sábado, 31 de agosto de 2013

Kama Sutra - CCXCV

Volta às quartas-feiras porque lhe agrada a opulência de coxas e seios da mulher e a habilidade mercenária com que ela se mexe debaixo dele, até lhe extrair a derradeira gota de sêmen. Mas volta também pela cama, que emite ruídos de luxúria todo o tempo. E volta pelo criado-mudo, que por alguma razão se solidariza com a cama e geme com ela e se sacode como se a ele se dirigissem as estocadas amorosas. Depois do último espasmo, o homem sempre estende a mão e acaricia o móvel lamuriento, como se ele tivesse pelos sedosos e hospitaleiros como os da mulher ou os do minúsculo cachorro que acompanha enciumado cada movimento, cada quarta-feira.

Kama Sutra - CCXCIV

Furtar, de passagem, três ou quatro fios de ouro e afastar rapidamente o remorso. Não farão falta ao tufo que permanecerá como se inteiro, guardião zelando com imponente beleza a entrada da fonte  em cuja água parca e salgada tantos homens gostariam de se afogar.

Soneto do amor pedinchão

É triste o tempo em que o amor
Esquece a origem divina,
A mão estende na esquina
E esmola sem pundonor.

Pede por Deus, por favor,
À mulher feita, à menina,
Uma porção pequenina
De simpatia ou calor.

A quem lhe nega atenção
Encara com brusquidão
E ameaça então desvelar

As chagas que ele sempre usa,
Pretextos dos quais abusa
No ofício de pedinchar.

De Faulkner para os jovens escritores

"Procure ser melhor do que você mesmo. Um artista é uma criatura impelida por demônios. Não sabe por que razão o escolheram, e se acha, habitualmente, demasiado ocupado para perguntar a si próprio por que o fizeram. É completamente amoral, no sentido de que roubará, pedirá emprestado, esmolará ou furtará de quem quer que seja, a fim de realizar seu trabalho."

(De Escritores em ação, coletânea organizada por Malcolm Cowley, traduzida por Brenno Silveira e publicada pela Paz e Terra.)

Kama Sutra - CCXCIII

O amor, velho sacana, espreitará como sempre nas esquinas. E cobiçará a mulher casada, a solteira, a viúva, a desquitada, a divorciada e a virgem, se porventura houver. O amor conhece pelo cheiro aquelas que saíram de casa querendo ser cantadas, cafajestemente elogiadas, assobiadas e levadas ao lugar em que enfim lhe mostrarão a graciosa cicatriz na face interna da coxa esquerda e implorarão: dá um beijinho aqui, dá, e se quiser lambe.

O amor

O amor nos tentará novamente, com aquela música que só ele sabe trazer aos nossos ouvidos. O amor nos mostrará as flores no caminho e trará à lembrança versos esparsos, todos falando de júbilo, de êxtase e de esplendor. O amor nos subornará, nos comprará, exercerá sobre nós todo o seu lobby. Resistiremos, porque é doce resistir quando se sabe que as resistências existem para ser vencidas. O amor nos convencerá de novo, e nos arrastará para o motel, para o hotel, para o apartamento emprestado, para o canto menos frequentado do parque. E nós, abrindo as braguilhas, as pernas e o coração, diremos mais uma vez seu nome: amor.

Kama Sutra - CCXCII

"Eu já estava vendo que ele não ia me beijar nunca. Ele me deixou na frente de casa, me agradeceu, disse que tinha sido uma noite maravilhosa, estendeu o braço e abriu a porta do carro. Aí me deu aquela coragem, você sabe como eu sou, e eu pensei: se ele não me beija, quem beija ele sou eu. E meti a boca na boca dele, com língua, dente e tudo. Ah, aquele bigodinho dele, meu bom Jesus de Pirapora. Desde o começo eu queria mais era fazer aquilo mesmo. Mas, se eu não ficasse esperta, sabe quando ele ia me beijar? Pois é. Ô homem esquisito. Todos parece que são assim hoje. Levam a mulher pro motel, fazem e acontecem com ela, abrem a gente no meio, e nem um beijo? Comigo não. Eu sou romântica. Só de falar de beijo, eu já estou toda molhadinha. Põe a mão aqui, menina. Põe pra ver. Ai, também assim não. Sentiu?"

Breve biografia

Que quero mais, afinal?
Na língua trago ainda o sal
E na lembrança os olores
Dos grandes conquistadores.

Dúvida cruel

Não sei por que eu ainda vivo,
Se é tão desanimador:
Viver é tão cansativo,
Morrer é tão tentador...

Kama Sutra - CCXCI

Coxas - todas apalpá-las.
Seios - todos mordiscá-los.
Mamilos - todos mamá-los.
Nádegas - todas gozá-las.

A idade vil

Em vão tua juventude
Me espicaçou. Me lancei,
Falhei, outra vez tentei,
Falhei de novo. Não pude.

Preconceito

Não sei por que aos da minha idade não agradam as motos. Tenho simpatia por elas, quando montadas por amazonas cujos cabelos de fogo escapam com ímpeto do capacete.

Soneto do último dia

No dia que nos tocar,
Saibamos agradecer
O que pudemos viver
E de nada nos queixar.

Na hora de os olhos fechar,
Possamos enaltecer
O que eles puderam ver:
O céu, os pássaros, o mar.

Se o amor, contudo, trouxer
Algum recado bonito
E o adeus daquela mulher

Que tanto amamos outrora,
Chamemo-lo de maldito,
Botemo-lo para fora.

... queijo queijo

Podes ser puro, ético, honesto. Se fores romancista, porém, não contamines teus personagens com essas virtudes. Nada mais insosso que hagiografias disfarçadas.

Um poema de Seamus Heaney

"A ILHA EVANESCENTE

Mal presumimos ter-nos encontrado para sempre
Entre as colinas azuis e essas praias sem areia
Onde passamos nossa noite esvairada em prece e vigília,

Mal colhemos madeira flutuante, fizemos lar
E penduramos nosso caldeirão qual firmamento,
A ilha quebrou-se debaixo de nós qual uma onda.

O solo a nos suster parecia manter-se firme
Somente quando o abraçávamos in extremis.
Tudo o que creio lá ter ocorrido foi uma visão."

(De Poemas, tradução de José Antônio Arantes, publicado pela Companhia das Letras.)
 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O poeta despojado

Contei aqui, há alguns meses, casos engraçados da época em que trabalhei no Estadão. Hoje me lembrei de um episódio vivido na Visão, por onde andei também. Houve um tempo em que um dos redatores da revista era o poeta Geraldo Pinto Rodrigues. Quando ele foi eleito para a Academia Paulista de Letras, era natural que na seção de Artes fosse publicada uma nota. Nelson Cunha, repórter e colunista da área cultural, fez o texto e, por descuido dele (ou do eterno mordomo da imprensa, a revisão), o poeta foi despojado de um seus sobrenomes. Publicada a edição, recordo-me do Carlinhos Brickmann (tinha de ser ele) gritando no meio da redação: "Nelson, o que você fez com o Pinto do Geraldo?" Nelson olhou aflitamente para Geraldo, mas o poeta manteve-se imperturbável, procurando rimas ricas.

Tanto esforço para no fim ser outra vez o que já fui.

Kama Sutra - CCLXC

Seja do modo que for,
Com a língua, com o cotovelo,
O teu insano calor
Eu hei de satisfazê-lo.

Kama Sutra - CCLXXXIX

"Dirige você agora", disse o menino, soltando o leme. "O navio agora é seu." Sentou-se no colo da menina, e ela assumiu o comando. Era a primeira vez que ela fazia aquilo, mas parecia estar indo tudo bem. O menino só se queixava, mas não muito, quando ela tentava uma manobra rápida para a esquerda ou para a direita.

De William Faulkner sobre o escritor

"A única responsabilidade do escritor é para com a sua arte. Será inteiramente implacável, se for bom escritor. Alimenta um sonho. Esse sonho o angustia tanto que precisa libertar-se dele. Até então, não tem paz. O resto não importa: honra, orgulho, decência, segurança, felicidade, tudo, para que possa terminar seu livro. Se um escritor tiver de roubar sua própria mãe, não hesitará; a Ode a uma urna grega vale mais que várias senhoras idosas."

(Do livro Escritores em ação, coordenação de Malcolm Cowley, tradução de Brenno Silveira, publicado pela Paz e Terra.)

Aira x Cortázar

César Aira, em texto reproduzido pelo Estadão, disse que outrora achava Julio Cortázar um bom escritor, mas já não tem essa opinião. Cortázar, para ele, escreve mal. Cortázar, se estivesse vivo (e eu, se não estivesse morto), poderia dizer que César Aira foi um bom leitor e não é mais. Atacar os consagrados é uma tática muito usada por escritores novos em busca de notoriedade. O curioso é que César Aira deixou de ser um novato já há algumas décadas.

Poeta

Enquanto rimas urdia
Exaltando a vida eterna,
Não muito longe morria
Uma criança na cisterna.

Cotação do dia

Um sulco de urina de cão pestilento no qual se afogou uma descuidada formiga.

Cães-guia

Que tristes são os cães que servem de guia a cegos. Roubaram-lhes a alegria juvenil, cegaram-nos para a vida. Eles devem olhar sempre para a frente, ainda que, à direita ou à esquerda, cadelinhas prestimosas tentem perguntar-lhes por que eles não veem nelas nenhum atrativo. Os cães-guia são a nobreza mais melancólica que conheço.

A gaveta do poeta

O poeta há de ter sempre, junto com as bolinhas de gude guardadas na gaveta, a ingenuidade da infância. O contista, o novelista e o romancista, ainda que mintam, devem exibir-se como conhecedores da vida. O poeta, não. Deve ter sempre a perplexidade com que olhou pela primeira vez o mar.

Kama Sutra - CCLXXXVIII

Enquanto ela abre a máquina, o sol espera furtivamente que ela comece a pendurar as calcinhas no varal. Já é a hora em que ele deveria estar no parque, mas não deixará de lamber um pouco da água remanescente no tecido e de beijar as mãos que agora já pegam os prendedores de roupa.

Soneto dos dias tristes

Que tristes são esses dias
Em que sais buscando amor
E voltas com o dissabor
De teres as mãos vazias.

Que tristes as ironias
Que com todo o despudor
Te lançam seja onde for,
Além de outras vilanias.

Até quem por quem sofreste
E por quem quase morreste
Te olha com sumo desdém.

E pensar que é só por ela
Que manténs a vida e aquela
Tênue esperança também.

Kama Sutra - CCLXXXVII

Manequim, venderam-na quando foi fechada a loja de moda feminina, e ela foi para outra, maior e mais bonita. Vestem-lhe agora roupas melhores, mas ela sente falta do guarda-noturno que na loja antiga a abraçava e passava-lhe batom antes de beijá-la e cutucá-la com seu ferro em brasa.

De Françoise Sagan sobre a arte

"A arte deve colher a realidade de surpresa. Isso requer aqueles momentos que são para nós simplesmente um momento, mais um momento, mais outro momento e, arbitrariamente, os transforma numa série especial de momentos ligados entre si por uma grande emoção. A arte, parece-me, não deveria inculcar o 'real' como sendo uma preocupação. Nada é mais irreal que certos romances chamados 'realistas' - e que não passam de pesadelos. É possível conseguir-se num romance certa verdade sensorial - o verdadeiro sentimento de um personagem - eis tudo.
   A ilusão da arte, por certo, é fazer com que se acredite que a grande literatura é muito ligada à vida, mas exatamente o oposto é que é verdadeiro. A vida é amorfa; a literatura, formal."

(Do livro Escritores em ação, compilação de Malcolm Cowley, tradução de Brenno Silveira, publicado pela Paz e Terra.)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

... se lhe parece

Conforme seja o seu gosto
Ou o seu modo de ver,
Morrer é um modo suposto
De continuar a viver.

Kama Sutra - CCLXXXVI

"Você não sabe fazer isso", ela o censurou e, pondo as mãos nas nádegas dele, apertou-as. "É assim, assim", repetiu, como se fosse uma professora diante de um menino de quarto ano particularmente inapto. Ele sentiu a mornidão do prazer que sempre lhe percorria a espinha quando posto frente a frente com mulheres que se impunham. "Como é mesmo?", ele perguntou e, enquanto ela lhe mostrava de novo, ele apertou também as nádegas dela e, como havia feito na infância com uma prima que, esfregando-se nele, o chamara de bobalhão, jogou-a na cama e, com os olhos faiscando de uma cólera que a assustou e excitou, disse: "Fala de novo, puta, fala, fala."

Caçada

Por um defeito qualquer do pintor ou da tinta, o homem com a espingarda na tela envelhece dia a dia. Talvez a lebre se salve.

Consolo

O que de melhor fazes nas coxas não são certamente os poemas.

