida, meu mundo, meu ser, minha vida. Tão fácil é, hoje, prender-se na teia, tão fácil é safar-se: duas palavrinhas ou três, às vezes cruelmente abreviadas: tô nessa (na melhor das hipóteses), ou fui (na mais triste). Simples assim. O coração segue as regras da modernidade.

Um trecho de Gérard de Nerval

"Certo dia chegou na cidade uma mulher muito célebre que fez amizade comigo; habituada a agradar e a deslumbrar, incluiu-me de bom grado no círculo de seus admiradores. Após um sarau em que ela se mostrou muito natural e cheia de um encanto que contagiou a todos, fiquei a tal ponto apaixonado que não esperei sequer um instante para lhe escrever. Como eu estava feliz por sentir meu coração pronto de novo para o amor!... Empreguei nesse falso entusiasmo as mesmas fórmulas que tão pouco tempo atrás me serviram para exprimir um amor verdadeiro e longamente sofrido. Despachada a carta, quisera tê-la retido, e fui sonhar na solitude com o que me parecia ser uma profanação de minhas lembranças." (Do livro "Aurélia", tradução de Luís Augusto Contador Borges, publicado pela Iluminuras.)

Orgulho

Não quer mais nada, nunca, de ninguém. É o que o seu orgulho quer que ele diga. Na verdade, aceitaria qualquer farelinho, qualquer migalha. É um passarinho com frio e com fome, que se obstina em se mostrar orgulhoso como um falcão.

Os poemas concretos

Os poemas concretos não foram muito longe. A poesia guarda ainda um tanto de declamatório, e o concretismo, abolindo o caráter discursivo dos poemas, passou batido. Gostaria de escrever um, hoje. Ele teria duas palavras só, que se distribuiriam de um jeito que infelizmente não consigo fazer aqui, porque meu programa de blog está como estou eu: completamente fodido. As palavras seriam "vida" e "inútil" e se repetiriam à exaustão, ocupando toda esta página, todo este blog, todo este micro, como um vírus irrevogável e fatal. Isso é a vida, não se iludam: inútil, inútil, inútil, com pausas milimétricas nas quais brilham Shakespeare e mais uma centena de homens e mulheres que em milênios constituem a exceção. Depois de ocuparem todo o espaço que conseguissem, "vida" e "inútil" dariam espaço à única palavra que tem verdadeiramente valor: a santa, a abençoada, a magnífica, a bela, a maravilhosa e eterna "morte". Boa tarde.

Kama Sutra - CLXXXV

Condenado, gostaria de morrer tendo sob o seu um corpo que, desconhecendo seu iminente destino, se agitasse em espasmos de satisfeita luxúria. Ou então um corpo que, por saber próximo o seu fim, decidisse mexer-se com uma luxúria ainda mais acesa, para apressar sua morte e transformá-la num supremo e definitivo momento de êxtase.

Kama Sutra - CLXXXIV

Ele faz o dedo médio descer até a braguilha e aperta o local que lhe proporcionou os mais exaltados prazeres da vida. Sente apenas o tecido e a frieza do zíper. Aperta ali de novo, tentando evocar episódios nos quais o ponto, agora tocado em vão, ardia como uma fogueira. Tenta ainda pela terceira vez e - como disse ontem e dirá amanhã - sussurra: quem sabe amanhã.

Inúteis geografias

Quando eu estiver morto, não saberei qual é a capital da Índia ou o rio de Nova York. Repousarei como dizem que os mortos repousam e, se estiveres na Malásia, meu coração não ficará ferido de morte, porque não saberá que o rapazola que leva tuas malas para cima, no hotel de Kuala Lumpur, te dá um sorriso que retribuis talvez com um tantinho de exagero e intenção.

Licença

Eu sou aquele a quem o amor, por deferência ou castigo, permitiu morrer várias vezes.

Shakespeare

Agora à tarde, ouvi citarem Shakespeare. Era um programa da Globo News, e o nome me causou uma impressão tão funda e bela que por alguns momentos me esqueci de certos projetos. A vida não pode ser o horror inútil que eu imagino, se Shakespeare viveu.

A mulher e a revista

Lembrei-me, agora há pouco, de uma história contada por um amigo de adolescência. Era sua primeira experiência sexual e ele, apavorado e sem noção do que deveria fazer, agitava-se, suava, esbaforia-se, estrebuchava em cima de uma puta imensa que, lendo uma revista de fotonovelas, lhe perguntava, de minuto a minuto: "Acabou, bem?" Eu fui o garoto asssustado e inábil que teve a vida deitada na cama, de pernas abertas, e ela me fez também, dia a dia, a mesma pergunta: "Acabou, bem?"

Faz muito tempo...

... que eu disse minhas últimas palavras bonitas. Foi para uma garota de olhos claros, que eu chamava de guria. Quando ela se foi, foram embora todas as palavras belas e também todos os sentimentos puros que eu tinha. Não posso nem chamá-la mais. Cada vez que digo guria, meus olhos choram tanto que começa a se formar em minha sala um rio como aquele que ameaçou afogar Alice. Quando eu imploro que ele me afogue, ele imediatamente seca, e secam também minhas lágrimas, mesmo que eu continue a dizer guria, guria, guria.

Borges

Borges tem uma frase admirável sobre a velhice. Diz que ela pode ser o nosso tempo de felicidade, porque o animal já está morto, ou quase, e restam o homem e sua alma. Não sei. O animal que há em mim parece ter devorado o homem e a alma e cada dia está mais vivo, inconveniente e desprezível.

Se ao menos...

... fosse de pão nossa fome, poderíamos saciá-la, e não precisaríamos andar à noite pelas vielas marcadas pelo mijo torto dos bêbados. Se ao menos fosse de pão nossa fome, poderíamos comê-lo, ainda que duro, com nossos dentes moles e nossa persistente saliva. Se ao menos fosse de pão nossa fome, agradeceríamos a Deus por nos dá-la e por nos dar o pão para matá-la. Se fosse de pão nossa fome, poderíamos comê-lo em nosso sofá ou levá-lo para nossa cama à noite, com o gato e o jornal. Devemos agradecer a Deus esta fome extemporânea que nos avilta a alma e nos arrasta para ruas A e D de esquecidas periferias, às quais nem Márcio Canuto chega? Devemos agradecer a Deus por nos dar ainda esta fome que nos leva tão longe, para os fundos de casas das quais saímos sem dinheiro e com um agradinho, uma coceguinha que dizem ser tudo que nos podem dar, porque não é bem fome o que achamos ter?

Temos ainda...

