segunda-feira, 31 de março de 2014

Pior idade

Desde menino ama o mar.
O barco, que lhe faltou,
Veio hoje, e tarde chegou.
Não pode mais navegar.

Plantio

Não queres minha semente,
Teu solo para outro lavras.
Teu corpo o meu não consente,
Só queres minhas palavras.

Soneto das metáforas emboloradas

Sou um escritor antigo
De temas simples e amenos.
Nos cabelos, ouro e trigo
Eu vejo - nos teus, ao menos.

Nos lábios eu vejo rosas
Acesas ao sol-nascente,
E são sempre mais formosas
As tuas, naturalmente.

E aos teus olhos contemplar
Eu penso no céu, no mar.
Sei que é um lugar-comum,

Mas velhos poetas assim
Enxergam o mundo e, enfim,
Eu sou apenas mais um.

Cotação da noite

Há dias em que fechar os olhos compenetradamente e não morrer é, mais do que um fato trivial, uma injustiça.

Catástrofe

A imprensa hoje noticiou
Que o fim do mundo está perto.
Deve ser erro, decerto.
Meu mundo há muito acabou.

"Travessia", de Sylvia Plath

"Lago negro, barco negro, duas pessoas de papel picado negro.
O que as árvores buscam de beber que não encontram aqui?
Suas sombras podem cobrir o Canadá.

Uma luz leve dissolvida pelas flores d'água.
Suas folhas não desejam nossa pressa:
Curvas e lisas e cheias de negros avisos.

No rastro dos remos, mundos de gelo,
O espírito do negro está em nós, nos peixes.
Um tronco podre flutuando, pálido adeus;

Estrelas se abrem entre lírios.
Estas sereias inexpressivas não te cegam?
Esse é o silêncio das almas atormentadas."

(De Poemas, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, publicação da Iluminuras.)

O tempo

Tudo tem seu tempo

a grama o seu
de crescer


a chuva o seu
de regar

o cordeiro o seu
de pascer

a faca o seu
de matar.

O poeta em sua torre (para Brigitte Bardot)

Mesmo que viessem a ti
Os berros do matadouro,
Continuarias aí,
Burilando chaves de ouro.

Brincadeira boba

Brincamos com o amor
tratamos dele
como se fosse um idiota
que só soubesse babar
falamos mal dele
pelas costas
pusemos-lhe apelidos
jogamos-lhe pedras escondidos
rimos dele
até gargalhar

Mentimos para ele
dele fizemos e desfizemos
pedimos que sumisse
se danasse
se estuporasse
desistisse
de nos importunar

Um dia finalmente
o recado ele entendeu
e resolveu se afastar

E agora que dele precisamos
já tantas vezes o chamamos
e tantas vezes imploramos
que talvez seja hora de aceitar
que o amor é vingativo
que o amor é rancoroso
que o amor não sabe brincar.

Essas coisinhas

Duas boas coisas
o amor lhe fez
foi vegetariano
embora só por um ano
e foi poeta
embora só por um mês.

No mais só miudezas
pequenas alegrias
escassas tristezas
um pouquinho disso
daquilo um tantinho
coisas todas normais

Mas por elas
pela lembrança delas
ele sorri ainda
e ainda chora
sorri pouco
e chora demais.

Haicai (para Mariana Ianelli)

O sol se espreguiça.
O galo, para acordá-lo,
Seu canto esganiça.

Soneto da aranha e de sua teia

Aquele que o amor receia
E foge do seu encanto,
Assim que escapa da teia
Compõe para si um canto.

E nele sempre alardeia,
Para quem o ouve com espanto,
Quão cruel era a aranha, e feia,
E como o ferira, e quanto.

Julgando-se vencedor,
Ele desmerece o amor
E nem sequer imagina

Que possa alguém exultar
Por preso na teia estar
Da mesma aranha assassina.

Último recurso

Regar os versos com lágrimas ainda é um método utilizado em situações excepcionais por alguns poetas, antes de invocarem as artes da feitiçaria.

Um poema de Mario Quintana

"CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!"

(Do livro Nova antologia poética, publicado pela Editora Globo.)


Bom dia

Bom dia, sim, porque há de se manter a ilusão da vida. A vida, e sua ilusão, é tudo que temos. Fecharemos os olhos mais uma vez às desgraças do mundo, não aceitaremos notícias de malásias nem de crimeias nem de paquistões. Ninguém sofre, tudo que dizem os jornais e mostra a tevê é ficção. Meninos não passam fome em lugar nenhum, não há crimes hediondos, torturas, estupros. Precisamos diariamente mostrar tudo bem bonito, arrumado e limpinho, senão o sol amanhã, escandalizado, poderá não vir. Mais uma vez não acreditaremos em nada que nos amargue o gosto do café. Os homens não sofrem, não morrem de tristeza nem de amor, e entoam cantos de louvor a Deus. Bom dia

Soneto da memória do amor

Então um tempo virá
Em que a memória do amor
Será um traço sem cor
Que ninguém distinguirá.

Numa lápide estará
E quem decifrá-la for
Não verá nela fulgor
Nem emoção gozará.

Mesmo que ao sol contemplada,
Ela não contará nada
A um tolo que a for olhar.

E nada dirá também
A um mago, a um vidente, nem
A um cego que a for tocar.


Pragmatismo

Quem se lembra
daquela lenda
daquela mulher linda
frente e verso
daquela miss universo
de mil novecentos
e oitenta e sete?

É possível ainda
vê-la na internet
em fotos daquele tempo
esplêndida e coquete

Melhor porém não vê-la
e contemplar os olhos
e as magníficas pernas
de georgete clara odete
de maria da conceição
tão bem mais à mão
que a deusa
de mil novecentos
e oitenta e sete.

Meritologia (para Raul Drewnick)

A tua ansiedade esquece.
A morte vem, se quiser,
Não para aquele que a quer,
Mas para quem a merece.

Euripo (para o Verissimo)

Aristóteles morreu
Não no Euripo, mas no dia
Em que todinha bebeu
A própria sabedoria.

Imortalidade

Às vezes, ele pensa que não seria difícil ser um imortal numa cidadezinha de cinco mil habitantes. Nesses momentos, sonha mudar-se para Araçoiaba do Sul ou Sapucaia da Serra. Se não houver academia de letras ali, ele poderá fundar uma.

A realidade

"Tudo bem, ele é bonitão, rico, escreveu três livros, mas não vai rolar, amiga. Cliquei no google e sabe quantos resultados apareceram? Menos de três mil!"

A questão (para o Verissimo)

Então um tipo finório
Perguntou, abrindo a porta:
Agora que Inês é morta,
Quem é que paga o velório?

A vida como ela é (para o Gianluca)

Pobre mosquito
tão pequeno é
e é tão grande
a lagartixa que vê
se aproximar

Pobre lagartixa
tão grande é
e tão longo o dia
quantos mosquitos
precisará encontrar?

Um trecho de Goethe

"Ela bem compreende quanto sofro. Hoje, o seu olhar penetrou-me até ao fundo do coração. Fui encontrá-la só. Conservei-me calado, e ela contemplava-me fixamente. Eu já não via nela nem essa fascinadora beleza, nem esses lampejos espirituais que lhe iluminam o semblante. Tudo desaparecia a meus olhos, porque um sublime olhar me envolvia, um olhar cheio do mais terno interesse, da mais doce piedade. Por que não tive eu ânimo para me rojar a seus pés? Por que o não tive para a alcançar nos braços e responder-lhe com mil beijos?"

(De Os sofrimentos de Werther, tradutor não mencionado, edição da Jackson.)

domingo, 30 de março de 2014

Cotação da noite

Os dias passam em vão.
A ouvidos moucos o amor
Com desespero e fervor
Entoa sua canção.

Tecnologia (para o Xico Sá e o Verissimo)

Em nosso tempo avançado,
Em nossa científica era,
O mínimo que se espera
É um fiasco bem planejado.

Oferenda

A ti, poesia, eu dedico
Minha indefinida essência,
Meu sofrimento mais rico,
Minha saudável demência.

Soneto no qual se faz ao amor um pedido especial

Amor, que belo jardim
Tu tens, com essas raras flores
E suas múltiplas cores.
Existirá outro assim?

Amor, que rico pomar
É o teu, que esplêndidas frutas
Tu colhes e tu desfrutas.
Algum o pode igualar?

Que as frutas sigas negando
E as árvores resguardando.
É teu direito, afinal.

Mas que reserves, amor,
Pelo menos uma flor
Para o meu dia final.

Sentença

Amor, afável carrasco,
A pestilenta água e o pão
Que tu me dás na prisão
Eu bebo e como sem asco.

Três poemas de Mario Quintana

"DORME, RUAZINHA

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração..."

"SOLAU À MODA ANTIGA

Senhora, eu vos amo tanto
Que até por vosso marido
Me dá um certo quebranto...

Pois que tem que a gente inclua
No mesmo alastrante amor
Pessoa, animal ou cousa
Ou seja lá o que for,
Só porque os banha o esplendor
Daquela a quem se ama tanto?
E sendo dessa maneira,
Não me culpeis, por favor,
Da chama que ardente abrasa
O nome de vossa rua,
Vossa gente e vossa casa

E vossa linda macieira
Que ainda ontem deu flor..."

"ENVELHECER

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas."

(Do livro Nova antologia poética, publicado pela Editora Globo.)

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje, falo do primeiro morto que vi e, mais especificamente, do espanto e das reflexões que me causaram seus sapatos, bonitos e engraxados como se ele fosse para uma festa.

Ao diabo...

... todos os domingos. Não conheci um que prestasse depois dos quinze anos. Qual deles me devolverá a mim como eu era, qual me restituirá os sonhos, as aspirações, os ideais? Longe vão aqueles domingos verdadeiros, em que, com meu dinheirinho no bolso, eu ia para as matinês do Cine Estrela. Chaplin era Chaplin naquele tempo, e os caubóis desbravavam um Oeste com revólveres cujos tiros assobiavam nas rochas. Ah, tolo, e eu queria ser adulto. Eu pensava no amor e no que ele me daria. Que domingo me trará de volta a namorada da infância, aquela única, criada com pureza no meu coração? Pessoa está certo: raios partam a vida e quem lá ande.

