sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Ela, só

De toda a dor e a alegria,
De tudo aquilo que eu tinha,
Sobrou só uma coisa minha:
A minha melancolia.

Três vezes

Se por acaso te importa,
Te digo, minha querida,
Três vezes, que a minha vida
Está morta, morta, morta.

Muito tarde

Chegaste ontem, minha cara,
Tu e tua juventude.
Bateste e eu abrir não pude:
O inverno já me levara.

Anfiguri (para o Xico Sá)

Tudo era rir e cantar,
Era tudo hilaridade,
Até Newton inventar
As normas da gravidade.

Vida

Excluindo-se a fúria e o som,
Pode haver algum sentido,
Talvez até algum bom.
Pode haver, mas eu duvido.

Boa, garoto

Hoje na major quedinho
te vi de novo
saudável menino
chutando folhas
assobiando
tirando de letra
problemas diários
e ora veja
isto é que é
mesmo bonito
entretido no jogo
de espantar mosquitos
e marimbondos de fogo.

Amy querida

Vi hoje num show a franqueza desesperada de Amy Winehouse, sua aflição, suas patéticas tentativas de ser honesta. O público achava que ela fazia tipo, gargalhava. Amy morreu, e a honestidade continua a ser vista como algo que se deve esconder, assim como toda família oculta sempre aquele primo esquartejador ou aquela sobrinha virago.

Soneto dos cativos do amor

Já o amor eu conhecia
Havia tanto e porém
Dele eu não sabia nem
Onde morava ou dormia.

Eu perguntava se alguém
Seu endereço sabia,
Reperguntava, insistia,
Ninguém sabia, ninguém.

Um dia o amor me levou
E seu palácio mostrou.
Exibiu tudo, só não

Consentiu em me deixar
Com os leprosos conversar
Que gritavam no porão.




Um trecho de Joris-Karl Huysmans

"Odiava, por fim, com todas as suas forças, as novas gerações, aquela camada de repelentes labregos que sentem necessidade de falar e rir alto nos restaurantes e nos cafés; que vos dão encontrões nas ruas sem pedir desculpas; que vos atiram em cima, sem sequer escusar-se, sem mesmo cumprimentar-vos, as rodas de um carrinho de crianças."

(De Às avessas, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Companhia das Letras.)

A chuva afogará...

... todos os viventes, menos um: o crítico que acusará Deus de falta de imaginação.

Quem te fez...

feia assim, sexta, e tão desengonçada? Bem podias não ter aparecido, com esse jeito de puta pobre da estação da luz, com esses cotovelos ralados, esse birote anacrônico, esse rosto borrado de maquilagem vencida. A gola alta da blusa esconde teu furúnculo, é verdade. Deus nunca é totalmente impiedoso.

Metáfora

Gostaria de morrer estilhaçado pelo sol da Paulista, esparramar-se em mil fragmentos que cintilassem por um instante como a mais ordinária das bijuterias e e fossem arrastados por uma repentina e bíblica chuva para o bueiro, para o esgoto, para o rio fedorento, para a perfeita metáfora de sua vida de brilho falso e inútil.

A verdade

Não se interessa mais por sexo, ele diz, com um desdém que pretende passar por filosófico e que não é senão um ardil para não revelar a mais profunda e vergonhosa calamidade do seu corpo.

No tempo de Álvares de Azevedo,

os poetas tocavam o rosto das amadas só com luvas especialmente feitas para tocar flores.

Os poetas românticos

Os poetas românticos morriam por musas pálidas às quais não tinham a coragem de se declarar. Enquanto isso, elas eram assediadas por homens de verdade, que, com a mão no terceiro botão da braguilha, perguntavam: "E aí? Pode ser ou tá difícil?" Quase sempre estava fácil.

Se

Se cada paulistano devastado pelo amor se pusesse a chorar, o Sistema Cantareira se veria acrescido de pelo menos quarenta e quatro gotas. O paulistano é acima de tudo um forte.

Alô

Estou bem agora
não te preocupes

Insônia? Não tenho mais

Já consigo dormir
da meia-noite
ao meio-dia
e quando acordo
esparramo os sonhos no lençol
e te procuro neles
e neles encontro
como ontem encontrava
tuas palavras
teus gestos
tua teimosia
minha tristeza
minha alegria

Nos meus olhos
há sempre lágrimas
desde que me levanto
mas não te preocupes
eles são mesmo assim
escandalosos esses meus olhos

Viciaram-se em chorar
e não há mais
como livrá-los do vício

Choram em cima
da sopa de pacote
choram no miojo
choram na toalha
choram nos talheres
choram em minha boca
enquanto eu como
e são o abençoado sal
do meu almoço
(já vês que estou
me alimentando sim
não te preocupes)
e o doce alívio
de minha alma

Choram
quando pego os jornais
e por isso não os leio mais
(não quero chorar
por líbias irãs ucrânias e egitos
e não me importam mais
as declarações de guerra
e os tratados de paz

Choram
quando apanho livros
e por isso não os apanho mais
desculpem virginias
desculpem katherines
minha emily meu cisne adorado
mas já choro tanto
poupem-me de chorar mais

Quero livrar-me delas
das lágrimas
ah como gostaria
mas que psiquiatra
que sanatório
que manicômio
essas loucas aceitaria?

Choram quando abro a janela
choram para a rua e para o sol
e choram para a lua
e sobre o poema
que começo a escrever

Choram
choram
mas não te preocupes

Quando não aguento mais
deito-me no sofá
e durmo de novo
e às vezes
até emendo o sono
da tarde ao da noite
e me empenho
em esquecer-me de tudo
até de ti
embora os olhos
assim que acordo
insistam em dizer
que mais uma vez
não consegui
e embora também a razão (!)
pobre escrava do coração
me venha sempre advertir
que posso esquecer-me de tudo
mas jamais poderei
esquecer-me de ti

São essas as notícias desta sexta

Ah talvez gostes de saber
que neste instante
estou esparramando
os sonhos de ontem
em cima do sofá
para ouvir de novo
o que me dizias
enquanto eu dormia
e te agradecer
pela tristeza
que neles deixaste
e pela alegria

Estou bem
sim
não te preocupes.



Conheces a mentira

Alguns ainda se deitarão sobre ti
mas quando te disserem
o que os outros te disseram
não fecharás os olhos como fazias
para que no escuro
as palavras te soassem
clandestinas e medrosas
como um murmúrio

Conheces a mentira
já por inteiro
como se ela fosse uma colega
com quem dividisses
o quarto a cama o banheiro

Enquanto este que hoje
sobre teu corpo se deita
diz que és ai és ai és tantas coisas
tu de olhos abertos
fitas o teto para fugir
do desprazer de ver
que os olhos de quem
agora olha para ti
sabem também como os lábios ai és ai és ai és
e como os olhos de todos ai ai ai és
sempre souberam mentir.

Prioridade

A primeira preocupação do poeta concretista é com a estrutura.

Exibicionismo

Quando se sentem observados por um monóculo parnasiano, os cisnes do lago dançam dodecafonicamente.

Garimpagem

Quando chega a vez do poeta parnasiano, os espectadores aproximam-se mais do palco. Cada perdigoto é uma pedrinha de puro ouro.

Sozinho, dentro de uma mancha de sol

Dolorosa é a hora em que, chegando a noite, os outros pombos vão para os abrigos e fica aquele, sozinho, no centro da derradeira mancha de sol na calçada. Ontem ele ainda tentou alçar voo. Hoje, sem forças, encolhe-se e tirita. Pobre pombo, a quem Deus recusou a bênção dos comprimidos, da gilete certeira e do revólver.

Prerrogativas de rei

A um rei tudo é lícito. Num dia, defender baleias; no outro, abater bois; no terceiro, cantar. Tudo que um rei faz, faz bem-feito. Aplausos para o rei. Que sorte ele ser o nosso, primeiro e único. Que ele nunca nos falte.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Embora o tempo estivesse esplêndido - um céu azul polvilhado de ouro e grandes manchas de luz espalhando-se sobre os Jardins Publiques -, a Srta. Brill estava contente por ter resolvido pôr sua estola de pele de raposa. O ar mantinha-se parado, mas ao abrir a boca a gente sentia um leve arrepio, como ao tocar os lábios num copo de água gelada antes do primeiro gole; e de vez em quando aparecia uma folha flutuando no ar - vinda de lugar nenhum, do céu. A Srta. Brill estendeu a mão e tocou na estola de pele de raposa. Coisinha querida! Era gostoso senti-la de novo. Ela a tirara da caixa naquele dia mesmo, sacudira-a bastante para fazer sair a naftalina, dera-lhe uma boa escovada e esfregara aqueles olhinhos mortiços para reavivá-los. 'O que andou acontecendo comigo?', disseram os olhinhos tristes. Ah, como era bom vê-los ali sobre o edredom vermelho, piscando para ela mais uma vez!... Mas o nariz, feito de algum composto de substâncias pretas, não estava nada firme. Devia ter batido em alguma coisa. Não tinha importância - um pedacinho de lacre preto, no momento oportuno, quando fosse de fato necessário... Malandrinho... Sim, era isso mesmo o que ela pensava a respeito da estola; um malandrinho mordendo a própria cauda bem ao lado de sua orelha esquerda. Poderia tirá-la do pescoço e pô-la no colo, para afagá-la melhor. Sentiu um formigamento nas mãos e nos braços, mas supôs que fosse resultado da caminhada. Ao respirar, alguma coisa triste e leve - não, não exatamente triste - alguma coisa suave parecia mexer-se dentro de seu peito."

(Do conto "Srta. Brill", do livro A festa e outros contos, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Boa-noite musical

Às vezes, penso que gostaria de ser um locutor daqueles antigos, com um programa noturno em que pudesse ler meus poemas com um fundo musical bem romântico e, preservado pelo anonimato sem imagem do rádio, encantar talvez duas ou três (ou uma) ouvintes que me supusessem belo e jovem. Imaginando isso agora (seguramente por ter visto à tarde A era do rádio, de Woody Allen), despeço-me com um boa-noite e este soneto que escrevi num tempo em que julgava saber o que era o amor. A música que pedi ao contrarregra é Tudo que se quer, com Verônica Sabino.

Que o amor possa nos ser leve
Como a sombra de uma pluma
E ainda mais tênue e mais breve
Que o borbulhar de uma espuma.

Que modesto ele se faça
E saiba se comportar
Como um pouco de fumaça
Desvanecendo-se no ar.

Que, viva quanto viver,
Viva o necessário só,
E, no dia em que morrer

Para transformar-se em pó,
Que tenha ele em nós cumprido
O que do amor é exigido.

                          Até amanhã, caras ouvintes

Toda causa

Toda causa precisa de mártires. Os do amor costumavam ser recrutados entre os poetas, aqueles jovens macilentos que se alimentavam de brisa e pétalas de rosa e tentavam a todo custo ficar tuberculosos. Está difícil, hoje (quando digo hoje, quero dizer faz tempo). Parece não haver mais charme em morrer por amor. A mais recente tentativa de salvar a causa fala em estimulá-la entre os velhos, por sua reconhecida resignação e por já não terem muito a perder. Mas calcula-se que, em média, a noção de amor leve pelo menos três anos para ser assimilada por indivíduos dessa faixa etária. E mais três anos para incutir neles os saudáveis princípios do martírio.

Alguns

Alguns se matam por amor. Que celeuma! Não é que ameaçam e acabam cumprindo? Quem diria, jovens com tamanha responsabilidade e senso de dever... Como aquele rapaz, mês passado, empregado de uma loja de lustres, que se pendurou pelo pescoço num deles, quando não havia clientes. Por uma semana se comentou isso: pobre Porfírio. Porfírio? Já não tenho certeza, já ninguém tem. Faz tanto tempo, já. Talvez seu nome fosse Douglas. Enfim, tanto faz, como dizem os que estão afeitos à vida e às suas peripécias.

Essas histórias de amor

Essas histórias de amor costumam ser tão banais: armações, futricas, mexericos. Às vezes dão em morte, paciência.  Quem há de convencer esses rapazolas de que o amor não merece um pulso cortado? Leiam mais Martha Medeiros e passem ao largo de Álvares de Azevedo.

Soneto de como ela a ele parece

Ainda hoje, toda vez que
Os olhos nela ele põe
E sua magia vê,
Ele encantado supõe

Que ela deve pertencer
A uma facção misteriosa,
À dinastia do ser,
À confraria da rosa.

Faz tempo que a conheceu
E sempre lhe pareceu,
Já desde o primeiro dia,

Que ela é a voz do coração,
As sílabas da canção
E o espírito da poesia.

Quando, enfim?

Quando, enfim, conseguirei exibir a minha alma não como a aquarela toscamente retocada de um diletante, mas como a tela retalhada de um pintor insano?