"Soneto XV", de Alzira Pacheco Lomba

"eis que estou só mais uma vez, e amarga.
desta amargura inútil que nos resta
após o sonho, após a luta, após a festa,
que trava a boca e o nosso passo embarga.

eis que estou só mais uma vez, e a febre
desta ternura imensa e sem destino
fecho no meu olhar em desatino
para que em pranto vão não se me quebre.

Busco, pois, um caminho em que derrame
esta chuva de amor que se represa
nos meus olhos doentes de cansaço.

e nada vejo em torno que reclame
ou a ternura inútil que me pesa
ou este vão amor que é meu fracasso."

(Do livro Sonegação de ternura, publicado pela Livraria 4 Artes Editora.)

A literatura e os concursos

A literatura, com suas bienais, feiras e eventos, está me fazendo lembrar de uma loja, talvez a mais famosa de todas em São Paulo há algumas décadas, cujo lema era: "Assumpção, uma loja em cada bairro para melhor servir você." Todo dia há prêmios a entregar, palestras a ouvir, temas a debater. As editoras patrocinam viagens de barco por lugares "paratisíacos" e trazem tantas celebridades ao país que já há receio de que o estoque venha a se extinguir. Isso vem já de uns trinta anos. No entanto, Dalton Trevisan continua a ser o nosso único escritor "atual" que se pode citar entre os melhores do mundo. Dalton escreve já há cinquenta anos e não surgiu nenhum outro que se possa comparar a ele. Nunca a literatura foi tão social (nesse sentido que interessa mais a Mônica Bergamo e a Sônia Racy que a Sérgio Augusto). A boa literatura dificilmente é produzida por patrocinados. Na aparência, todas essas iniciativas merecem aplauso, mas, ao contrário de esportes olímpicos, não se forja um Nobel com leis e incentivos. O que diariamente se apresenta como realização cultural tem sido, nos bastidores e até publicamente, caracterizado como o que realmente é: um combate entre grandes editoras e grandes agentes literários. Já fiz parte, embora minimamente, dessa engrenagem, e, se disser que boa parte deste comentário se deve talvez a não integrá-la mais, provavelmente estarei certo. Não acredito, porém, que isso o invalide. O que sempre ocorreu na música vem ocorrendo na literatura: maquinações, lobbies, simonia. E os novatos só têm chance de mostrar seu trabalho se dançarem a mesma dança. Há uns dois anos, vi, numa dessas famosas colunas sociais, a enorme foto de um jovem com totais aptidões para fazer carreira como modelo. Era, no entanto, escritor e, segundo a coluna, estava terminando seu primeiro livro, que já despertara a atenção de um diretor que pretendia adaptá-lo para o cinema. Esse era um jovem "especial", já se vê. Não sei se terminou o livro. Se o terminou, deverá merecer, por direito de proporcionalidade, uma foto no mínimo três vezes maior, o que deve equivaler a uma página inteira. Osman Lins já falava disso tudo, do comércio em que se transformava a literatura, quarenta anos atrás. Era odiado pelos editores em geral. Quantos jovens mandam, esperançosos, seus originais a esses concursos. A comissão julgadora, sempre composta de cinco ou seis ocupadíssimos escritores, é encarregada de analisar trinta mil, quarenta mil textos. Isso quer dizer que a esses cinco ou seis escritores devem chegar vinte ou trinta originais, selecionados sabe-se lá por quem e segundo sabe-se lá quais critérios. Uma semana, um mês antes, os jornais destacam os favoritos (acabando com o anonimato exigido). Não participo de concursos. Tomei parte de dois, há décadas. Quando se instituiu a norma de não devolver originais aos autores, ficou evidente o que um amigo meu me dissera. Mandando cinco cópias a um desses concursos, ele, ao recebê-las de volta, viu que nenhuma delas havia sido folheada. Ele tinha, em todas elas, costurado com linha finíssima algumas páginas. Os originais voltaram com a costura, atestando o pudor dos julgadores. Bem, hora de terminar. Descontem o que há de despeito meu e intolerância e talvez acabe sobrando algo que sirva como motivo de reflexão. Minha pureza talvez seja a daqueles a quem não se deu a oportunidade de ser senão puro. Falo de modo genérico e não me importaria nem um pouco se Lucia Riff ou Luciana Villas-Boas se interessassem em gerir minha carreira, se bem que, pelo andar da carruagem, talvez eu só possa prometer-lhes livros escritos no Além.

Nunca aprendi...

... como fazer diferente e, quando tentei, dei com os burros e a carroça na água. Mas sempre soube que um homem não nasceu para comer, eructar, palitar os dentes, olhar bovinamente para o horizonte e, como se fosse uma alta demonstração de sabedoria, dizer: hoje não chove. Ou hoje chove.

Opinião

Vocês, eu não sei. Para mim a vida é triste. Dizem-me que não tenho razão para me queixar, e no entanto me queixo. Dizem-me também que é um pecado ter tudo que tenho e não agradecer a Deus. Diabos. Cada um sente a vida de um modo. O meu modo é esse. Comam seus churrascos, viajem pelo mundo, postem no facebook todos os acontecimentos de cada um de seus dias venturosos. Talvez eu tenha inveja de vocês. Incomoda-me a alegria. Nunca aprendi como ela funciona. É tarde, agora. Burro velho só conhece um caminho. O meu será sempre este, o pior que pude conseguir para mim. Deixem-me percorrê-lo até o dia em que, na "rede", vocês disserem, com aquela tristeza educada, que desde o início era o fim previsto para mim. Se disserem, também, que mereci tudo que me aconteceu, será, embora eu já não possa gozá-lo, um orgulho para mim. Como se diz, agradeço antecipadamente a todos.

A caminho da escola

Todos os dias o padrasto puxa pela mão o menino de sete anos para a escola. O menino esperneia, implora pela mãe. Mas a mãe já está no trabalho. Alguém precisa sustentar a casa. O menino implora então pela avó. A avó está, com o dinheiro da filha, fazendo o almoço que o homem, quando voltar já bêbado, trazendo o menino de volta, comerá como um porco, reclamando do sal ou da falta dele. Depois se deitará e dormirá até a hora do jantar. Quando acordar, perguntará à mulher por que chegou tão tarde. À avó dirá que há muito tempo ela não faz mais peixe. Quando a mãe se trancar no quarto com o homem, o menino será posto na cama pela avó e sonhará com um gramado extenso, verdíssimo, por onde um dia ele escapará correndo até que ninguém, nem a avó, poderá alcançá-lo.

Paisagem

O pinheiro da casa em frente, interrogado pelo vento, move-se e diz não.  Mas o vento o fustiga. Um dia o derrubará. Também a menina da casa grita nos fundos: não, não, não. Mas o ruído das palmadas ecoa na manhã. Somos tristes desde que nascemos. O restante da vida serve para completar o aprendizado. Eu, já graduado, digo não com o coração, com a alma, com as entranhas. Mas a Vida me sacode todos os dias e me incita a prestar-lhe honras. Só a Morte me salvará.

Os mais belos títulos

Mais uma sugestão para a escolha dos mais belos títulos de livros: Um vagabundo toca em surdina, de Knut Hamsum.

Soneto da mútua compaixão

Talvez um dia saibamos
O que de fato ocorreu
Com o afeto que alimentamos
E tão depressa morreu.

Jamais nós nos explicamos
Como foi que aconteceu,
Onde foi que nós erramos,
Se a culpada és tu ou eu.

Aquele amor declarado
E tantas vezes jurado
Terá sido só ficção?

Se foi, é hora de assumir
E de nunca mais mentir.
Tenhamo-nos compaixão.

Kama Sutra - CCLXXXV

Havia nas mulheres que se davam por dinheiro uma aura de pecado, de coisa suja, de danação. Eram chamadas de perdidas, e deitar-se na cama delas era chamar também para si a perdição. Hoje esse fascínio se perdeu. Elas passaram a ser prestadoras de serviço e, se lhes for pedido um recibo ou uma nota, elas certamente puxarão da bolsa um talão. Não bebem, não fumam, não se drogam e frequentam diariamente a academia. Saudade das Dalilas, das Messalinas, que guardavam na língua e no sexo um pouco do cheiro e das chamas do inferno.

Cotação do dia

Lembrar-nos de continuar esquecendo tudo, até que o próprio nome nos venha a soar um dia como o de alguém vagamente conhecido, talvez numa vida anterior.

História

O ensino de história tem sido muito descurado. Há cada vez menos Napoleões nos hospícios.

Cinco tankas de Takuboku Ishikawa

"Fecho os olhos, mas o coração
é um pulsar cotidiano.
Reabro os olhos à tristeza."

                   ***

"Hoje, a caminho do emprego,
de repente, mudei de ideia, outra vez,
e fiquei vagando pelo cais."

                   ***

"No meio do caminho,
nenhum bonde para o meu destino:
a chuva, a maré no olhar."

                  ***

"Empurro a porta. Um só passo.
Aos olhos de um doente,
o corredor não tem fim."

                  ***

"O longo corredor do hospital
e o desejo de ir, uma vez,
até o fim."

(Do livro Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicado por Roswitha Kempf/Editores.)

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A doida no sótão

Deus me deu uma sensibilidade aguda, doente como aqueles malucos que nos romances antigos as famílias encarceravam no sótão. Assim como aqueles, minha sensibilidade não consegue exprimir-se senão com grunhidos.

Kama Sutra - CCLXXXIV

Que tua mão esquerda não saiba o que a direita faz quando percorre o teu corpo naqueles momentos em que a tua solidão é exasperada por lembranças que se deitam contigo nessa cama em que outrora o amor te impunha o agradável jugo, vertendo leite em tuas entranhas.

Experiência

Sou um capitão experiente. Naufraguei já dezoito vezes. Dizem que foram vinte e duas, mas sou modesto.

Um poema de Alberto Caeiro

"O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso."

(De Antologia poética de Fernando Pessoa, organização de Cleonice Berardinelli, publicação da Casa da Palavra.)

Kama Sutra - CCLXXXIII

Se teus olhos, jovem tolo, olhassem mais para ti mesmo, se teus olhos, jovem tola, olhassem mais para ti mesma, eles alcançariam melhor proveito do que fixando-se no horizonte. Há em ti, jovem tolo, há em ti, jovem tola, uma região protegida por aquela palavra inacreditavelmente feia (umbigo) que, explorada com arte pelos vossos dedos, vos tornará livres de encherdes de súplicas o ar, valorizando como ouro o que de carne não passa. Mãos à obra.

Ensino errôneo

Ao contrário do que sempre tentam impingir, saudável é o sexo, não o amor. O sexo não é metido a besta. É objetivo, direto, eficaz. Sabe o que quer, o que pode, e não esconde isso. O amor adia para a eternidade algo que está ao alcance de qualquer um em cada esquina, com o requinte da cama redonda e o jantar executivo, talvez com azeitonas chilenas no cardápio.

A poesia

Apresentar a poesia aos jovens é pior e mais cruel do que dar-lhes o endereço de um traficante de drogas. O amor, sempre disfarçado em cada estrofe de cada poema, assim como uma cascavel escondida entre as pedras, é mais letal que a cocaína.

Da inutilidade de continuar escrevendo

Já disseram tudo por mim. O que sinto, o que sofro, o que choro. Dizer com a minha voz o que Shakespeare disse será o que mais, além de presunção e estultice? Os sentimentos que os grandes exprimiram deveriam ser vedados aos demais. Cantilenas de rimas pobres são risíveis, ainda que seu autor banhe cada palavra com suas lágrimas. Uma enxada para cada mau poeta seria talvez um bom modo de melhorar o mundo.

Cotação do dia

Uma sensação de nau destroçada, condenada a permanecer até o último dia do último século no fundo, olhada com estranheza e cautela pelos peixes. E sentir ainda, no que sobrou do casco, a doída lembrança do meu capitão e dos outros, joviais marinheiros, e da mulher de cabelos ruivos, clandestina, no seu camarote que era aberto só à noite, por um marujo com uma cicatriz debaixo do olho direito, que tinha nos dedos a arte de desemaranhar sedas e conhecia o caminho do sal. De todos não restam nem os ossos mais. Miraculosamente, só uma lasca do espelho onde a bela se fitava.

Inércia

Em vez destes meus rompantes,
Melhor seria a inação.
Caminhar em frente é vão,
Eu sempre sou melhor antes.

Da sabedoria dos velhos

Dos velhos se espera uma sabedoria que eles não têm. Confunde-se sabedoria com conhecimento acumulado. Ter tropeçado vinte vezes na mesma pedra será sabedoria ou seu antônimo? A suposta sabedoria dos velhos é toda dirigida a cercear, a proibir, a coibir. Pode-se resumi-la a um imperativo negativo, pomposo como os mandamentos bíblicos: não farás. O que os jovens esperam aprender é como fazer. Não todos os jovens, certamente; só novecentos e noventa e nove em mil. O milésimo é um dos que já nascem velhos.

Soneto do que restou do amor

Que o que ficou fosse doce,
Mesmo que tão impreciso
Que mentir fosse preciso
A fim de que crível fosse.