Paz

Onde nós logo estaremos
Vedada é toda impostura:
Não mais o amor fingiremos
Nem mais a literatura.

Esconderijo

Na gaveta esquecida, onde
As cartas amareladas
Estão, e as juras goradas,
O amor, como um réu, se esconde.

Soneto do suplício e de suas amáveis lembranças

Quando a ti eu me amarrava
E teu chicote pedia,
Minha alma me censurava
E honra de mim exigia.

Livre hoje do teu feitiço
E dono da própria sorte,
Minha vida agora é isso,
E isso é bem pior do que a morte.

Como eu hoje me arrependo
De não estar mais me doendo
Tudo aquilo que me doeu.

E me culpo porque agora
Quem sofre por ti e chora
Não sou eu, ah, não sou eu.


O quê?

Queres que eu lembre o passado,
Falas até de um amor.
Perdoa-me, por favor,
Mas eu não estou lembrado.

Quem manda

A melancolia não é mais a minha segunda natureza. Há muito ela já assumiu a chefia e comanda todos os meus departamentos.

Além-túmulo

Tu clamas ainda
pelo amor
pela vida
e tua voz
tem o tom atroz
e funerário
de um morto
que completa já
o quinto aniversário.

Ponto final (para o Xico Sá)

Da vida, boa ou sofrida,
A morte é o último estágio.
Se o início for de outra vida,
Não será mais do que um plágio.

Soneto da agonia que apetece ao coração

Ter pena do coração,
Quando o amor o suplicia
E lhe impõe a agonia,
Vai contra toda razão.

Viver ele apenas sabe
Estando muito infeliz.
Ser venturoso e feliz
É coisa que não lhe cabe.

Ao coração não apraz
Em calma ficar, e em paz
O seu amor desfrutar.

Se vive assim, em conforto,
O coração está morto
Muito antes de morto estar.

Topografia

Pelo que lembro de ti,
Um palmo abaixo do umbigo,
Naquela relvinha ali,
É que começa o perigo.

Fim e fim

Quem palavras usará
Como debalde e outrossim?
Quem delas se lembrará,
Quem se lembrará de mim?

Nenhuma diferença há,
Os dois são um mesmo fim.
Tudo sempre acabará,
De um jeito, ou de outro, ou assim.

Dois poemas de Guillaume Apollinaire

"O ADEUS

Colhi um ramo de urze
O outono morreu lembra-te
Não nos veremos mais na terra
Odor do tempo ramo de urze
Lembra-te de que te espero."


"OUTONO

Na cerração se vão um camponês coxeando
E seu boi devagar na cerração de outono
Que esconde as vilas pobres e em abandono

E se indo ao longe o camponês cantarolando
Uma canção de amor jamais correspondido
Fala de um anel e um coração partido

Oh! O outono o outono matou o verão
Dois vultos cinza vão-se pela cerração."

(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)

sábado, 29 de março de 2014

Por onde andará o amor...

... esta noite, nesta cidade de tantas ciladas, de tantas ruas assassinas e tantos logros nos logradouros? Por onde andará o amor, com seu caderninho cheio de sonetos e seus olhos de ingênuo menino? As putas o seguem, pedindo-lhe estrelas que ele não lhes dará, estrelas que regou com lágrimas para sua amada. Os bêbados o acompanham, talvez ele queira embebedar-se com eles e pagar a conta. Um tipo magro e estranho o segue também, com um revólver, uma faca, uma corda e um veneno, todos apropriados para um poeta pálido e desiludido. No momento certo e no quarteirão adequado, oferecerá todos por um preço camarada, que até um poeta possa pagar. Estará tudo pronto para o drama hoje, como esteve ontem e anteontem. Mas provavelmente o poeta sobreviverá, acordará amanhã com o gosto do conhaque vagabundo na garganta e recomeçará, com seus garranchos, a escrever os sonetos com que jamais conseguirá convencer o coração da bem-amada.

Procon

Dei-me todo, ou assim cri,
Até que ontem me ligaste
E minha alma me cobraste,
Dizendo que a prometi.

Existem e existem

Existem mortos tão vivos
Com sua bela feição
E existem vivos tão mortos
Que só lhes falta o caixão.

Soneto do bem-proceder

Melhor só sermos amigos.
Tão simples, tão conveniente,
Nada de sustos, perigos,
Tudo bem claro e decente.

Tudo assim, público e certo,
Nenhuma trama ou disfarce,
Tudo totalmente aberto,
Nada com que envergonhar-se.

Que entre nós haja pudor
E a indispensável distância
Entre a amizade e o amor.

E, seja qual for minha ânsia,
Que esta educada mão não
Toque senão tua mão.

Verônica Sabino

Enquanto existir o tempo
do amor e da delicadeza
verônica sabino
será sempre filha da beleza
e irmã de um violino.

Papéis

Quando se trata de amor
E de como desfrutá-lo,
Melhor que ser o senhor
É ser somente o vassalo.

Soneto da idade que ao amor convém ter

É belo o amor quando nasce,
Belo também quando cresce,
E belo quando floresce
Qual se de flor se tratasse.

E é triste quando enfraquece,
Como se ninguém o amasse
Ou dele ninguém cuidasse,
E malignamente adoece.

E dói vê-lo no final,
Já um doente terminal,
Anêmico e agonizante.

Que possa o amor belo ser
E, viva quanto viver,
Não viva mais que o bastante.

Um poema de Emily Dickinson

"Como as águas o engolfaram,
Jamais saberemos;
Como espalmou-nos sua angústia,
Também ficou submerso.

Absorto, o lago estendeu seu lago de nenúfares
Por sobre o menino;
E seu casaco e chapéu, não reclamados,
Resumem a história."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

Um sábado

Aos sábados, por sua vizinhança dos domingos e por dividirem com eles a expectativa de que surja alguma alegria, ainda que escassa, Deus deveria estar sempre mais atento aos clamores dos tristes e desenganados. Há sábados, porém, em que Deus parece um daqueles serviços de informações que, atendendo depois de três horas, dizem só poderem informar que, por defeito no sistema, não podem informar coisa nenhuma. Há sábados que parecem agônicas sextas-feiras santas. São dolorosas suas manhãs, pungentes suas tardes e desprovidas de esperança suas noites. O sol, quando começa a ir embora, só falta estampar um aviso: aproveitem ainda o resto deste dia, porque o de amanhã pode ser muito pior.

Quintana

Com Mario Quintana ali, que mais podia ser porto, se não alegre?

Sinto. Sentes?

Sinto ainda todo o teu gosto,
Aquele que já sabias
Que nunca mais me darias.
E tu? Sentes meu desgosto?

Soneto de como o amor me perseguiu e pegou

Então, amor, tu chegaste.
Teus verdes olhos ardiam,
Tuas narinas fremiam.
Tentei fugir, não deixaste.

Tu me alcançaste e pegaste.
Teus braços me constrangiam
Enquanto as mãos esculpiam
A marca que em mim gravaste.

Te foste. De ti restou
A chaga que em mim ficou,
Amor, de teu ferro em brasa.

Por que, depois de marcar-me,
Tu não quiseste levar-me,
Amor, para a tua casa?

Marguerite, Mariana (*)

Ainda, no Libération,
Nas crônicas da Duras,
O que houve de mau ou bom,
Se quiseres, acharás.

Era uma década antiga,
Porém nela já se via,
Assim como viste, amiga,
Que a salvação é a poesia.

(*) Texto inspirado pela leitura da crônica de hoje de Mariana Ianelli na revista Rubem (www.rubem.wordpress.com)

"Rei da ilha", de Paulo Mendes Campos

"No fim da rua, um pônei rubro, rubro.
No fim da tarde, um muro escuro, um muro.
Descubro alguma coisa mais? Descubro:
Um coração impuro, tão impuro.

Querer guardar esse sinal (querer)
De que minh'alma não morreu? Morreu.
Ser ou não ser como essa tarde (ser)
Que apareceu e desapareceu?

Ser como a tarde que voltou, voltou
Além de meus enganos, muito além...
Eu vou por um país, por onde eu vou,

Onde existe uma ilha, a minha ilha.
Ali não há ninguém. Ninguém? Alguém
Regressará por mim, ó minha filha."

(De Poemas de Paulo Mendes Campos, publicado pela Civilização Brasileira.)

Cotação do dia

Meus amigos já não têm paciência para me ler. Enquanto facebuqueiam, pegam salteadamente um texto do blog, outro. Sabem que eu já disse tudo e que me repito como um cordeiro com as quatro patas quebradas vendo o rebanho se afastar.

Soneto dela

Bonita, ao menos, ela era,
Não o negará ninguém.
Inconsequente, porém,
E vã como a primavera.

Brilhava como se espera
Que possa brilhar alguém
Que brilhe assim como quem
Somente em brilhar se esmera.

Enquanto o sol perdurou,
Brilhava, ah, como brilhava,
Brilhou, ah, como brilhou.

Pensou que o brilho bastava.
Tola, nisso acreditou,
Enquanto o sol se apagava.

Pensares

Sou feliz, sou muito, sim,
Quando penso em ti e quando,
Ao estar em ti pensando,
Penso que pensas em mim.

Futuro

Caberei numa caixinha,
Eu e minha presunção,
E ao vento me soprarão
À tarde ou de manhãzinha.


Soneto do amor verdadeiro

O amor verdadeiro, ideal,
É aquele simples, que não
Se transforma em obsessão
Nem em desígnio fatal.

É aquele que, honesto e leal,
Não faz manipulação
E nem mistificação,
Não troca o bem pelo mal.

Ele há de ser terno e doce
Como se o brinquedo fosse
De um casalzinho mimado

E há de esses dois encantar
Até que, vindo a cansar,
Eles o ponham de lado.

Aspiração

O amor, que não teve a sorte
De em vida ser entendido,
Que possa, ao chegar a morte,
Morrer sem dar um gemido.

Sinopse

Fiz o máximo que pude.
Vivi mal, fiz má poesia.
Persistir é uma virtude
Que nem sempre nos premia.

Cronométrica (para o Xico Sá)

Não chego a apostar nisso
minha certeza não é tanta
mas acho que um humorista suíço
foi quem fez a frase
relógio que atrasa
não adianta.

