segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Nem com dicionário

Meu pai sempre esteve longe de ser um gênio e, graças a Deus, muito mais longe ainda de ser um boçal. Não conhecia a teoria dos quanta, eu desconfio, nem sabia usar a tábua de logaritmos, mas sou testemunha de que tinha para o gasto sua geografia, sua história e, se olhava toda hora para o céu, não era para exercitar a nuca nem para fortalecer o gogó: amava com amor apaixonado a astronomia.
   Apesar de polonês fanático, daqueles que já vão pondo um pé atrás quando ouvem falar de russo ou de alemão, tinha alguma coisa de grego no sangue. Sabia que sabia pouco e se envergonhava de não saber mais. Essa vergonha ficava evidente quando eu lhe pedia ajuda para fazer a lição.
   Nessas ocasiões, ele quase sempre me surpreendia com conhecimentos que eu não imaginava nele. Era capaz de dizer qual a capital do Afeganistão, como o vapor se condensa para formar a chuva, quem havia feito o que no reinado de Carlos I ou na batalha de Waterloo. Mas, se para alguma pergunta não lhe ocorria a resposta, entrava logo em pânico. Pigarreava, começava a piscar, cada uma de suas orelhas se transformava numa labareda e eu, que nunca vi meu pai chorar, nesses momentos avaliava seu esforço para manter o estilo de polonês durão. Essas constrangedoras cenas tinham sempre o mesmo final. Ele se lembrava de repente de um compromisso importante, enxugava o suor do rosto humilhado e se retirava com uma daquelas desculpas de derrotado:
   "A explicação é complicada e agora eu não tenho tempo. O jeito é você procurar no livro."
   Ou então:
   "Isto é melhor ver no dicionário. Eu poderia dar a definição com as minhas palavras, é claro, mas nunca é a mesma coisa, e seu professor vai acabar baixando a nota."
   Evoquei esses episódios da minha remota adolescência há alguns dias. Era um desses deliciosos domingos nos quais, ainda que conheça muito bem sua família, ninguém vai esperar uma traição. Eu estava pronto para uma boa caminhada antes do almoço, quando o golpe desleal me atingiu. Já com a chave na mão, fui brecado nos dois tênis pelo meu filho. Ele tinha assumido o controle da mesa da sala e, quase oculto pela pilha de livros esparramada em cima dela, ordenou, com toda a autoridade dos seus quinze anos, que eu lhe desse uma ajuda no trabalho de casa.
   Ver o adorável rapaz empenhado em algo além de tocar guitarra e de pentear os cabelos foi uma emoção tão forte que concordei. Esquivei-me com classe da primeira pergunta, livrei-me com categoria da segunda e talvez tivesse até conseguido convencer o cabeludo garoto de que não sou o cretino que ele supõe, se não fosse a terceira.
   "Pai, o que é entropia?", perguntou à queima-roupa o jovem guitarrista, com o livro de física na mão.
   "Entropia, meu filho?"
   "É, pai, en-tro-pi-a."
   "Entropia, meu filho, entropia, meu filho", disse eu, girando em falso e já planejando a fuga, "entropia, meu filho, é..."
   "Faz um negócio, pai. Deixa de enrolar e olha aí no dicionário. Meu livro aqui diz o que é, mas eu não entendi bem."
   Com as orelhas em brasa, como ficavam as do meu pai, peguei o Aurélio e li, em voz alta e solene:
   "Entropia é a função termodinâmica de estado, associada à organização espacial e energética das partículas de um sistema, e cuja variação, numa transformação deste sistema, é medida pela integral do quociente da quantidade infinitesimal do calor trocado reversivelmente entre o sistema e o exterior pela temperatura absoluta do sistema."
   Quando cheguei ao ponto final, ainda consegui (proeza de filho de polonês) fôlego para perguntar:
   "Compreende agora o que é entropia, filho?"
   De olhos arregalados, meu guitarrista preferido disse que não. Esse menino me preocupa.

(Crônica originalmente publicada pela revista Veja em 1992 e republicada em meu livro Pais, filhos e outros bichos, edição da Lazuli Editora e da Companhia Editora Nacional.)

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