Que em nossos lábios ninguém
Pudesse nunca encontrar
Nem jamais em nosso olhar
A falsidade que têm.

O amor extinto louvemos
Com toda a força que temos,
E mais alguma, talvez.

Se for preciso, falseemos
E o parco amor aumentemos.
Seria a primeira vez?

"Coisas que esmaecem na pintura", de Sei Shônagon

"Coisas que esmaecem na pintura: cravos-renda. Íris aromáticos, flores de cerejeira. Feições de homens e mulheres que são descritas como maravilhosas nas narrativas.
   Coisas que ganham vida na pintura: pinheiros. Campos de outono. Vilarejos ao pé da montanha. As trilhas das montanhas."

(De O livro do travesseiro, tradução de Geny Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luiza Nana Yoshida e Madalena Hashimoto Cordaro, publicado pela Casa da Palavra.)

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Calendário

Deixar de ser petulante,
Deixar cair minha pose.
Dia onze estou bem, dia doze
Quem minha pose garante?

Soneto dos modos de morrer

Há quem morra de tristeza,
De solidão, desamor,
E há também quem morra por
Não lhe sorrir a beleza.

Não tem a morte avareza,
Está ao nosso dispor
Seja em qual ocasião for,
Sempre com toda a presteza.

No seu catálogo tem
O final que nos convém,
Mas dispõe também do pior.

Morrer de doença é penoso,
Morrer dormindo é ditoso,
Morrer de amor é o melhor.

Soneto da desnecessidade do amor

Viver não é preciso, quando a chama
Do amor há muito já se dissipou
E só memórias frígidas deixou
Em quem amou tanto e já não ama.

Viver não é preciso, se acabou
Em nós já a paixão, e agora a trama
Interesse de nós já não reclama,
Nem mais a história que nos encantou.

Viver não é preciso. Para que
Continuarmos assim na peça se
Dela saiu o artista principal?

Sem o amor, não há mais nenhum sentido
Em cena alguma. Tudo está perdido,
Antes já do capítulo final.

Um trecho de Luiz Carlos Cardoso

"Outra razão a me incomodar, essa maior ainda, era, digamos, a modalidade do meu amor por Diana. Todos conhecem aquele conto de Eça de Queirós em que José Matias ama por dez anos a divina vizinha Elisa, com ela trocando cartas e juras. Quando morre o marido de Elisa, deixando-a disponível para ele... ele foge! Elisa casa de novo e José Matias volta à vizinhança para amá-la por mais sete anos, até que ela de novo enviúva. 'E o José Matias inteiramente se sumiu, evaporou', conta o narrador. A divina Elisa torna-se amante de um homem separado e muda-se."

(Do livro Crime improvável, publicado pela Ficções.)

Do tato indesejável

Sinto, cada dia mais, que as folhas e os galhos da ameixeira, quando me aproximo para tocá-los, fingem ter sido soprados pelo vento e se afastam habilmente de minhas mãos. Estarão mais hábeis ainda na encenação quando chegarem os frutos.

Os seiscentos mil

Releio texto que coloquei ontem aqui e sinto como pode ser inconveniente, e até asqueroso, um homem, quando carente de afeto e autoestima. Que indignidade aquilo, falar de mim e dos livros infantojuvenis que escrevi. Parecia um cachorro coberto de chagas querendo, com as patas da frente erguidas, que apesar de tudo o dono o acolhesse no colo.

O paraíso

Um dos velhinhos, num dos meus primeiros dias de asilo, me dirá que, se soubesse como seria bom estar ali, teria pedido à família que o internasse antes. E se lastimará por haver perdido quinze anos por não saber.

Kama Sutra - CCLXXXII

Ela disse que ia ensiná-lo a beijar. Três meses depois, ele perguntou se já sabia. Ela lhe respondeu que ele era muito impaciente e pouco aplicado. Ele contra-argumentou, achando ter evoluído bastante. Ela lhe disse que além de impaciente e pouco aplicado ele era presunçoso. A professora ali era ela, e ele devia comportar-se como aluno. E havia outro dado que ele precisava tomar como irrefutável sinal de que a razão estava com ela: ele tinha quinze anos; ela, trinta e sete.

O cachorro

No almoço, um dos velhinhos do asilo perguntará aos outros se, assim como ele, não terão estranhado não se ouvir mais o cachorro que noites antes incomodava o sono de todos. Uma das velhinhas dirá, sem malícia: "Eu estava dizendo aqui para a Vera que o gosto desta carne está muito diferente."

In extremis

Que possa ser gentil a enfermeira que ouvirá nossa última tentativa de frase e que seja amável seu rosto, derradeira imagem que levaremos deste mundo.

Soneto do amor saciado

O amor é como um brinquedo.
Só sabe nos divertir
Enquanto nele existir
Ainda um pouco de segredo.

Infelizmente, bem cedo
Ele passa a se exaurir
E já não sabe atrair
O outrora sequioso dedo.

Este já não se aventura
Nem as delícias procura
Onde as costumava achar.

Já não o atraem os montes
Nem lhe apetecem as fontes
Onde o sal ia buscar.

A visitante

No asilo, uma das velhinhas, sempre que nas refeições cair uma faca dirá ser um sinal de visita de uma mulher. E dirá que a visita será de um homem, quando cair um garfo. Num almoço de domingo, ela deixará escorregar da mão uma faca e não será vista no jantar. À tarde, receberá a visita de uma senhora bem mais velha que ela.

Um trecho de Margaret Atwood

"Mas, entre os eleitos, o martírio é sempre uma possibilidade; e ser artista não é bem uma escolha - o Deus da Arte escolhe a pessoa e não o inverso. Portanto, a vocação artística tem uma aura de tragédia e danação. 'Nós, poetas na juventude, começamos alegres' disse Wordsworth, 'mas depois vem o fim, o desânimo e a loucura.' Consideremos o conto de Franz Kafka A Fasting-Artist (Um artista jejuante).  O artista dedica-se inteiramente à sua arte. Esta arte é grotesca; o artista mora em uma jaula e morre de fome - como fazia antigamente um cristão asceta em mortificação -, e, de início, ele é muito popular; multidões acorrem para admirá-lo. Então a moda muda - ao tempo de Kafka, a moda da arte por amor à arte estava perdendo terreno - e o artista jejuante acaba a um canto, abandonado entre os animais circenses, e as pessoas esquecem que ele está enjaulado. Finalmente, ao mexerem na palha podre elas o redescobrem, mais morto do que vivo."

(Do livro Negociando com os mortos, tradução de Lia Wyler, publicado pela Rocco.)

Automomem

Creio que não te incomodas,
Pois não uso dolo algum
Quando digo que o homem é um
Animal de quatro rodas.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Alguns dados para a coluna de Falecimentos

Quando me vergasto, sei bem por que o faço. A explicação é simples, e até rima: fracasso. Quando eu morrer, algum piedoso necrológio - talvez daquele jornal que eu amo tanto - usará, para tentar preencher as dez linhas que eu venha a merecer, a informação de que vendi seiscentos mil exemplares, quase todos na área juvenil. E é verdade. Onde, então, está o fracasso? No seguinte: se há algum mérito nisso, será o da generosidade desses leitores que os compraram e o do trabalho de divulgação, especialmente da Editora Ática. Eu sei - e isto me incomoda. Não posso considerar nenhum deles uma obra formalmente acabada. Parece cabotino, tudo isto, e, se tiver alguma importância, que seja a de acentuar o fato de o livro ser um objeto social, que pertence aos leitores mais que ao autor. Os arroubos de ciúme que este tiver em relação a ele, como se fosse um filho muito querido e nunca suficientemente bem compreendido, hão de se dissipar quando o primeiro par de olhos estranho tiver acesso às suas páginas. A partir desse momento, o autor, para usar uma expressão de direito de família, passa a compartilhar a guarda do seu filhote com os leitores. E seus queixumes quanto à possível má interpretação serão impertinentes e até grosseiros. No meu caso, se os leitores vissem meus livros como eu os vejo, eu não teria vendido nem um décimo, tenho certeza. O leitor é um coautor, sempre. Seiscentos mil leitores são seiscentos mil coautores. Que posso fazer mais, além de agradecer?

Marilyn Monroe

No asilo, um dos velhinhos esperará diariamente notícias sobre Marilyn Monroe na tevê. "Ela é a minha namorada, sabe?" será sempre a sua risonha explicação.

Duas estrofes do amor enfermo

Tu me revolves e assanhas,
Tu me viras e reviras,
Tu me seguras e giras,
Tu me mordes, tu me arranhas.

Te aceito as taras e as sanhas,
Tuas vingativas iras,
E imploro-te que me firas
Ate arrancar-me as entranhas.

Do "Cântico dos cânticos", do rei Salomão

"A fonte do meu jardim é manancial de águas vivas,
e os riachos brotam do Líbano.
Levanta-te, Aquilão, e vem, ó Austro!
Sopra no meu jardim: exalem-se os seus aromas,
Venha o meu amado ao seu jardim
e saboreie os seus frutos deliciosos."

Nem com dicionário

Meu pai sempre esteve longe de ser um gênio e, graças a Deus, muito mais longe ainda de ser um boçal. Não conhecia a teoria dos quanta, eu desconfio, nem sabia usar a tábua de logaritmos, mas sou testemunha de que tinha para o gasto sua geografia, sua história e, se olhava toda hora para o céu, não era para exercitar a nuca nem para fortalecer o gogó: amava com amor apaixonado a astronomia.
   Apesar de polonês fanático, daqueles que já vão pondo um pé atrás quando ouvem falar de russo ou de alemão, tinha alguma coisa de grego no sangue. Sabia que sabia pouco e se envergonhava de não saber mais. Essa vergonha ficava evidente quando eu lhe pedia ajuda para fazer a lição.
   Nessas ocasiões, ele quase sempre me surpreendia com conhecimentos que eu não imaginava nele. Era capaz de dizer qual a capital do Afeganistão, como o vapor se condensa para formar a chuva, quem havia feito o que no reinado de Carlos I ou na batalha de Waterloo. Mas, se para alguma pergunta não lhe ocorria a resposta, entrava logo em pânico. Pigarreava, começava a piscar, cada uma de suas orelhas se transformava numa labareda e eu, que nunca vi meu pai chorar, nesses momentos avaliava seu esforço para manter o estilo de polonês durão. Essas constrangedoras cenas tinham sempre o mesmo final. Ele se lembrava de repente de um compromisso importante, enxugava o suor do rosto humilhado e se retirava com uma daquelas desculpas de derrotado:
   "A explicação é complicada e agora eu não tenho tempo. O jeito é você procurar no livro."
   Ou então:
   "Isto é melhor ver no dicionário. Eu poderia dar a definição com as minhas palavras, é claro, mas nunca é a mesma coisa, e seu professor vai acabar baixando a nota."
   Evoquei esses episódios da minha remota adolescência há alguns dias. Era um desses deliciosos domingos nos quais, ainda que conheça muito bem sua família, ninguém vai esperar uma traição. Eu estava pronto para uma boa caminhada antes do almoço, quando o golpe desleal me atingiu. Já com a chave na mão, fui brecado nos dois tênis pelo meu filho. Ele tinha assumido o controle da mesa da sala e, quase oculto pela pilha de livros esparramada em cima dela, ordenou, com toda a autoridade dos seus quinze anos, que eu lhe desse uma ajuda no trabalho de casa.
   Ver o adorável rapaz empenhado em algo além de tocar guitarra e de pentear os cabelos foi uma emoção tão forte que concordei. Esquivei-me com classe da primeira pergunta, livrei-me com categoria da segunda e talvez tivesse até conseguido convencer o cabeludo garoto de que não sou o cretino que ele supõe, se não fosse a terceira.
   "Pai, o que é entropia?", perguntou à queima-roupa o jovem guitarrista, com o livro de física na mão.
   "Entropia, meu filho?"
   "É, pai, en-tro-pi-a."
   "Entropia, meu filho, entropia, meu filho", disse eu, girando em falso e já planejando a fuga, "entropia, meu filho, é..."
   "Faz um negócio, pai. Deixa de enrolar e olha aí no dicionário. Meu livro aqui diz o que é, mas eu não entendi bem."
   Com as orelhas em brasa, como ficavam as do meu pai, peguei o Aurélio e li, em voz alta e solene:
   "Entropia é a função termodinâmica de estado, associada à organização espacial e energética das partículas de um sistema, e cuja variação, numa transformação deste sistema, é medida pela integral do quociente da quantidade infinitesimal do calor trocado reversivelmente entre o sistema e o exterior pela temperatura absoluta do sistema."
   Quando cheguei ao ponto final, ainda consegui (proeza de filho de polonês) fôlego para perguntar:
   "Compreende agora o que é entropia, filho?"
   De olhos arregalados, meu guitarrista preferido disse que não. Esse menino me preocupa.