... algum tempo para completar nossa humilhação. Nos postaremos ainda algumas noites perto daqueles prédios da João Mendes e da Liberdade, mesmo que seja só para aspirar o salgado perfume do sexo. Ficaremos observando de longe o movimento e imaginaremos o que estará fazendo aquele garoto meio tímido que entrou com a puta velha - ou o que a puta velha estará fazendo com ele. Joãozinho e a bruxa. Torceremos ou não, de acordo com nosso estado de espírito, tão variável, para que o sessentão dê no couro e saia, ou não, assobiando uma valsinha do Chico. Se alguma das mulheres, mesmo que seja a loira peituda, olhar para nós, nos afastaremos dois passos, e depois nos lamentaremos: que humilhação é essa, que teme se humilhar? Permaneceremos uma hora ou uma hora e meia ali. Quando as lágrimas ameaçarem aflorar aos olhos, iremos embora, a tempo de pegar ainda o último ônibus. Tudo para nós, agora, é último ou já foi.

Ainda perdemos...

... nosso tempo com o amor, essa perversa droga com que o Diabo nos viciou para afastar-nos dos bons costumes e da missa. Saímos já tantas vezes mutilados das guerras de amor, saímos já tantas vezes vencidos e ridicularizados, que só nossa loucura justifica nossa insistência. Insistimos. Vamos noite após noite às esquinas que nos indicaram, imploramos, mostramos nosso dinheiro e recebemos não o comprimido nem a erva, mas uma gargalhada: "Vai procurar tua turma, coroa!" Algumas das gaiatas passadoras repetem a centenária piada e perguntam se em nosso tempo aquilo se escrevia mesmo com "ph". Outras nos dizem que, chupar por chupar, por que não tentamos balinhas de hortelã? E nos afundamos na noite, em busca de alguém que, por caridade, nos passe furtivamente o amor embrulhado num papelucho. Nada, ninguém. Quando voltamos para o nosso prédio arruinado, para o nosso quarto apodrecido e para a nossa foto de Greta Garbo, vemos, ao tirar com dificuldade nossos sapatos, que neles ficaram as marcas amarronzadas e pestilentas de um desses cachorros de zona, além de um pedaço ainda gotejante de camisinha.

Continuamos. fazendo...

... a nossa parte. Gritamos nosso amor nas avenidas do centro, nas ruas da periferia, nas esquinas em cujos postes ainda se pode ver grudada a propaganda de um candidato a governador em 1950. Gritamos nosso amor com um megafone que foi usado na Revolução de 32 e do qual ainda às vezes sai um fiapo de patriotismo paulistano. Gritamos nosso amor, e as garotas de hoje, tão diferentes das donzelas de antanho, se perguntam de onde saímos nós, com nossos ternos da liquidação do Mappin e da Ducal. Gritamos nosso amor e às vezes saltam como tiros de bazuca nossas dentaduras não fixadas com Coregga. Gritamos nosso amor apesar da severa recomendação de nossos médicos. Gritamos nosso amor como fantasmas ainda gritam pela São João lemas contra Getúlio Vargas. Gritamos nosso amor como no Viaduto do Chá gritaram os vendedores de barbatanas para colarinho e de mapas para as aulas de geografia da Caetano de Campos. Gritamos nosso amor, gritaremos nosso amor ainda, enquanto houver em nosso peito uma chama, mesmo que muito tênue, e na memória um verso de Casimiro de Abreu.

Sobre a verdade

Creio que a verdade possa ser definida com três ou quatro palavras. O desenvolvimento da linguagem, embora possa parecer o contrário, é um reconhecimento de que jamais saberemos exprimi-la. Nós a cercamos com nossos cães, jogamos-lhe luz na cara, exigimos que se renda, mas nunca, em milênios, coneguimos apanhá-la. Um dia, certamente por acaso, é possível que essas três ou quatro palavras finalmente se juntem. Mas, ainda que nos peguem pelo pescoço e nos digam, e nos provem, que são elas a verdade, não acreditaremos. Nossa presunção só aceitará uma verdade que surja de nosso labor. Nós criamos a necessidade da verdade e a loucura de procurá-la.

Aplausos

Os aplausos são o nosso ouro. Nós os buscamos a vida inteira. Na juventude, mesmo quando nos ensurdecem, nós os achamos poucos. Quando, porém, vão chegando os anos da nossa velhice, nos tornamos muito menos exigentes. Duas dezenas de mãos já produzem um ruído apto a nos satisfazer. E, um pouco mais adiante, já na última curva do caminho, o estalar de galhos de uma árvore, ainda que tão velha e débil quanto nós, já nos faz abrir dolorosamente um sorriso.

Apontamentos sobre o paciente Raul Drewnick, feitos por ele mesmo

Estou insano, tenho certeza de que assim já começam a me considerar também os outros, e deveria amarrar-me para não escrever nada. Mas agrada-me esta insanidade, e cada dia me apraz mais exibi-la. Descobri que sempre fui assim, sempre tive vontade de ser assim, e só não fui assim para que os outros não precisassem alterar os registros que têm sobre quem eu sou. Eles têm registros sobre mim desde o tempo em que eu era menino e, se saio um centímetro que seja do rumo previsível, inquietam-se e se aborrecem: quem é ele, afinal, para ir mudando assim? Hoje eu sei que sou alguém que odeia esse que está nos registros. Não quero mais ser esse senhor bem-comportado e confiável. Quero ser abominado, execrado e venho diariamente ao micro proclamar-me louco, para que me abominem, me execrem ou me esqueçam. Demência senil talvez seja o nome disto. Não é o primeiro caso na família, mas eu não gosto do rótulo. Preferiria que achassem isto sem-vergonhice, como achavam quando eu era jovem e bebia desvairadamente. Se isto que me liberta é uma doença, receio que logo me venham com tratamentos e piedades. Não quero tratamentos, nem piedades. Não sou feliz, isso não. Mas sinto-me honesto pela primeira vez na vida.

Kama Sutra - CLXXXIII

Imagina que ela os tenha ruivos ali, também, e crespos. Imagina que sejam espessos e que, se no quarto escuro ali pousar a mão, o ouro dos fios iluminará seus dedos para lhes indicar o caminho. Imagina que sejam quentes e levemente úmidos, como a superfície de um lago lambida pelo sol. Imagina que poderia manter a mão pousada ali até que a voz do último homem se ouvisse pela última vez no mundo. Imagina que, para não parecer vulgar, não deslizaria a mão sorrateiramente para repousá-la no triângulo. Mas sabe que acabaria não resistindo e, depois que ela deslizasse, faria com que ela pesasse aos poucos sobre aquela área tão pequena, tão morna e dotada de tal sortilégio que, uma vez tocada por um homem, marca para sempre seu destino de escravo.