Segunda cotação do dia

Meu erro foi, toda a vida, não me fazer esperar. Cheguei sempre antes, com receio de desagradar às pessoas e dar-lhes a pista de minha educação insuficiente. Nunca aprendi que, nos poderosos e nos que sabem viver, a etiqueta existe para ser graciosamente burlada. Fui sempre solícito e prestativo e tomei a chuva que os outros esperaram passar. Uma vez, cheguei ao velório antes do defunto. Minha mãe, com sua sabedoria de camponesa, dizia algo cru que, no entanto, calha bem ao caso: quem muito se curva, em salamaleques, acaba mostrando a bunda.

Um trecho de Joris-Karl Huysmans

"O artifício parecia outrossim a Des Esseintes a marca distintiva do gênio humano.
   Como ele costumava dizer, a natureza já teve a sua vez; cansou definitivamente, pela desgastante uniformidade das suas paisagens e dos seus céus, a paciência atenta dos refinados. No fundo, que chatice de especialista confinado a seu papel; que mesquinharia de lojista apegando-se a determinado artigo com exclusão dos demais; que monótona coleção de prados e árvores, que banal agência de montanhas e mares!
   Não existe, aliás, nenhuma de suas invenções reputada tão sutil ou grandiosa que o homem não possa criar; nenhuma floresta de Fontainebleau, nenhum luar que cenários inundados de jatos elétricos não reproduzam; nenhuma cascata que a hidráulica não imite se nisso se empenhar; nenhum rochedo que o papelão não assimile; nenhuma flor que tafetás ilusórios e delicados papéis pintados não igualem!
   Não há dúvida de que essa sempiterna maçadora já esgotou a indulgente admiração dos verdadeiros artistas e é chegado o momento de substituí-la, tanto quanto possível, pelo artifício."

(Do livro Às avessas, traduzido por José Paulo Paes, publicado pela Companhia das Letras.)

Eu o vi

Eu o vi robusto ontem. Vejo-o robusto também hoje. Que alegria é vê-lo assim, aquele menino que conheci na Major Quedinho. Que espetáculo melhor podem desejar meus olhos?

Às vezes

Às vezes, pegamos nossas recordações mais caras e nos empenhamos em melhorá-las. Fazemos isso em horas tardias, sem testemunhas, e toda a hesitação e todo o receio que sentimos valem sempre a pena. É nas lembranças do amor que mais mexemos. Nós as tornamos tão maravilhosas que nem podemos contá-las a ninguém. Quem nos acreditaria?

Riram do amor

Riram todos do amor por sua linguagem sonsa, por sua gagueira, pela atrapalhação de suas mãos. Riram todos dele enquanto não tinham outra distração. Já se esqueceram dele. Ele continua sonso, gago, e suas mãos, atrapalhadas ainda, persistem em cavar a terra e em lançar-lhe sementes. O amor fala sozinho, como antes. Dizem que murmura ainda aquela oração com a qual espera trazer à superfície rosas que, tocadas pelo vento, cantem como um coral de anjos.

Depois das tempestades

Depois das tempestades, o amor volta a ser como era: calmo como uma brisa, passando por entre as flores no parque, sem tocá-las. Nada mais lhe exigem, nem provas nem atestados, e ele pode ser novamente aquele sentimento que nem a carne nem o sangue conseguem deturpar, ainda que tentem. O amor há de ser sempre alma para ser sempre amor.

Verônica Sabino

Verônica Sabino deve cantar hoje em algum lugar. Deus dispôs as coisas de tal forma que todo dia haja pelo menos um lugar abençoado no mundo.

Odalisca

Enquanto ela ainda ensaiava
Tirar o primeiro véu,
Já o sultão estrebuchava
No quadragésimo céu.

Desapego

O concretista pegou
Três quilos de sentimento,
Entrou na loja e o trocou
Por um quilo de cimento.

Soneto das provas que o amor exige

Será preciso que o amor
Seja ainda mais estouvado,
Mais tolo e desatinado
Para lhe darmos valor?

Para nós darmos ouvido
Ao que ele nos quer dizer
Mais louco ele há de ser
Do que até agora tem sido?

Para que honesto o julguemos
Nós dois lhe suplicaremos
Que ele se mate por nós?

Não vemos que morto já
Ele há muito tempo está,
Sem coração e sem voz?

Kama Sutra - DCLXXV

Quando ela sorri, ele só lhe vê os dentes. Conhece esse tipo de mulher, cuja língua só se revela no quarto, quando a luz se apaga e um corpo de se torna enfim uma superfície plenamente explorável.

O pássaro passa

Escreves um pássaro passa
e logo tens
a vontade
de acompanhar seu voo
pela cidade

Melhor deixá-lo ir

Logo teus instintos perversos
de homem
tua maldade de poeta
prenderão numa gaiola
de arame ou de versos
as asas o bico o canto
a volúpia da liberdade.

Preguiça

Nascer morto é economizar uma porção de etapas inúteis.

Botequim

Porque não entendemos de nada, discorremos sobre tudo.

Filosofia

Se um dia viéssemos afinal a saber por que estamos aqui, viver adquiriria sentido mas perderia a graça.

Cotação do dia

Caberemos num vaso e felizmente não poderemos ver-nos. Se nos víssemos, seríamos tentados a contestar: isso somos nós? Quem trocou as nossas cinzas?

Um poema de Cesar Vallejo

"Encontrei uma menina
na rua, e ela me abraçou.
Desconhecida, falante, quem a encontrou e a encontre
não se vai lembrar dela.

Esta menina é minha prima. Hoje, ao tocar-lhe
a cintura, minhas mãos penetraram na sua idade,
como num par de mal rebocados sepulcros.
E pela mesma desolação partiu
                   delta ao sol tenebroso,
                   trino entre nós dois.

                   'Me casei',
me disse. Como o que fizemos em meninos
na casa da tia defunta.
                   Casou.
                   Casou.

Tardios anos latitudinais,
que intensas ganas sentimos
de brincar de touros, de casal,
mas tudo de faz de conta, de candura, como antes."

(De Poesia completa, tradução de Thiago de Mello, publicado pela Philobiblion.)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Kama Sutra - DCLXXIV

Apetece-lhe dizer o nome dela quando o gozo começa a sincopar suas palavras e a fazê-las soar como se fossem as últimas pronunciadas por um venturoso afogado.

Kama Sutra - DCLXXIII

Às vezes ela se põe a mamar seu peito, como se ele fosse uma garota, e ele imagina quanta felicidade ela deve ter proporcionado às meninas, nos anos de orfanato.

Kama Sutra - DCLXXII

Como te cresce majestosa a relva, e macia, mesmo regada por tua água salina.

Necrológio

Que seja a foto escolhida
Alguma em que eu, carrancudo,
Exprima como odiei tudo
E como me odiou a vida.

No ponto

Se mais suave ainda tu fosses,
Ah, eu sei que morreria.
Como aguentar poderia
Palavras ainda mais doces?

Sono de gato

Como deve ser gostoso o sono de um gato, quando ele sonha que a mão da dona lhe acaricia a cabeça, para que ele durma.

Um poema de Adonis

"ÁRVORE DE FOGO

Cartas famílias, as das folhas de árvore
sentam-se perto da fonte
cortam a terra das lágrimas
leem para a água o livro do fogo,

minha família não esperou minha vinda
foi-se
nem fogo, nem rastro."

(De Poemas de Adonis, tradução de Michel Sleiman, publicado pela Companhia das Letras.)

Talvez

Talvez sobrem, para a tarde, ainda algumas destas palavras que hoje me vieram como se fossem rosas e eu as merecesse.

Cotação do dia (II)

Finalmente um dia com gosto de maçã. Deus deve estar desconcentrado hoje.

Kama Sutra - DCLXXI

Não se deve amar jamais alguém que se possa encontrar numa rua, num café. O amor há de ser sempre aquele que se tem a certeza de ser impossível, inatingível, inalcançável, como uma mulher que já nos bastaria tocar não no braço, mas na manga de seda de sua blusa.

A palavra

Gostaria de soprar-lhe ao ouvido uma palavra que esquecesse imediatamente depois de dizê-la. Gostaria de procurar lembrá-la, anos e anos a fio. Gostaria de jamais resgatá-la, para ter a certeza de que era a única a dizer naquele momento àquele ouvido também único.

As ternuras

São inesgotáveis as ternuras da alma. Quando já parecem extintas, se o amor as espreme escorre ainda alguma, às vezes a mais preciosa.

Os verdadeiros diálogos

Os verdadeiros diálogos, os que valem, são os que prescindem das palavras, porque estas jamais seriam capazes de mantê-los. Os verdadeiros diálogos são os de alma para alma, aqueles que por um momento fazem um homem e uma mulher sentir o sopro, felizmente fugidio, da divindade.

Certas manhãs

Certas manhãs conseguem ser belas. Quando isso acontece, ficamos abobados como fica um camponês de história infantil que, passando pelo palácio real, é convidado pela própria princesinha para entrar e tentar salvar sua rosa predileta.

Sabe

Sabe que sua ternura é infantil. Assim devem ser as ternuras. Lembrando-se, hoje, de quantas coisas chamou a amada, teve uma dúvida. Chamou-a alguma vez de pequetica? Ficou triste. Agora é tarde. Emburrou, como um menino que nem um pirulito de morango há de desemburrar.

No sonho

No sonho ele lhe diz poemas de uma simplicidade que nunca alcançou, e não tem vergonha de admitir que a ama, simplesmente que a ama, sem metáforas. No sonho ela o entende como nunca entendeu.

Quando a ternura

Quando a ternura o toca, ele resgata a mornidão do tempo de menino, quando a febre o deixava prostrado na cama e ele esperava não sarar nunca, para que continuassem a lhe levar os remédios, os sorrisos, os livrinhos em que quase sempre havia uma fada loira. Hoje ele se sente assim, morno, largado, como se diante dele estivesse Rapunzel.

Ela, ele

Ela, da janela de sua casa, sopra as pétalas de uma flor e as entrega ao vento. Ele, da janela de sua casa, embora isso lhe pareça um tanto estranho para um homem, sopra também uma flor e deixa as pétalas aos cuidados do vento matinal. Tolos, acreditam que um dia as pétalas possam encontrar-se - e essa tolice é talvez a única riqueza que não trocariam por nenhuma outra.

Tudo que ocorreu

Tudo que ocorreu a eles foi casto. Amaram-se com as palavras e, antes que estas fossem deturpadas pelos apelos do sangue e da carne, um generoso desígnio os afastou. Quando sentem saudade, as palavras ainda estão ali, intactas, sem as marcas de todo o tempo passado, tenras ainda como eram quando ele e ela as pronunciavam como se pronuncia o nome de um deus rigoroso.

Ele

Ele deixou de lhe dizer tantas coisas, tantas. Receou que ela zombasse dele, que visse nele um rapaz desses que nunca subiram uma escada de lupanar. Ele deixou de lhe dizer tantas coisas, tantas, temendo que ela visse nele uma dessas purezas anacrônicas e indesejadas. Ele deixou de lhe dizer tantas coisas, tantas. Ele as diz agora ao vento, e as palavras parecem mais belas ainda do que eram. Foi bom não dizê-las. Elas têm agora o orvalho acumulado dos dias.

Nós tentamos

Nós tentamos iludir o amor. Nós o levamos para aquele bosque, lembra-se?, esperamos que dormisse e fomos nos afastando com a cautela dos salteadores. Chegamos em casa com o sorriso de quem se livra de um estorvo. E ele se antecipara a nós e nos esperava com aqueles dois fios de ouro no bico.

Lembremo-nos

Lembremo-nos de como fomos naqueles dias. Para isso temos a memória, para o belo. O que fizemos depois não apagará aquilo. Importa o que fomos naqueles momentos em que fomos tocados pela bênção do sortilégio. Ficou um pouco daqueles dias. Evoquemos esse pouco, essas raridades que valem toda uma vida.

Inútil

Inútil esperar que o amor volte. Ele é como um passarinho que, de passagem, resolveu aparecer um dia diante de nós. Ele se foi para aquela montanha distante com que todos nós sonhamos um dia. Levou o melhor de nós, um fio dos teus cabelos de ouro e um fio dos meus cabelos de prata, e arma agora com capricho seu ninho, naquela montanha onde moram todos os anseios de amor. Nos dias calmos de vento propício, talvez, se merecermos, ouçamos seu canto.

Do amor,

conservemos o melhor. Sobrará pouco, em comparação com as noites de desespero, os dias de aflição, os repentes de nos atirarmos do viaduto e bebermos o veneno abençoado. Sobrará pouco, e nos bastará. Nossas mãos são pequenas, para guardar só o essencial.

Éramos criativos

Éramos criativos naquele tempo. Tínhamos a capacidade de melhorar a primavera, de enxergar um pombo muito branco numa nuvem muito clara e de fazer o arco-íris piscar para nós. Isso, que foi tão belo, foi o que nos matou. Idealizamos um amor que era tão extraordinariamente maravilhoso, tão prodigiosamente magnífico, que os deuses se enciumaram e o mataram assim como um menino mata um passarinho. Bastou uma pedra. Quando o Amor caiu ao chão, parecia um pedaço de estopa e fedia como um pensamento sórdido.