(Crônica originalmente publicada pela revista Veja em 1992 e republicada em meu livro Pais, filhos e outros bichos, edição da Lazuli Editora e da Companhia Editora Nacional.)

O pior tipo de velho

O pior tipo de velho é o que pensa ter ainda a voz e os direitos da juventude. E clama, e brada, e exige, como se fosse uma obrigação do mundo ouvi-lo. O velho, todo velho, há de ir se apagando aos poucos, para que no último ato seja tão importante na cena quanto uma cadeira na cozinha ou um jarro lascado na sala.

Soneto do amor indiferente

A caravana passou.
Ecoa ainda além o ruído,
Aquele alegre alarido
Que tanto nos encantou.

Quando ela se aproximou,
Lançamos nosso pedido,
Mas não nos deram ouvido,
Ninguém sequer nos olhou.

Foi triste. Latimos tanto,
Latimos alto, e no entanto
Não nos adiantou latir.

O amor passou. Imploramos
Por um sorriso, choramos.
Foi humilhante pedir.

Kama Sutra - CCLXXXI

Acariciar-lhe os cabelos e descobrir ali, escondido, um fio que o sol negou à manhã. Apanhá-lo com cuidado e, quando ela estiver distraída, beijá-lo e enfiá-lo no bolso, como um ladrão.

O mau poeta

O mau poeta disse a amigos que jamais perdoará a bem-amada, não por ela lhe haver recusado beijos, mas por não ter chamado de magistral nenhum dos cem poemas que lhe dedicou.

Da voz do trigo

Acabou de colher o trigo. Seu celeiro está repleto, mas soa diferente agora, à noite, a música do trigal, e o sono reluta em vir.

A vida e a ficção

Assim como a ficção, a vida há de seguir certas normas. É um direito dos espectadores e dos leitores. O óbvio deve ser evitado. Nada mais maçante, por exemplo, que um suicídio anunciado durante quatro anos ou por quatrocentas páginas. Diante dele, quando consumado, os espectadores e os leitores dirão, entre bocejos: tanta aporrinhação para acabar mesmo dando nisso?

Soneto do amor gatuno

Quem há de ser assim tolo
Que, na rua caminhando,
E um amor qualquer achando,
Dentro de casa vá pô-lo?

Quem vai, ouvidos não dando
À fama do amor, supô-lo
Melhor do que ele é, e impô-lo
Ao coração, e até quando?

Um amor é aquilo que é.
Não tem jamais compostura
E age sempre de má-fé.

Desde que nele confiemos
E em sua falsa ternura,
Roubará tudo que temos.

Do amor

O amor perdeu pontos com ele. São muitas as evidências. Já sabe, por exemplo, que por ele jamais se matará.

Um poema de Fernando Pessoa

"Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Desejo, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?"

(De Antologia poética, organização de Cleonice Berardinelli, publicada pela Casa da Palavra.)

domingo, 25 de agosto de 2013

Kama Sutra - CCLXXX

Convencê-la de que há uma felpa, um fio, um minúsculo inseto ou um pedacinho dele emaranhado no seu umbigo. Fingir procurá-lo com o dedo carinhoso e, de repente, sem aviso, como se fosse um instrumento melhor, engajar a língua na busca. E usá-la com tanta arte que, ao parar para readquirir o fôlego, a voz dela sussurre, conspiratória: "Já? Você procurou direito?"

Um pouco daquele pó antigo

Alguns disseram que sim
outros disseram que não

Os que sim e os que não
tudo que disseram
foi tudo dito em vão

Morreram todos
os que optaram
pela afirmação
e todos os que
pela negação
optaram.

O que sabemos

De duas coisas sabemos.
Sabemos que estamos vivos
E vivos não ficaremos.
Da morte somos cativos.

Kama Sutra - CCLXXIX

Tentar acariciar-lhe as coxas, ter a mão repentinamente presa entre elas e, como inesperado e venturoso castigo, precisar render, com o dedo médio, tributo à fonte salina protegida por fios de ruivo sol.

Kama Sutra - CCLXXVIII

Roçá-la ali onde o homem que ela mais amou deixou, vinte anos antes, a lembrança de sua mão. E, com a ajuda do acaso ou de uma feliz intuição, repetir a sabedoria dos dedos e a aptidão que tinha esse homem para fazer aflorar nela seu mel mais íntimo.

"Coisas que perdem a pose", de Sei Shônagon

"Coisas que perdem a pose. Um grande barco encalhado na maré baixa. Uma grande árvore derrubada pelo vento, tombada com as raízes à mostra. Uma pessoa de baixa condição acusando e repreendendo seu acompanhante. Uma esposa que, por causa de ciúme infundado, deixa sua casa, pensando que certamente a procurariam e depois, não podendo mais continuar ausente, reaparece, uma vez que o marido, indiferente, não saíra em sua busca."

(De O livro do travesseiro, tradução de Geny Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luiza Nana Yoshida e Madalena Hashimoto Cordaro.)

A decisão

Estamos sempre para tomar aquela decisão que mudará nossa vida. O que nos atrapalha é que, antes, precisamos tomar a decisão de tomá-la.

Os filósofos populares

Há filósofos que deram a vida inteira à criação de normas e à tentativa de compreender a vida. E há gaiatos que, num repente, chegam a conclusões similares. Como aquele que disse a imorredoura verdade: a vida é uma merda. Ou aquele outro que chegou à mesma conclusão, usando três marcas de automóvel: na vida, a gente Nash, Ford e Morris.

Os domingos de outrora

Eram promissores os domingos da infância. Havia sempre tanta coisa a fazer. Um cinema, um circo, um joguinho rala-canelas na rua de terra. Roubar laranjas na chácara, quebrar vidraças, escrever palavrões com cacos de telha nos muros, desenhar cacetes gorgolejantes nas casas das meninas pudicas. Invejávamos os adultos, que passavam agarrados com as mulheres, e não sabíamos que eles, apesar dos olhos lúbricos e dos inchaços nas braguilhas, nos invejavam também. Se os chamássemos para dar uns chutinhos, eles se desenroscariam das mulheres e viriam ser zagueiros.

Medidas

Não adianta chorar
ir à sacada e bradar
O tempora! O mores!

Não somos maus
é verdade
os outros é que são melhores.

A natureza, em Faulkner

Em Faulkner, a natureza é viva. Não é um pano de fundo. Ela toda lateja, zumbe, clama, exige sua parte na narrativa. Ela não entra como adjetivo, impõe-se como substantivo. Cada folha, cada árvore, cada sombra tem voz. E os animais participam como só poderiam participar os animais descritos por um sulista. Não são enfeites, são personagens e, às vezes, protagonistas.

Soneto da entrega

Não te preocupes. Sou teu,
Não sou das outras mulheres.
Me usa como bem quiseres,
Quem te permite sou eu.

Não tenhas nenhum pudor,
Me pega, sacode, espanca,
Minha pele inteira arranca,
Desde que seja com amor.

Se todo teu sou, me parte,
Em mil partes me reparte
E guarda cada uma delas.

Se mãos terão de as guardar,
Não consigo imaginar,
Fora as tuas, mãos mais belas.

Cinco tankas de Takuboku Ishikawa

"Pobre de quem se contenta
escrevendo um romance ridículo.
Vento de início de outono."

                    ***

"Fumaças no céu azul,
o inverno sobre os olhos.
Uma doença, a nostalgia."

                    ***

Pelo peso do acolchoado,
suspeitei que o destino se deitou
sobre mim, ao despertar à meia-noite."

                    ***

"Muita gente, em algum lugar,
jogos de sorte ou azar:
também quero tentar."

                    ***

"Um trabalho, com prazer.
Ao seu término,
pretendo morre."

(Do livro Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicado por Roswitha Kempf/Editores.)

sábado, 24 de agosto de 2013

Kama Sutra - CCLXXVII - Márika Voroshenka (15, epílogo)

Não preciso, suponho, relatar os detalhes da ansiedade que me tomou depois de Márika me dizer que talvez estivesse no parque às três horas. Podem imaginar todos os clichês, até o pior deles, este: o tempo parou. Às duas e meia eu já estava na entrada do parque. Fiquei ali por dez minutos. Ocorreu-me então que, sendo sábado, conviria ir até o nosso banco e guardar o meu lugar e o dela, colocando o pulôver ao lado. Descendo pela trilha, vi, de longe, alguém sentado no banco. Era uma mulher. À medida que me aproximava, notei que tinha cabelos escuros, como os de Márika. Já mais perto, vi que o rosto era muito parecido e, um pouco adiante, não tive dúvida. Era ela. Falava com um homem que estava em pé, segurando um cachorro pela guia. Era o velho que vinha todos os dias. Eu estava a vinte passos deles quando o homem saiu andando com o cachorro na minha direção. Disse-me boa tarde, enquanto dava tchauzinho para Márika, e seguiu. Sentei-me e beijei Márika: "Que bom que você veio mesmo, minha querida. Eu pensei que fosse um trote seu." "Trote? Eu estava tão ansiosa... Viu o homem que estava conversando comigo? É simpático. Disse que vem sempre aqui. Eu não lembro de ter visto." A essa altura, o homem e seu cachorro estavam já fora de vista, e eu abracei Márika. Não lhe procurei a boca. Encostei os lábios na sua orelha e disse, perturbado: "Eu te amo, eu te amo, eu te amo." Ela se arrepiou toda, mas eu disse de novo o triságio amoroso: "Eu te amo, eu te amo, eu te amo." Ela se virou para mim e me beijou os lábios como se os meus e os dela fossem dois animais selvagens empenhados em se aniquilar. Foi sua vez de dizer, para dentro da minha boca: "Você me ama. E o que mais?" Senti suas unhas nos meus braços, atravessando o pulôver. Queria que eles sangrassem, que guardassem para sempre as marcas impostas por ela. "E o que mais?", ela continuava a perguntar, com a língua depositando, na minha, vogais que corriam para a minha garganta. "Quero te comer", eu disse, já não sabendo qual saliva era a minha e qual era a dela. Espantei-me por ter usado aquele verbo, comer, eu que sempre recalquei qualquer palavra que achasse de mau gosto. Comer, no sentido sexual, sempre foi uma delas. Espantei-me ainda mais quando, apertando Márika como se quisesse quebrá-la, osso por osso, livrei meus lábios dos seus para dizer com insolente clareza: "Agora!" "Você enlouqueceu?", ela me perguntou, mas sua mão, ao contrário da voz, que me desencorajava, fixou-se plena e firmemente no meu pau (os muito pudicos me desculpem, mas não vejo como chamá-lo de outra forma no contexto e, convenhamos, haveria outros termos ainda piores). Enfiei a mão entre suas coxas, por dentro da saia, e senti a sua calcinha úmida. "Agora!", repeti, "agora!", enquanto com o dedo médio buscava reforçar meu apelo. Ela, apertando e desapertando meu pau, com um ritmo que já fazia tremer  minhas pernas, disse: "Mas onde?" "Ali embaixo", respondi, referindo-me a um lugar, dentro do parque, em que era comum vermos jovens casais deitados, simulando dormir quando estavam mais despertos do que nunca. "Você enlouqueceu mesmo", Márika me censurou. "Em outro lugar, então, em qualquer um. Num motel", eu propus. Ela ficou um instante em silêncio, depois me disse: "Pensa que eu não quero também? Eu estou louca de vontade. Viu como eu estou molhada? Mas hoje não." "Por que não?", eu quis saber. "Ser vista num motel não ia ser nada bom para mim. Eu não te conheço direito, mas acho que também não ia ser bom para você. E sábado é pior. Os motéis ficam lotados. Outro dia. Semana que vem." Nesse instante, passou por nós, sem que tivéssemos notado sua aproximação, o velho com seu maldito cachorro. Márika e eu nos recompusemos do jeito que foi possível, mas ele, discreto, não olhou para nós. O fogo em que Márika e eu ardíamos arrefeceu e, depois de mais alguns beijos que pareciam brasas se apagando sob chuva, levantamo-nos para ir embora. A caminho da saída, Márika parou na ponte que há sobre um laguinho em que vivem pequenos peixes vermelhos. Surpreendentemente, não havia nenhuma criança ali, o que eu encarei como um indício de minha boa sorte, e, assim, enquanto Márika, debruçada, olhava para baixo, eu, como um cafajeste, a abracei por trás e senti os contornos de sua bunda. Deus! Não há outra interjeição que traduza o que aconteceu com o meu corpo, que parecia pronto para entrar em convulsões. Por alguns momentos eu tive dezoito anos e se Márika, embora com delicadeza, não saísse daquela posição, certamente eu estaria numa delegacia agora. Despedi-me dela. Sentia-me fraco, exausto, como se a tivesse comido uma, duas, dez vezes. Ela prometeu que nos veríamos na segunda, de manhã, e decidiríamos então sobre o motel ou alguma outra hipótese. Ela mencionou a casa de uma prima, que trabalha o dia todo e talvez se dispusesse a emprestar a chave. Com os ouvidos zumbindo, atônito, receando a cada passo que minha pressão fosse explodir, peguei o rumo de casa. Ouvi o resfolegar de um cão. "Ei", alguém me chamou. Naturalmente era o velho com o cachorro. Sorri e parei. Ele, sem mais, me disse: "Nunca mais se encontre com a Márika, está me ouvindo?" Fiquei sem palavras. Ele continuou: "Um encontro mais, só um, e eu corto a sua garganta." Pus-me a gaguejar. Ele tirou do bolso um canivete de lâmina muito longa. Então aquele era o pai de Márika, pensei, já imaginando poder enrolá-lo, como parece ser o destino de todos os pais. "Eu sou casado com a Márika há cinco anos. Isso tudo que aconteceu com vocês dois foi um arranjo, meu e dela. Não vou pedir desculpas, porque você teve a sua diversão, mas agora acabou, entendeu? Eu e ela gostamos de fantasias sexuais. Pela idade que eu tenho, você vai pensar que eu é que preciso disso. Mas ela é viciada também, sempre foi. Quando a coisa começa a esfriar entre nós, ela faz esse joguinho que fez com você. A gente some depois. Eu nunca fiz isto que estou fazendo com você, esta ameaça. É que eu notei, e ela me confessou, que você deu uma mexida nela. Talvez ela goste mesmo de velhos (ele riu) Bom, você não vai  mais ver nenhum de nós, nunca. A gente não mora por aqui. Mas vale o aviso. Se você um dia encontrar a Márika, nem olhe para ela. Não me custa cortar a garganta dela também. Quando penso que logo não vou mais poder gozar tudo que ela me dá, tenho vontade de fazer isso. Você entendeu bem? Estamos falando a mesma língua? Para o seu bem, espero que sim." O velho despejou esse discurso todo, sem deixar que eu pusesse uma vírgula, e foi embora, com o cachorro desgraçado. Imaginei se também ele, o cachorro, não era usado nas fantasias sexuais. E aqui estou eu. São quase sete e meia desta que vai ser a pior noite de minha vida. Meus pensamentos se embaralharam de tal forma que suponho estar enlouquecendo. Como vou aguentar? Não ver Márika nunca mais, não beijá-la, privar meus dedos de apalpar sua roupa, sua carne. Nunca mais ver aquela bunda altiva e ao mesmo tempo escandalosa como a de uma cozinheira de pensão. Por que eu, justamente eu, fui escolhido para sofrer essa crueldade? O velhote amaldiçoado me disse que, de todos os patetas usados no jogo, fui eu quem mais mexeu com Márika. Acredito nisso? Foi possivelmente mais uma pimentinha, só, para acender a volúpia dos dois. Márika Voroshenka, Márika Voroshenka. Qualquer idiota teria visto a improbabilidade desse nome, e a história de sua ascendência russa. Não é assim, certamente, que ela se chama. Pode chamar-se Diva Reis, Dora Sousa, Dulce Lima. Márika Voroshenka deve ser o nome que usa nas fantasias de alcova, para erguer o mastro daquele porco velho. Ou talvez o nome mude em cada aventura. Não sei.  Um momento, por favor. Vou pegar o termômetro. Estou ardendo, queimando. Minha febre não é amorosa, é sexual, a febre do desejo não consumado. Não é culpa minha, mas jamais me perdoarei por não ter arrastado Márika Voroshenka para a parte baixa do parque. Como viverei agora, com esta imagem que me seguirá até o meu último dia? Por quanto tempo durará no lenço o contorno da boca que beijo agora?Afastem-se todos. Eu estou com Márika Voroshenka no mato, os dois nus. Eu gemo sobre ela, ela geme sob mim, e eu me enfio todo dentro dela, e ela me puxa cada vez mais para dentro dela toda. E chega a noite e estamos ainda no meio do gozo que miraculosamente se segura. A cada instante uma gota chega à superfície, mas consigo recolhê-la sempre, e mais uma vez, e mais outra, porque comer Márika Voroshenka é um desses êxtases que são feitos para desafiar a eternidade e valer cada minuto dela. Depois deste relato, perdoem-me se eu não escrever amanhã, nem depois, nem nunca mais. Escrever mais o quê?