Kama Sutra - CLXXXII

Perdeu o controle sobre o que escreve. Passou tantos anos estudando os clássicos, buscando a sobriedade, e de repente as palavras assumiram vontade própria e, como garotas que escaparam de um convento, atiram-se ao ao lago porque lhes disseram que no outro lado há uma prisão só de meninos de doze a quinze anos que, nunca tendo visto uma mulher, se entregam a jogos sexuais que mais parecem combates. Por uma urgência que lhes atiça as entranhas e a imaginação, todas nadam já nuas.

Um trecho de Diogo Mainardi

"Eu nunca cultuei Deus. Eu nunca cultuei o Homem. Passei a cultuar Tito. Passei a cultuar a vida doméstica. Meu evangelho é uma conta de luz. Meu templo é uma quitanda. Tito é o Todo. Um tomate é o Todo." (Do livro "A queda", publicado pela Editora Record.)

terça-feira, 23 de abril de 2013

Imenso é...

... o mar, mas um dia encontraram-se bem no meio dele duas das garrafas que há anos atiro às ondas. Uma não teve o que dizer à outra.

Até quando...

... conseguirei manter esta corda tensa, esticada, sensível, fina, fina, fina, finíssima? Não sei. Sei que preciso mantê-la assim, do contrário não terei mais o que fazer de mim e dos meus dias. É preciso acordar toda manhã e esticá-la. Talvez ela jamais venha a se romper, afinal. O que eu quero provar? Talvez que não haja limites para um sentimento, se ele for tão precioso quanto imaginamos. Esticar, esticar, esticar.

Alguém precisaria dizer...

... que muitos sofrem ainda pelo amor, embora ele já seja considerado extinto em vários países. Alguém precisaria dizer que ainda há quem, não podendo tornar-se mais ensandecido do que está, se tranque atrás de todas as portas e tape os ouvidos naquela hora em que o som de um violino sai da casa de uma estudante de música e chega trazido pelo vento. Alguém precisaria dizer que a baboseira do amor só é baboseira para quem a sente assim. Alguém precisaria dizer que o amor ainda enlouquece, escraviza e mata. Alguém precisaria dizer que é bom que o amor seja assim. Alguém precisaria dizer, como disse Pessoa, que sem essa loucura o homem não seria senão uma besta sadia voltada à procriação. Alguém precisaria dizer isso. Alguém precisaria dizer isso com a força que eu já não tenho, de tanto dizer, dizer e dizer.

Agenda

Dorme sentado, dorme deitado, dormir é sua principal atividade. Logo será a única.

A história do urso

Peço-lhes licença para contar minha história. Eu sou um desses ursos de loja infantil. Fui jovem e, desde os meus primeiros anos, me lembro de estar na vitrine. Apalparam-me, elogiaram-me, nunca me compraram. Fui ficando, ficando. Novas remessas de ursos foram chegando, foram sendo levadas. Eu já havia perdido a esperança de sair da loja, quando certa manhã entrou nela uma garota de cabelos ruivos e olhos claros que, depois de olhar todos os ursos, me pegou. A mãe, quando viu nela a intenção de ficar comigo, imediatamente apanhou outro e colocou-o no colo dela: "Este é melhor. Olha que bonitinho." Fui posto por ela novamente no meu lugar, mas a menina parecia decidida. Pegou-me outra vez: "Eu quero este, mãe." Abraçado por ela, senti que todos aqueles anos haviam passado porque eu estava destinado àquela garota. Como amei aquela menina, Deus. Ela brigou com a mãe por mim - a mãe argumentando que eu estava muito velho, já, e estragado, ela dizendo que gostava de mim exatamente por isso. Discutiram e chegaram a um acordo. A garota me trocaria por um macaco ciclista. Preciso dizer mais alguma coisa? Isso foi há três anos. Continuo aqui. Só houve uma mudança. Estou mais velho, mais sujo, e não fico mais exposto na vitrine principal. Estou na parte dos saldos, mas ninguém mostra interesse por mim. Torço para que um dia a dona me doe para uma creche. Todo ano espero que isso aconteça. Quem sabe este ano. O Natal não está tão longe assim.

Chopin, Chaplin

Amo o sentimentalismo, o melodrama e a pieguice. Gosto de chorar. Gostaria de fazer chorar, com o que escrevo. O choro da beleza. O choro da tristeza, também, claro. Da tristeza bela, ou da beleza triste. Metade disso vem do meu DNA polonês. Chopin foi o mestre da beleza triste. A outra metade me vem de Charles Chaplin. Padrinhos inigualáveis, medíocre apadrinhado. Com eles aprendi só a primeira parte: chorar. Para a segunda sobrou-me vontade, mas me faltou talento.

Da perecibilidade das coisas humanas

Certos dias morrem tão simploriamente que mais parecem ter fechado os olhos para dormir. Estão no horizonte neste instante e, no seguinte, já saíram de cena, como um ator terciário de um teatrinho de colégio. Não há aquele espalhafato rubro dos dias mais ambiciosos. A ribalta se apaga como se nunca tivesse estado acesa. Também assim desaparecem certos bazares de bairro. Ficam trinta anos no mesmo ponto, com seu estoque de lápis, cadernos, canetinhas, apontadores, cola, borrachinhas. Um dia, acontece precisarmos comprar uma dessas miudezas. Então vamos, olhamos, olhamos, e onde está o bazar? Aí descobrimos que o bazar já não funciona há dois anos, desde que o dono morreu. Como era o nome dele? Hideo? Hiroshi? Apagaram-se ao mesmo tempo o dono e o bazar, como se nunca houvessem existido. O quarteirão todo será derrubado, dizem, para a construção de um prédio de apartamentos. Meu neto de oito anos me pergunta se os lápis, as canetas e os cadernos continuam lá dentro. Tem pena deles. Tenho, também. Devem estar com frio, com medo e com saudade da algazarra dos meninos. Deve estar com frio, também, seu Hideo, ou seu Hiroshi.

O amor...

... opera milagres. Tornou-me quase vegetariano, quase melhor pessoa, quase poeta, quase feliz.

Partilha

"As coisas boas, que prestam,/ Aos outros cabe levar./ A nós, nos cabe ficar/ Sempre com os trastes que restam."

Quatro versos de Walter Savage Landor

"Lutei com nada e nada valia a lida./ Amei a Natureza e logo após a Arte;/ Aqueci as mãos ante o fogo da vida;/ Tudo se afunda e estou já como quem parte./" (Do livro "Grandes poetas da língua inglesa do século XIX", tradução de José Lino Grünewald, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

Antes de...