Kama Sutra - DCLXX

O teste em que confia é o da lambida na nuca. Em tudo a amada pode enganá-lo, em qualquer coisa pode simular a exacerbação do cio. Mas, quando ele põe a língua naquela pele meio lisa, meio áspera, sabe que não pode ser fingido aquele arrepio, embora o suspiro lhe pareça às vezes exagerado.

Dois poemas de Yu Xuanji

"EM RESPOSTA A POEMA DE MEU NOVO VIZINHO A OESTE, CONVIDANDO-O E PEDINDO-LHE VINHO

Teu poema chegou e cantei-o cem vezes
cada novo sentido em um som como ouro
Busco oeste: estou pronta a vencer tua cerca
À distância, não vai o coração virar pedra?
É tão longe a Via Láctea, vazio o horizonte
Desafina-se a cítara e os rios se acordam
Tremo à falta de casa neste inverno frio
Tens bom vinho: esta noite, não bebas sozinho!"


"VIVENDO NAS MONTANHAS NO VERÃO

Aqui, onde habitam os deuses, fiz minha morada
Bosques e arbustos misturam-se à revelia
Roupas lavadas penduro à menor das árvores
Sento-me à fonte; das pedras, nasce meu vinho
Abro as janelas à trilha dentre os bambus
Finas sedas tornaram-se embrulho de livros
Remando desço o rio, entre cantos à lua
leva-me o vento ao retorno: e ainda recito."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

Idade Média

Então um duque de rosto mortiço
com a paixão subitamente acesa
mostrou à mui jovem princesa
sua espada já sem viço
e ofereceu colocá-la
imediatamente a seu serviço

Esperando já o açoite
teve ele a surpresa
de ver a proposta aceita
se bem que a princesa
ao permitir que com ela se deitasse
avisasse e reafirmasse
que seria só por aquela noite
e que ele o pescoço preparasse
se sua espada falhasse
ou se não falhando
ele a alguém o coito contasse.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Hoje

É muito triste o resumo:
Não há mais ilusões, mais
Quimeras nem ideais.
Só sonhos, e de consumo...

Autossuficiência

O amor efeito não traz.
O amor é seu próprio efeito,
O amor já nasce perfeito,
O amor jamais se perfaz.

Hedonística

Sobrando ainda tanto vício,
Tanta farra e putaria,
Morrer agora seria
Um tremendo desperdício.

Desculpa (para o Xixo Sá)

Posso eu ser narciso
assim com um espelho ruim
e tão impreciso?

Três poemas de Mario Quintana

"ENTRESSONO

A manhã se debruça ao peitoril,
Não sei por que está gritando: abril, abril!
Há, por vezes, manhãs que são sempre de abril...
A manhã, com todas as suas árvores ao vento,
Traz-me as primeiras notícias da frota do Descobrimento,
Sem reparar na presença dos arranha-céus.
Mas eu nem abro os olhos: vou dormir...
Creio que ainda chegarei a tempo
Para a Primeira Missa no Brasil."

"A OFERENDA

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio."

"NOTURNO

Este silêncio é feito de agonias
E de luas enormes, irreais,
Dessas que espiam pelas gradarias
Nos longos dormitórios de hospitais.

De encontro à Lua, as hirtas galharias
Estão paradas como nos vitrais
E o luar decalca nas paredes frias
Misteriosas janelas fantasmais...

O silêncio de quando, em alto-mar,
Pálida, vaga aparição lunar,
Como um sonho vem vindo essa Fragata...

Estranha Nau que não demanda os portos!
Com mastros de marfim, velas de prata,
Toda apinhada de meninos mortos..."

(De Nova antologia poética, publicada pela Editora Globo.)

Fernanda Lima

Quando disseram o nome de Fernanda Lima na Paulista, uma bem-te-vi colheu no ar as cinco sílabas, para ir completar uma nuvem branca.

Rosa dos ventos

Que porto seguro, o teu,
Imune à fúria marinha.
Que rumo inseguro, o meu,
Que nau insegura, a minha.

Soneto das marcas do amor (versão final)

Hoje quando ao sol caminho
Talvez não vejam que sou
Aquele que se humilhou
Por um pouco de carinho.

Porém as marcas ficaram,
No rosto, no coração,
Nos dedos que o teu portão
Tantas vezes arranharam.

Mas já não é fácil vê-las,
Eu já sei como escondê-las,
Aprendi a simular.

Talvez nem tu, se me visses,
Essas marcas distinguisses.
Se queres, podes tentar.

Tratamento

Irei chamá-la de quê?
De amada e de bem-amada
Chamei-a já tanto, e nada.
Chamo-a agora de você.

Pilatos (para o Verissimo)

Diante de uma decisão,
Se a questão for singular,
O mais sensato é deixar
De lado toda razão
E fazer como Platão
(Ou será que foi Pilatos?):
Desvencilhar-se dos fatos,
Sair e ir lavar a mão.


O erro

Sei qual foi meu erro, já:
Esperei muito de ti.
Por tudo que sei e li,
A vida é só Deus quem dá.

Delicadeza

Se um dia eu fosse tocá-la,
Recorreria a uma pluma,
A uma brisa ou a nenhuma,
Para não despetalá-la.

Dois poemas de Tu Fu para Li Po

"Três noites seguidas venho sonhando contigo.
Estavas à minha porta.
Passavas a mão pelo cabelo branco.

Depois de dez mil, cem mil outonos,
não terás outro prêmio que o prêmio inútil
da imortalidade."

                              ***

"Tu escreves como o pássaro canta. Teu gorjeio? Versos.
Se não cantasses, as manhãs seriam menos vermelhas e os crepúsculos menos azuis.

Quando a embriaguez te inspira, os Imortais inclinam-se das nuvens para te escutarem, o tempo suspende seu voo, o bem-amado esquece a bem-amada.

Tu és o Sol e nós, os outros poetas, somos apenas estrelas.

Acolhe, ó meu amigo, o balbucio do meu respeito!"

(Do livro Poemas chineses, tradução de Cecília Meireles, publicado pela Editora Nova Fronteira.)


Haicai (para Alice Kobayashi)

O vento no cio
Espreita e febril e se deita
No dorso do rio.

Questão de escolha

Se um dia não me quiseres,
Eu, não por ira ou fadiga,
Mas porque és única, amiga,
Direi adeus às mulheres.

O suspeito

Quem é esse assassino? Quem
Em meu peito o punhal crava?
Quem é ele? Que nome tem?
Amor? Eu já suspeitava.

Saldo negativo

Quando eu me for, lembrarás
De mim, talvez. Pobrezinha!
Para uma boa coisinha,
Ou duas, tantas tão más...

Fernanda Lima

Não diga em voz alta o nome de Fernanda Lima, se não estiver preparado para receber um alegre bando de querubins.

Delivery

Deus faz a entrega devida
Conforme o destinatário:
À vítima dá a ferida
E a sica dá ao sicário.

Simone

Não tanto pela filosofia
mas pela amorosa companhia
eu gostaria de ter sido
aquele jean-paul presunçoso
aquele sartre venturoso
que todo dia
dizia bonjour e bonsoir
a simone de beauvoir.

Obviedade

A poesia é o sangue da alma.

Mezzo a mezzo (para o Xico Sá)

Pela rede ele lhe disse:
se fosse mulher mesmo
como dizia
loira bela esguia
ele a receberia

Era misantropo
ma non troppo.

No asilo

Quando se falar de literatura, nas tardes em que o dominó cansar, um dos nossos dirá que o texto que mais o impressionou foi um em que havia a palavra vicissitude. Não se lembrará do autor do texto, nem do seu sentido, mas seus olhos brilharão quando ele pronunciar, por entre as dificuldades da dentadura, a palavra vicissitude.

Companheiros dormindo na sala

Num escritor velho, a sabedoria consiste em escrever cada vez menos. Suas palavras, cansadas como ele, agradecem poder compartilhar seu cochilo no sofá.

Borrão na tela

O fim da vida é como aquele filete azul que o pintor pretendia transformar em rio e que acabou ficando esquecido na tela, sem identidade nem função. Não corre, não flui, e, se sumir, nem o pintor observará.

Dois poemas de Yu Xuanji

"DIZENDO ADEUS (I)

Acreditava intermináveis as noites
neste quarto, entre delícias. Mas viajas,
nuvens erram. Deito só e não reajo,
fina-se a lâmpada; em torno, a mariposa."

"DIZENDO ADEUS (II)

Eira nem beira, a água segue a si mesma
Nuvens vêm sem aviso, vão sem promessas
Longa é a primavera no Grande Rio
só, sem o par, nada um pato-mandarim."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

quinta-feira, 27 de março de 2014

À sombra

Agora que para as frutas
Já não te servem os dentes,
Melhor a sombra desfrutas
Ao som das folhas cadentes.

Causa mortis

Se pensas de mim livrar-te,
Se queres mesmo o meu fim,
Um beijo ou três deixa dar-te,
Assim, isto, assim, assim.

Indiferença

Era frio. Dava de ombros
A tudo, e a nada ligava.
Nem o edifício exaltava
Nem lamentava os escombros.

Kama Sutra - DCLXIX

Na gôndola de calcinhas, os dedos do jovem vendedor navegam em um mar de seda.

Setenta e cinco

Nada mais me anima

Como é difícil
a velhice

Tudo é imperfeito
até a rima.

Viagem (para o Verissimo)

Para visitar
o país da morte
a vida
só tem passaporte
de ida.

Três poemas de Li Po

"ROSA VERMELHA

A esposa do guerreiro está sentada à janela.
De coração aflito, borda uma rosa branca numa almofada de seda.
Picou-se no dedo! Seu sangue corre na rosa branca, que se torna vermelha.
Seu pensamento vai ter com seu amado, que está na guerra
e cujo sangue tinge, talvez, a neve de vermelho.
Ouve o galope de um cavalo... Chega, enfim, seu amado?
É apenas o coração que lhe salta com força no peito...
Curva-se mais sobre a almofada e borda com prata
as lágrimas que cercam a rosa vermelha."