Um poema de Eugenio Montale

"Não me canso de dizer ao meu treinador
joga a toalha
mas ele nada ouve porque no ringue ou fora dele
nunca está.
Talvez, à sua maneira, busque salvar-me
da desonra. Que tanto se preocupe
comigo, o idiota, ou que eu apenas seja seu bufão
põe-me indeciso entre ser grato
ou irado."

(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Editora Record.)

Kama Sutra - CCLXXVI - Márika (14)

A gola alta da blusa e a rispidez com que Márika afastou minha mão de sua nuca em nosso último encontro juntaram-se em meu cérebro espicaçado pelo ciúme, e foi assim, ainda em dúvida, que fui vê-la hoje cedo. Eu estava atormentado. Achava que ela me escondia alguma coisa. Assim que nos sentamos em nosso banco, na parte menos frequentada do parque, procurei, disfarçadamente, ver se havia alguma marca na nuca de Márika. A suspeita ganhara força porque ela, se bem que vestisse uma blusa com gola comum, havia puxado um pouco de seus cabelos para ali. Devo ter esquecido a discrição necessária, porque repentinamente ela inclinou a cabeça, afastou os fios negros e me disse: "É isso que você está querendo ver?" Havia ali duas marcas leves, provavelmente de lábios, que na véspera deveriam estar bem mais visíveis. "Era isso?", ela insistiu, e eu, como se soprasse o dedo de uma criança da qual houvesse sido tirado um espinho, encostei minha boca nas marcas, o que provocou em Márika um riso nervoso. Cócegas. "Quem fez isso?", perguntei. "Foi seu marido?" Ela parou de rir: "Eu não tenho marido." A hipótese que restava acrescentou despeito e rancor ao meu ciúme. "Seu amante?" "Eu não tenho amante." "Quem foi, então? Não há de ter sido um gato." "Eu não tenho gato." "Quem foi, então?" "Foi meu marido." "Mas você não disse agora mesmo que..." "Eu disse, e é verdade. Eu não tenho marido. Foi meu ex." Nesse instante me passou pela cabeça que tinha sido tudo bom demais e durara até muito. Lá estava de volta o ex-marido, ansioso para recuperar tudo aquilo que me encantava: as pernas, os olhos, os seios, as mãos, a bunda. Não consegui dizer nada. Gostaria de ter morrido nessa hora. Ela pôs a mão no meu queixo, ergueu meu rosto: "Você está chorando?" Eu estava. Deus, chorar com esta idade, quando não chorei nem quando peguei o exame que confirmou meu câncer, há seis meses. "Não faz isso", ela me pediu, e eu esperei que ela pusesse no fim da frase um menino ou um bebê, tão fragilizado eu estava. "Ele veio para ficar, não veio?", eu quis saber "Não, nada disso. Veio acertar umas coisas e já foi embora. Ele tem outra mulher, faz tempo, no Sul." "Ele te machucou?", eu perguntei, apontando a nuca. "Não. Ele disse que estava com muita saudade e..." "Não precisa dizer mais nada", eu pedi. Ela me consolou: "Não fique assim. Isso não muda nada entre nós. Eu já disse, ele foi embora." Tive vontade de inclinar sua cabeça sobre a minha braguilha e mandar que ela me chupasse, começando pelos botões, enquanto eu lhe morderia a nuca. Seria justo, pensei, mas não fiz nada disso. Com esta minha idade, poderia eu agora tornar-me um predador sexual? Limitei-me a beijar Márika nos olhos, que julguei úmidos, no rosto, na boca, possuído por uma ternura que me abobalhava deliciosamente. Ela me beijou com o mesmo ritmo lento e doçura. Parecíamos dois colegiais prontos para formular juras de amor eterno. Pensei em fazer isso, mas segurei o ímpeto. Ando tão desatualizado que, em vez de comover Márika, talvez só a fizesse explodir em gargalhadas. Ela me passou um lenço: "Pega." Imaginei que minhas lágrimas tivessem voltado a descer pelo rosto, mas não era isso. No centro do lenço, havia a marca impressa dos lábios de Márika, em batom. "Pode ficar com ele. Assim, quando sentir saudade, você pode beijar a minha boca." Temi que isso fosse uma despedida, mas ela me tranquilizou. E, para me colocar nas nuvens, sugeriu que se eu voltasse à tarde, às três, talvez ela estivesse ali. Beijou-me, encostou-se em mim como nunca, e talvez estivéssemos nos beijando ainda, se um velho que anda sempre com seu cachorro não aparecesse de repente na trilha. Escrevo isto agora, às onze e sete, e sei que vivi até hoje para o que acontecerá daqui a quatro horas. Márika, ah, Márika!

Kama Sutra - CCLXXV - Márika Voroshenka (13)

Ontem, a pedido de Márika, nos encontramos mais tarde. O sol já estava baixo, e um vento frio começara a rondar o parque. Sua blusa de gola alta escondia inteiramente sua nuca, que (recordo-me de ter dito aqui) é sua parte mais sensível  e gentil às carícias. Assim que nos sentamos, ela me brindou com uma sequência de beijos apaixonados. Essa pressa não é comum nela. Geralmente é nos últimos quinze minutos de nossos encontros que ela se entrega mais. Enquanto procurava corresponder ao seu ímpeto, me veio uma dessas suspeitas comuns nos ignorantes das artes amorosas: seriam os beijos que ela me dava tão generosamente uma forma de não encorajar a minha mão a buscar sua nuca? Eu estava sendo premiado ou castigado? Ainda recuperando o fôlego, fiz subir para a nuca a mão que abraçava seu ombro. A reação dela foi ríspida. "Quer mais ainda?", ela perguntou, me dando um tapa na mão. Foi a primeira vez que vi cólera nos seus olhos azuis. Receei que ela não me beijasse mais, porém ela retomou o movimento dos lábios em torno de minha boca e dentro dela, sem que eu notasse neles uma diminuição de intensidade. Foi, mesmo com o incidente inicial, um de nossos melhores encontros. No fim, já no abraço de despedida, pus a mão ali onde começa a abrupta curva da prodigiosa bunda, e Márika, se bem que tenha deixado claro, desde a primeira vez, que aquele era um prazer por enquanto vedado, não afastou meus dedos dali. Fui para casa zonzo, desnorteado, beijando a mão vencedora. Dormi mal - o que na versão de vocês naturalmente significará que dormi muito bem, embora tenha me virado e revirado a noite inteira na cama, que gemia: Márika, Márika.

Onde o amor deve ficar

Quem se descarta do amor
Num abrir e fechar de olho,
Da vida é conhecedor:
O amor é mesmo um trambolho.

Se no começo vai bem,
No final sempre descamba.
Esperto é quem, com desdém,
O atira logo à caçamba.

Boneco de falso brilho,
Olhos de puro vidrilho,
Ali o devem jogar

E de lá para o lixão,
Sem nenhuma compaixão,
Porque ali é o seu lugar.

Futebol de rua

O primeiro que chutou o gato morto gritou "vai!". O segundo foi, cruzou o gato para o terceiro e gritou "chuta!" O terceiro pegou de primeira e gritou "gol!". No chão, o sangue ficou marcando o desenho tático.

O vocabulário das rosas

Quando disse que as rosas não falam, Cartola estava apenas cumprindo a palavra, empenhada com elas, de não revelar seu segredo.

"Regresso ao lar", de Álvaro de Campos

"Há quanto tempo não escrevo um soneto
Mas não importa: escrevo este agora.
Sonetos são infância, e, nesta hora,
A minha infância é só um ponto preto,

Que num imóbil e fatal trajeto
Ao comboio que sou me deita fora.
O soneto é como alguém que mora
Há dois dias em tudo que projeto.

Graças a Deus, ainda sei que há
Quatorze linhas a cumprir iguais
Para a gente saber onde é que está...

Mas onde a gente está, ou eu, não sei...
Não quero saber mais de nada mais
E berdamerda para o que saberei."

(De Antologia poética, organizada por Cleonice Berardinelli e publicada pela Casa da Palavra.)