... tudo acontecer, eu era um homem velho e sério. Entrei no amor como um rapazola boboca. Agora que tudo acabou, não me arrependo de nada. Bom, talvez me arrependa, sim, de não ter sido mais rapazola e mais boboca.

Recolher letras...

... vírgulas, resgatá-las, apanhar palavras, frases, períodos, juntá-los e olhá-los como se olham partes de um exemplar precioso, um espécime insubstituível. E, ao encontrarmos o ponto final, olharmos para ele como algo que pode definir o fim da matéria, mas não o final da ideia, platônica e imortal.

Que a tarde...

... tenha para nós a lâmina certa, a corda adequada, o viaduto sem policiamento, o veneno apropriado. Que seja esta aquela auspiciosa tarde que há tanto tempo esperamos e que, quando nos chamar, gritemos com todas as nossas últimas forças "presente", "presente", presente", para não haver nenhum engano. E, para evitar qualquer suspeita de conspiração ou formação de quadrilha, que fique claro: quando digo "nós", quero dizer "eu".

Devemos ser...

... desprezíveis, para nem sequer nos ouvirem. Se pedíssemos dinheiro, se chorássemos por um cachorro-quente com mostarda, se clamássemos por qualquer coisa material, se implorássemos por sexo, ainda que na mais bizarra de suas modalidades, talvez nos acolhessem. Querer amor é o mais deplorável dos vícios. Querer amor é chamar a atenção das autoridades, dos que se esforçam por manter a saúde mental da população, dos estudantes que imaginam logo poderem estar devolvendo velhotes ao santo caminho do dominó e das missas dominicais. Querer amor é uma velhacaria, querer amor é uma depravação, querer amor é abominável, sujo, querer amor é como cutucar a bunda de uma imagem de santo.

Quando suspeitam...

... que nosso rosto pálido foi consumido por vigílias de amor, cospem nas nossas mãos que pedem, estendidas. A caridade foi feita para o pão dos pobres, para a roupa dos esfarrapados, para o cobertor dos meninos que dormem embaixo de viadutos. Cospem nas nossas mãos e, porque nada mais nos pode humilhar, nós as conservamos estendidas, ainda, e as limpamos esfregando-as nos joelhos, que ainda mantêm as sagradas marcas das noites em que pelo amor se ajoelharam.

Cadarço

Respeito imensamente, amorosamente, a dramaturga inglesa Sarah Kane, autora da peça "Psicose 4h48", que se enforcou aos vinte e oito anos com o cadarço do próprio tênis. Não estou defendendo o suicídio, embora tenha simpatia por ele. O que me comove é imaginar a força de vontade que ela certamente precisou ter. Que proeza foi essa, matar-se com um instrumento gritantemente inadequado. Os livrinhos que andam em todas as mãos, no metrô, estão certos: querer é poder. Tantos artistas se empenham a vida toda para dar aos objetos a importância que merecem, e nenhum, que eu saiba, conseguiu jamais elevar um cadarço a uma condição tão nobre.

É triste...

... a vida, à uma da tarde. Nas outras horas também.

Sete décadas e quatro anos

Esquece as coisas, perde tudo, baba até quando diz a palavra esperança. Nos sonhos, é perseguido por multidões que querem açoitá-lo, queimá-lo, enforcá-lo. Se os sonhos trazem revelações, talvez ele tenha descoberto tardiamente a vocação de mártir. Isso é paranoia, dizem-lhe, mas ele já não consegue guardar o sentido das palavras. Pensa ter sido poeta um dia, talvez seja ainda, e nos sonhos é achincalhado por homens de nome estrangeiro, como Alzheimer e Parkinson. Talvez sejam rivais seus, antigos ou recentes. Ou talvez sejam nomes de cachorros, pelos quais é também perseguido, nos sonhos e fora deles. Como se chama o da vizinha, mesmo? Walcott, parece. Ou Eliot?

Sabedoria

A única coisa que aprendeu com a velhice é que ela não é nada boa.

A vida

A vida é essa tristeza de se descoordenar tudo que se coordenou, de se desencadernar tudo que se encadernou, de se desbarcelonar tudo que se barcelonou, de se construir algo grandioso tijolo por tijolo e de tijolo por tijolo se recolher o que um dia, como tudo, desmorona. Não precisamos olhar para os tijolos para reconhecê-los. Todos têm a marca de nosso afeto, de nosso sonho e de nossas disparatadas esperanças. Vasculharam-se os escombros, mas não se achou o cachorro que diziam haver lá.

Meia página de jornal

Cantemos a rosa ainda/ mas que também a erva daninha/ mereça nossa atenção/ Tudo que existe/ mau ou bom/ nasce para a dissolução/ Nossos projetos todos/ os bons e os maus/ tendem sempre ao caos/ A história do homem/ o pouco bem que ele fez/ e todo o mal/ cabe tudo em meia/ página de jornal/ com caracteres exagerados/ e na outra metade a balbúrdia/ dos anúncios classificados.

Bem gorda

Que fosse uma mulher gorda, bem gorda, e que ao abraçá-la ele reconhecesse um calor antigo, muito antigo. Que nos braços dela ele se sentisse seguro e tivesse vontade de cochilar. Que ele cochilasse e, ao despertar, ela o abraçasse ainda e ele precisasse se conter para não chamá-la de mãe.

Estou tão...

... desarvorado, meu Deus, tão desarvorado. Sabes por quê. Não preciso dizer-Te.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Bruxa,

suja, hipócrita, egoísta, presunçosa, traidora, falsa, feia - é o que dizem que Yoko Ono foi. Foi também a amada que de todas, no mundo, recebeu talvez a maior homenagem que um homem apaixonado já dedicou a uma mulher. Ouvir John Lennon cantar "Woman" é uma das mais gratas experiências que um coração humano pode ter.

Boa noite

É hora de tentar apaziguar o coração. Tentar. O resultado será nulo, como sempre. Só o cansaço, de madrugada, conseguirá vencê-lo. Amanhã acordará como acordou hoje: ranzinza, mal-humorado, insuportável. Já uma vez pedi isso, e repito agora o pedido. Esqueçam que este blog deveria ser mais respeitoso com os leitores e deixem que eu diga o que, chulice à parte, desconfio ser uma verdade: esta vida é uma bela de uma merda.

Não picharei...