No entanto,

ainda nos recusamos a depor contra o Amor, e dizemos diante do juiz que nunca notamos nada do que agora alegam contra ele. Colocaríamos nossas mãos no fogo, por ele, e juraríamos por nossa alma que ele seria incapaz de fazer mal a uma mosca. Essas nossas marcas nos braços, no corpo, no coração? Ah, senhor juiz, isso é uma outra história. Os únicos sinais que o Amor nos deixou são tão leves e ternos que já nem se podem ver.

É bom...

... acordar assim, depois do naufrágio, e olhar para o navio destroçado. Nada o fará voltar à água, nenhuma aventura o atrairá. Estamos distantes da vida e de suas tentações. Olhamos com pena para a gaivota que parece querer furar a nuvem branca. Tola! Quanto demorará ainda para descobrir o que já sabemos?

Kama Sutra - DCLXX

Só deixa que a toquem homens normais. Receia os poetas. Disseram-lhe que uma perversão deles consiste em, no meio dos atos amorosos, introduzir nas mulheres estrelas que se recusam a sair de dentro delas e se põem a brilhar indiscretamente. mesmo durante o dia.

Historieta (para quando meu neto for poeta)

Tempo virá
em que todo poeta
mesmo aquele
que tenha escrito
só uma quadrinha
ou um soneto estropiado
casará com a rainha

Haverá rainhas e poetas
em profusão
até que o enredo canse
e todas as rainhas
e todos os poetas
serão enfiados em contêineres
e devorados pelo dragão.

Rímel

A vida tem a desfaçatez de se apresentar toda manhã com essa cara de puta maquilada, o sovaco mal raspado pela gilete e o cheiro acre de perfume com que tenta dissimular o odor de sua gruta vasculhada pelos marinheiros de Ulisses e pelos quarenta ladrões de Ali Babá.

Obsessão

Me atirarão ao mar com uma pedra no pescoço. Lá embaixo, ao invés de gozar a suprema ventura, ficarei procurando algo com que possa gravar na pedra o último momento.

Cotação do dia

Saltar do convés quando, chegado o momento das valsas, os casais mais velhos se entregarem mais calidamente à dança e os jovens aproveitarem para buscar drinques no bar. Saltar e sentir que não seremos alcançados pelas notas sentimentaloides de Fascinação nem pelo indesejado grito de Homem ao mar.

Madeleine

Quem busca o tempo perdido
Não o encontrará jamais.
Não o terá restituído
E perderá muito mais.

Um poema de Jacques Roubaud

  "Tua morte não para de acontecer     de se acabar

  Não    só    tua    morte.    morta    estás.    não

há nada a dizer.    e    o    quê?   inútil.

  Inútil o irreal do passado       tempo inqualificável.

  Mas tua morte em mim progride    lenta    incompreensivelmente.

  Continuo acordando em tua voz   tua    mão   teu   cheiro.

  Continuo a dizer teu nome     teu nome em mim    como se estivesses

  Como se a morte tivesse gelado apenas a ponta de teus dedos
apenas tivesse jogado uma camada de silêncio sobre nós   tivesse
parado diante de uma porta.

  Eu atrás     inrédulo."

(Do livro Algo  :   preto, tradução de Inês Oseki-Dépré, publicado pela Perspectiva.)





terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Raparigas

Putinhas bobinhas
putanas sultanas
putonas gordonas
puticas nanicas
putosas gostosas
putecas furrecas
puticas pudicas
putenas morenas
putaças loiraças
putocas bobocas
putacas velhacas
putaças cabaças

Amai-me todas
ainda que com moderação
e jamais
amáveis profissionais
me deixeis na mão.

Soneto da estranheza

O que temos é um mistério.
Talvez tudo, talvez nada.
Será um enredo sério
Ou uma trama gorada?

O destino escreve o enredo
E o acaso sugere a trama,
Mas ambos mantêm segredo:
Tem mesmo amor quem diz que ama?

E ora rindo, ora chorando,
A história vamos tocando
Sem pressentir o final.

Um dia talvez saibamos
Dizer se nós nos amamos
Ou se é mentira, afinal.

Heraclitiano

Movimento
eterno
movimento
lento
vento
lento
movi
mento
movi
lento
movi
vento
para o
momento
do sono
lento
sonolento
para o
esquecimento.

Ainda não

Nada é como ele previa.
Espera vir a razão.
Chegou a idade, mas não
Chegou a sabedoria.

O amor, segundo eles

Não sabem se é sortilégio,
Se é dom ou se é danação,
Se é ruim ou se é privilégio,
Não sabem, não saberão.

Não sabem, porém o aceitam,
Seja um mal ou seja um bem.
Se for um bem, se deleitam
E, se um mal, gozam também.

Soneto da dificuldade de desamar

Pensaram: talvez pudessem
Da antiga crença descrer
E tudo mais esquecer.
Pensaram, mas não esquecem.

E vivem assim: enquanto
Se empenham em deslembrar,
Conseguem só recordar
E reviver todo o encanto.

Talvez prossigam tentando
Negar o amor, procurando
Apagar-lhe a luz e a chama.

Irão tentar, se esforçar,
Para no fim confirmar
Que ele ainda a ama e ela ainda o ama.

Kama Sutra - DCLXIX

Nas noites dos seus encontros semanais com Márcia, ela já no caminho vai beijando o dedo preferido da amiga, aquele que ela retém entre as coxas agradecidas e chama de meu querido, meu comprido, meu amado, meu tesouro, meu tesão, em meio a convulsões que o impregnam de um sabor salino que ficará até o encontro seguinte e a instigará a buscar nele, com a língua, a lembrança cálida da amiga, antes de deixá-lo aninhar-se entre suas próprias pernas e fazê-la dizer Márcia, ai, Márcia, assim como diz agora, mordendo o lábio como se fosse a amiga que o estivesse mordendo.

Crueldade (fevereiro de 2011)

Na saída do metrô
vi o homem
na cadeira de rodas
vendendo rifas
de automóvel

Era um desses dias
em que fica mais fácil
acreditar em Deus

O sol jogava para o alto
suas moedas amarelas
e a tarde as recolhia
na sua saia azul
e ia separando
o trigo aqui
o ouro ali
o trigo aqui
o ouro ali

Ao lado do homem
na cadeira de rodas
uma mulher vendia cocada
e em torno dela
zumbiam abelhas embriagadas
enquanto um sorveteiro
oferecia seus palitos
de chocolate
coco e abacaxi

Repentinamente
o portão do colégio
se abriu como
uma barragem derrubada
e um enlouquecido
bando de meninos
saiu para o sol
para a tarde
para o trigo
para o ouro
para a cocada
para o chocolate
o coco e o abacaxi

Ninguém
correu para o homem
na cadeira de rodas
ninguém queria saber
daqueles papéis
com aquela foto desfocada
daquela van avariada
que ele queria vender

Era cruel aquilo

Era como se
o homem
na cadeira de rodas
estivesse ali
só para ser a exceção
à alegria
e o contraste
à correria

Apiedei-me dele
e pensei
como diante daquilo
eram ridículas
e até infames
minhas lágrimas
minha dor
minhas lamúrias de amor

Parei
e pensei em
comprar um
papel daqueles
uma das rifas
que ele segurava
e sem esperança
apregoava

Mas logo
me afastei dele
comprei uma cocada
e procurei andar
com ostentação
para que ele sentisse
que não poder andar
era de todas
a pior privação

Ele que se danasse
que se estuporasse
com suas rifas
e a cadeira de rodas

Sabia ele
que um ano antes eu
flutuava por aquela
e por outras tantas
ruas desta cidade?

Poderia ele
ao menos imaginar
que um ano antes
enfeitiçado pelo amor
eu não precisava
destas pernas miseráveis
sabia ele
que eu não precisava andar
porque era capaz de voar
e voava?

Desastre

Quando rompeste comigo,
Sofri tu nem sabes como.
Ainda hoje me dói o figo,
Ainda hoje me dói o estomo.

Resultado

Da vida nada mais quero.
No fim da minha jornada,
A soma de tudo é zero
E o fruto de tudo é nada.

Soneto do último nome chamado

Não te farei falta quando
Já de viver fatigados
Teus doces olhos amados
Estiverem se fechando.

E, se por alguém chamando
Estiveres, os chamados
Dos teus lábios assustados
Não me estarão procurando.

Há muito terei morrido
E tu terás te esquecido
De quem nunca te esqueceu.

Um nome pronunciarás,
Um nome repetirás,
Porém não será o meu.

O indesejado

"Sabe, Laurinha, minha família não gostou do Osmar desde o início. Olhavam para mim como se eu fosse uma pirada. Onde eu tinha ido buscar aquele tipo? No primeiro almoço lá em casa, ele perguntou se alguém de nós conhecia o Loxas. Nós perguntamos: Loxas? Que Loxas? Ele não respondeu e começou a rir e a se chacoalhar como se tivesse tido um ataque de epilepsia. Nunca nós soubemos quem era aquele Loxas."

Ritos fúnebres

O amor deveria ser sempre como um defunto rico e poder ser retocado, rejuvenescido, melhorado.

Especialidades da casa

Convidaram-no a ser um escritor-fantasma, e ele, pondo-se à disposição, disse que suas especialidades eram três: podia ser ou Dante, ou Cervantes, ou Shakespeare.

Água benta

Um homem virtuoso, gentil, magnânimo e cordato, se existisse, seria o mais abençoado e o mais chinfrim de todos os seres.

O ambiente, no romance

Num romance, as condições sociais da época em que a ação transcorre são importantes na medida em que afetam os sentimentos básicos do homem; o amor, a caridade, o ódio, a inveja, o ressentimento, a cobiça. Com esses sentimentos tem se construído e continuará a se construir a literatura. Se por intervenção divina o ódio, a inveja, o ressentimento e a cobiça fossem erradicados, e restassem só o amor e a caridade,a literatura seria maçante como ficar acompanhando o voo de uma mosca de um lado a outro da cozinha, em busca de um grão de açúcar.

Proporção

A cada página na qual imprimo minha incompetência, privo-me de ler quatro ou cinco de Margaret Atwood, Vila Matas, Elfriede Jelinek. Ser escritor, no meu caso, é como, numa lesma, a pretensão de voar.

Graças

Agradeço a Deus por ter-me feito tolo e não ladino, ignorante e não sabichão, derrotado mas não desonesto.

A faísca da beleza

Se soubéssemos definir a beleza, se houvesse um método para obtê-la, não lhe daríamos tanto valor. A parcela de acaso que sempre envolve sua busca nos fascina. Onde ontem recolhemos apenas cascalho, talvez hoje o sol faça faiscar uma pedra de ouro, assim como a mais bela das mulheres pode miraculosamente aceitar nosso convite, depois de ter sido eleita a rainha do baile dos oficiais e haver-se recusado a dançar com todos eles.

Última idade

São quase tocantes os vícios que Deus nos reserva na última idade. Descobri a excitante transgressão de beber água tônica. Com a perversão do limão e do gelo.

Parcialidade

Há aqueles que veem só um lado da vida. Sou um deles. Só vejo o lado pior.

Ghost writer

Para ser Seu biógrafo e exaltar Seus feitos, Deus criou o homem - justamente a pior de todas as Suas obras.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"Ainda ontem, em meus olhos o teu olhar,
E hoje - me olhas de lado!
Ainda ontem, até o pássaro cantar, -
E hoje são corvos as cotovias!

Nada sei e tu, cheio de saberes,
És vivo, e eu pasmada,
Oh clamor eterno das mulheres:
'Querido, o que foi que eu fiz!?'

Para ela as lágrimas são sangue -
Água em sangue, nas lágrimas se banha!
Não é mãe o Amor - e sim madrasta:
Não esperem justiça, nem barganha.

Os barcos levam os amados,
Afasta-os o branco caminho...
E fica o lamento sozinho:
'Querido, o que foi que eu fiz?'

Ainda ontem, estava ajoelhado!
Me igualava ao império da China!
De repente, as mãos escancaradas,
Vai-se a vida - e resta uma moedinha!

Julgada por infanticídio
Estou - sem coragem, sem carinho.
É do inferno que eu me aproximo:
'Querido, o que foi que eu fiz?'

Pergunto à mesa, pergunto ao leito:
'Para que eu me aguento e me desgraço?'
'Cada beijo - um suplício:
Beijará outra', - respondem.

No fogo da vida me criaste,
Na estepe gelada me atiraste!
Eis o que tu, amado me fizeste!
Querido, o que foi que eu fiz?

Eu sei de tudo - não me contradigas!
De novo vidente - já não ardente amiga!
Onde o Amor se retira,
Chega a Morte-jardineira.

É o mesmo que sacudir a macieira!
A fruta madura cai na hora boa...
'Por tudo, por tudo me perdoa,
Querido, - o que foi que eu fiz!'"

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora Fornoni Bernardini, publicado pela Martins Fontes.)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Afeto

Até no silêncio, quando
Nem sequer pensamos nela,
Continua germinando
A flor do afeto, a mais bela.