"DIANTE DO VINHO

Vinho de uva.
Taças de ouro.
Uma jovem de quinze anos que chega num esbelto cavalo.
Suas sobrancelhas, pintadas de negro,
Suas botas, de cetim vermelho.
Ela tropeça um pouco nas palavras, mas canta com meiguice.
No rico festim, embriaga-se nos meus braços.
- Que farei de ti, sob as cortinas de hibisco?"

"CANÇÃO DAS CABEÇAS BRANCAS

Sempre me repetíeis: 'Envelheceremos juntos.
Ao mesmo tempo que os meus, teus cabelos se tornarão
brancos como a neve das montanhas, como a lua de verão...'

Hoje, Senhor, soube que amais outra mulher
e venho, desesperada, dizer-vos adeus.

Pela última vez, enchamos com o mesmo vinho as nossas duas taças.
Pela última vez, cantai a canção que fala de um pássaro morto sob a neve.

Depois, embarcarei no rio Yu-keú
cujas águas se dividem para leste e para oeste.

Para que chorais, jovens noivas?
Desposareis talvez um homem de coração fiel
que vos repetirá sinceramente:
'Envelheceremos juntos...'"

(Do livro Poemas chineses, tradução de Cecília Meireles, publicado pela Editora Nova Fronteira.)



Tédio

Se eu me lamento e me agonio,
Não é por tristeza, não.
É por ser a vida tão
Cheia de tanto vazio.

Treinamento

De vez em quando
ainda que por um segundo
mesmo que por um instante
feche os olhos
e apague o mundo

Feche os olhos para tudo:
para a manhã
para a tarde
para o sol
peneirando ouro
sobre a avenida

De vez em quando
feche os olhos
vá se acostumando

De olhos fechados você estará
quando para você estiverem olhando
no dia mais importante
de sua vida.

Terceirização

Aquilo que ele fazia
Com a máxima honestidade
Era buscar dia a dia
A posse da alteridade.

Natal paulistano (para o Leminski)

Sem pão, sem um puto,
Jesus espero, e sua luz,
Aqui no viaduto.

Palavras palavras palavras

Palavras
foram palavras sempre
só o que tive para ti

Eu as aprendi
nas noites em que
nos ritos amorosos os outros se iniciavam
e com seus gritos gozosos
pronunciavam todas
e mais algumas interjeições

Eu aprendi
a escrever
odisseias odes epopeias
a compor estrofes e hinos
a contar sílabas nos dedos
e a escandir alexandrinos meticulosamente

Enquanto assim eu
em aprender a linguagem do amor me empenhava
os outros tinham descoberto já
uma fórmula simples
e a diziam e a repetiam
como agora aqui
livre já de modelos e estilos
eu digo a ti eu te amo
e eu te amo repito

Te digo e repito
eu te amo
como te disseram e repetiram tantos
mas digo e repito
com a certeza
de que a minha convicção
ao dizer e repetir
é maior que as outras convicções
todas todas todas
sem exceção.

Manhã na Paulista

Do monte de jornais o menino emerge, boceja, coça os olhos e, como um cachorro, empina o nariz e identifica, vindo da esquina, um aroma de café.

Vida

Excluindo-se a fúria e o som,
Pode haver algum sentido,
Algo talvez até bom.
Pode haver, mas eu duvido.

Concisão

Poeta prolixo e pernóstico
a preguiça e o insucesso
mudaram seu rumo

Agora só lhe interessam
o poema monóstico
o sumo o expresso o resumo.

Contraindicação

O pior caminho para o motel é a poesia.

"1909", de Guillaume Apollinaire

"Tinha a dama um vestido
Em veludo violáceo
E a túnica em ouro bordada
Compunha-se de dois panos
Que se amarravam no ombro

De olhos dançantes como anjos
Ela sorria ela sorria
Tinha um semblante das cores de França
Olho azul dentes brancos e lábios bem rubros
Tinha um semblante das cores de França

Ela usava um decote redondo
E um penteado à Récamier
Com lindos braços nus

Nunca se vai ouvir meia-noite bater

A dama em veludo violáceo
De túnica bordada em ouro
Usando um decote redondo
Passeava as suas madeixas
O bandô de ouro
E arrastava os sapatos de fivelas

Ela estava tão bela
Que não ousarias amá-la

Eu amava as mulheres atrozes nos bairros enormes
Onde a cada dia nascem alguns seres novos
O ferro era seu sangue a chama era seu cérebro

Amava amava o povo das máquinas hábil
O luxo e a beleza são só a sua espuma
Essa mulher era tão bela
Que até me dava medo."

(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)

quarta-feira, 26 de março de 2014

Cotação da noite

Tentando fazer com que todas as lembranças sejam lembranças poéticas. Se eu não conseguir transmiti-las assim, que seja por incapacidade minha. Jamais desvalorizá-las, jamais enxovalhá-las. Proceder como alguém que, diante de uma enxurrada, não veja os detritos urbanos e enxergue no líquido barrento que corre uma água límpida como a das primeiras lágrimas de um bebê.

Me poupe

Tu sabes como sou tolo.
Jamais me dês, por favor,
Um pingo sequer de amor.
Não saberia onde pô-lo.

Essa espécie de amor

O amor que eu concebo em minhas insônias e desejaria de ti é tão ingênuo, tão boboca, que, se eu fosse  te explicar como ele é, talvez suspeitasses haver nele uma requintada espécie de depravação.

Opinião

Se estou em más ou em boas mãos, quem pode responder és tu. Há muito não me pertenço.

Fernanda Lima

Relacionar Fernanda Lima com a beleza é um pleonasmo.

No jornal (Major Quedinho e Caetano Álvares) - 61 - Lembranças em torno de uma crônica de Rubem Braga

Quando morreu Oswaldo França Jr., autor de romances de sucesso como Jorge, um brasileiro, inspirador da série "Carga pesada", da Globo, Rubem Braga fez uma crônica em que seu estilo lírico enveredava por um tom jaboriano, de revolta. No fim do texto, ele resumia todo o seu desencanto com a falta de justiça na distribuição da morte com uma palavra que não poderia ser outra: merda! Flaubert, obcecado com a procura do termo exato, a aprovaria. Alguém a riscou, no original. A crônica perdeu noventa por cento de seu impacto. O corte é até compreensível, pala época em que o fato ocorreu. Havia uma caça a palavras inadequadas. Lembro-me de uma noite, alguns anos depois, em que, como copidesque, suprimi a palavra cazzo de uma nota da coluna de Miriam Leitão. Ela reproduzia um diálogo entre dois empresários, a palavra tinha sido dita por um deles e, vendo com olhos de hoje, a supressão me parece antipática, até desnecessária - um caso de excesso de zelo. Mas eram assim as coisas nesse tempo. E antes, na década de 1960, eram um pouco piores. Um carvalho, homem ou árvore, sem o "v", podia pôr na rua um revisor. A divisão silábica da palavra disputa, deixando puta num começo de linha, na primeira página, manteve as telefonistas do jornal ocupadas o dia inteiro com reclamações de leitores furibundos. Nesta série de textos que rememoram situações e personagens do Estadão, há um em que falo de uma edição da Folha esgotada por um descuido que fez o filme Com quem andam nossas filhas ser anunciado com o patético apelo de Fodam nossas filhas.

O caminho

Ainda corres comigo naquela tarde em que - eu ainda não sabia - me repuseste definitivamente no rumo da poesia. Ainda corres comigo, ainda corro contigo pela galeria, e o meu coração se sente de novo abençoado, enquanto corremos. Alguém diz "olha só aqueles dois malucos" Aqueles dois malucos éramos nós.

Dois poemas de Tu Fu

"Uma canção, ao longe. É um mendigo. Se ele canta, esse velhinho que jamais teve nada, por que gemes tu, tu que possuis tão belas recordações?"

                                                            ***

"Se eu estivesse convosco, senhor, lá longe, entre os vossos camaradas, talvez a vossa coragem diminuísse.

Levei muitos meses a tecer meus vestidos de fino pano, em vossa homenagem. Sem dúvida, nunca os vestirei.

Renunciei às joias, às pinturas. Renunciei às flores. Mas contemplo os pássaros que voam aos pares e invejo-os.

Ó meu esposo, quando se poderão encontrar os nossos olhares?"

(Do livro Poemas chineses, tradução de Cecília Meireles, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

Três haicais de Bashô

"Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo."

         ***

"Galho morto
e, nele pousado, um corvo:
tarde de outono."

         ***

"Quimonos secando
ao sol. E a pequena manga
da criança morta."

(Do livro Haikais de Bashô, tradução de Olga Savary, publicado pela Editora Hucitec.)

Cotação do dia

De novo, como último recurso, a esperança de que posso salvar-me com a poesia.

Comunicação

É um gênio. Consegue dizer oi como vai com menos de trinta caracteres.

Alpinista (para o Verissimo e o Xico Sá)

Metido a fazer
poesia japonesa
sempre que tenta a proeza
hai! cai!

Prendas para os sóis noturnos

As mariposas são politeístas, adoradoras dos sóis noturnos. Embriagam-se com sua luz e a bebem até morrer, zumbindo canções de louvor e deixando farelos de ouro como tributo aos seus deuses.

Ameixeira

Habituei mal minha ameixeira. Mimei-a como se fosse um bonsai. Nas noites de frio, ela fica tocando a janela, pedindo para entrar. Eu a deixo ali, batendo os dedos no vidro. Pobre árvore. O que ela pensaria se soubesse que esta noite, como em tantas outras, eu fui para o quarto dos fundos, para não ouvi-la? Ela já deve andar desconfiada. Dá-me frutos cada vez mais mirrados e sensabórios.

Soneto da impiedade que se deve ter com o amor

Quem ao amor há de ter
Tão grande fidelidade
Que possa dele esquecer
A marca da iniquidade?

Quem dele há de se condoer
Quando, por sua maldade,
Um dia vier a morrer?
Quem há de ter piedade?

Quando ele morto estiver,
A ninguém convém lhe dar
Nem uma espiada sequer.

Ainda que morto, me creia,
Ele bem pode enredar
Qualquer um em sua teia.

Miopia

Como custamos a compreender isto, que sempre é tão óbvio: não temos importância nenhuma para os outros, ninguém quer saber se sofremos. O mundo guarda seus olhos para os vencedores.