... teu nome num muro, Fulana, embora não me faltem nem o spray nem a vontade. Receio que alguém, por cima dele, Fulana, escreva outro nome e eu, quando for ver se caprichei mesmo nas tuas letras, leia que Fulano ama Fulana. Posso até imaginar isso, que Fulano te ame, Fulana, sei até que é verdade, mas ver escrito, não. Pior do que isso seria passar pelo muro e ver, embaixo do teu nome esculpido com emoção e medo por mim, o acréscimo, com a tua inconfundível tinta azul: Fulana ama Fulano.

Estarei andando...

... por aí. Pode-se andar por aí, de madrugada, sem que ninguém veja em nosso rosto a marca do amor. Os cachorros nos farejam, é certo, sentem que há algo estranho em nós. Mas não te preocupes se ouvires latidos em tua rua ou perto. Andarei longe, tão longe quanto possa, para que durmas tranquila, para que não penses em mim e para que, se por um mau acaso pensares, não lembres como fui importuno. Andarei longe, bem longe, para que, se eu gritar teu nome, nem o vento mais indiscreto possa levar-te minha voz.

Talvez tivesse...

... me apetecido fruir tua carne, ainda que esse fruir fosse um roçar de lábios ou de braços. Mais do que isso eu talvez não houvesse suportado. Morreria de felicidade. Eras uma ideia, mais do que um corpo. Por esse roçar de lábios ou de braços eu me consumi noites e noites, enfebreci, enlouqueci. Quem quer, há de querer tudo. Minha falta de ambição era patética para mim e, imagino, também para ti. O que pode merecer quem aspira só a um roçar de lábios ou de braços? Talvez depois desse roçar, desses roçares, eu tivesse coragem de almejar alguma coisa mais, em que nunca me atrevi a pensar. Às vezes me acho tolo, às vezes me sinto bem-aventurado. Quase não te toquei, ou te toquei como um colecionador toca uma peça de porcelana. Já foi muito. Não se deve tocar uma ideia, nunca, seja ela qual for. Muito menos a mais preciosa de todas.

Um trecho de Adolfo Bioy Casares

"Não espero nada. Isso não é horrível. Depois que assim decidi, ganhei tranquilidade. Mas essa mulher me deu uma esperança. Preciso temer as esperanças." (Do livro "A máquina fantástica", tradução de Vera Neves Pedrosa, publicado pelo Círculo do Livro.)

Um trecho de Luiz Carlos Cardoso

"Outra razão a me incomodar, essa maior ainda, era, digamos, a modalidade do meu amor por Diana. Todos conhecem aquele conto de Eça de Queirós em que José Matias ama por dez anos a divina Elisa, com ela trocando cartas e juras. Quando morre o marido de Elisa, deixando-a disponível para ele... ele foge! Elisa casa de novo e José Matias volta à vizinhança para amá-la por mais sete anos, até que ela de novo enviúva. "E o José Matias inteiramente se sumiu, se evaporou", conta o narrador. A divina Elisa torna-se amante de um homem separado e muda-se. Seria eu um José Matias procrastinador por motivos obscuros? Por receio de falhar sexualmente com a mulher muito amada ou pelo sentimento de culpa tornado maior devido aos malditos escrúpulos éticos?" (Do livro "Crime improvável", publicado pela Ficções.)

Um trecho de J.M. Coetzee

"Num jantar ela encontra X, que não vê há anos. Ainda está dando aula na Universidade de Queensland?, pergunta. Não, ele responde, aposentou-se e agora trabalha em navios de cruzeiro, viajando pelo mundo, exibindo filmes antigos, falando sobre Bergman e Fellini para aposentados. Nunca lamentou a mudança. 'Pagam bem, pode-se ver o mundo e, sabe de uma coisa?, as pessoas, quando envelhecem, escutam o que você tem a dizer.' Ele insiste com ela para experimentar. 'Você é uma figura importante, uma escritora bem conhecida. A linha de cruzeiros em que eu trabalho vai agarrar com unhas e dentes a oportunidade de levar você. Vai ser a grande estrela. Basta dizer uma palavra e eu falo com meu amigo, o diretor." (Do livro "Elizabeth Costello", tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

O novo humor

A necessidade de estar "todo o tempo on line", seja por qual mídia for, aliada à suposição, que alguns têm, de que tudo que pensam merece ser imediatamente conhecido por todos, leva a frases como esta, de Marcelo Tas, no twitter, reproduzida hoje no Estadão: "Rubinho se revelou excelente comentarista da F1. A Globo ganhou mais um talento e ele perdeu dezenove anos tentando ser piloto." Caetano Veloso disse, há algum tempo, que hoje não basta ser imbecil, é preciso mostrar-se imbecil.

A palavra

Toda noite, antes de tentar dormir, convém anotar no bloco a palavra, ou pensar nela, ou dizê-la e repeti-la, para ter a certeza de que ela será a última que escreveremos, a última na qual pensaremos, a última que diremos. Seria uma injustiça, depois de a havermos incomodado tanto, esquecê-la na hora derradeira. E ela é tão curta e tão fácil de anotar, pensar e dizer... Quatro letras apenas, que resumem toda a trajetória do homem no mundo.

Cada dia...

... o leva para mais longe da tarde em que ele foi feliz pela última vez. Já não se lembra dela com a perfeição que desejaria e imagina com desgosto quanto de ficção se junta à recordação sempre que ele a traz de volta. Foi num café? Foi num restaurante? Ora ele pensa que foi num, ora que foi no outro, ora ele pensa que foi num e no outro, nos dois, mas parece-lhe felicidade demais. Talvez tenha havido um deslocamento, é possível. Foi para aquela tarde com um amor tão sonso no coração que já no dia tudo lhe pareceu irreal depois que passou. E, agora, com o tempo que lançou tanta areia sobre aquilo tudo (aquilo tudo o quê?), ele procura reconstituir detalhes e pensa ter a certeza de que uma mulher, na mesa do café ou do restaurante, esboçava desenhos e lhe mostrava no pulso uma marca qualquer. Não se lembra de nenhuma das palavras trocadas. Às vezes pensa ter resgatado um "oi, como vai?", mas logo o substitui por um "oi, tudo bem?" e não consegue decidir-se por nenhum deles. Sabe, isso com certeza, que não disse a palavra "amor", e que esse foi o erro todo. Tinha o amor nos olhos, tinha o amor na pele, nas vísceras, em todo o corpo, na alma e no coração, mas não o pronunciou. A cena foi cortada, o filme se perdeu e uma porção de tardes se amontoou sobre a única em que se sentiu vivo.

O sol lhe aquece...