Sempre

Aquilo que é essencial
Não passa nem passará.
É sempre agora, hoje, atual,
E vive, e existe, e está.

Soneto do amor integral

Tolo é quem, diante do amor,
Se mostra astuto e maneiro
E que, seja por que for,
Jamais se dá por inteiro.

Tolo é quem, tudo podendo,
Ao invés da saciedade
Acaba sempre escolhendo
O meio-termo, a metade.

Exija sempre o amor pleno,
Pois querer o amor ameno
É como nada almejar.

E quando amor lhe exigirem
Dê mais do que lhe pedirem,
Dê tudo que puder dar.

Soneto do coração tolo

Coração tolo, desista,
Eu já lhe disse que não.
Jamais irei à Paulista,
Jamais à Consolação.

Jamais eu na galeria
Contemplarei as vitrines
E jamais na livraria
Folhearei os magazines.

Não, meu coração, meu tolo,
Também nem café nem bolo
Me farão entrar ali.

Mortos não comem, não bebem,
E nem convites recebem,
E eu há muito já morri.

Meu vício

Viciei-me em ti, e te injeto
Em mim, te inalo, te fumo,
Te busco, imploro, consumo,
Amor, meu vício dileto.

Conselho para um jovem

Ainda que perto
esteja o porto
por acaso apostarás
se vivo aportarás
ou chegarás morto?

Não troques
o certo pelo incerto
não deixes para amanhã
o que hoje decerto terás
cultuando o mestre Onan.

Pequena ode para as putas esquineiras

Todas as putas morrerão
todas morrem um dia
essa é a sina delas
das bagulhosas e das belas

Se voltarmos um dia
outras haverá
sempre haverá putas
puteando nesta esquina

Mas talvez não mais aquela
que por não ter bunda
e por se julgar feia
pela foda inteira cobra só meia

Sempre haverá putas aqui
todo ano todo santo dia
e esta aliciante
mornidão de maresia

Sempre haverá putas
e esta saudável alegria
graças ao bom deus
e à fiel freguesia.


Adultos

Chegamos à idade adulta quando a palavra pureza não provoca em nós nada além de sarcasmo.

Dois poemas de Omar Khayyam

"Lembro-me que em caminho eu parei para olhar
O oleiro que moldava uma argila molhada:
E com a sua língua toda obliterada
O barro disse: - 'Irmão, bate mais devagar.'"

                    ***

"Tanto ao homem que o seu hoje prepara,
Como ao que no amanhã incerto pensa,
Da torre negra um muezim gritara:
'Tolos! Nem cá nem lá há recompensa!'"

(De Rubaiyat, tradução de Jamil Almansur Haddad, publicado pela Biblioteca Universal Popular.)

Soneto do suplício reivindicado

Já tantas vezes sofri
Por este amor desmedido
E tantas tenho morrido
Que até a conta perdi.

Tantas vezes padeci
Por tanto amor ter pedido,
E por não havê-lo obtido
Já tantas vezes morri,

Que é um milagre eu estar
Contigo aqui a falar
Para pedir ternamente

Que mais golpes me desfiras,
Que mais uma vez me firas,
Que me mates novamente.

Providências

Vivi meu tempo, já, bem mal vivido,
Mas meu futuro está já bem traçado.
A Morte sabe até meu apelido
E tenho o meu lugar assegurado.

Futuro

Não terei mais alegrias,
Nem mais conforto, nem paz.
Tão forte quanto doías,
Dóis ainda, e mais doerás.

Receita

Com dois quartetos
dois tercetos e algumas rimas
tu podes fazer
um soneto parnasiano
uma obra-prima

E com três quartetos
e um dístico final
tu podes fazer
um soneto shakespeariano
uma obra sem igual

Coragem meu rapaz coragem
mostra que tu és capaz
de contar doze sílabas
sem nenhuma transgressão
ao tratado de metrificação

E visto que Musas já não há
talvez te seja útil
deixar crescer um cavanhaque
comprar um monóculo um fraque
e te vestires como Olavo Bilac.

Cisquinho

Amei um cachorro
sem vê-lo
sem tocar-lhe o focinho
nem alisar-lhe o pelo

Amei um cachorro
de nome singelo
sem saber se era feio
sem saber se era belo

Era um cachorro
como Deus o fez
não era adestrado
não tinha nome inglês

Amei esse cachorro
só de ouvir falar
como um menino
tendo notícias do mar

Amei esse cachorro
como o cachorro mais amado
que um homem tivesse roubado
ou a Morte houvesse matado

Amei esse cachorro caipira
sonso desgracioso rejeitado
como se ama um menino
surdo mudo cego e aleijado.

Projeto

Quisemos ser os melhores. Nisso, fomos exatamente como todos os outros. Mas eles tiveram a sensatez de desistir logo, para viver.

O primeiro sinal de minha doença

Eu tinha talvez dez anos quando meu pai me deu um livro. No fundo, todos os presentes que eu ganhei na infância foram pagos com o dinheiro dele, mas era minha mãe que os entregava. A alegria de receber o livro das mãos dele foi uma das maiores que tive. Ganancioso, eu quis mais. Assim, como ele não havia feito dedicatória, eu mesmo escrevi: "Ao meu querido filho Raul" e assinei. Durante muitos anos, abri esporadicamente o livro para me reencantar com essas cinco palavras. Esse episódio - agora que no fim da vida me ponho a rememorar as miudezas que são, no final das contas, meu tesouro sentimental - é um indício de como, desde o começo, fui regido por essa busca de afeto, por essa doença que viria a atormentar o meu coração e a amargar os meus dias. Guloso desse amor terno, que alimenta mais a alma do que o corpo, irei embora com o ressentimento de quem julga não ter tido tudo que lhe devem.

Probabilidades

Calamidades e erros de português sempre haverão.

Poema de Marina Tsvetáieva para Boris Pasternak

"Distanciaram: verstas, milhas...
Trans-plantaram sem planilhas,
Para na terra seguirmos calados,
Cada um de seu lado.

Verstas, verstas se-pararam...
Des-soldaram, des-colaram,
Crucificaram-nos as mãos
Sem supor que era a fusão.

O tendão, a respiração...
Não cortaram - só sujaram,
Des-veiaram...
                    Muro e calha.
Des-paisaram - como a gralha -

Conspiraram: valas, verstas...
Não destruíram - dispersaram.
Nos covis da amplidão terrestre
Como órfãos, abandonaram.

Março é o pior - para o trabalho?!
Nos cortaram - como o baralho!"

24 de março de 1925

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora Fornoni Bernardini, publicação da Martins Fontes.)

Programa de fidelidade

Quem nos mijou diariamente
Sem dó e sem compostura
Que seja agora coerente
E nos regue a sepultura.

Cotação do dia (III)

Ter sabedoria para depreciar a vida como ela merece. Reduzi-la à sua patética mesquinhez. Caminhar depois por uma dessas ruas que parecem abandonadas, onde em nenhuma janela ninguém nos acompanha os passos. E, como quem se livra de um papelzinho de bala, deixar a vida escapar de nossa mão, de preferência em um bueiro de onde nenhuma brisa e nenhum homem possam resgatá-la.

Cotação do dia (II)

Aquela melancolia que é quase uma obrigação em momentos de despedida. E a certeza de que teria sido melhor se fosse antes, bem antes.

Cotação do dia

Pensar que esses tantos que andam por aí são meus semelhantes é minha lição diária. Vejo-me como sou, odeio-me, abomino-me, e vomito-me no balde, para não sujar o vaso sanitário.

Melhor idade

A melhor idade é a última.

Minha mãe

Minha mãe me ensinou o que eu tenho de melhor: o amor à tristeza. Os escritores que depois li aguçaram esse sentimento, mas ela já estava comigo desde os meus cinco anos. A tristeza polonesa é incomparável, legítima, e não há processo de aculturação que possa extingui-la ou minorá-la.

Kama Sutra - DCLXVIII

Na cama ela valia qualquer sacrifício - desde o inicial, de pedir cem vezes, contadas, me dá, por favor, me dá, me dá, até o final, de precisar dizer, cem vezes também, obrigado, minha querida, obrigado, obrigado.

Kama Sutra - DCLXXXVII

Te calharia melhor uma garota. Somente outra mulher se arrepiaria na dose certa com tua voz de fumo e conhaque.

Perfis de alcova

Qualquer lojinha de bairro pode tornar um homem, qualquer homem, mais potente que um ferrabrás. Mas nenhuma lojinha pode transformar um atleta sexual num poeta, nem mesmo num daqueles que rimam amor com amargor.

"Cast"

Se eu tivesse escrito a Bíblia, colocaria nela mais vilões. A história recente do mundo vem mostrando que o elenco é muito fraco.

Rota de fuga

Pense numa mulher de coxas roliças. Numa delas imagine uma verruga com um pelo cinza semelhante a um ponto de interrogação. Depois, construa na mente dois lábios desgraciosos encimados por um buço molhado de suor. Imagine agora que essa mulher é sua musa. Ufa! Você está salvo.

No asilo

Um dos nossos me contará que na juventude escreveu o Ulisses, de Joyce. "O Ulisses, de Joyce?", perguntarei. Ele me olhará com irritação: "Não foi o que eu acabei de dizer?"

O único

Proclamava-se o único poeta ainda capaz de escrever um soneto de amor. Nos raros momentos de modéstia, admitia que outro também seria capaz disso: seu alter-ego.

Um trecho de Robert Walser

"Sem se dar conta, enquanto escrevia era observada por Joseph, de olhos postos em sua nuca e em suas costas. A bela cabeleira feminina em seus cachos anelados de leve lhe tocava e lhe roçava a nuca. Como era esbelta, como era inteira aquela aparição feminina. Ela estava ali, esforçando-se para escrever com a alma e a consciência, seguindo as regras ortográficas e com o método correto da boa redação, a uma mulher que talvez mal dominasse a leitura. Sem querer, Joseph agora lamentava tê-la repreendido por sua altivez burguesa que, no fundo, achava encantadora. Alguma coisa o comovia naquele dorso feminino cujo vestido encolhia-se em pequenas e delicadas dobras sempre que, por baixo dele, o corpo se mexia. Uma mulher bonita? De acordo com os parâmetros usuais de beleza, seguramente não. Mas o contrário, de acordo com esses mesmos critérios, tampouco era verdadeiro."

(De O ajudante, tradução de Zé Pedro Antunes, publicado pela Arx.)

domingo, 23 de fevereiro de 2014

a.C.

Com honras ou sem, eu gostaria de ter sido um soldado de Júlio César. Júlio César morreu no ano de 44 a.C.

Refregas

Não há assunto mais sério
Do que as batalhas de amor.
Umas derrubam o império,
As outras, o imperador.

Musa

Assim também não dá. Poxa!
Sua mais recente musa
Além de maçante e obtusa
Tinha brotoejas na coxa.

Kama Sutra - DCLXXXVI (para o Xico Sá)

Mas que vexame, querida.
Tu foste ver tua amada
Com a nuca toda mordida
E a bunda toda arranhada.

Ler Mariana Ianelli

Ler Mariana Ianelli é recordar uma lição simples: a de que, mais que com qualquer outra coisa, a literatura se escreve com palavras.

Um trecho de Virginia Woolf

"No entanto, a maioria das mulheres não é nem de meretrizes nem de cortesãs, e nem tampouco senta-se apertando cãezinhos de estimação contra o veludo empoeirado toda tarde de verão. Mas o que fazem então? E veio-me à imaginação uma daquelas longas ruas de alguma parte ao sul do rio, cujas infindas fileiras de casas são incontavelmente habitadas. Com os olhos da imaginação, vi uma senhora muito idosa atravessando a rua, apoiada no braço de uma mulher de meia-idade, sua filha, talvez, ambas tão respeitavelmente calçadas e recobertas de peles que o vestir-se, à tarde, lhes deve ser um ritual, e as próprias roupas devem ser guardadas em armários com cânfora, ano após ano, durante todos os meses de verão. Elas atravessam a rua no momento em que as lâmpadas estão sendo acendidas (pois o crepúsculo é sua hora favorita), como devem ter feito ano apos ano. A mais velha está perto dos oitenta, mas se alguém lhe perguntasse o que a vida significou para ela, diria que recordava as ruas iluminadas para a batalha de Bataclava, ou que ouvira os canhões dispararem no Hyde Park pelo nascimento do rei Eduardo VII. E se alguém lhe perguntasse, tentando definir o momento com dia e estação ("Mas o que estava a senhora fazendo em cinco de abril de 1868, ou em dois de novembro de 1875?"), ela faria uma expressão vaga e diria não conseguir lembrar-se de nada. Pois todos os jantares foram preparados; os pratos e copos, lavados; as crianças mandadas para a escola e mergulhadas no mundo. Nada resta de tudo isso Tudo se evaporou. Nenhuma biografia ou história tem uma palavra a dizer a esse respeito. E os romances, sem que o pretendam, mentem inevitavelmente."