Rumo ao nobel

Um soneto
um poema
uma quadrinha
num suplemento
e pronto
já nos vemos
em estocolmo

Áspero será o caminho
e longo para o nobel
trinta anos ou mais
e talvez não cheguemos
mas nele ainda acreditaremos
vinte e nove anos depois
quando em vila santa dos pinhais
nosso livro de contos for
com mais quarenta e dois
relacionado para as finais.

Dois poemas de Li Po

"MELANCOLIA (LAMENTO)

A nova é adorável como a flor.
Mas a antiga é preciosa como o jade.
Ondulante, a flor não se sabe conter.
Puro, o jade não muda.
A que hoje é antiga foi nova, outrora.
A nova será antiga, um dia.
Vede a casa de ouro da Rainha Ch'en:
nascem teias de aranha em suas cortinas silenciosas."

"PRAZERES DO PALÁCIO

Menina, morei numa casa de ouro.
Moça, habito o Palácio de Púrpura.
Flores da montanha enfeitam-me o penteado.
É bordado de cravos meu vestido de seda.
Quando saio do palácio profundo,
o carro do Imperador sempre me acompanha.
Receio apenas o fim das canções e das danças
que se apagam como nuvens cor-de-rosa."

(Do livro Poemas chineses, tradução de Cecília Meireles, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

terça-feira, 25 de março de 2014

Cotação da noite

Se ele lançasse uma garrafa agora, talvez alguém a recebesse.

Lusíadas

Camões e sua nação
Perseguem bravos a glória
E as peripécias da história
Sôbolos mares que vão.

"Moscou-Varsóvia (26 maio 1956)", de Paulo Mendes Campos

"Se este avião caísse, crispado entre os ouros, as copas e as espadas eu ficaria; sarrafos nas pálpebras, para que se mantivessem abertas durante o incêndio, colocaria;
Se este avião caísse, as madrugadas de meu filho de um terror violeta se elucidariam; na tarde calcinada, a sombra de minha mulher se inflamaria; minha filha não me encontraria deitado sobre o feno, escondido atrás da porta, acima dos cata-ventos com os braços carregados de bonecas; mais do que a minha garra em um livro e um lírio não encontraria; um gesto no espelho, uma espátula de osso, um pensamento;
Se este avião caísse, em uma esquina de Ipanema, eu nunca mais esperaria;
Se este avião caísse, só uma pessoa não diria 'que pena' (a que caía e se esquecia e se consumia, e só se libertaria quando de todo caísse e se esquecesse e se consumisse);
Se este avião caísse, de mim o firmamento em torvelinho se afastaria; os mortos da Lituânia e da Masúria a mim viriam, e no silêncio rodeado de verdura me receberiam; soldado quase desconhecido, mãos desligadas do corpo - exangues e sem armas - ah, a terra de ninguém eu atravessaria;
Se este avião caísse, de arquitetar a condição da criatura um arquiteto a mais desistiria; certo de que outros chegarão a construir a humana arquitetura (o que se faz há muitos anos e se fará em um dia); pousado sobre o meu peito, o pássaro cruento do meio-dia; o criptógrafo egípcio afinal se explicaria; em fragmentos candentes, a minha carne emigraria; espantalho em farrapos, só o vento de leve me espantaria;
Se este avião caísse, sob as arcadas do pátio a poça de sal se extinguiria; a minha túnica amarela entre os anjos se sortearia; sob as telhas dos dragões dourados, os seus flocos, indiferente, a paineira sacudiria; na colina resplendente, quem soubesse ler, leria: 'aqui pousou uma criança que quase nada compreendia'; até que outra morte nos separe, o meu nome no tronco se resignaria;
Se este avião caísse, este papel em cinzas arderia; a estrela rubra do poema nenhum jornal publicaria; fosse cair daqui a pouco, ainda assim o escreveria; a vida e a morte são as amantes, são a esposa, da poesia;
Se este avião caísse, os meus vizinhos compreenderiam; lembrando-se dos meus cabelos no elevador, uma intuição qualquer no ar lhes diria que só não fui um amigo por falta de tempo ou covardia; mas pode alguém perfeitamente amar o seu vizinho se apenas, grave, pela manhã lhe diz 'bom dia'; e então, sentimentais e sem razão, de mim, coitados, se apiedariam; e de se sentirem tão sensíveis, em fino prazer espiritual tudo (de mim) enfim se acabaria;
Se este avião caísse, a música do meu apartamento ensurdeceria; os volumes nas estantes, de já não ter quem os lesse como eu os lia, pardos e fechados ficariam; outros mais sábios vir e servir-se poderiam; mas o meu jeito de ler e pensar desapareceria; no entanto, se este avião caísse, daquilo que é apenas meu a orgulhar-me não chegaria;
Se este avião caísse, já ninguém mais meditaria na ave que passou gemendo contra o vento na bruma fria; o segredo que não cheguei a tocar a ninguém mais preocuparia; só se a meu filho legasse a vocação da tristeza e o heroísmo da alegria;
Se este avião caísse decerto me compadeceria dos que caíssem comigo sem a coragem da poesia; embora talvez fosse eu quem mais saudades levaria; poentes roxos de Minas, praias aéreas da Bahia; chapéu de palha de Leda, olhos castanhos de Lília; pubescência de Teresa, experiência de Maria; prosadores da Irlanda, poetas de Andaluzia; Iang-tsé em Nanquim, das Velhas em Santa Luzia; Etna fumegando em Taormina, em Sienna a Piazza della Signoria; manhãs de iodo na praia, noites etílicas de boemia; bailarinas de Leningrado, gaivotas da Normandia; sorriso da menina, do menino a euforia; Wagner compondo o Parsifal, Nietzsche uivando em Sils Maria; a mulher que foi comigo, a que não foi mas iria; tantas que, mais houvera, para que de vez caísse, pediria;
Se este avião caísse, com ele cairia um homem que pelo menos entenderia a fábula da folha que se desprendeu e desaparecia; e assim seu coração, na terra, no mar e no céu, como de triste e maduro caísse, não se surpreenderia, nem reclamaria; pois esse aflito coração, de ter amado e sofrido, na amplitude da morte se conformaria;
Se este avião caísse, em um domingo azul um peixe até a pedra nadaria; não encontrando o meu anzol, ao alto-mar regressaria; desse desencontro tecido de tão lindos equívocos, a sua carne se salvaria; e o domingo azul do mar ainda mais azul reluziria."

(Do livro Poemas de Paulo Mendes Campos, publicado pela Civilização Brasileira.)

... porém ainda vivo, bestalhões

Vocês que compuseram sinfonias
engendraram filosofias
escreveram poesias
receberam honrarias
e ganharam galardões

vocês beethovens rousseaus camões
que com melodias
teorias e alegorias
conquistaram primazias
e hoje moram em panteões

sobre todos vocês
seus bobalhões
com justa vaidade
proclamo minha superioridade
que é esta de respirar e estar
vivo vivo vivo vivo vivo

E só não grito isso
só não berro isso
para multidões
porque em mim
inimigos minúsculos
vorazes corpúsculos
conspiram para o meu fim

Que eles não me ouçam
que me deixem ainda
gozar este sol breve
antes que chegue minha hora
e a morte me leve
sem honrarias
sem galardões
sem primazias
e sem panteões

(um raul-qualquer
filho de um homem-ninguém
e uma mulher-ninguém
numa cerimônia mofina
poluindo o ar
do crematório
da vila alpina).


A arte de viver

Não temos muito a querer.
Não somos os remadores,
Somos só espectadores.
Laissez-faire, laissez-passer.

Fernanda Lima

Quando Deus precisa, sabe onde buscar. Fernanda Lima tem sempre um diazinho de primavera no estoque.

Casa do saber

Um dia quem sabe
eu caia no gosto
das meninas
da casa do saber
e venha a ser
ao menos por um mês
o cara da vez

Quem sabe enfim
elas possam vir
a descobrir em mim
algum misticismo
ou algum outro ismo
que nem eu
ainda descobri

E me convidem
para esclarecer
como se pronuncia
meu sobrenome
e em que momento
eu soube do meu talento
para escrever

Comprarão meus livros
até os juvenis
talvez para ler
talvez para pôr na estante
e se lhes perguntarem
dirão que sou
um autor interessante

Dali a um mês
outro evidentemente será
o escritor da vez
e lhe perguntarão
se ele crê mais
no trabalho persistente
ou na inspiração

Quem quiser saber
como a literatura se faz
ou como ela não se faz
tenha a gentileza
de pegar a programação
e fazer a inscrição
com a máxima presteza.

Dois poemas de Yu Xuanji

"PARTINDO GALHOS DE SALGUEIRO

"Cada manhã, um novo adeus. Recolho lágrimas,
como se joias, raras flores, nos salgueiros.
Quisera estéril a montanha à primavera,
nenhuma árvore, ninguém para chorar."

"A UM MESTRE ALQUIMISTA

"Nuvens de cores recortam-se em roupas
Desde véus bordados, o odor do incenso
Flores e folhas de lótus desenham-se
sobre a paisagem, delicada capa
Cessa todo passo ao cantar dos pássaros
Abre-se a gaiola, é liberto o grou
Primavera: deitar-se, o teto é alto
só acordar à chuva, ao final da tarde."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicação da Editora Unesp.)

Musas: definição

Musas de verdade são
Pudicas, irreprocháveis,
Distantes, inalcançáveis,
E à prova de esfregação.

Regressão (para o Xico Sá)

Se sabem o que eu fui ontem,
Permitam-me dizer antes:
Imploro que só me contem
Se fui Camões ou Cervantes.

Salsugem

Nossos sonhos e nossos ideais caíram como estrelas de papel de seda no mar. As ondas os trouxeram à praia de madrugada, e o sol agora denuncia sua presença - assim como a das garrafas de plástico e a das fezes dos marujos despejadas pelos navios - às pás dos caminhões de limpeza.

Fernanda Lima

Dizer Fernanda Lima baixinho numa noite escura talvez não encha repentinamente o céu de estrelas, mas os lábios de quem lhe pronunciar o nome se molharão de mel.

Face a face

Nenhum dia passa em vão.
Siga agora o meu conselho,
Vá contemplar-se no espelho
E saberá por que não.