... o corpo. Para quê? Ele não precisa do sol para andar por essas ruas em que olham com pena para ele. Seu infortúnio deve estar bem visível no rosto, como uma cicatriz. Ah, se pudesse estar em outro lugar, em outra cidade, que não lhe lembrasse tantas coisas que ele armazenou e que agora o incomodam como se fossem um furúnculo na alma. Forte essa imagem, esse furúnculo na alma, mas despida de qualquer sentido de arte. Aos diabos a arte! Também essa não lhe interessa mais, ela que não foi capaz de exprimir o seu mais agudo sentimento. Seria bom se ele estivesse em uma cidade na qual não pudesse tomar o metrô ali adiante e ir ver pela milésima vez o local em que sorriu certa manhã. Seria bom, tão bom, se alguém gritasse de repente que o velhote caiu e quando viessem apalpá-lo ele já estivesse fora do alcance de qualquer amor e de qualquer caridade. Seria bom, muito bom. Ele precisaria menos ainda deste sol.

Kama Sutra - CLXXXI

Sempre que ela põe as mãos no ventre, para protegê-lo dos lábios dele, ele lhe morde os pulsos com intensidade crescente, mas ela só os retira quando, depois de magoá-los, ele os lambe. Ela então segura as cócegas e deixa que ele continue com a boca uma exploração que se ampliará até umedecer a relva no meio da qual logo ela sentirá enfiar-se um ansioso e adorado intruso.

Kama Sutra - CLXXX

Quando se aproxima o clímax, ele se retesa e, embora mantendo-se ancorado no corpo dela, interrompe as estocadas, para suspender o gozo e torná-lo maior depois da espera. Para desconcentrar-se da urgência da carne, pensa então num gramado verde muito extenso e plácido. Consegue percorrer com a imaginação cinco ou dez metros. Depois o sangue volta a incitá-lo e ele retoma as estocadas, e em cada uma delas tenta ir mais fundo, magoando a grama e buscando atingir a terra quente que palpita por baixo dela.

Kama Sutra - CLXXIX

O começo é sempre igual. Ele põe na língua um pouco de sorvete de chocolate, ela na dela põe uma colheradinha de sorvete de morango. A ponta das línguas se toca repetidas vezes, como bicadas recíprocas de pássaros, para que o chocolate e o morango se misturem. Quando os sabores já estão mesclados, as bocas se beijam, escorregadias, enquanto há fôlego. Depois de cada um desses beijos longos, cada um põe mais sorvete na ponta da língua, sempre um pouco só, para que as duas taças demorem para se esvaziar. Língua com língua, lábios com lábios, boca com boca, vão se deliciando assim até que os exasperados corpos se encaixam, se penetram e estremecem quase sempre juntos, enquanto as bocas mantêm ainda o brinquedo juvenil de misturar chocolate, morango e saliva.

Cartaz em poste

"Recompensa-se quem revelar o nome dos criadores das seguintes expressões: -- nicho de mercado; -- leque de oportunidades; -- debelar as chamas; -- cabe no seu bolso; -- recuperar o prejuízo. Serão recompensados também os que denunciarem os receptadores dessas abominações e os que teimam em divulgá-las.

Quando me...

... lembro, me sinto tão burrico quanto o Pinóquio. Era uma manhã de sol e eu, se não era feliz, também não podia dizer o contrário. Caminhava e assobiava, talvez, já não recordo bem. Apareceram-me então duas figuras que começaram a andar comigo e a falar de uma árvore que dava os mais maravilhosos frutos, se em determinado lugar se enterrasse uma moeda. Eu, por sorte e acaso, tinha uma e, com a ajuda dos dois, plantei a moeda. No dia seguinte, ali estaria uma árvore que daria tantos deliciosos frutos que eu precisaria levar uma sacola muito grande para recolhê-los. Despedi-me dos dois amigos e mal dormi aquela noite. No dia seguinte, voltei ao lugar em que enterrara a moeda e não vi sinal nem dela nem da árvore. Passei a sonhar com os frutos todas as noites e cada vez eles me pareciam mais desejáveis e apetecíveis. Transcorreram já muitos anos e eu sonho ainda com eles, embora tenha tido uma decepção ontem. Um homem me perguntou por que eu vou todos os dias lá e, ouvindo minha história, me disse que há uns três anos viu realmente uma árvore ali, nascida repentinamente e repentinamente desaparecida. No dia em que a viu, viu também um gato e uma raposa que riam e ajudavam-se um ao outro a carregar uma sacola imensa, cheia de frutos dourados. Lembra-se de ter perguntado a eles que frutos eram, por serem tão maravilhosamente diversos de todos os outros. A raposa e o gato lhe responderam que eram frutos da árvore do amor, que os oferece só uma vez e depois morre, sem deixar sequer vestígios.

Evolução

Com a internet, a necessidade de uma comunicação cada vez mais rápida e a busca de monossílabos ainda mais expressivos, nossa maior descoberta talvez venha a ser, daqui a algum tempo, a taquigrafia. E os velhos mestres serão requisitados em casa, procurarão nas gavetas manuais comidos pelas traças e, coçando a cabeça, se perguntarão: "Como era aquilo mesmo?"

Embora sejam...

... tristes as segundas-feiras, depois da dourada passagem do domingo, tomara que possamos ter um bom dia. Talvez na roupa com que vamos para o trabalho haja ficado uma felpazinha que o sol de ontem se tenha esquecido de juntar às outras ao ir embora e, quando estivermos saindo de uma estação do metrô, ele a reconheça e venha resgatá-la em nosso ombro. Talvez seus dedos quentes deixem ali um calor que aos poucos vá se espalhando pelo nosso corpo e tenhamos a impressão de que estamos vivos, embora saibamos que isso é impossível.

Bom dia...

... para os que podem compensar-se do rigoroso sol da estrada parando numa loja de conveniência. Talvez nela haja um sorvete Rochinha, com um daqueles sabores inusuais, que só a leitura da embalagem permite diferenciar. Bom dia para aqueles, as mulheres principalmente, que podem deixar para trás tudo que lhes causa inquietação. Esses são merecedores da brisa que, repentina, vem soprar seus cabelos, como se quisesse fazer entranhar-se ainda mais um pouco, neles, uma pétala desgarrada de rosa. Que os acompanhem em toda a viagem o verde das plantações e também as nuvens brancas, branquíssimas, ovelhas mansas que lá de cima cobiçam o pasto. Que o riozinho tenha aprendido uma nova canção e gentilmente queira cantá-la. Que as árvores tenham aprendido uma dança mais graciosa que todas as anteriores, e balancem os braços à passagem do carro.