(De Um teto todo seu, tradução de Vera Ribeiro, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

Cotação do dia (IV)

O coração é aquecido por igual de um lado e do outro. Que bonito é vê-lo assim com essa cor saudável. Digam o que disserem, o Amor sabe fazer um churrasco.

Cotação do dia (III)

Que pretensão tem esta manhã, de apresentar-se como se fosse um domingo de fevereiro, quando nos sentimos como se estivéssemos num cemitério, no Dia de Finados, e desgraçadamente fôssemos não o defunto, mas quem por ele chora.

Fernanda Lima

Fernanda Lima, como se sabe, é um desses nomes raros que, pronunciados com o timbre que utilizamos para chamar as bênçãos e os pássaros, são capazes de redimir e melhorar qualquer domingo.

O melhor

Todo mundo disso sabe,
Não desconhece ninguém,
Se viver é o que nos cabe,
Morrer é o que nos convém.

Armistício

Pobres heróis, que jamais
Sentiram nem sentirão
A doce crueza dos ais
E o gosto da rendição.

Futebol (para o Xico Sá)

Se não for contradição,
É pelo menos curioso
Que o chute sem pretensão
É sempre o mais pretensioso.

Um pouco aquém

Nem sempre o fervor constante
É por si só suficiente.
Amei, mas não o bastante,
Amei, mas não loucamente.

Melhor idade

Embora eu deveras queira,
Não venho obtendo deleite.
Deus me deu a frigideira,
Porém me tirou o azeite.

Cotação do dia (II)

Pertenço àquela espécie de homens que só erguem as mãos para implorar a Deus ou para se render aos inimigos.

Soneto da hora sincera

Quando nada mais se espera
E a vida está no final,
Que possa soar-nos sincera
Nossa palavra, afinal.

Morto o tempo da quimera,
Do romantismo e do ideal,
Chegada para nós é a era
De reconhecer o real.

Em tudo a que nos lançamos,
Completamente falhamos,
Essa foi a nossa história.

Podem acaso fracassos
Descritos por falsos traços
Pintar a face da glória?

Literatura confessional

Que bela é a literatura confessional, quando o escritor é honesto e se compraz em relatar suas derrotas, suas torpezas e mesquinharias. Quem as conhece melhor do que ele? Se, porém, o escritor se põe a falar de seus méritos e conquistas, que lástima! Melhor seria chamar um biógrafo, bem pago, para isso.

Uma frase de Peppino Picarollo

Depois de dar ao homem o cérebro e as mãos, Deus não precisaria ter-lhe arrancado a costela.

O caso Marius

A morte de Marius, a girafa, vai afundando no esquecimento. A polícia já arrefece em sua busca de Deus. Sabe já que Ele é ardiloso e que muitos, há milênios, o vêm procurando em vão. Como um serial killer, Ele lança pistas cujo único resultado, no final, é deixar seus perseguidores diante do vazio, ouvindo Sua retumbante gargalhada.

Cotação do dia

A tristeza, e a satisfação, de sentir que tudo em nós piora. Andamos enfim pelo caminho que cabe a todos os homens percorrer.

Um trecho de Robert Walser

"Oh, que belo, agradável e extenso verão! Joseph levantou-se para prosseguir vagarosamente o seu caminho por uma rua opulenta e elegante, mas silenciosa. Nela, sim, os ricos permanecem em casa aos domingos, não se expondo senão com estrita parcimônia. Andar pela rua nos feriados é algo que não se faz. Todos os magazines estavam fechados. Alguns pequenos grupos de pessoas vagavam aqui e ali, dispersavam-se, cambaleantes e oscilantes, homens e mulheres de aparência muitas vezes deselegante. Que humildade em cada um daqueles passeadores avulsos! E como podia ser que um domingo tivesse uma aparência dessas, amarga e mesquinha! 'Para certas pessoas', pensou o ajudante, 'tornar-se humilde acaba sendo na vida o último refúgio.'"

(De O ajudante, tradução de Zé Pedro Antunes, publicado pela Arx.)

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Cotação da noite

A vida é maravilhosa. Pena que não seja mais curta.

Soneto de quem bate à porta

Se nada mais nos conforta
E do amor nada queremos,
Então por que nós corremos
Se alguém chega e bate à porta?

Se o ânimo já perdemos
E se a esperança está morta,
Se nada mais nos importa,
Por que é que nós atendemos?

Com a mão no trinco hesitamos,
Pensamos, quase recuamos,
Faltam-nos o chão e o ar.

O amor banimos um dia
Mas não nos importaria
Se ele quisesse voltar.

Larry David

A diferença entre mim e Larry David é que ele não fala português e não é tão idiota.

Que eu

Amei o amor. Fui cativo,
Vivi em sua masmorra.
Por ele, só, ainda vivo.
Se dele esquecer, que eu morra.

O vazio

Sentirei falta dos bate-papos com os alunos e os professores. E pensar que, quando comecei a escrever livros juvenis, cheguei quase a implorar - porque exigir não podia - que jamais a editora agendasse uma palestra ou uma entrevista. Hoje, uma de minhas duas únicas alegrias, as derradeiras, é falar de literatura em colégios - pelo Brasil afora (ou adentro). O público, sempre jovem e generoso, acredita, ou finge acreditar, que eu entenda alguma coisa disso. E eu finjo entender. O que seria dos velhos se não houvesse boa vontade com eles? A minha segunda alegria? Não lembro. A vida é triste.

Kama Sutra - DCLXXXV

Conduzirei o Amor à fonte e com as mãos em concha lhe darei de beber a água mais cristalina. Mesmo quando ele se disser saciado, insistirei para que tome um pouco mais. Caminharemos depois e, quando ele, envergonhado, me disser que já a água exige sair de seu corpo, armarei novamente minhas mãos em concha e a beberei, com os lábios agradecidos. Quando me saciar, guardarei nos bolsos o que houver restado, para que nunca me arrependa de ter deixado perder-se tão caro tesouro.

Futuro

Engordarás, envelhecerás, as rugas começarão a desenhar fundos tis em tua testa, e te espicaçará o remorso de tão cedo teres privado meus olhos de ver teu rosto como ele é agora, esplêndido e único.

Se

Se naquele início de noite tivesses apanhado o metrô na Consolação, ido até a Paraíso, e de lá até a São Bento, e houvesses saltado do viaduto Santa Ifigênia, te escusarias de pensar setecentas e quarenta e tantas vezes como seria adequado haver feito isso naquele dia.

O Amor

O Amor continua incorrigível. Vive de migalhas e dorme na rua. Quando, de madrugada, mijam nele, diz obrigado. E às vezes corre atrás do mijador, para explicar-lhe que agradeceu de bom coração. Um dos maiores receios do Amor é ser considerado irônico.

Aviso

Aos colégios, professores e alunos que por acaso e desventura pretenderem me acolher em meu último giro anual de bate-papos sobre literatura, peço a gentileza de relevarem tolices que eu certamente direi, lágrimas que seguramente chorarei e lapsos de memória que sem dúvida cometerei. No mais, preocupem-se apenas em manter à mão um desfibrilador, de preferência um que não funcione.

As musas

As musas talvez não fossem tão musas, se não fosse a mania dos poetas de julgarem poder transformar em ouro tudo que tocam.

O entorno, em Shakespeare

Não se pode negar que a época e os personagens também favoreceram Shakespeare. Até a ralé usava como tratamento a segunda pessoa do plural: vós sois um bastardo e tendes cara de bugio, como a de vosso pai. E as árvores, quando falavam, diziam: vinde, vinde, ó brisas mornas do verão.

Modo de ver

Os vis são os vis, os canalhas são os canalhas. Os bons são os nossos semelhantes.

A hora dos balanços

Agora que chegou a hora dos balanços, sinto ter ousado tão pouco, na vida e na literatura. Empenhei-me para compor uma figura, ter uma voz e uma identidade únicas. E me fiz tão ridiculamente austero que perdi a oportunidade de me divertir, de viver. Fui sério demais, presunçoso demais, tolo demais. A vida e a literatura não chegam a ser baboseiras, mas também não vão muito além disso.

Arrependimento de leitor

Se algo me deixa arrasado,
Se alguma falha me dói,
É que li muito Machado
E li tão pouco a Playboy.

Melhor de vida

Na última vez em que o vi, o Amor estava empregado. Trocava as toalhinhas nos quartos de um puteiro.

Kama Sutra - DCLXXXIV

Os artefatos substituem o homem cada vez com mais vantagens. Conservam, dele, só os nomes, invocados quando se aproxima o prazer. E soam estranhos e sem merecimento: Michel, Tomás, Jônatas, Elpídio.

Cotação do dia

Eu seria um bom tipo para ser retratado por um romancista. Uma lástima que Dostoiévski já tenha escrito O idiota.

Uma frase de Peppino Picarollo

Talvez entendamos, no dia, o que as moscas durante a nossa vida toda quiseram nos dizer.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

As palmas de Onan

A direita é afeita,
A esquerda é canhestra,
A mente é perfeita,
Certa, lisa, destra.

Fim de linha

Este será meu último ano de viagens e encontros com leitores. São jovens, todos, e que sentido pode haver em levar-lhes a mensagem de quem já precisa concentrar-se para se lembrar de como é a vida e para quem esperança é só uma palavra de nove letras?

Soneto das musas mercenárias

Ah, como mudou a moda!
As musas que antigamente
Nos davam graciosamente
Nos cobram agora a foda.

Só assim a crica arreganham
E depois correndo vão
Entregar ao seu rufião
A grana que de nós ganham.

Desconto não nos concedem
E às vezes até mais pedem
Do que foi estipulado.

Ninguém estranhe, portanto,
Que um poema hoje custe tanto
Quanto um carneiro ensopado.

A escolha

Aos poetas que vão levar seus escritos, os editores logo perguntam se são poemas de amor. Se são, não os aceitam. Se forem visitados por passarinhos, esses editores colocarão para fora da sala os que melhor souberem cantar.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Por que as pessoas não lhe disseram que Beckett escrevia romances? Como podia imaginar que queria escrever à maneira de Ford, quando Beckett estava ali o tempo todo? Em Ford, há sempre um elemento de peitilho engomado de que desgosta, o que, no entanto, hesitou em admitir, algo a ver com o valor que Ford colocava em saber onde, no West End, comprar as melhores luvas de dirigir ou em como distinguir um Médoc de um Beaune; enquanto Beckett não tem classe, ou está fora das classes, como ele próprio prefere estar."

(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

Simone

Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, digo teu nome com a lentidão sacra e a reverência que merecem teu cérebro único e tua bunda imortal.

Soneto da árvore

Os passarinhos chegaram,
Suas árvores escolheram
E ali ficaram, viveram.
Em mim, porém, não pousaram.

Eu de chamá-los não canso
E os frutos meus lhes ostento
E peço a ajuda do vento
E os ramos todos balanço.

É tudo inútil, porém.
Chamo, chamo, e eles não vêm.
Que sejam amaldiçoados

Pela peste perseguidos,
Pela desgraça roídos,
Pelos gaviões devorados.

Camille Claudel, Adèle Hugo

O mais amargo e o mais belo fruto do amor é a loucura. Ah, Camille, ah, Adèle, vocês duas conheceram tão bem essa deleitosa desgraça...

Garota

Eu mereço ainda, no fim
Da vida, tua mão pequena
Urdindo a carícia amena,
Teus olhos postos em mim?

Catamênio

O vento levantou a saia da garota no ponto do ônibus e ali, onde terra não havia, nem jardim, por um segundo o sol dourou o esplêndido e envergonhado rubor de uma rosa.

Garotão

Ele era feio
e desengonçado

Um dia
por zombaria
uma garota
a mais linda
lhe disse que ele
era fofo
e bem-apessoado

Ele foi para casa
olhou-se no espelho velho
pendurado num prego
e viu que era verdade
o que ela dissera

Ele era feio
desengonçado
tolo e cego.

São Paulo

O gigolô vai pôr hoje à noite uma nova garota para se virar na esquina. Ela é burrinha, e ele recomenda mais uma vez: "Não fala a tua idade. Eu sei, eu sei que você tem dezesseis. Mas diz que tem catorze. Funciona melhor."

Moça morta

No fim da madrugada, no velório da garota que definhou e morreu por amor, as velas se apagaram, sopradas por um vento feroz que derrubou árvores e destelhou casas. Sempre que alguém pegava outra vez os fósforos, o vento voltava com fúria redobrada, e foi preciso desistir. De manhã, quando foi sepultar a garota, a família viu na rua milhares de passarinhos mortos e também, embora a cidade ficasse a cem quilômetros do mar, uma infinidade de pequenos peixes que pareciam trazer uma mensagem, interrompida pela morte.

Soneto da ilha amaldiçoada

Comigo as coisas sucedem
De modo bem singular.
Os outros nada me pedem
Nem tenho nada a lhes dar.

Sou como uma ilha maldita
Onde, num tempo distante,
Encontrou morte e desdita
Um infeliz navegante.