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Kama Sutra - CCLXXIV - Márika Voroshenka (12)

Têm sido salutares os trinta minutos diários que venho passando com Márika Voroshenka. Aos amigos que elogiam a nova cor do meu rosto, no qual depois de dois meses já se nota bem o efeito do sol, tenho o impulso de dizer que esse é o menor dos benefícios. Mas, se fosse contar-lhes sobre Márika e nossos encontros no parque, eles não acreditariam e, quando eu narrasse nossas apalpadelas e nossos loucos beijos, me chamariam abertamente de mentiroso. Minha idade não anima ninguém a supor que eu possa ainda me entregar às práticas com que me entretenho e (quero acreditar) entretenho Márika. Não há momento em que eu não pense no que acontecerá se um dia Márika exigir de mim, ou sugerir, um comportamento que requeira algo além das mãos, dos dedos, da boca, dos lábios e da língua. Imagino-me num motel ou dentro do carro dela (ela há de ter um) e às vezes acho que tudo sairá normalmente, mas no geral - já que há tantos anos não me vejo em tal situação - julgo que me portarei vexatoriameente. Às mulheres, por sua conformação física e também por ser nelas natural (não sei se ainda é assim) uma atitude mais discreta, não ocorre esse receio. Já eu, já os homens temem a falha que será impossível dissimular ou ocultar. Sei que se pode satisfazer uma mulher de várias maneiras, mas isso não diminui nem nunca diminuirá, num homem, o tamanho do seu maior fantasma: a impotência. Agora que minhas mãos e as de Márika, minha boca e a sua perderam o pudor que tinham no início, não sei, em certas ocasiões, como a de ontem, se quero que esta loucura de nos mordermos, de misturarmos a saliva e ficarmos mais perto de tocar nossas partes íntimas acabe me colocando despido diante dela, não no parque, naturalmente, ou se continuo esperando que a ela contente isso que diariamente fazemos, se bem que nem a mim mesmo contente mais. Ah, Márika, haverá vigor ainda em meu corpo, haverá ainda mel nele? Márika, quando você aproximou ontem a mão, mais do que nunca, daquele ponto que parece latejar ainda agora em mim, eu desejei ser tão melhor, tão mais adequado para você... E, no entanto, fiquei tão aturdido que nem tive presença de espírito para avançar também a minha mão para aquele ponto seu que tanto mereceria retribuição...

Crença

Não há como não se crer
Que nossa única esperança
Contra viver é morrer
E que quem crê sempre alcança.

"Quanto a pincéis", de Sei Shônagon

"Quanto a pincéis, o de pelos trocados no inverno. É mais fácil de manusear e mais agradável de ver. O de pelos de coelho."

(De O livro do travesseiro, tradução de Geny Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luiza Nana Yoshida e Madalena Hashimoto Cordaro.)

Um trecho de Faulkner

"Sua voz ergueu-se outra vez enquanto falava. O aroma das alfarrobeiras espraiava-se em lufadas adocicadas, e o som dos grilos e das rãs era nítido e monótono como uma flauta soprada modorrentamente por um menino idiota. De sua redoma prateada, a lua lançava seu olhar sobre o vale que se dissolvia em opalina tranquilidade na serena e misteriosa infinitude dos montes, e a voz do jovem Bayard prosseguia sem cessar, relatando a violência e a velocidade e a morte."

(Do romance Sartorius, tradução de Claudio Alves Marcondes, publicado pela Cosacnaify.)

Cotação do dia

A sensação de que talvez não mintam os que falam da beleza da vida. Se eles disseram a verdade todo esse tempo, que diabos fiquei eu fazendo aqui, enfurnado, folheando livros comprados em alfarrabistas, povoados por traças poliglotas? Talvez seja ainda possível gozar os frutos, com os olhos e os lábios ávidos. Nesse tempo em que me ocultei como um eremita, os pássaros andaram rondando a minha casa. Nunca lhes dei atenção, e no entanto deviam estar me dizendo que viver vale a pena. Como costuma se dizer: não custa tentar. É provável que não requeira, mesmo, nem prática nem habilidade. A conferir.

Kama Sutra - CCLXXIII - Márika Voroshenka(11)

Não sei em que Márika Voroshenka trabalha. Como ora nos encontramos de manhã, ora à tarde, imagino que tenha alguma atividade noturna. Por não haver entre nós senão o compromisso de nos divertirmos, seja qual for o alcance desta palavra, não posso, embora queira muito, fazer-lhe certas perguntas. Suponho às vezes que seja casada com um homem bem rico, que a dispense de trabalhar. Ou talvez ela trabalhe mesmo à noite, mas em quê? Quem sabe como instrutora de academia. Seu corpo modelado torna plausível a hipótese. Suas mãos são delicadas e bem cuidadas, isso eu sei. Quando elas abrem dois botões de minha camisa ou se enfiam clandestinas por baixo de minha camiseta, eu me envergonho de oferecer a elas só um peito áspero e os pelos brancos que Márika felizmente nunca deve ter visto. Toda vez que ponho entre minhas mãos as de Márika, tenho vontade de beijá-las, de lambê-las, e só não sigo esse impulso porque seria mais ridículo ser apanhado por um frequentador do parque nesse ato de beijar e lamber do que se estivesse despindo Márika. Volto à questão de nunca nos termos tocado nas nossas partes íntimas. Se um dia ela fizer isso, tenho medo de sofrer um chilique, de desmaiar como uma donzela quando recebe inesperadamente o primeiro beijo de língua. Gostaria de ter algo que merecesse estar na mão de Márika, se um dia isso vier a acontecer.

Kama Sutra - CCLXXII - Márika Voroshenka (10)

Comecei a escrever estas notas sobre minha relação com Márika Voroshenka sem nenhum planejamento, quase que por acaso. Não pensei em nada. Simplesmente comecei a escrever. Já contei vários episódios de nossos encontros no parque e outras particularidades, e só agora me dou conta de que não me preparei para certos aspectos, como questões de linguagem, e estou agora exatamente diante de um. Vou falar de algo sem o que Márika não seria Márika, e fico em dúvida sobre o termo que devo empregar. Como os nossos encontros têm sido quase castos, se vistos com olhos atuais, consistindo em beijos e apalpadelas, poderia usar a palavra nádegas, se ela, em si, não me parecesse tão desprovida de graça. Opto por bunda mesmo, porque lordo poderia dar a impressão de se tratar aqui de um relato mais condimentado. Para dizer sem mais demora o que pretendo, a bunda de Márika é dessas tão compactas, redondas, carnosas, que as mãos dos homens, perto dela, ficam sempre inquietas, e entram e saem do bolso como se pertencessem a um mágico posto repentinamente em pânico por ter desaparecido seu coelho. Bem, como disse, a bunda de Márika Voroshenka é um elemento perturbador em qualquer paisagem. Digo que não foi exatamente por ela que a segui a primeira vez no parque e criei coragem para lhe falar. Mas digo só com meia convicção. Já no primeiro dia, quando Márika aceitou sentar-se comigo num banco, para conversarmos, eu fui bem-sucedido na tentativa de pôr minha mão em seu ombro, mas quando a fiz descer para a cintura, Márika, adivinhando minha intenção, a retirou dali. "Também você?", ela me disse, e eu imaginei o óbvio: que os homens só notavam o seu rosto e os seus belos e azulíssimos olhos depois de admirar aquela elevação que, em movimento, me fazia rilhar os dentes. Ainda nesse primeiro dia, depois de acertarmos que passaríamos a nos ver regularmente sempre que pudéssemos, fiz nova tentativa de apalpar a bunda de Márika, mas ela foi ainda mais enfática na recusa. Mostrei meu desapontamento, também mais explicitamente. Ela então me disse algo de que naturalmente me lembro sempre, com aflita esperança: "Um dia, quem sabe." Até hoje não chegou esse dia. E esse é, não vou negar, um dos motivos pelos quais continuo a ir aos encontros. Esse e os beijos molhados de Márika. Deus! Onde e com quem foi que ala aprendeu a beijar assim? Penso às vezes se Márika não é uma profissional do sexo brincando de namorar comigo. O modo como ela, com a língua, pede espaço à minha e sobe e explora o céu de minha boca, milímetro a milímetro, não deve ser comum, eu imagino. Ou será que meu maravilhado espanto se deve ao fato de eu há muito tempo andar alheio às práticas amorosas? Aqui estou eu a falar de beijos, quando a intenção inicial era falar da bunda de Márika. Imaginem como é difícil nos ocultarmos no parque, para nos desfrutarmos, tendo ela a bunda que tem. Pode alguém achar que isto é uma contradição em termos, mas a bunda de Márika Voroshenka é divina.

Bolo na cara

O amor é uma daquelas baboseiras que costumamos levar mais a sério, como se puséssemos um fraque para entrar numa batalha de pastelão.

Comercial

Depois de escolhido entre os trezentos testados o garoto para o comercial, a mãe de um dos recusados pergunta a outra: "Você não acha que o meu tem mais cara de bobinho?" "Acho. O seu e o meu."

Do autor e seus personagens

Mesmo que um romancista não tenha criado tantos personagens quanto Balzac (que dizia ser o número dos seus superior ao dos parisienses inscritos no registro civil), dificilmente ele estará entre os que dormem tranquilamente. Os seis célebres personagens que procuram um autor, no texto de Pirandello, cada qual pretendendo ser o protagonista, dão uma ideia de como pode ser maleável e imprevisível uma figura de ficção. Além dos que pedem espaço nos novos textos, há os que, pertencendo a livros já escritos e publicados, fustigam ainda a consciência do autor, bradando por todo tipo de revisão. Quando cria um personagem, um autor introduz em sua vida alguém que pode vir a ser mais exigente e inclemente com ele do que qualquer pessoa real.

Soneto do amor desmascarado

Que bom poder estar assim, sentado,
Como um homem qualquer, vulgar, bisonho,
Feliz por não ser mais espicaçado
Por ideia nenhuma, nenhum sonho.

Que bom estar assim, tão resignado,
Não mais desesperado nem tristonho,
Encarando já quase com enfado
O que me parecia tão medonho.

Que bom, depois de tanto me enganar,
Ao amor finalmente saber dar
A sua verdadeira dimensão.

E dar graças porque ele já morreu,
Porque no fundo nunca mereceu
O que foi pago pelo seu caixão.

Um poema de Fernando Pessoa

"Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
'Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!"

(De Antologia poética, organizada por Cleonice Berardinelli e publicada pela Casa da Palavra.)

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Kama Sutra - CCLXXI - Márika Voroshenka(9)

Se fosse empregar a linguagem usada nos livros bem antigos que descreviam cenas amorosas, diria que ainda não toquei a pomba de Márika Voroshenka, assim como ela jamais pousou a mão em meu pássaro. Já andamos chegando perto, bem perto, e confesso que não sei se isso, se vier a acontecer, será um avanço natural ou o início do fim. Noto em nós uma prudência que possivelmente se deva à má lembrança de experiências, tanto minhas quanto dela. Os dedos, as bocas, os lábios e as línguas têm nos bastado. Quando alguma faísca mais perigosa ameaça manifestar-se, temos a favor de nossa resolução o fato de nos encontrarmos num espaço público.

Kama Sutra - CCLXX - Márika Voroshenka (8)

Escrevo estas notas sobre Márika Voroshenka assim, sem intenção de sequência. Vou me lembrando dos fatos, como ocorreram, e como ainda ocorrem, nos dias em que nos encontramos, ou de manhã ou à tarde, no parque. São fatos de natureza eminentemente sentimental, e nesse sentido pouco diferem dos narrados em diários de adolescentes. Ao contá-los, recordo-me ocasionalmente de algum anterior e - como todos me parecem importantes nesta história que, se não é propriamente de amor, tem algo de similar - acabo por comentá-los também. Há alguns dias, por exemplo, Márika me submeteu a uma espécie de jejum de beijos, e me vem à mente agora como nasceu essa privação que, felizmente, é esporádica, constituindo na verdade um jogo nosso. A origem data de mais ou menos dois meses, quando tiveram início meus encontros com ela. Falei na ocasião do equilíbrio quase poético que julgo haver entre o sadismo e o masoquismo e ela se declarou horrorizada com aquilo, que qualificou como uma visão deturpada e insensata. E, logo em seguida, em tom zangado, me disse que, se eu quisesse, poderia continuar sentado com ela, mas sem lhe falar nem tocá-la, até o fim do encontro. Era o castigo que ela me aplicava por eu mostrar minha simpatia pelas relações sadomasoquistas. Por uns quinze minutos, toda vez que eu tentei abraçá-la fui repelido. Durante esse tempo, procurei aclarar minha argumentação, mas ela não me deu resposta. Quando nossos relógios indicavam já próximo o fim do encontro, Márika olhou para todos os lados, cautelosa, e me abraçou fogosamente, e deixou em minha boca não só o sabor de uma balinha que vinha chupando metodicamente, mas também um pedacinho dela. Chamou-me de tolinho e, enquanto voltava a me proporcionar a doçura dos seus lábios, eu ia tentando adivinhar a motivação dela quando me negara os beijos que repentinamente liberava. Sei hoje que ela já naquele dia pensava apenas em tornar mais picantes nossos beijos. Como eu disse acima, ainda agora usamos esse expediente com alguma regularidade, e ele nos vem sendo útil para manter isto que me recuso a chamar de diversão, mas que não tem sido muito mais, por nossa própria cautela e vontade. De vez em quando, essa cautela e essa vontade fraquejam. Num dia da semana passada, quinta eu acho, eu apertava seu seio e ela me disse, em voz baixa: "Tem gente olhando." Em seguida, porém, me ordenou: "É mentira, bobão. Aperta mais, aperta forte, seu sádico!"