Soneto sem cara de soneto

Não são só as pessoas que começam a se afastar de nós. Também as coisas sentem nosso cheiro azedo de velhice e zombam de nós, sempre que podem. Meu micro, este jovem objeto que me fita com desdém maior a cada manhã, tem me impedido de distribuir os versos de sonetos da forma usual, um por linha. Assim, este vai estropiado, com barras assinalando o final de cada verso. Tudo me diz, diariamente, que, se eu quiser ser poupado de indignidades maiores, devo ir procurando a porta dos fundos, ali onde se guarda o lixo até ser posto fora. Não sei se sou reciclável. Tomara que não. SONETO DAQUELE AMOR Tu bem sabes que esses poemas/ Em que eu o amor descrevi,/ Todos tiveram em ti/ A fonte comum e os temas./ Sabes que, enquanto os fazia,/ Pois viste quando os compus,/ Provinha de ti a luz/ Que nos meus olhos luzia./ Sabes que quando eu falava/ Do amor que me subjugava/ Falava do teu amor./ E sabes que nunca mais/ Vou fazer poemas iguais,/ Viva eu o tempo que for.

A arte de pedinchar

Os velhos sentem frio. Mesmo quando não sentem, tiritam. É uma forma de fazer com que olhem para eles, lhes deem atenção. Os velhos são assim. Queixam-se de tudo, todo o tempo. De dez queixas, são atendidos em uma. É uma razoável média. Depois dos setenta, é preciso saber pedinchar, para ganhar ao menos uma migalha daquelas que não apetecem nem ao gato nem ao cachorro da casa.

O cavalo

Poderias ter desistido há muito tempo. Acreditando que a vida pudesse levar-te ainda para um lugar aprazível, antes do derradeiro, te agarraste a ela, à sua cauda de cavalo desembestado. Rasgaram-se as tuas mãos, esfolou-se o teu peito enquanto eras arrastado, mas seguraste firme, com as lágrimas regando o solo. Num primeiro momento, pensaste que a vida galopava cada vez mais forte por ter pressa de levar-te ao lugar em que serias recompensado por todos os teus sofrimentos. Até ela te dar o coice e te deixar estendido na areia, observado pelos urubus.

domingo, 21 de abril de 2013

Boa noite e...

... que amanhã possamos mostrar o que talvez tenhamos aprendido hoje. Aprendemos hoje o de sempre: que, só depois de clamar, atingimos o doce silêncio da resignação. A noite nos encontra cansados. Livramo-nos de muitas palavras durante o dia, mas não nos livramos dos sentimentos que elas exprimem. Esses sentimentos recuperarão o vigor enquanto estivermos dormindo, se dormirmos, e amanhã nosso peito ferverá de novo, e bradará - como se o mundo já não estivesse farto de saber que sofremos e como se pudéssemos esperar ainda alguma atenção dele. Todos sofrem e irritam-se ao ver alguém que por um punhado de afeto não recebido já quer tirar a patente do sofrimento. Foi um domingo triste. Sofri não só por afetos pessoais. Meu maior sofrimento de hoje foi provocado pelo abalo de algo que reuniu tantas pessoas, por tanto tempo, que foi uma parte tão expressiva de minha vida que, se eu fosse dar número a esse afeto, se fosse defini-lo em porcentagem, talvez precisasse ter como base de cálculo mais do que cem por cento. Mas para o que é mesmo que serve a esperança?

O homem falou...

... falou. Eram palavras estranhas, que ia lendo de um bloquinho. Os seis primeiros que se reuniram para ouvi-lo, porque o cinema anda caro e o teatro inacessível, pensaram ouvi-lo dizer "afeto". Não era um termo que os atraísse muito, mas foram ficando, e a eles se juntaram mais quinze ou vinte. Notaram, por uma rima de "coração" e "paixão", que eram versos o que ele lia, presumivelmente de amor. Sua dicção não era boa e as palavras pareciam estar ficando cada vez mais complicadas. Deixaram-no todos, então, menos um garoto de uns quinze anos, que se aproximou timidamente, pediu licença para abraçá-lo e, abraçando-o, disse obrigado. O homem gostaria de perguntar se ele gostava de poesia, mas uma chuva repentina, trazida por um vento furioso, caiu sobre os dois como um castigo. Correu cada um para um lado, e nem o homem pôde saber se o menino apreciava poemas nem o menino conseguiu descobrir em que templo ele pregava.

Sim, eu sou...

... aquele no rosto de quem o amor espatifou uma torta de morango. Sim, eu sou aquele que o amor trouxe pela coleira e a quem ensinou truques gentis. Sim, eu sou aquele que foi escarnecido em prosa, verso e música. Sim, eu sou aquele que por amor se tornou inconveniente. Sim, eu sou aquele que desonrou sua idade e por amor tentou andar de motocicleta no globo da morte. Sim, eu sou aquele que tem apelidos, todos desairosos. Sim, eu sou aquele que enlouqueceu de todas as loucuras. Sim, eu sou a alegria dos rapazes, sua piada favorita. Sim, eu sou esse que se envergonha por dormir ainda, e comer. Merece dormir e comer quem deixou desmoronar assim desgraçadamente um sonho? Sim, eu sou o que não teve coragem, o que ficou suspenso no viaduto, como se tivesse subido ali para olhar a paisagem. Sim, sou eu. Sou culpado de tudo, de tolice, de esperança exagerada, de estúpido romantismo. Sim, sou eu, confesso. Onde é mesmo que eu assino?

Se todos...

... os atormentados pelo amor gritassem sua agonia ao mesmo tempo, as ondas se alteariam até lamber o sol, as montanhas se deitariam sobre as planícies, os pássaros cairiam fulminados e o céu, rachado pela vibração, se rasgaria como um cenário de papel-celofane.

É hora já...

... de cerrar as janelas, trancar as portas, passar os ferrolhos, acionar os alarmes. É hora de ficar atento a qualquer música, a qualquer poema, a qualquer frase que possa roçar ainda que de leve o coração e enfraquecê-lo. Como um malfeitor, o amor se esgueira pelas sombras, move-se com seus pés leves, envenena os cachorros e ronda nossa casa. Se não nos acautelarmos, entrará em nosso quarto quando já estivermos dormindo e deixará seus lábios nos nossos. Bastam quinze segundos para que ele se aposse para sempre de nossa alma. Então não haverá mais conserto. Como discípulos dele, passaremos a aguardar também que venham as noites, e nos misturaremos como ele ao escuro e esperaremos o momento de cravar nossos dentes em quem, incauto, se esquecer de fechar a janela. O amor é um vampiro que nos marca para seu uso e desfrute. São marcas assim, como estas.