Já mais ninguém me procura,
Ninguém jamais se aventura
A aproximar-se de mim.

O capitão que afoguei
Me amaldiçoou e serei
Maldito sempre, até o fim.

Kama Sutra - DCLXXXIII

Passar a mão levemente pelo corpo dela, como se estivesse afagando a lua e receasse acordá-la. Não dizer nada, nem sussurrar. Respirar contidamente, sem rumor, como se não estivesse ali ou como se, estando, tivesse pejo de se mostrar ao lado da alva manifestação da beleza.

Em Dostoiévski

Em Dostoiévski, há sempre uma tensão, uma aflição, um desespero intoleráveis. Seus personagens são atormentados, como se um demônio os possuísse e açulasse. Nada, nem o sono, os conforta. São sombrios, macilentos, movem-se como espectros e a cada passo que dão parecem suspeitos esquivando-se do sol, vigilante e rancoroso como o olhar de Deus.

Memória

Se a vida às vezes dos vivos
Não se lembra ou compadece,
A morte, por mil motivos,
Dos vivos jamais se esquece.

Um trecho de Ernest Hemingway

"Durante três ou quatro anos em que fomos bons amigos, não consigo lembrar-me de ter ouvido Gertrude Stein falar bem de qualquer escritor que não tivesse escrito favoravelmente sobre sua obra ou feito alguma coisa para promover sua carreira, com exceção de Ronald Firbank e, mais tarde, de Scott Fitzgerald. Quando a encontrei pela primeira vez, ela não se referiu a Sherwood Anderson como escritor, mas falou ardentemente dele como homem, dos seus grandes olhos italianos, belos e quentes, da sua bondade e do seu encanto. Pouco me importava com os grandes olhos italianos, belos e quentes, de Sherwood Anderson, mas gostava muito de alguns dos seus contos."

(Do livro Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Enquanto é tempo

Deus, quando me afligirem insuportavelmente as dores com que dia a dia vais me matando, talvez a pusilanimidade abrande minha voz. Enquanto, porém, ainda resisto ao Teu cutelo, quero dizer-Te que aquilo que fizeste com o Marius foi uma puta sacanagem. Os adultos, esses seres que medem as palavras durante a vida toda, para obter uma morte benevolente, nós já sabemos como são. Mas qualquer tribunal de crianças, Deus, Te condenaria sem apelação e colocaria Teu majestoso pescoço na forca.

Soneto da alma

Termos uma alma imortal
É uma aspiração que temos,
Nós, que não reconhecemos
A nossa essência banal.

Repugna-nos o trivial
E, tolos, nos comprazemos
Em julgar que viveremos
Depois da morte carnal.

Pobre alma, Deus vos proteja,
Que errados nós estejamos
E vossa sina outra seja.

Que vós possais livre voar
Do peso que em vós pesamos
E vos confundirdes com o ar.

Autoanálise

Eu, por mim, não me importo de me considerar abjeto. Quem sou eu para discordar da opinião de tantos, especialmente dos meus amigos?

Nosso inimigo

Quem se diz acossado pelos inimigos não é paranoico, é presunçoso. Qualquer homem com um mínimo de bom-senso deve saber que só alguém privado da razão haverá de invejá-lo. Nosso inimigo havemos de ser nós mesmos. Quem olha para si, por um instante que seja, e não abomina as próprias mãos, e não execra o corpo asqueroso, é um ser destituído da capacidade de avaliar.

Ainda Marius

Que não guardemos jamais o nome de quem matou Marius. Que não o digamos nunca. Nossos lábios já são suficientemente podres e até o mel que por eles passa tem gosto de sangue. Pronunciar o nome de Deus também já nos vai custando. Quando enfim Lhe cobraremos as culpas? Pode alguém colocar uma girafa num mundo em que vive o homem? Que Caim tenha matado Abel pouco me importa. Cains e Abéis valem o mesmo, nós sabemos disso. São duas faces do mesmo engano. Mas que um Caim, ou um Abel, tenha matado Marius é uma indecência contra a qual deveríamos clamar ate o último dia do derradeiro século. Mas clamar a quem? Deus, há muito recebo com desconfiança Tua mão em meu ombro. Para onde me levas? Em que parte do caminho enfiarás a mão no Teu casaco? É aguçado teu punhal, Senhor? Já o limpaste do sangue de Marius?

Procedimentos

Deram-me uma anestesia mínima, para quinze minutos de exame. À noite, cenas tenebrosas me sacudiram. Fui visitado por espectros,espetado por demônios, tive calafrios. Morri uma centena de vezes de madrugada. Inferno! Inferno! Acordei às dez, com o sol entrando num quarto no qual eu não me havia deitado. Saí então de pesadelos horrendos para um pior: o do cotidiano. Deus! Devo estar pagando por minhas iniquidades. Foram tantas, meu Deus?

Moderno

Apesar da idade, considera-se um progressista. Queimar etapas é um dos seus lemas. Quer ir direto da vida para a morte, sem passar pelo asilo.

Soi-disant

Quando alguém, num texto, se apresenta como "este cronista", imagino que escrever crônicas seja algo muito especial. Nunca vi um escultor se dizer "este artista" ou um soberano se proclamar "este rei". Enfim, é algo que não me diz respeito. Não entendo nada disso. Nunca fui cronista.

Lembrança

Gostava do jeito que minha mãe tinha quando sentia pena de mim.

Pequenas alegrias da vida

Um amigo da adolescência falava com tanta solenidade e gosto que ia tocar uma punheta que parecia Jascha Heifetz antes de um concerto.

Satisfação

Uma das maiores satisfações dos últimos dias de vida é podermos nos olhar no espelho e dizer, com pleno conhecimento de causa: "Quer saber de uma coisa? Você é um merda."

Cotação do dia

Que inadequado morrer justamente agora, quando começo a descobrir a taumaturgia de Mariana Ianelli.

Marius

Deus ia mexer um bispo no tabuleiro quando vieram lhe informar que tinham matado Marius. "Marius?", ele perguntou, retardando o lance. Marius?" "É", respondeu-lhe o mensageiro. "Marius, a girafa." "Girafa?", disse Deus, contrafeito. "Pensei que fosse aquele meu amigo da África do Sul." E, com um sorriso, moveu o bispo. Boa manobra.

Nosso melhor momento

As flores
que nunca tivemos
florescerão
nos botões de nossa camisa
e ornarão nosso peito
de mortos
finalmente condecorados

morrer é
um modo de ter

E o que
nós nunca fomos
e tanto almejamos
então seremos
pela fidalguia
pela cortesia
pela covardia
que com os mortos
os que morrerão um dia
sentem dever ter

morrer é um modo de ser.

Lógica

Sinto, se no assunto penso
De uma maneira imparcial,
Que viver é um contrassenso
E morrer é o natural.

Opinião

Se me permitem dizer,
Se me consentem julgar,
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.

Quem há

Amor, quem há de entender-te,
Quem há de te decifrar,
Quem dirá se ter-te é ter-te,
Quem isso pode afirmar?

Quem pode amigo dizer-te
E quem pode em ti confiar,
Se ter-te é sempre perder-te,
E perder-te é definhar?

Amor, de ti eu sei somente
Que de nada sei realmente
E nem virei a saber.

Mas te vivo em cada instante
E vivo triste e exultante
Porque viver-te é morrer.

Morrer

Morrer é estarmos deitados já livres da esperança e de tudo mais. Epopeias, acontecimentos, assombros, nada mais nos diz respeito. Estamos salvos de todos os perigos, menos dos perdigotos daqueles que sempre querem mostrar intimidade com os defuntos e, debruçando-se sobre eles, lhes desejam uma boa viagem.

Definição

Por sua sabedoria,
A frase é dita e redita:
Morrer é nossa alegria,
Viver é nossa desdita.

Dúvida

Não sei por que eu ainda vivo,
Se é tão desalentador:
Viver é tão cansativo,
Morrer é tão tentador...

Videogame

Não é Deus quem mata

O gato mata o rato
a doença mata o gato
o médico mata a doença
tudo mata tudo a todo tempo

Deus não suja as mãos
Deus não mata
a Deus abomina matar

Deus tecla as teclas
Deus usa seus asseclas
Deus simplesmente joga
e deixa jogar.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Minha mãe, minha tia

Minha mãe e minha tia não duvidaram de mim quando, com oito anos, eu disse que seria escritor. Minha mãe acreditaria em mim se eu lhe dissesse que seria presidente do Brasil e me casaria com Shirley Temple. Minha tia não só acreditou em mim como começou a me presentar com livros, como estímulo. As duas há muito tempo estão mortas. É triste dizer isto, mas é um alívio. Não sei como olharia para elas. Por amor, elas mentiriam. Diriam que nunca leram escritor melhor. São poucas as pessoas que nos amam. Dez, se tanto, em toda a vida. Minha mãe e minha tia me amaram tanto que eu prescindiria das outras oito. Envergonho-me de ter mentido para tantos amigos, para tantos leitores. Os amigos já há muito não acreditam mais em mim, é verdade. Não são tolos. Não me convidam mais nem para um suplementozinho ocasional. Mas eu ter enganado tantas crianças, quase um milhão delas, com meus livros, é algo que fará pesar meu ataúde. Felizmente, a vida vai-se apagando. Se eu, por má índole, continuar fingindo, não será por muito tempo mais.

A morte de Marius

Um dia desses, mataram no zoo de Copenhague uma girafa chamada Marius. E daí? Daí que eu não consigo esquecer isso. É o tipo de história que não entra em minha cabeça: o homem matando uma girafa para servir sua carne a um casal de leões.

Gafe

A enfermeira alta e ruiva me diz que o avô dela morreu da minha doença, mas imediatamente esclarece: "Isso foi num tempo em que os recursos eram outros. E ele era bem mais velho. Tinha setenta e tantos." "Eu tenho setenta e cinco." "Ele tinha oitenta e oito, eu acho. E era doente desde criança."

No laboratório

Pegando a seringa, Deise me pergunta: "O senhor aqui outra vez? Não faz nem um mês, faz? O que é agora? Outro pré-operatório?" "É saudade de você, menina", eu digo, "não desconfiou?" Ela sorri, finge acreditar. É o que todos vêm fazendo comigo ultimamente. Virei de novo um menino cheio de vontades e cheio de gente disposta a ter condescendência comigo.

Soneto da última hora

É hora de me desfazer
De tudo quanto reluz,
De tudo quanto seduz
E me estimula a viver.

É hora de reconhecer
Que onde eu a esperança pus
Há muito tempo já a luz
Não deveria acender.

É hora afinal de admitir
Que tudo é pó e ilusão
E é tempo já de partir.

E, enquanto posso falar,
É hora de implorar perdão
E também de perdão dar.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Soneto das matronas refesteladas

Matronas róseas, sadias,
Quem vos viu e quem vos vê...
Agora passais os dias
Sentadas, vendo tevê.

E pensar que os cabarés
Eram ontem vosso rumo,
E os passos de vossos pés
Buscavam bocas de fumo.

Matronas refesteladas
Em poltronas estofadas,
Um dia vossas netinhas

Saberão vossos segredos,
Quantas centenas de dedos
Baixaram vossas calcinhas.

Contraste

A morte tem importância por si só. A vida tem só a importância que lhe damos.

O que nos move

Os frutos todos querer
É o que dá à vida sentido.
O que nos move é colher,
Não relembrar o colhido.

Adeus

Andamos pouco
quase nada
e logo nos entediou
o caminho
e logo nos cansou
a jornada

Juntos não somaram nada
os passos meus e os teus
e no entanto
logo nos olhamos
um bocejo abafamos
e nos dissemos adeus

Adeus por quê?,
adeus a quê?,
adeus a nada?,
o amor pergunta
e olha para mim
e olha para você
e se culpa e se ressente
por ter lançado
sua semente em solo errado.

No laboratório (III)

O médico vai me mostrando áreas em que não vejo nada. Fico dizendo huumm, huumm, e ele me explica que nada piorou, desde a última ultrassonografia. Pergunto-lhe se houve alguma melhora. Ele me responde que de certa forma sim. E completa: "Logo estaremos fazendo aquela partida de tênis, o senhor vai ver." E eu me tomo de uma ternura imensa, e me imagino de calção e camiseta brancos, numa manhã de sol, rebatendo uma bola que ele mandará fácil para mim. Ele me diz que posso vestir-me, e eu murmuro obrigado, doutor, sentindo que deveria abraçá-lo, e amaldiçoando meu temperamento obstinadamente contido.

No laboratório (II)

Uma atendente nova me chama. Quando ela está me levando à saleta para colher sangue, a moreninha, Deise, chega e me diz: "Então, hem? Pensou que eu não fosse ver, né? Me traindo assim, descaradamente." Eu sorrio, ela sorri, a atendente nova acaba sorrindo também. Antes eu me incomodava com essas demonstrações de carinho que nos reservam quando estamos no fim da linha. Hoje eu as espero, e as estimulo. Qualquer coisa serve, quando não se tem mais nada.