Estatística

Se posso extrair algo das estatísticas recentes do blog, talvez seja isto: diminuiu vertiginosamente o número de adeptos da tristeza. Eram mil e trezentos diários em janeiro, cento e trinta em fevereiro e, agora, pouco mais de oitenta. É a tristeza que está acabando ou sou eu que não sei mais expressá-la? Já Calpúrnia advertia César para que temesse os idos de março.

Missão

Há muito guardou o amor. É seu bem maior. Às vezes, com mãos de agiota, abre a gaveta para arejá-lo e tenta resgatar o aroma inquieto da primavera no cheiro ácido de naftalina.

Possessão

Nas noites de lua cheia,
Se aberta fica a janela,
Lilith se introduz por ela
E o corpo nos manuseia.

Um trecho do ensaio de Eduardo Luz sobre "Madame Bovary"

"Em Madame Bovary, destaca-se, sob vários aspectos, o narrador. É ele uma confluência de vários narradores, submetidos ao já clássico 'princípio da impessoalidade' de Flaubert. Esse narrador manifesta um interesse tão particular pelo detalhe, pelo acontecimento mínimo, e com tanta descentração, que não é impertinente associar seu trabalho ao do etnógrafo, pela apreensão, o mais minuciosamente possível, de um objeto, um ritual, uma cerimônia. São bem conhecidos os calepins de Flaubert, autênticos cadernos de etnógrafo, em que o romancista buscava fixar o que via, com voluntária isenção. Em Madame Bovary, as ocorrências, que se encaminham muitas vezes para o anódino, fixam-se por uma proliferação de imagens. A densidade descritiva remete à sugestão do 'nada' flaubertiano, aquele 'nada' que é a insipidez própria da vida burguesa. Em boa medida, compreendemos o que os personagens possam estar sentindo por via de elementos perceptivos, lateralmente. O dado romanesco deriva de um olhar sensível à diferença e ao contraste; no trabalho de textualização, o narrador exercita vários olhares, através dos quais explora mais amplamente a sociedade em transformação."

(De "O abajur de Ema: narração e estetização em Madame Bovary", extraído do livro de ensaios Como fumaça erguidos, publicado pela Premius Editora.)

segunda-feira, 24 de março de 2014

Soneto dos portentos que calham de morrer

O poeta não fala mais de flores,
A boca do poeta está calada.
O poeta não fala mais de amores
E nunca mais irá falar de nada.

Enquanto o ignoram todos os jornais
E também as tevês dele se esquecem,
O corvo só repete "nunca mais"
E os leitores, libertos, agradecem.

Morreu num dia, no outro foi cremado
Sem cerimônia e sem palavreado,
Sem poesia e sem declamações.

Todos os dias morrem uns trezentos
Desses homens sem par, desses portentos
Que julgam ser Pessoas ou Camões.


Gramática (para o Gianluca)

O menino na aula de português: diminutivo de cavalo é pônei.

No jornal (Major Quedinho) - 60 - Cláudio, o Imperador

Na década de 1960, quando eu entrei na revisão do Estado, dizia-se, no jornal e fora dele, que Cláudio Abramo era quem mandava e desmandava ali. À revisão tudo chegava como eco, nessa época. O único secretário de redação a nos visitar, abrindo um diálogo, já no fim da década de 1970, foi Clóvis Rossi. Não sei se a fama de manda-tudo de Cláudio Abramo era de todo justificável. Creio que sim, porque ele mesmo parece confirmá-la em depoimentos. Sei que sua imagem, pelo menos a que passou a nós, revisores, era a de um ser que pairava sobre todos os outros na Major Quedinho. Na entrada do prédio, nas noites em que os revisores, antes de voltar ao trabalho, ficavam conversando ali depois de um conhaque no Mutamba, quando ele surgia havia um alvoroço: Ecce homo. Oswaldo de Camargo, uma pessoa educadíssima (quando esse tipo de gente existia), cumprimentava: "Boa noite, seu Cláudio." A resposta nunca veio, nem em forma de gesto. Assim foi por muitas vezes, todas aquelas em que Oswaldo persistiu em seu cumprimento. Pelo menos no quarto andar, o da revisão, oficializou-se  o tratamento de Cláudio, o Imperador.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é um caso em que um sinônimo - no caso, o de beleza - parece mais sua primeira acepção.

O mal como bem

Se a morte não existisse,
Eu de gostar saberia
Quem aguentar poderia
A vida e sua chatice.

"Última estação", de Djanira Pio

"Na fila
dos desamparados
todos têm cabeça branca.
Os ombros são arqueados
carregam o peso
do tempo.
O rosto marcado
pelos infortúnios
e os olhos tristes
dos abandonados.
Ficam ali
na fila, silenciados como cordeiros
escolhidos e separados
para o sacrifício."

(Do livro Olhares, publicado pela RG Editores.)

Boletim médico do blog

Que o último leitor faça uma caridade: não a de apagar a luz, porque esta há muito se apagou, mas de ver se no meu rosto ficou um esgar parecido com um sorriso. Se tiver ficado,  pode desmanchá-lo, por favor, ainda que precise dar-me um tapa. Que eu seja suspeito de tudo, menos de ter sido conivente com a alegria.

Soneto das inumeráveis faces do amor

O amor jamais é certeza.
Nunca ninguém saberá
O que ele é, o que será,
Se é predador ou se é presa.

E quem dizer poderá,
Sem falha ou sem incerteza,
Qual é sua natureza
E que essência ele terá?

Seja o critério qual for,
É bem sabido que o amor
Tem muitas definições.

São mais de um milhar, decerto.
Quem delas chegou mais perto
Foi Luiz Vaz de Camões.

Injustiça poética

Camões com um olho só, pobre homem, e Pessoa com mais de duas centenas.

Soneto da falta de razão de viver

O que há de nos convencer
De que devemos sonhar,
De que nos cumpre lutar
E vale a pena viver?

Muito ingênuo alguém seria
Se sua crença baseasse
Em algo que lhe ensinasse
A tola filosofia.

Esta, já desde Platão,
Assim como a religião,
Não faz mais que perquirir.

E o amor, ah, o astuto amor
Não passa de um fingidor,
Não sabe mais que mentir.
,


O amor é um fingidor

Assim como o poeta do poema de Fernando Pessoa, o amor é um fingidor. Quando querem interná-lo, porque toda noite sai para colher estrelas, simula estar curado. Passa assim alguns dias e, quando vão ver, lá está ele de novo uma noite, apanhado em flagrante com sua escadinha encostada no muro e sua sacola.

Mérito

Orgulha-nos saber que o que hoje temos
Foi tudo construído passo a passo.
Errando com destreza merecemos
A inigualável glória do fracasso.

Egoísmo

Não há quem entender possa
O que pelo amor sofremos.
Não há, e nem nós queremos.
A dor do amor é só nossa.

A velha história

Amei a literatura. Não fui correspondido.

Menção honrosa

Grande foi nossa ambição
imensos nossos ideais

Quisemos muito
quisemos tudo
quisemos mais

Superaríamos
todos os grandes
vinicius de moraes
mario quintana
cecília drummond
bandeira

Escrevemos
escrevemos
gastamos a vida inteira
escrevendo

E hoje
sem fama e
sem consagração
gostaríamos de ter sido
aquele que num dia
de juvenil inspiração
escreveu os profundos versos
batatinha quando nasce
esparrama pelo chão.

Um trecho de "Juventude", de J.M. Coetzee

"Se nenhuma mulher detectou ainda, por trás de sua insipidez, de sua rígida austeridade, faísca alguma do fogo sagrado; se nenhuma mulher parece se entregar a ele sem a mais severa apreensão; se o ato amoroso que conhece, tanto dele como da mulher, é ou ansioso ou insosso, ou as duas coisas, ansioso e insosso - será que isso quer dizer que ele não é um artista de fato ou quer dizer que ainda não sofreu o suficiente, não passou tempo suficiente num purgatório que inclui no receituário ataques de sexo sem paixão?"

(Tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

domingo, 23 de março de 2014

Cotação do dia

O coração amanheceu resignado. No sono, contaram-lhe outra vez que o caminho mais áspero é sempre o melhor. Mais uma vez ele acreditou e sabe que, embora neste não, chegará o domingo em que, como os outros, poderá fazer seu riso se confundir com a voz radiante dos riachos e talvez deitar-se na relva com uma jovem de rosto rosado como uma maçã.

Kama Sutra - DCLVIII

No fim, chega o momento em que as línguas, cansadas, já não se buscam com tanto ímpeto e ficam tocando-se de leve, como se ainda não se conhecessem e pela primeira vez ofertassem saliva uma à outra, junto com o murmúrio amortecido e agradecido da palavra ai.

Por que não?

Embora para nós, vivos,
Seja difícil de crer,
É provável que morrer
Possa ter seus atrativos.

A doença

É tolo quem nela pensa
E parvo quem a procura.
O amor é a única doença
Que nunca encontrará cura.

Soneto do talião amoroso

Menina tola, mimada,
Quê pensas que és? Um navio
Deslizando pelo rio
Com a proa toda empinada?

Menina mal habituada,
Que em pleno gozo do cio,
Queixando-te de fastio,
Dizes não querer mais nada.

Talvez um dia, menina,
Tudo mude, e tua sina
Seja então a de implorar

Como quem hoje te implora
E sentir que chegou a hora
De ver alguém te negar.

O segredo

O dom da filosofia
Todos têm, até você.
É perguntar, dia a dia,
O quê?, como?, para quê?

Máxima

Que o difícil não é fácil
É o conceito mais genial
Não de Descartes ou Pascal,
Mas do conselheiro Acácio.

"Uma despedida", de Alfred Tennyson

"Corre para baixo, frio riacho, para o mar,
entrega o teu tributo de ondas.
Não mais junto a ti os meus passos estarão
para sempre e para sempre.

Corre, maciamente corre, junto ao relvado e ao prado,
um riacho, depois um rio.
Não mais junto a ti os meus passos estarão
para sempre e para sempre.

Mas aqui irá suspirar o teu amieiro
e aqui o teu choupo irá arrepiar-se.
E aqui junto a ti irá zumbir a abelha
para sempre e para sempre.

Um milhar de sóis irá correr sobre ti,
um milhar de luas irá estremecer.
Mas não junto a ti os meus passos estarão
para sempre e para sempre."