Soneto do tempo finito

Não há mais tempo nenhum
Para um soneto supino
De feitio alexandrino
E nem para um mais comum.

Devendo ficarei o hino
De concepção incomum
Que prometi a ti, num
Dia longe, dezembrino.

Sinto muito, minha amiga,
Mas essa dívida antiga
Não a poderei pagar.

Morrendo em lenta agonia,
Mais do que um luxo seria
Eu me pôr a versejar.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Beleza. Sem dúvida na Zululândia, onde você tem tamanha abundância de corpos despidos para olhar, você deve concordar, Blanche, que não há nada mais humanamente belo do que os seios de uma mulher. Nada mais humanamente belo, nada mais humanamente misterioso do que o fato de os homens quererem acariciar, sempre e sempre, com pincéis, cinzéis ou mãos, esses estranhos sacos gordurosos curvos, e nada mais humanamente enternecedor do que nossa cumplicidade (falo da cumplicidade das mulheres) com a obsessão deles."

(Do livro Elizabeth Costello, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Kama Sutra - CCLXIX - Márika Voroshenka (7)

Não sei quantos anos tem Márika Voroshenka. Entre vinte e cinco e trinta, talvez um pouquinho mais. A idade é também um dos pontos que, desde o começo, decidimos não discutir. Se um de nós tivesse motivo para se ocupar com isso, seria ela. Nos dias em que analiso tudo, penso se ela não me aceitou justamente porque a ninguém no parque ocorreria imaginar que eu possa ser senão seu pai ou avô. Nossas mãos e nossas bocas, sempre discretas e sorrateiras, procuram manter plausível essa suposição. O fato é que Márika tem surpresas vocabulares que não consigo fazer coincidir com a idade que imagino nela. No dia em que me chamou carinhosamente de patife, depois de eu lhe furtar um beijo com um artifício, senti isso com toda a intensidade. Nesses momentos ela parece mais velha. Não me lembro de tê-la ouvido dizer palavrões, o que também não condiz com a idade que lhe atribuo. Seria lógico que ela os dissesse. Uma vez, é certo, ela exclamou um "pô". Mesmo essa forma resumida e atenuada não soou espontaneamente nos seus lábios e senti que ela se arrependera de tê-la dito. Também nas carícias ela é comedida e, às vezes, para obtê-las, preciso recorrer ao conhecimento que tenho do seu ponto fraco, que, como disse, é a nuca. Esta, tocada como deve ser, revela uma Márika insuspeitada.

Kama Sutra - CCLXVIII - Márika Voroshenka(6)

Meus encontros com Márika Voroshenka são ora matinais ora vespertinos. Num desses últimos, ela me disse que gostaria de provar um sorvete do homem que os vende no parque, num carrinho que, se foi novo, deve ter sido há vinte anos. São sorvetes caseiros, que mais parecem gelo sobre o qual o homem atira um refresco. Ele tem um com sabor de groselha, um com sabor de abacaxi. Comprei um de cada para nós e, depois de tomar o meu, ainda havia um pedaço do dela. Não sei se foi para a sua boca que olhei com desejo, ou se para o sorvete. Sei que ela me ofereceu aquele finzinho. Pensei que ela fosse me passar o palito, mas ela enfiou na boca aquele último pedaço e me incitou, com os olhos, a tomá-lo dela. Meus lábios lutaram com os seus por um momento, e cada um de nós teve sua parte, presumo que ambas iguais. De vez em quando repetimos a cena. Contá-la traz-me uma excitação morna. Ah, Márika.

Kama Sutra - CCLXVII - Márika (5)

Numa das primeiras vezes, usei com Márika Voroshenka um artifício do meu tempo de adolescente. Disse-lhe que havia em cima de seu olho esquerdo algo que parecia um inseto. Ela passou o dedo ali, e eu, garantindo-lhe que aquilo ainda não havia saído, pedi que ela fechasse os olhos. Beijei-a, então, e foi até hoje um de nossos melhores beijos. Ela deixou que eu estendesse esse beijo por mais de um minuto, imagino, e só depois se mostrou indignada com o meu subterfúgio. Deu-me um tapa no braço e me chamou de patife. Gostei da palavra. Onde ela a teria aprendido? Não parecia coisa de sua idade.

Kama Sutra - CCLXVI - Márika Voroshenka(4)

Não sei se Márika Voroshenka é ou foi casada. Desde o nosso primeiro encontro no parque, ficou implícito que seríamos um homem e uma mulher que, tendo se apreciado, arranjariam meia hora por dia para se entregar a algo que lhes parecia saudável, assim como aos garotos apraz jogar futebol na grama e às meninas agrada andar de patins ou bicicleta. Uma tarde, porém, num dos nossos beijos mais longos, Márika disse dentro de minha boca três sílabas que me pareceram formar um nome de homem. Perguntei-lhe que nome era e ela, garantindo-me que não era o nome de ninguém, voltou a beijar-me. Penso que senti ciúme, porque achei seus beijos, depois, mais intensos e molhados que antes.

Kama Sutra - CCLXV - Márika Voroshenka(3)

Ontem à tarde, um casal de cachorros resolveu se entregar a amores diante do banco em que Márika Voroshenka e eu nos entregávamos ao nosso. O deles era direto, seco, animal. Isso nos constrangeu, provocando risinhos em nós. Felizmente, três garotos apareceram e puseram a correr o cachorrinho e a cadela antes que se enganchassem. Voltamos, Márika e eu, ao ponto em que estávamos e, se no início persistiu ainda uma forte impressão do que ocorrera, depois nos desligamos daquilo e em nossas carícias o fogo que havia era o de sempre, o nosso.

Kama Sutra - CCLXIV - Márika Voroshenka(2)

Márika Voroshenka às vezes parece uma adúltera assustada. Se alguém, principalmente um homem, se aproxima do banco recôndito em que nos sentamos no parque, ela exige que eu a desabrace e finja não conhecê-la. Puxa então da bolsa uma revista que eu simulo ler. Hoje aconteceu isso. Um senhor com seu cachorro surgiu sorridente na trilha e eu, olhando por cima da revista, fiquei a observá-lo enquanto se afastava. Enquanto isso, Márika olhava para o céu, como se fosse uma aprendiz de meteorologista. Quando o homem sumiu de vista, ela, como sempre ocorre em situações assim, pôs de volta meu braço nela, e puxou meus dedos, mais amorosamente do que nunca, para o seu seio.

Kama Sutra - CCLXIII - Márika Voroshenka(1)

Márika Voroshenka não se importa se eu sopro os pelinhos do seu braço. Finge não perceber. Também simula não ouvir se lhe digo que está particularmente deliciosa. Se consigo colocar-lhe a mão no ombro, pretextando ajudá-la a atravessar a rua, e o aperto com uma intenção que até o algodão de sua blusa percebe, ela continua impassível. Só no meio do caminho, se ela estiver magnânima, permite que lhe acaricie a nuca. É seu ponto fraco. Meus dedos vão ganhando ali vantagens que crescem à medida que nos aproximamos da área menos visitada do parque. Ali, nos dias em que Márika continua receptiva, meus lábios costumam ser aquinhoados com beijos que aniquilariam o mais convicto dos monges e minha língua se sente a mais venturosa de todas as línguas. Ah, Márika.

Hei de ter...

... ao menos um heterônimo, que possa, em ocasiões como esta, em que digo socialmente bom dia, resmungar: bom dia uma porra, bom dia é a puta que pariu.

Dizem que...

... as confissões aliviam. Comigo não funciona assim. Depois que me abro, eu me arrependo. Abri-me hoje, aqui, e vou sair triste do blog. Talvez porque venha sentindo, há muito, que os outros, embora nos instiguem à confissão, sempre que lhes toca a vez ocultam uma carta na manga. Eu, não. Mostro como sou (alguém já me definiu, com propriedade, de escroto) e depois lamento a minha ingenuidade. Naquilo que confesso de ruim, acreditam. Se me meto a confessar amor, ah, aí, riem. Talvez porque para tipos como eu, já se desmanchando física e moralmente, seja um escândalo declarar amor. Lembro-me de Pessoa: ninguém, nunca, levou porrada, e eu, tolo, confesso aqui que levei todas e mais algumas, e ainda passo certificado. De qualquer forma, isso não tem nenhuma importância. Que me custa divertir ainda um pouco a plateia, antes de sumir pelos fundos? Talvez, ao sair do picadeiro, ofereça a diversão adicional de exibir, por um rasgo não suspeitado nos fundilhos, a esqualidez de minha bunda.

Não, eu...

... não eduquei meus músculos na academia, não acertei meus passos em aulas de dança, não conheço a linguagem do facebook. Não leio esses garotos que estão reinventando o jornalismo e nem mesmo sei usar, ainda que mediocremente, o celular. Sou ultrapassado, feio, risível em minha feiura, babaca e complexado. Confesso que sei fazer sofrivelmente um soneto, até com rimas ricas, se for o caso, e talvez até seguindo as normas alexandrinas. Sou rancoroso, o que se reflete em minha pele ruim, e dado a lançar maldições. Sou asqueroso e tenho o defeito de me achar injustiçado, para usar um eufemismo. Sou na verdade paranoico e intoleravelmente choramingas. Vou vivendo assim, estou na minha. Se me oferecerem uma troca por dois de trinta e sete ou por um de sessenta e oito, topo na hora, digo que aceito, só para não me chamarem de falso. Topo a troca também por um de dezoito, ainda que seja burro como os dessa idade costumam ser, desde que ele tenha a qualidade, também própria dessa idade, de se fazer aceito na cama de mulheres, de preferência entre os vinte e cinco e os cinquenta e cinco. Como farei na hora? Podem deixar que dou um jeito, eu me viro, como se diz. É isso aí.

Quem teve a desgraça...

... de se formar na velha escola da poesia é hoje um desses cretinos que abrem o coração e mostram tudo dele, até o porão e aqueles trastes acumulados, entre os quais uma sanfona que confessa ter tocado baiões. Quem bebeu o leite da poesia frui hoje, merecidamente, a chacota e a zombaria. Numa época em que os vibradores se tornam cada dia mais eficientes e desejáveis, quem se deixou iludir pela poesia é aquele que no aniversário da bem-amada lhe dá uma rosa e uma quadrinha escrita num cartãozinho afrescalhado, com caprichada letra de escolar.

Quase sempre...

... descobrimos, depois de insano labor e acentuado sofrimento, que amadurecer é bom só para os frutos. No homem, amadurecer significa endurecer-se, dar-se valor demais, negar o que tem de melhor. "Comigo não", parecemos estar dizendo sempre. O homem maduro é intoleravelmente inacessível. Sua presunção o faz medir todos os outros pela sua própria medida. O homem carregado de sabedoria é mais cauteloso, arisco e desconfiado que uma raposa na temporada de caça. Não se dá, não se empresta, não dá um passo sem analisar todas as hipóteses. É a teoria do custo-benefício. O homem judicioso é mais maçante que uma teoria econômica.

O homem vive...

... demais. Presunçoso de sua idade, usa esse tempo para fazer pouco das belezas que conheceu na infância e, sob a máscara de uma falsa racionalidade, limpa o cachimbo enquanto dá nota três ao arco-íris que se abre diante de seus olhos. Tudo que viveu lhe parece aos poucos indigno do ser metafísico em que pensa ter se tornado e já não o comove nem a imagem da primeira namorada, deslizando com sua bicicleta vermelha nas tardes antigas. Quase tem vergonha de se recordar desse amor, um tesouro desprezado agora por sua mente estragada pelos silogismos.

Fizemos bem...

... quando demos a chave à tristeza. Ela entra a qualquer momento em nosso coração. Às vezes ela vem acompanhada da prima, a melancolia, e são como duas meninas brincando de pular corda. Como podem ser alegres a tristeza e a melancolia, quando se juntam.

Como nos conforta...

... termos visto tão poucas vezes a beleza. Como nos alivia termos sentido tão raramente sua presença. Como suportaríamos mais lembranças, se as poucas que temos nos afligem como um espinho espetando o peito de um beija-flor?

Talvez nos aconteça...

numa esquina do bairro sentir um daqueles sussurros com que esporadicamente a beleza nos fala. Talvez um raio de sol se torne repentinamente palpável e nós, sem dar na vista, possamos enfiá-lo em nosso bolso. Chegaremos em casa com culpa na alma e, quando pusermos a pequena fagulha solar em cima da mesa, para observá-la melhor, já não nos parecerá tão bela. Assim vamos cumprindo diariamente o nosso destino, enxovalhando tudo que a entidade suprema ou o acaso nos colocam nas mãos.