As palavras virgens...

... as palavras jamais ditas, as palavras que nunca tiveram contato com bocas, lábios e dentes humanos, moram em um recanto desconhecido da noite. Só têm acesso a elas alguns poetas, pouquíssimos, que as usam nos sonhos para declarar amor às suas amadas. São palavras que apenas para isso podem ser utilizadas - nos sonhos, para declarações de amor. Os poetas as dizem, as amadas as ouvem, e uma luz tão forte emana delas que, se escapassem de um sonho, cegariam a lua com sua claridade. Quando o poeta acorda, elas não estão mais em seus lábios nem em sua memória. E a amada não tem delas senão um sussurro matinal que parece vir do vento. É o amor que dita essas palavras, já se vê. E já se vê também que, por alguma razão, ele não confia nem nos poetas nem em suas amadas. O amor é um presente que os deuses sempre nos dão só pela metade.

Boa tarde...

... para quem inspira nosso canto, ainda que só nos inspire notas tristes. Boa tarde para quem nos manteve até esta hora deste domingo com o pensamento voltado para coisas ternas. Boa tarde para quem, porque não podemos nem queremos pensar em mais nada e em mais ninguém, nos isenta assim de pensarmos em nós. Boa tarde para quem é capaz de fazer aflorar em nós o que temos de melhor e que no entanto, por ser ainda pouco, nos envergonhamos de oferecer-lhe, como deveríamos. Que à noite nós tenhamos melhores oferendas.

Imagina o que...

... sentiram Dante, Petrarca e Camões, que tanto sofreram por amor. É infeliz por isso, não pela glória que os três atingiram, mas porque certamente eles, por expressarem tão divinamente seu amor, fizeram por merecê-lo. Ele não merece o seu. Para merecê-lo, Dante, Petrarca e Camões precisariam juntar-se em seus cantos.

Quando escolheu...

... morrer por amor, não imaginava que seria tão doce. Acha-se um velhaco por estar morrendo assim, lentamente, como se cada dia fosse uma seta que, para lhe prolongar o êxtase, se enterrasse bem devagar no seu peito, quase como se pedisse desculpas por enterrar-se.

Como machuca...

... imaginar que um dia, sob um sol de verão, talvez possamos esquecer as lágrimas, as tardes longas sem notícias, os meses que se escoavam sem uma palavra recebida, os anos sem flores e sem frutos. Como nos dói imaginar que talvez nos olvidemos do dedo passando tantas vezes no mapa, tateando países exóticos, que talvez não nos recordemos da imaginação percorrendo aeroportos distantes, hotéis estranhos, rios sagrados de águas sujas, ruas orientais povoadas por homens tatuados caçando mulheres de pele branca e cabelos de fogo. Como fere imaginar que seja possível apagar da memória aquele nosso agudo desvario, que andava por índias, holandas e japões, enquanto nosso coração, encarcerado em São Paulo, olhava através da janela um horizonte de poluição, de chuva e de maus augúrios. Como machuca supor que um dia, sob a pressão incansável da razão, talvez possamos olvidar tudo, não achar na alma o sinal de mais nenhuma cicatriz e, quem sabe diante da própria terra onde o amor estiver sepultado, dizer com a voz cheia de odiosa maturidade: "Finalmente eu superei tudo isso."

Aprendi a escrever...

tardiamente. Quem me ensinou foram uma mulher e o amor. Que eu possa sempre louvar a ele e a ela, se bem que já não distinga um do outro e ambos me falem com igual ternura ao coração.

Recolher o amor...

... em nosso coração como se fosse um cão perseguido e apedrejado. Escondê-lo no porão, alimentá-lo às escondidas, não permitir que ninguém saiba dele, deixar que todos o suponham morto. Ensinar-lhe a astúcia de não latir nunca, mesmo que a dor dos ferimentos e a tristeza da ingratidão lhe venham todo instante à garganta. Falar com ele, sempre, não parar nunca de falar-lhe. Talvez um dia compreenda o que nós queremos exprimir quando dizemos que não vivemos senão para ele.

Um som agudo...

... de violino bastaria para matar-nos nesta manhã, se o amor já não o tivesse feito.

Domingo

Verônica Sabino e Demis Roussos enfiaram no coração deste domingo uma faca tão pontuda, de tão insuportável beleza, que morrer agora seria a bênção mais jubilosa.

Bom dia...

... apesar das más notícias que vêm com o domingo. Parece que a única função do mundo é se desmanchar, se partir, se esboroar, desmoronar. Coisas antigas, tão caras a nós, morrem na nossa frente, agonizam, e seu sangue se espalha como o sangue de um gato esquartejado em cima dos cadernos de um jornal. Não há tempo nem de chorar. Vem o vento e leva as folhas, os cadernos, o gato e seu sangue. É a vida, diz um senhor circunspecto na esquina. É a vida, concordamos nós. Foi a vida.

Talvez...

nos ouçam hoje. Há milagres, dizem, e o que esperamos talvez nem milagre seja. Será muito querer que nos ouçam? Quantos patifes, quantos embusteiros não estão agora, na missa dominical, embromando Deus com seus embustes e suas patifarias? E nós? Quem nos ouvirá? Quem amaldiçoou assim nossa voz? Chegará o dia no qual alguém reconhecerá que é limpo o nosso verbo, embora inábil? Chegará o dia em que nos olhem nos olhos e vejam neles a única virtude que gostaríamos de ver reconhecida em nós? Somos honestos, dizemos, somos honestos, repetimos, e o vento ri de nós e vai espalhar pelo mundo a piada da nossa honestidade. Somos honestos, gritamos, somos honestos, honestos, honestos, e o mundo responde: "Idiotas, idiotas, idiotas!" Somos honestos e, no entanto, até as manhãs de domingo nos rejeitam. Somos honestos e no entanto, se falamos de amor, parece que falamos de um esgoto fluindo a céu aberto.

No fim

Que só nos restem, no fim, palavras mansas, que possamos dizer com a nossa voz mais branda. Foi-se o tempo das imprecações, das súplicas incendiadas, das recriminações lançadas a todos os ventos e a todos os céus. É hora, já, de narrarmos nossas derrotas de modo a parecerem o que foram: bobagens que tentamos transformar em epopeias. E narrá-las somente para nós, bem baixinho, como se fossem uma cantiga de ninar para o longo sono que nos espera. Palavras mansas, voz branda, como se nos dirigíssemos a cordeiros recém-nascidos que talvez nos acompanhem na extensa viagem, se lhes prometermos boa água e relva macia.