No laboratório (I)

Um senhor me conta as particularidades de sua doença. Diz que os sintomas começaram a aparecer em 2005 e que lhe deram dois anos de vida. "E olhe, estamos em 2014, e eu aqui", ele me pisca o olho, como um menino que escapou sem punição de uma travessura. "Não acredite no que os médicos dizem, principalmente se for coisa ruim. Eu, por mim, parava até de fazer o tratamento, se não fosse a minha filha. Sei que vou até os cem. Quantos anos o senhor tem? Setenta e cinco? O senhor, fácil, fácil, ainda vai ver cair a torre de Pisa."

A força do hábito

Começam a me agradar as viagens que faço dentro daquilo que chamam de turismo médico. Já não encaro com desgosto ou enfado as manhãs passadas na rua Itapeva, na Domingos de Morais, nem as tardes na Labatut e na Azevedo Macedo. Em todos os consultórios e laboratórios encontro já rostos conhecidos entre os outros turistas, e algumas atendentes já sabem meu nome e me dizem que estou bem melhor. Gente simpática. Como custa pouco o conforto espiritual: um sorriso, um aperto de mão. Temo, nesta fase da vida, a derradeira, mudar meu conceito sobre a humanidade. Todos me parecem agora tão gentis, tão generosos. Quase me esqueço dos que me mandaram para estas manhãs de chapas, para estas tardes de diagnósticos, para estes tratamentos que alteram minhas probabilidades de vida de 10 para 15%. E como são gostosos os cafezinhos e as bolachas, depois de tantos jejuns.

Soneto dos nomes que ouvi na cama

Amei antigamente uma
Dama distraída e tão cruel
Que sem verdade nenhuma
Me chamava de Manuel.

E muitas vezes de Abel
Em nosso colchão de espuma
Me chamou, ou de Ismael,
Quando não de Montezuma.

Somente quando ocorria
De minha chama estar fria
Lhe retornava a memória

E ela então me censurava
E meu nome recordava:
"Raul, de novo essa história?"

Soneto dos fantasmas que me atormentam

Enquanto durmo, não sei
Nem quero saber de Lorca,
De Gertrude, aquela porca,
De Scott e nem de Hemingway.

Enquanto durmo, eu espaços
Não abro para Flaubert,
Para Pascal ou Voltaire,
E nem para John dos Passos.

Enquanto durmo, eu me isento
Do indescritível tormento
Que impõe a literatura.

Mas quando acordo vêm Eça,
Machado, Orígenes Lessa,
E recomeça a tortura.

Soneto dos aguçados punhais

Literatura, quem há
De um dia a coragem ter
De sem piedade dizer
Como és hipócrita e má?

A conta, quem a fará
Dos que fizeste sofrer,
Dos que fizeste morrer,
Me diz, quem calculará?

Enquanto teclo estas teclas,
Tu e aqueles dois asseclas -
O amor perjuro e a traição -

Os punhais vão aguçando
Que meu peito apunhalando
Um dia me matarão.

Soneto dos fracassos de amor (versão final)

Os fracassos de amor são tão frequentes
Que pode até chamar-se disparate
O modo com que às vezes algum vate
Se queixa disso em versos tão veementes.

Tantos milhões por dia o amor põe doentes
Que não existe guerra, nem combate,
Que o vença nisso ou que sequer empate,
Nem a soma mundial dos acidentes.

O amor é uma moléstia bem banal
Que a todos trata sempre por igual:
O muito rico, o pobre, o remediado.

Não vale todo o escândalo dos poetas
Que o choram em canções tolas e ineptas,
Como se fosse um rei decapitado.

Valor

Tirando o que falsamente
Lhe atribui o coração
E visto como é realmente
O amor não vale um tostão.

Cotação do dia

Tu vais daqui para ali,
Dali vais mais para lá.
Aqui, ali e acolá
Ninguém espera por ti.

Um poema de Roberto Marinho de Azevedo

"Bem, agora que vou morrer
Eu me despeço de você.
Seja amável quando me vir
Batendo em tua janela,
Como um bem-te-vi. No inverno,
Como chuva, posso fazer
Que nem saias de tua cama
Para me ouvir. - Ah, meu amor!
Acolhe bem a minha alma."

(Da coletânea Poesia, publicada pela Companhia das Letras.)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O suspeito

As palavras de amor
quem lhe disse garota
foi alguém que não sou eu

Olhe para mim
veja minha pele seca
meus olhos murchos
e diga garota
para os meus ouvidos fracos
se quem lhe falou em amor
posso ser eu

Pode invadir meu micro
vistoriar meus arquivos
pode ver se em minhas mãos
há vestígios
de poemas
pode virar e revirar
meus bolsos meus blocos
que não encontrará
nem verso nem estrofe
nem esboço de canção

Nem sei como você garota
pode suspeitar assim
que essas coisas tão lindas
que essas coisas tão vivas
podem nascer ainda
num velho coração.

Segunda à noite

Nem msn nem skype.
Quando o amor embirra, cada
Cartada é malbaratada,
Não junta naipe com naipe.

Leoa jovem

Leoa jovem
leoa menina
tu me farejaste
uma tarde
na verde campina
por onde eu arrastava
meu cansaço de viver
e minha carne mofina

Era primavera
ao menos para ti era
leoa menina

Eu carregava o inverno
em mim
um inverno de cervo envelhecido
ansiando pelo fim
e pelo olvido

Tu me farejaste
e por um embuste do cheiro
me seguiste
e sobre mim te lançaste
como se eu fosse um cordeiro

Grande foi o nojo
com que as garras
que em mim cravaste
de mim desencravaste
e as lavaste no ribeiro

Tu te foste
jovem leoa
leoa menina
e rejeitado por ti
vou me arrastando
esperando que um dia
se condoam de mim
e me deem fim
as aves de rapina.

Soneto do rio caudaloso

Foi há quatro anos, eu acho,
Um pouco menos ou mais,
Que o amor nasceu como um riacho
Com suas águas normais.

Fluía leve, ligeiro,
Tranquilo como os demais,
Sem pretensões a ribeiro
Ou ribeirões colossais.

Depois, repentinamente,
Engrossou sua torrente
Com as fortes chuvas do estio.

E agora, já presunçoso,
Atira-se caudaloso,
Deságua em mim como um rio.


Uma quadrinha de Peppino Picarollo

OS FAVORES DE EVA

Quem quer os favores de Eva
Não sabe no que se afunda:
Num dia na bunda leva
E no outro leva na bunda.

Riacho

Jamais sonhei
com um riacho

Ocorreu-me isso hoje
jamais sonhei
com um riacho

E como seria bom
sonhar com um
que me pegasse
e me levasse
bem longe
para um lugar
em que o tempo
não vigorasse
e eu jamais
precisasse acordar.


Soneto de quem se presumiu poeta

Eu sou aquele cretino
De visão romantizada
Que, não entendendo nada,
Chamou o amor de divino.

Eu sou, sim, aquele idiota
Que de nada desconfiou
E que amor considerou
O que era apenas chacota.

Eu sou aquele pateta
Que acreditando ser poeta
Divinizou tetas e ancas

E que, por puras julgá-las,
Querendo assim conservá-las,
Deixou virgens as potrancas.

Ainda hoje (para Ana C.)

Bem ali, no oitavo andar,
Onde morou Ana C.,
Um passarinho vai piar:
"Aninha, cadê você?"

A perda

Se o avião caísse, morreria com o poeta o poema que, pelo início, prometia, como tantos outros, ser o mais belo de todos.

Kama Sutra - DCLXXXII

Ela instilou nele um ciúme tão insano e selvagem que uma noite, procurando como sempre evidências, ele, encontrando entre as pernas dela um pedaço de noz, julgou tratar-se do dente postiço de um marinheiro.

Farra

Com a ajuda do vento, cavalheiresco amante, a árvore sacode a chuva do seu vestido de noite e prepara-se para o sono do qual será acordada pelos passarinhos.

Kama Sutra - DCLXXXI

Enquanto, olhando-se no espelho, passava languidamente batom, ocorreu-lhe uma ideia inquietante e prazerosa: comparou sua boca a uma planta carnívora, fez uma careta felina e por um momento não soube se sentia inveja ou pena do homem com quem ia se encontrar.

Cotação do dia

Dormir dez dias, dormir
Dez noites, não acordar,
Ficar assim, prosseguir,
Dormir, dormir, continuar.

O confidente

Estava escrevendo uma desesperançada mensagem de amor e se comoveu tanto que, com os cotovelos no teclado, abraçou o micro e, banhando-o de lágrimas, lhe disse, patético: "Só você sabe como eu sou infeliz, só você."

Prova

Se queres a prova definitiva do meu afeto, podes pedir-me tudo, menos que eu te traga o mar. Talvez eu conseguisse, mas me tomaria um tempo que, francamente, prefiro desfrutar contigo.

Avião

A não sei quantos pés de altitude, pensei em ti e o céu me pareceu bem mais bonachão do que em qualquer outra viagem, ainda que nuvens carregadas, ao longe, me lembrassem uma de tuas típicas frases: não é bem assim...

Ai, ai, pode?

Que até o final sejam doces
Nossos diálogos, assim
Como se uma fada fosses
E eu fosse algum querubim.

Retratos

Não podem os elogios,
Tenham embora justeza,
Ser mais que retratos frios
De ti, de tua beleza.

Forno e fogão

Sensata, ela desdenhava
Do fogo que o consumia.
Pegava o botão, girava
E punha em banho-maria.

Aquele

Se aquele que tu procuras
É o amor que realmente fica,
Não é o das flores, das juras,
O das luvas de pelica.

Não comerias?

Não te ofereceram, mas podes dizer que, assim como fizeste com o amor, não comerias o coração daquele passarinho e o seu peito canoro? Recusarias as penas e o bico, com aquela tua cara: ai, que nojo. E depois, como se estivesses fazendo um favor, mastigarias sem pressa, como uma mulher educada.

Uma frase de Peppino Picarollo

Se uma mulher provar o sal de um marujo, jamais voltará a aceitar o mel de um poeta.

Desconto

Ter ouvido Chopin, ter visto as telas de Frida e ter lido Mariana Ianelli são coisas a levar em conta na hora do acerto final. Deus nem sempre é tão insensível quanto parece.

Folha corrida

Não há talvez nenhum poeta que na juventude não tenha cometido a infâmia de um acróstico.

Lógica

Se duas bestas quadradas
Exprimem uma opinião,
Por certo as duas estão
Redondamente enganadas.

Um trecho de Alfred de Musset

"Anjo eterno das noites felizes, quem cantará teu silêncio? Oh beijo! Bebida misteriosa que os lábios absorvem como taças excitantes! Embriaguez dos sentidos, oh volúpia! Sim, como Deus, tu és imortal! Impulso sublime da criatura, comunhão universal dos seres, volúpia três vezes santa, que dizem de ti os que te celebram?"

(De A confissão de um filho do século, tradução de Adonias Filho, publicação da Ediouro.)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Marius morre em Copenhague

Por que a indignação
com a morte de Marius
se antes dele
foram mortos tantos
e depois dele serão mortos vários?

Quando uma girafa
não serve para a reprodução
aprenda menino
aprenda menina
vira comida de leão

Minha memória é fraca
mas feliz foi o tempo
em que havia
algo de podre
no reino da Dinamarca.

Soneto de exaltação à bunda

Ó bundas amplas, garridas,
Prodígios da natureza,
Do raro dom da beleza
Tão fartamente providas.

Ó nádegas atrevidas,
Ó frutas de real grandeza,
Que sois da sua própria alteza
Mais do que cientes e imbuídas.

Que possa Deus conservar-vos
E a suprema graça dar-vos
De o imaginário povoar

Como as nádegas formosas,
Divinas, maravilhosas,
De Simone de Beauvoir.

Sugestão (para Zelda)

Quando fores pintar
pinta um passarinho

Pode haver outras coisas
que escolherás
um parque
árvores
o sol
um pequeno lago
crianças correndo
e se quiseres
poderás pôr também
um arco-íris
se por acaso resolveres
que terá acabado
de chover

E se tiveres mesmo
resolvido que choveu
talvez te agrade
equilibrar nos galhos
bem na ponta deles
gotas que ensaiem
graciosos saltos
lá de cima para a grama

Pinta o passarinho
por último
quando tua mão
já estiver preparada
para a beleza
que ele há de ter

Arranja um lugar
num cantinho
bem no alto da tela
e pinta-o
num instante
em que o sol
possa pousar
sobre a delicadeza
de seu bico
e de suas penas

Depois deves fingir
que estás distraída
olhar para o outro lado
e deixá-lo voar

Se ele
por ser um bobinho
continuar ali
deves pegar
teu pincel
e pintar
naquele cantinho
no alto da tela
um fiapo de nuvem
ou outra coisa assim
leve e bela
que possa
substituir e traduzir
toda a alegria
de um passarinho livre
descobrindo que o céu
o esplêndido céu azul
se abriu todo
para suas asas
e seu voo.