(Do livro Poemas de Alfred Tennyson, tradução de Octávio dos Santos, publicado pela Saída de Emergência, Lisboa.)

sábado, 22 de março de 2014

Sábado

Daqui a pouco, na feira, me chamarão de campeão. Quem me dera merecer o tratamento. Perdi em tudo em que me meti, fui goleado, humilhado. A vida me deu olé desde o começo e já não há nem divisão em que possam enquadrar meu fracasso. Quinta? Sexta? Já nem olho para o chão. Que não haja nenhuma tampinha que, pedindo chute, me faça exibir mais uma vez a minha incompetência. Comprar o pastel, beber o caldo de cana e ter a alegria de sentir que o gosto insosso e amargo deles ao menos mantém o padrão: insosso e amargo como todos os sábados, louvado seja Deus. E voltar para casa, porque haverá ainda muito sábado pela frente. Bom sábado, bons pastéis, e a doçura da garapa para vocês, vencedores.

Amor

Retirar os espinhos da carne, para reenterrá-los melhor. Por mais que nos empenhemos, nunca chegaremos a atingir um sofrimento que seja digno do amor. Cravá-los mais fundo, até que nos olhos nos nasçam fontes que cantem a límpida canção da água. E que as lágrimas, afogando-nos enfim, nos deem a mais abençoada das mortes.

Cotação do dia

Seguir em frente, com os passos levados não mais por aspirações ou por ideais, mas para atender ao inelutável chamado da terra e para dar cumprimento ao mofino fado humano.

15/3/44 a.C.

Estarrecer o mundo já não dá,
É uma aspiração equivocada.
Desde a morte de Júlio César, já
O mundo não se espanta com mais nada.

Do leitor como coautor

Na poesia, o leitor é mais do que nunca um coautor. Já não se trata, como na prosa, de ideias que é preciso assimilar, mas de imagens, metáforas, sensações. A poesia moderna nem tanto, mas a que mantém o tom clássico requer uma concentração como aquela que se deve ter ao ouvir música.

Protocolo

No início dos tempos, quando ainda eram poucos os homens na terra, a Morte, ao receber um candidato, pedia seus antecedentes e perguntava o nome de quem o encaminhara. Como todos respondiam que tinha sido a Vida, a Morte passou a carimbar os requerimentos de entrada sem perguntar mais coisa nenhuma.

Soneto do cão adorável

Há muito ninguém te liga,
Ninguém se importa contigo,
Já não tens nenhum amigo,
Nem mesmo eu mais, minha amiga.

Permite-me que eu te diga,
Mereces bem o castigo,
Fizeste o mesmo comigo,
Cantaste a mesma cantiga.

Me atraíste, entusiasmaste,
Como a um cão tu me amestraste
E comi em tua mão.

Hoje, que o cão te cansou,
Não sabes nem onde estou,
Eu, teu adorável cão.

Uma fatiazinha de Xico Sá

"Nesses tempos de amores líquidos, de amores ficantes, de amores-vinhetas, quem saberá o que venha a ser o amor patenteado pelos deuses incas ou gregos?!
   O melhor mesmo é dizer, sem medo, eu te amo, e honrá-lo pelo menos enquanto o sublime eco resistir entre aquelas abençoadas quatro paredes.
   E se ela acreditar, ora, ora, manda um 'eu te amo, meeeeeesssssmmmmoooo'.
   Com olhinhos revirados, vamos mais fundo ainda: 'Eu te amo até o fim dos tempos.'"

(Da crônica "'Eu te amo' não faz mal à saúde, do livro Chabadabadá, publicado pela Editora Record.
 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Espero que

Espero que não te desagrade saber que às vezes me imagino beijando teu rosto e que isso me enche de uma ternura tamanha, de uma ternura tão imensa e de uma alegria tão sem compostura que são quase uma felicidade. Preciso imaginar tudo, agora. Muitas coisas mudaram. Antes havia sempre algum papel diário que, trazendo teu nome, me permitia pousar os lábios nele e te desejar boa sorte e saúde, como se falasse contigo. Como se falasse contigo, te digo que às vezes, como agora, imagino beijar teu rosto de leve, bem de leve, como se beija alguém muito querido num sonho, e te desejo todas as venturas que costumam estar nos cartões de papelaria, com aquelas exclamações propiciatórias.

Só os enamorados

Só os enamorados e os mártires sabem o que significa êxtase. Nenhum deles conseguiria dar-lhe uma definição, mas é algo assim como uma doçura mais aguda que a do corpo e mais profunda que a da alma, um momento que dura um suspiro e é capaz de recompensar toda uma vida. Enquanto esse suspiro dura, o mártir tem nos lábios o nome de Deus, e o enamorado tem ali aquele nome de mulher dito tantas vezes que a boca já não conhece outra palavra e morreria de sede se precisasse pedir água.

Que saudade...

... do tempo da licença poética, quando se podia embrulhar um beijo bem carinhoso num papel feito de nuvem branca, chamar um pombo gentil, dar-lhe o endereço da amada e ficar pensando no sorriso com que ela o receberia. Tempo em que os poetas tinham várias vidas, todas à disposição daquele ser cujos delicados pés eles beijariam, se já não os beijassem, com lábios que iam buscar o sagrado mel entre dedos esmaltados.

Cotação da tarde

Pensar em ti, garota dos cabelos de ouro, é agora a minha única ocupação, e Deus sabe como o censuro sempre, pelas míseras vinte e quatro horas que me concede todos os dias.

Lição (para José Paulo Cavalcanti Filho, que tem a ventura de conhecer todos os Pessoas)

Estava aqui pensando
Nesta lição mais que boa:
Não nos custa ser Fernando,
Difícil é ser Pessoa.

Votos

Abraços mil para ti,
E muitos beijos, milhões,
E cantos de bem-te-vi,
Vários, sem fim, multilhões.

Final

Do grande amor morreu tudo,
Lembrança dele não há
Senão muito vaga, já
Sem forma nem conteúdo.

Rosas

Se penso em ti, uma rosa
Desponta no meu jardim.
Se em mim não pensas, formosa,
Uma rosa morre em mim.

Espelho

Sempre que me encaro assim,
Vejo que só um sandeu
Exatamente como eu
Daria importância a mim.

Cotação do dia

Continuarás acordando com a alma febril, o coração irremediavelmente condenado e a desesperadora certeza de que precisarás enfrentar mais um sol, mais um dia.

Requinte

Uma mulher, qualquer uma, pode destruir um homem com um olhar, o primeiro. Mas não há nada mais generoso que os olhos de uma mulher, seus lábios, seus beijos, seus braços, seus abraços, os dedos com que nos recolhe depois de nos ter reduzido laboriosamente a um punhado de fragmentos baços de louça.

Por um bom poema

Por um bom poema, pelas catorze imortais fagulhas de um soneto, eu teria vendido a alma de minha mãe e também sua carne, esta que eu herdei e que a terra hoje reclama e pela qual não dará um vintém.

Poema de Else Lasker- Schüller para Georg Trakl

"GEORG TRAKL

Seus olhos paravam bem longe.
Quando garoto esteve no céu.

Por isso suas palavras vinham
De nuvens azuis e de brancas.

Discutíamos religião
Mas sempre como parceiros de jogo,

E levávamos Deus de boca em boca.
No princípio era o Verbo.

Coração de poeta, um firme castelo;
Seus poemas: teses cantantes.

Era mesmo Lutero.

Carregava na mão sua alma tríplice
Quando partiu para a guerra santa.

- Então soube que morrera -

Sua sombra permaneceu sem explicação
No entardecer do meu quarto."

(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Porque

Por minhas noites de insônia,
Pelos meus dias de drama,
E porque és meu amor, me ama,
Mesmo que com parcimônia.

Tudo

Tudo isso é pouco, eu bem sei,
Porém se a alma e o coração
Contigo há muito já estão,
Que mais eu te ofertarei?

Cotação do dia

Tudo vai melhor nos dias em que a esperança nos dá uma trégua e não aparece com suas histórias.

Mas o nome

Mas o nome dela ficará comigo. Nada conseguirá tirá-lo de mim, como ninguém consegue tirar a loucura de um homem que tenha combatido na selva por quatro anos, acossado pelo inimigo, pela fome, pelos mosquitos, pela sede, pelas chagas e pelas inúteis preces ao indiferente Senhor.

Em uma vida anterior

Em uma vida anterior devo ter-lhe quebrado o brinquedo favorito ou matado seu gato. Ela esperou cinquenta décadas, ou cinquenta séculos, mas chegou o momento de me me enfiar a faca no ventre, de tirar-me todas as vísceras e dá-las, aos bocadinhos, à ave de rapina que hoje é seu bicho de estimação. Todos os dias ela antevê esse instante, em que me fará recordar do seu brinquedo destruído ou do seu gato esquartejado. Lembra?, lembra?, lembra?

Ela

Soube que ela registrou em cartório um documento que a isenta de me amar, ainda que seu coração a atraiçoe e, um dia ou outro, ela sinta alguma coisa parecida com ternura.

Vontade de dizer

Vontade de fazer um manifesto amoroso, piegas e boboca como todo manifesto amoroso, e gritar pela cidade frases imensamente longas e retóricas, ribombantes como esta trovoada vespertina. Usar todos os verbos que tenham algum parentesco ou afinidade com a paixão amorosa e adorná-los com todos os advérbios de modo, aqueles terminados em mente, desvairadamente, tresloucadamente, infinitamente e - depois de reunidos talvez cinco curiosos - dizer a eles, só a eles, o nome da mulher merecedora dessa loucura que, se fosse mais comum nesta cidade fria, talvez a fizesse ter um semblante melhor e mais humano. Dizer a esses cinco o que talvez pudesse ser o início de uma revolução que colocaria em marcha pelas ruas homens e mulheres erguendo o estandarte do deus único e supremo - o Amor.

Nos esquecemos (para Priscylla)

Nos esquecemos de tudo -

de como nascemos
de como se foram juntando
sobre os nossos ombros os dias
de como fomos
uma construção
e de como depois
portentosa foi
nossa destruição
e majestosos foram
nossos escombros

Nos esquecemos de tudo -
dos nossos ideais
de como os plantamos
de como os regamos
e de como de repente
não era preciso
regá-los mais

Nos esquecemos de tudo -
do que vivemos
do que sonhamos
do que sofremos

Nos esquecemos
de que morremos.