Como tudo, no mundo,

somos só a fraca projeção de uma ideia. A avareza, a covardia, a coragem, a pusilanimidade, o rancor nos utilizam como instrumentos. Nunca atingimos, porém, a altura daquilo que representamos. Claudionores, Edivaldos e Franciscos nunca serão capazes de reproduzir esses sentimentos. Só a arte os define em sua inteireza. Madames Bovarys e Annas Karêninas nunca terão o brilho repetido por Lurdinhas e Roselis. Somente o artista tem o dom de nos mostrar toda a beleza da cólera, da cobiça, da premeditação, da falsidade e de tantos outros estados de espírito que, queiramos ou não, são tão atributos do homem quanto o amor, a bondade e outras quinquilharias.

Chegam os dias, os últimos,

em que o coração, já sem forças para o amor, tampouco tem sangue para odiar. Tudo aparece nítido. O tempo, esse sábio ancião, nos conduz pelos caminhos da tarde e nos faz ver, no crepúsculo, a verdade que antes só contemplávamos com os olhos da poesia. Não somos o sol, longe disso, mas seríamos parcos de espírito se desdenhássemos a metáfora diária. Chegou o momento de nos irmos deixando possuir pela noite.

A certeza...

... de que este azul sonso, parecendo uma aquarela de principiante, só tem sentido porque aqui embaixo se agitam os homens. Os homens cumprem seu papel. Amam-se, odeiam-se, insultam-se, matam-se. Deus os fez para Seu entretenimento. Ele finge dar atenção aos animais e aos pássaros, mas, se quer algo além de bocejar, é com o homem que ele conta. Cínico, se Lhe perguntam por que pôs na terra tal criatura, Ele repete a balela: quem criou o homem foi Satanás, à sua imagem e semelhança.

Aqui, tranquilo

Se pudesse, não sairia mais de casa. Agrada-me ficar aqui, lendo e cochilando, como convém à minha idade. Não tenho mais o que buscar lá fora. Recebo cada vez menos convites para bate-papos em colégios, e outros assuntos não me seduzem mais. Vou-me desinteressando do mundo, e ele me retribui na mesma moeda. Interessa-me a arte, só ela, e me censuro por não ter me dedicado mais a ela, ao conhecimento da pintura, da escultura, da arquitetura, da música. Se há alguma importância no homem, é o legado que ele deixa registrado na arte. Que obras maravilhosas é capaz de produzir quem não é nada além de pó. Quando o homem atinge a culminância de sua arte, faz cócegas nos pés de Deus.

A ideia de beleza

Sou outro agora

Não me inquieta mais
a palpitação dos frutos
nem me instiga
a cobiça dos usufrutos

Minha ideia de beleza
é casta como uma flor
ainda não seduzida pelo vento
e assim me basta
e há de sempre bastar

Ideias são sonhos
essência

Ideias o vento
não comete a indecência
de meter a mão
e despetalar.

Sobre o amor e seu caminho

O melhor que pode acontecer ao amor é não chegar à intimidade da pele e da carne. O amor é o início e o meio. O que se chama de finais felizes é uma mediocridade incompatível com o amor. Velhinhos casados há quarenta anos, andando de mãos dadas, em terceiras e quartas luas de mel no Caribe, podem até ser uma cena bonita, se vista com olhos condescendentes, mas não são uma imagem do amor. O amor, se existiu neles, rendeu-se à conveniência, deixou-se anotar na agenda e vendeu-se por um sobrado no Pari, um fogão de seis bocas, férias anuais na associação dos servidores públicos e uma assinatura compartilhada da revista Caras.

Imagem

Quando penso em mim como poeta, me vem quase sempre a imagem de um pianista bem-vestido,cumprimentando o seletíssimo público. Quando vai para o piano, nota estar descalço ou com a sola dos sapatos, com os quais logo apertará os pedais, deslizantes de bosta.

Soneto daquele que não tem brilho

De todo brilho sou falto.
Se corro, é devagarinho,
Se subo, subo um pouquinho,
Se caio, não caio do alto.

Sou pouco mais que um idiota
E pouco mais que um calhorda.
Não sou nem hábil na corda
E nem sei dar cambalhota.

E também para a ribalta
Todo talento me falta,
Jamais serei bom ator.

Nunca sei ser o que quero.
Não consigo ser sincero
E tampouco um fingidor.

Quatro tankas de Takuboku Ishikawa

"Não há retorno à primavera
dos 14 anos que me chama
com lágrimas nos olhos."

               ***

"Triste o coração infantil que não chora:
nem repreendendo nem batendo
(também fui assim)."

               ***

"Parado, no corredor, meu desalento,
quando à força empurrei a porta
que sem resistência se abriu."

               ***

"Há dias em que penso
ser minha linguagem,
talvez, a do vento."

(Do livro Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicado por Roswitha Kempf/Editores.)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Cotação do dia

Sinto-me como o dono de uma loja que já tentou ser bazar, papelaria, casa lotérica, de fogos, de artesanato e que, vinte anos depois do que seria sensato, rabiscou e colocou a placa: passa-se o ponto. Absurdamente, tenho saudade dos diversos tipos de fracasso que comandei e presenciei do lado de dentro do balcão e, no fim da vida, tenho também a sensação de uma primeira desonestidade. Que ninguém aceite o convite da placa.

Kama Sutra - CCLXII

Não chegou a ser pianista. Ficou em dois anos de estudos, na infância. De muito lhe valeram. Sabe, dedilhando o corpo de uma mulher, extrair-lhe ais numa escala que começa num ai tímido, vai para um ai de ansiedade, depois para um de aquiescência e atinge, do meio para o fim do gozo, um tom agudo que altera a acentuação e alterna as notas: ai, aí, ai, aí, ai.

Soneto das boas notícias

Quem sabe um dia as notícias,
Pelo prazer de variar,
Se empenhem em nos poupar
E possam ser mais propícias.

E em vez das diárias desgraças,
Das bombas, dos atentados,
Dos caixas dinamitados,
Dos golpes e das ameaças,

Queiram nos satisfazer
E enfim nos oferecer
Enredos maravilhosos

Em que os baluartes do bem,
E os heróis do amor também,
Saiam no fim vitoriosos.

Pernambuco

Meu amigo Nelson Cunha me mandou, da linda Olinda, dois exemplares do Suplemento de Cultura do Diário Oficial de Pernambuco. Duas edições notáveis, como sempre. Não acredito que haja no Brasil, na área de artes, dez publicações de nível semelhante.

Agir

Correr o tempo não deixes
E nem as águas do rio.
Já longe vão os teus peixes
E a vida está por um fio.

O morto infeliz

O morto está infeliz, é fácil ver. Há alguns meses prometeu fazer um poema para a pessoa amada e gostaria de dizer a ela, que o olha compungida, que havia começado a escrevê-lo na véspera e o teria terminado, se não morresse na segunda estrofe.

Soneto de Álvaro de Campos

"Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente."

(Extraído de Fernando Pessoa, antologia poética, organização de Cleonice Berardinelli, publicação da Casa da Palavra.)

Kama Sutra - CCLXI

Que o amor esteja condescendente hoje e consinta em matar-nos como a aranha mata seu macho, só depois que as intermináveis convulsões houverem terminado. E que, por suprema concessão, possamos sentir, já docemente mortos, o instante em que ele começar a nos devorar.

Ada, Eva,

Luana, Vera, Lívia. Não importa que nome assuma, o amor sempre mostra no último capítulo seu punhal certeiro. E, enquanto morremos, nossa gratidão murmura: Ada, Eva, Luana, Vera, Lívia...

Aqueles que o amor...

... não matou são como sobreviventes de naufrágios. Chegam à praia com a boca cheia do sal do infortúnio e se maldizem por não terem morrido com os outros. A memória do que sofreram nunca os deixará em paz, ainda que tenham aportado à mais abençoada das ilhas. Contemplarão o céu sempre com rancor, e suas lágrimas irão apodrecendo aos poucos o solo que os tiver acolhido.

É possível...

... que um dia possamos olhar de novo para as flores com nossos olhos puros de outrora. É possível que elas aceitem ser olhadas de novo por nós como as olhávamos no tempo em que a carne não havia marcado em nós ainda seu domínio. Quantos anos nos serão necessários para que se limpe em nós a nódoa de termos comparado seios a frutos e lábios a romãs?

Hora de descer,

ir para a sala, para o sofá, e ler o que outros homens disseram sobre as aflições da vida. Há nisso, sempre, uma doçura que as alegrias não têm. A alegria é tola, ri deseducadamente, mostra os dentes, exibe a gengiva onde um resto do cereal matutino teimou em se incrustar. A alegria é falsa e se esgota com a última gargalhada, que soa logo depois da primeira. A tristeza, não. Ela a todo instante nos fustiga, nos espeta. É amorosa conosco a tristeza, não nos deixa por qualquer baboseira. A tristeza é o mais fiel dos cães.

Na rua...

... um menino, arrastado pelo pai para a escola, chora. Chega-me à janela seu choro, sua aflição. Talvez tenha saudade da mãe, da avó, talvez os garotos mais velhos zombem dele. Tenho vontade de descer às pressas e dizer-lhe alguma palavra de conforto. De que adiantaria? A mim disseram palavras de conforto quando eu me sentia o mais infeliz dos meninos do mundo. Garantiram-me que todas as dores passavam. Deveriam ter-me dito que o destino dos meninos é se tornarem homens, e que o destino dos homens é sofrer.

É belo o dia

É belo o dia, assim, em sua simplicidade. Os fantasmas noturnos se dispersaram com a chegada do sol e nosso sangue flui como se não fluísse, devagar. O corpo vai se acostumando à sua idade e os apelos tardios da juventude acalmaram-se. Nossos olhos veem enfim a vida como ela deve ser vista por quem, assim como o sol, reluz por um instante e depois caminha para o poente.

Kama Sutra - CCLX

O primeiro impulso dele foi afastar as tranças que escorriam sobre a blusa e os seios dela, para começar a abrir os botões. Mas, ao tocá-las, uma ternura rara o tomou inteiro, e ele beijou as tranças demoradamente, até que a carne ansiosa o fez abrir três dos botões, que deixaram sua língua antegozar o gosto que substituiria o anterior, de cabelos mornos e de algodão.

Causa e efeito

Ler a Bíblia me foi bem salutar.
Não tenho mais qualquer vacilação:
Sei agora que para obter perdão
O primeiro dos passos é pecar.

Lentilhas

Quando penso em lentilhas
penso em tramas
em dramas
em partilhas

Penso em primogenituras
em imposturas
e de Esaú sinto dó
e raiva sinto de Jacó.

Caminho

Um amor infeliz é o melhor alimento para a arte.

Babel

Se não tivesse havido o episódio da torre de Babel, não existiria a profissão de intérprete, nem a de tradutor.

Soneto da imperfeição da arte

Nós, seres mais que imperfeitos,
Mantemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.

Cremos em nossa mão,
Nos dedos, também perfeitos,
E também na exatidão
E em todos os seus efeitos.

Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer

Na sua notável grandeza,
Na sua soberba beleza,
Por pior que ele possa ser.

A falência do livro impresso

Leio que as livrarias de Nova York estão falindo. Parece que nem os reacionários, os leitores de idade igual à minha, estão exercendo mais o prazer de tatear lombadas. Quanto aos jovens, esses há muito preferem tatear lombadas de carne e osso e ler livros virtuais.

Tua lembrança

Lembro-me de ti como se fosses o astro que eu, uma noite, num ônibus, vi cair no asfalto de uma rodovia. Foi um instante de luz extrema, que só eu, dentre quarenta passageiros, notei. Se falo desse acontecimento, olham-me como se olhassem para um louco. E que mais eu poderia ser depois daquele fulgor que me fez imaginar que o ônibus tivesse atropelado a lua?

Um texto de Sei Shônagon

"Quando visitei um templo chamado Bodai onde se realizava a cerimônia de confirmação das palestras das Oito instruções da Flor de Lótus, uma pessoa mandou-me uma mensagem: 'Voltai logo. Sinto-me profundamente só.' Enviei-lhe o seguinte poema, escrito numa pétala de lótus:

     Ao mundo de agruras
     Por que voltar novamente
     Se buscando estou
     O orvalho da flor de lótus
     Para nele me molhar?

Profundamente tocada pela cerimônia, vi-me no desejo de ali permanecer, esquecida até da apreensão sentida pela família do ancião chamado Sôchû."

(De O livro do travesseiro, tradução de Geny Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luiza Nana Yoshida e Madalena Hashimoto Cordaro.)

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Ter Fernando Pessoa...

... para ler, e queixar-se da vida mesmo assim, é uma vergonha, uma canalhice, uma indignidade. Não serei eu que as cometerei. Vim do Centro Cultural hoje com uma antologia organizada e apresentada por Cleonice Berardinelli, que - como se fosse parco o tesouro - insere nele ensaios que escreveu com a autoridade e o amor de quem dedicou a vida a Pessoa e a seus cento e poucos heterônimos. A vida pode ser rica em momentos assim. No metrô, já com o livro no colo, como se fosse um neto, eu sorria, abobado de tanta felicidade. Ainda que me servissem gelada uma dobradinha à moda do Porto, eu continuaria com o sorriso. Deus, obrigado.