Sangue azul (para Frida)

Azul é o sangue
que corre em tuas telas
rancoroso azul
que se recusa a adornar
o céu e o mar
e se imagina vermelho
e se presume sangue
e se carrega de ira
e ataca as nuvens azuis
azula-as mais
incha-as como balões venosos
hematomatosos
fere-as e as faz sangrar gotas
berrantemente
escandalosamente
inacreditavelmente
vingativamente azuis.

Em tua tela (para Priscylla)

Esboçarás em uma de tuas telas um homem triste olhando a cidade à noite, da janela de um apartamento. Um amigo teu, que me viu uma vez contigo, te perguntará: "Esse não é aquele sujeito... aquele de sobrenome estranho? Nossa, parece que ele vai pular lá para baixo." E mais uma vez estará em tuas mãos me arranjar um sorriso e salvar-me.

Perdões

Talvez venhas a me perdoar, quando eu não estiver mais por perto com o meu mau costume de, assim que perdoado, arranjar motivos para novos perdões, pelo prazer de recebê-los. Será o perdão definitivo - e será pena que, esse, eu já não o possa receber.

Talvez ainda

Conforta pensar que talvez ainda haja tempo para alguma coisa grandiosa e quem sabe até - não percamos o bom humor - para poeminhas bestas rimando sóis com arrebóis.

Leitmotiv

Enquanto a voz não se cansa
E a vida não me destroça,
Cantarei, conforme possa,
Teu nome e minha esperança.

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje, comento como é difícil honrar a tradição de bravura dos paulistanos, como sempre falta alguma coisa para alcançá-la, como são inimagináveis os trezentos e cinquenta que Mário de Andrade dizia ser.

Esta noite,

mais uma vez, recebi em meu sonho a visita do meu cordial algoz. Veio com recordações de dezembro, devaneios de março, esperanças de junho, e me olhava tão suave e persuasivamente que eu o acolhi de novo, com o coração em festa. Quando, já de madrugada, acordei, ele não estava mais. Virei-me de lado, ajeitei o travesseiro e tentei chamar de novo o sono, o sonho e o sorriso que um dia me matará - infelizmente uma vez só. Morrer de amor deveria ser uma danação do inferno.

O amor

O amor é o mais doce mensageiro da morte, e o mais eficaz.

Cartão de visita

Quem se diz escritor deveria pensar dez vezes antes de dizê-lo. Ou ler um soneto de Shakespeare.

Lugares-comuns

Amor talvez não fosse a palavra, mas eles a disseram, porque o silêncio começara a incomodar. Foi o primeiro lugar-comum na história dos dois. O segundo foi o adeus. Talvez nem fosse a hora. Mas deixaram que a conversa esmorecesse, até que só um zumbido de mosca se ouvisse. Ele a olhou, ela o olhou. Como último gesto de gentileza, disseram juntos a palavra, bem baixinho. Mais a leram nos lábios do que a ouviram.

Cena

Menina, não sei se o vento
Te beijou naquele dia.
Só sei dizer que eu, ciumento,
Tua passagem seguia
E te juro, meu tormento,
Que eu, ah, eu te beijaria.

Perfil

Para louvar-te a beleza
Convoco o meu pensamento,
O sóbrio dom da justeza
E a chama do sentimento.

Berceuse

Quando a noite chega ao parque, as árvores começam a balançar suas flores, como se fossem mães ninando seus bebês.

Tristinha

Quando amava, Lia lia
Novelas sentimentais.
Abandonada, vazia,
Hoje Lia não lê mais.

Dia a dia

Enquanto você nem morre
Nem se permite viver,
O tempo desliza, escorre,
Sem você nem perceber.

Cabelos

Cabelos lisos, cabelos
Pelo chuveiro molhados,
Que possam de novo os fados
Dar-me a ventura de vê-los.

Ardis

Se eu te vier com um poema
Ou se surgir com um teorema
Difícil de compreender,
Ou se te levar uns textos,
Cai fora: serão pretextos,
Amiga, para te ver.

Um soneto de Dante Alighieri

"Viram meus olhos que expressão dolente
Tínheis em vossa angélica figura,
Ao notardes os modos e a postura
Que a dor me faz tomar frequentemente.

E, ao ver que vos passavam pela mente
As condições de minha vida obscura,
Comoveu-me a patética tremura
De revelar o que minh'alma sente.

E me afastei de vós, depois, notando
Que as lágrimas corriam com fervor,
Por me haver vossa vista comovido.

Eu disse então, comigo, entristecido:
'Anima essa mulher o mesmo Amor
Que ora me faz andar assim chorando.'"

(De Vida nova, tradução de Paulo M. Oliveira e Blasio Demetrio, publicado pela Atena Editora.)

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Fim

Sabemos, já, que falhamos.
Deserto, apenas deserto...
Nenhum oásis, longe ou perto,
Contudo nos arrastamos.

Prenúncio

Ah, como foste inocente.
Não viste que a juventude
Não era mais que a semente
Da tua decrepitude.

A rival

Se um dia tu me abraçares,
Amor, não abraces forte.
Ames o quanto me amares,
Estou prometido à Morte.

De frente para a rua

Assim pode morrer um homem
atado a um sofá
de frente para a rua
vendo passar outros homens
e invejando-os por poderem
ao contrário dele
ao menos caminhar

Assim pode morrer um homem
deplorando que outros homens
embora capengando
possam por ele passar
como se na esquina
(que ele não vê)
estejam por eles esperando
um pote de ouro
ou uma tampinha
gostosa de chutar

Assim pode morrer um homem
e enfim percorrer deitado
com ar-condicionado talvez
a rua mofina
(que ele infelizmente não verá)

Nem pote de ouro
nem tampinha haverá
mas o sinal verde avisará
que carros com mortos
podem passar.

Ontem

Vivi de amor no passado.
Agora, com ele tão findo,
Morrer seria abençoado,
Morrer seria bem-vindo.

Melhor morrer que viver
Pensando constantemente
Como o hoje podia ser
Se o ontem fosse o presente.

Melhor é tudo olvidar,
Ficar assim, sem pensar
Em nada nem em ninguém

Daqueles tempos felizes
Que deixaram cicatrizes
E muito mais mal que bem.

O ato de morrer

No ato de morrer deveria haver sempre uma delicadeza livre de espasmos, de gorgolejos, de babas. O ato de morrer deveria ser uma doce omissão.

Alguns morreres

Morrer na guerra é coragem,
Morrer bebê é tolice,
Morrer aos cem é vantagem,
Morrer de amor é sandice.

Sequência

Para se viver
Precisa-se de arte.
Para se morrer,
Não. Morrer faz parte.

Bis

É tão saudável morrer,
Tão doce, tão conveniente,
Que é pena não se poder
Morrer mais frequentemente.

Balança

Tudo tem só, simplesmente,
O valor que nós lhe damos.
O amor conosco é inclemente
Porque o superestimamos.

A leveza em Mariana Ianelli

Se os textos de Mariana Ianelli fossem lidos ao ar livre, as palavras flutuariam, começariam a voar e, para juntá-las de novo, seria necessário apanhá-las como se apanham as borboletas. Se houvesse árvores no local, elas certamente se reuniriam nos galhos da mais bela e, se lhes desse na telha, cantariam.

Fifty fifty

De cada cem passos dados
No rumo da felicidade,
Falhos são sempre a metade,
E cinquenta equivocados.

Fernanda Lima

Além de tudo mais, o verão tem este dia único: vinte e cinco horas de Fernanda Lima.

A corda

Que a corda seja tosca. Servirá melhor ao teu propósito e não estimulará comentários sobre a tua vaidade.

Rotação

Tão fria, feia e triste se tornou repentinamente a manhã que ele imaginou que talvez os dias também, como os homens, tivessem o pressentimento de sua fugacidade e a intuição do crepúsculo.

Num dia

Aquilo tudo em que creu,
Aquilo por que vivia,
Ruiu, desabou, morreu,
Num dia, apenas num dia.

Má sorte

Receia que, quando estiver já voando, veja surgir em seu caminho, lá embaixo, um toldo acolhedor ou seja tentado a dar um grito de shazam!

Ainda que tarde

Lento como sempre, obtuso, levado pela paixão desatada e desassistido pela razão, só agora me ponho, de verdade, a fazer o que sabiamente o Padre Vieira recomendou a todos nós: pensar no que a vida tem de mais importante e essencial - a morte. Há quatro anos - tempo de existência do blog - venho tratando timidamente do tema. Facilmente influenciável, sempre que pretendi me aprofundar nas peculiaridades da morte, a vida - sob o eterno disfarce do amor - me desviou, e tudo acabou não passando de meras ou meias-tentativas. A palavra marco me incomoda, é dramática demais, excessivamente solene, mas hoje o blog toma o rumo que talvez devesse ter assumido desde o primeiro dia. Falar da morte será o mote e, se o amor por acaso aparecer ainda, será com sua verdadeira face, que é, sabidamente, a de um bufão. Nos textos de hoje os três ou quatro leitores que porventura, e por desventura, venham acompanhando o blog desde o início notarão que alguns são antigos. Foram alterados aqui ou ali e, se os reproduzo, é para que eles deem o testemunho de que, se não fosse pelo estorvo representado pelas tolices amorosas, o principal foco do blog seria, já desde 2010, o que deveria ter sido. Como uma grave moléstia deixa insanáveis sequelas, e como de um cérebro já avariado não se pode cobrar coerência, dias haverá em que o amor, com sua face cínica, aparecerá aqui, com suas fanfarras e estardalhaços. Serão, porém, exceções, pelas quais antecipadamente me desculpo. Isto aqui será, cada dia mais, o que já há quatro anos deveria ter sido para um ancião: pouco sol, muitas sombras.

Soneto da morte morosa

Se não há quem me conforte
Ou queira me consolar,
Respondam-me por que a morte
Demora tanto a chegar.

Me digam se há quem suporte
Vagar assim pelo mar,
Dobrado ao vento e à má sorte,
E sem porto onde aportar.

E implorem a Deus que deixe
Que eu me transforme num peixe
E, como prata a luzir,

Chegue afinal a uma rota
Em que uma voraz gaivota
Se disponha a me engolir.


Uma resposta

Querer o quê?
Pedir o quê?
Sonhar o quê?

São três questões corriqueiras
com pequenas variações
e para cada uma delas
há uma resposta certeira

Para a primeira
morte
para a segunda
morte
e morte também
para a terceira
e para quantas perguntas mais se fizerem
se respostas honestas se quiserem.

Prima-dona

Chamá-la não adianta nada

A morte
assim como o amor
se faz sempre de rogada

Não lhe mostrem atestados
nem lhe escancarem hemorragias
não lhe tragam petições
abaixo-assinados
recomendações
radiografias

A morte ignora os laudos
as dores
os estertores
os apelos
as agonias

A morte
assim como o amor
gosta de se fazer esperada
e entra na peça
só quando lhe apetece
não na ocasião
que os morituros
julgam adequada

E se a enfadarem
se a perturbarem
como agora
exibindo-lhe o doente
que com o corpo carcomido
por ela implora
como se fosse um direito adquirido

bem pode ela
revigorar o moribundo
e levar para o túmulo
como vingança
essa criança
que no colo da mãe
abre seu primeiro
sorriso para o mundo.

O direito

Eu trago a morte no peito
como um passaporte
como uma licença
como um direito

Não saio de casa
sem ela no paletó
nem que a vaca lance raios
nem que Deus tussa
nem que se anexe à Polônia
toda a terra russa
e nem que um pervertido
numa lambida só
lamba dos pés à cabeça
a estátua de sal
da mulher de Ló

Não sei se a morte
é um direito constitucional
ou divino
mas sei que
quando chegar a ocasião
não admitirei exceção
nem que um causídico
encontre um preceito jurídico
em alguma antiga ordenação.

A morte

Porque a morte é um direito adquirido já desde o dia em que nasci, eu luto por ele com o ímpeto dos idealistas.

Vida e morte

Tudo piora
apodrece
os dentes
as sementes
tudo se deteriora
envelhece

A morte
vinga
cresce
a morte
vive
e floresce.



Cotação do dia

Escolher a árvore mais alta e forte, não por exibicionismo, mas por segurança do projeto. No último instante, não olhar para nada, ser resoluto. Fugir à tentação.

Trecho de Katherine Mansfield

"Esta vida prova como os médicos são terrivelmente errados e estúpidos. Na opinião dos médicos que conheço, eu já deveria ter morrido unas cinquenta vezes. E quando lembro o ano passado, e aquela cama no canto do quarto, semanas após semanas, e aquelas bandejas. Aqui não há mais comidas refinadas. Come-se o que há, e isso é o fim. Ao mesmo tempo eu tenho maravilhosos - como chamá-los? - amigos."

(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Desenho (para Zelda)

O menino apontou o arco-íris:
"Pai, quem desenhou aquilo?"
"Deus."
"Ele é bom nisso, né, pai?"

Culpa

Do velho que agora sou,
As queixas não me comovem.
Sofro por aquele jovem
Que este velho aqui matou.