Nostalgia

Inigualáveis tempos aqueles
em que os múltiplos deuses
se empenhavam em nos dar
colheitas abundantes
fados venturosos
e em nos ofertar
frutos saborosos
nos quais bebíamos
o sumo da alegria
e o inefável
dom da poesia

Às vezes nos davam
um pouco de sua ambrosia
e por alguns instantes
entre nuvens flutuávamos
como se como eles
deuses fôssemos
e pudéssemos
cuspir sobre os mortais

Havia um deus
para cada necessidade
e para cada aspiração
naquele tempo
e enquanto buscávamos
para as nossas petições
e requerimentos
saber a resposta
se sim ou se não
a vida passava
tão despercebida
que um dia enfim
já não precisávamos
entrar na fila
e esperar
com a multidão
para saber se não
para saber se sim.

Breve relato de um discípulo de Onan

Não tenho mão
para plantar
não tenho mão
para colher
não sei pintar
não sei desenhar
nem escrever

Para tudo
sou desajeitado
destrambelhado
inepto
desconhecedor
canhestro

Só para o amor
se daquele tipo for
que exige só imaginação
eu valho
eu sirvo
eu presto
eu sou bom
eu sou ambidestro.

Soneto do amor e de sua doutrina

Também de ti já zombaram,
De tuas crenças disseram
Como ridículas eram,
E riram, e gargalharam.

No rol dos que se enganaram,
Também teu nome puseram
E tua história expuseram
Aos ventos, que a recontaram.

O amor é assim, nos seduz,
Ao seu templo nos conduz,
Diz ser essa nossa sina.

Só não nos diz que rirão
Quando fizermos menção
À sua tola doutrina.

"Aos emudecidos", de Georg Trakl

"Oh a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.

A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.

Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora."

(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicado pela Iluminuras.)

quarta-feira, 19 de março de 2014

A dor

E bem quando você pensa
Que a dor do amor se aliviou
Você vê que ela voltou,
Dura, forte, aguda, imensa.

Sono

Me abate um cansaço enorme,
Tudo em mim arrefeceu,
Quem eu fui agora dorme,
Quem eu seria morreu.

Quais ainda

Palavras, quais te direi
Que possam ainda tocar-te,
Que ardil, que artimanha, que arte,
Me diz, ainda eu não usei?

Soneto dos versos disparatados

Um dia tu acharás
Entre cadernos diversos
Um todo cheio de versos
E então, talvez, o lerás.

No início te espantarás
E o autor dos poemas dispersos,
Tão tolos e controversos,
Dizer tu não saberás.

Porém depois, pouco a pouco,
Tu te lembrarás do louco
Que esses versos escreveu.

Então, talvez com carinho,
Dirás um nome, baixinho.
E o nome será o meu.

Depois

No amor, depois que se diz adeus, espera-se a paz. Ela demora, é o que nos dizem, não tenhamos pressa. E nós todo dia acordamos e cumprimos todas as cláusulas do armistício. A alma, no entanto, nos dói, cada manhã mais, como se estivéssemos na guerra ainda e tivéssemos esperança de ganhá-la.

"Um acre de verde", de W.B. Yeats

"Restam quadros e livros,
Um acre verde de erva
Para ar e exercício,
Agora que o corpo se esgota;
Meia-noite, uma velha casa
Onde apenas se move um rato.

Calou-se a minha tentação.
Aqui, no fim da vida,
Nem a liberta imaginação,
Nem o moinho do pensamento
Seus desperdícios consumindo,
Podem revelar a verdade.


Concedei-me a exaltação de um velho;
Eu próprio devo refazer-me
Transformar-me em Timon ou Lear
Ou naquele William Blake
Que golpeou o muro
Até acudir-lhe a Verdade.

A mente, soube-o Miguel Ângelo,
Pode as nuvens trespassar,
Ou inspirada pela inquietação
Agitar os mortos em suas mortalhas;
Tudo o mais esquecido pelo homem,
Eis a mente de águia de um ancião."

(Do livro Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

"Jane, a Louca, acerca de Deus", de W.B. Yeats

"Esse amante de uma noite
Chegava quando queria,
Pela aurora partia
Quer eu quisesse ou não;
Os homens chegam, os homens partem;
Tudo permanece em Deus.

As bandeiras sufocam o céu;
Os guerreiros marcham;
Cavalos com armaduras relincham
No palco da grande batalha
No estreito desfiladeiro:
Tudo permanece em Deus;

Diante dos seus olhos a casa
Que desde a infância estava
Desabitada, em ruínas,
Iluminou-se de repente
Da porta ao telhado:
Tudo permanece em Deus.

Jack feroz foi meu amante;
Tal como um caminho
Por onde os homens vão
O meu corpo não se queixa
Mas continua a cantar;
Tudo permanece em Deus."

(Do livro Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim.)




Melhor assim

Melhor assim, não nos darmos,
Ficarmos só na intenção,
Gozarmos a floração
E os frutos puros deixarmos.

Rapunzel

Cabelos áureos, cabelos
De fogo, fúria, esplendor,
Cabelos ígneos, novelos
De lava, de luz, de cor.

Tibieza

As nossas opiniões,
Os gritos de consciência,
São meras divagações,
São pontos de reticência.

Pois é, então, aquele

Aquele amor poderoso
Que dividiste comigo
Vive hoje doente, leproso,
Largado como um mendigo.

Barão, Ipiranga, Dom José, São João

Eu me embebedava e, quando a madrugada ia esvaziando as ruas, caminhava pelo centro, pela Barão, pela Ipiranga, pela Dom José de Barros, pela São João, julgando que ali poderia estar, num quarto andar de um prédio, uma mulher que, se chamada, desceria para ouvir os sonetos que eu fizera nos balcões de bares enxovalhados. Eu gritava um nome, outro, gritava todos os nomes, e nenhuma porta jamais se abria. Anos depois, eu viria a gritar teu nome em todos os lugares para onde me levava meu desespero, mas nunca devo tê-lo gritado na rua certa, onde, por uma obra de pura taumaturgia, talvez estivesses disposta a me ouvir e pousar tuas mãos no meu rosto incendiado pela febre.

Menos cinco

Nós dois morremos no dia em que, espiando pela cortina, deixamos o amor tocar trinta e duas vezes a campainha e, quando ele se foi, comentamos: "Ele está começando a perder a esperança. Ontem ele tocou trinta e sete vezes. Talvez não toque nem vinte, amanhã." Isso foi há muito tempo. Hoje a indiferença e a impiedade estão no meu rosto, e no teu, tão inequivocamente estampadas que as flores do jardim morreram todas e nem o mais desesperado e faminto dos gatos extraviados passa perto de nossa casa, cuja campainha o amor jamais veio tocar.

Soneto da inconsistência do amor

O amor é como uma espuma
Ou uma brisa inconstante.
Tem-se algo e, já no outro instante,
Não se tem coisa nenhuma.

O amor é um clown, um farsante
Que promete mais de uma
E não nos dá coisa alguma,
Esse biltre, esse tratante.

Se nós tivéssemos tino,
Igual seria o destino
Que teria esse bufão:

O de uma pluma que voou,
O de um sorriso falho ou o
De uma bolha de sabão.


Ardil

Nas tardes em que ia se encontrar com o amante, ela saía do sofá furtivamente, abria a cortina e fazia o sol ocupar seu lugar, ao lado do gato velho cujos sonos pareciam agora mais longos que o sono da morte. Quando voltava, duas horas depois, encontrava o gato na mesma posição, com as patinhas em cima do filete dourado, como se ele fosse sua blusa.

De mansinho

Algumas tardes morrem lentamente, arrastadamente, como se esperassem a extrema-unção.

Exortação

Com a ambição de fazer uma literatura clássica, perdi toda a vida procurando temas perenes, e hoje sinto ter desperdiçado todo esse tempo que poderia ser usado para dizer o essencial: que o amor é o único tema que nunca se extingue. Jovens poetas, joguem fora a gravata e o monóculo, deem uma bela banana ao pernosticismo, parem de exaltar montes, rios e mares, e cantem os olhos da amada, sua boca, seus cabelos, porque não há no mundo nada mais para cantar. O eterno assunto da poesia é a beleza dos olhos, da boca, dos cabelos da amada, e o que cabe aos poetas é imortalizar essa beleza, ou pelo menos conservá-la enquanto houver ouvidos humanos capazes de recebê-la com agrado e reverência.

Adota-me

Adota-me como se eu fosse um gato de tão deplorável aparência que, se deixado miando lá fora, certamente morreria de fome. Adota-me como se apenas tu pudesses fazê-lo. Deixa-me entrar. Não precisas ter-me no teu colo. Que me baste sentar-me ao teu lado no sofá e, se eu te aborrecer com meu rom-rom, não precisas aumentar o volume da tevê. Pede-me, e eu paro de respirar. Não poderei encontrar morte melhor. Mas te suplico que ao menos tentes tolerar-me. Não puxarei um fio da tua blusa e, se dormires, não avançarei um centímetro na tua direção. Só procurarei acertar o ritmo das batidas do meu coração ao teu. Nem tentarei entrar no teu sonho. Quero que ele seja belo, como mereces.

"Só", de I. Glatstein

"Papai e mamãe cochilam no sofá.
Ela - treze anos - está só.
O crepúsculo encanta a janela.
Ela espia com suas grandes maravilhas azuis.
Sua fronte anota luminosos hieroglifos.
Calmos, cochilam papai e mamãe,
Rimados no sono como uma cantiga infantil.
Ela está só, e quem velará
Quando vier o lobo terno-selvagem?
O meigo-selvagem lobo é peludo
E seus olhos são moscas verdes.
Ele é um lobo tão bom-mau,
Tão cálido e misterioso.
Papai e mamãe dormiram algumas milhas
E ela está terrivelmente só.
Unhas arranham a maçaneta.
A porta range.
Quem velará por ela
Quando chegar o lobo meigo-selvagem?"

(Tradução de Paula Beiguelman, do livro Quatro mil anos de poesia, publicado pela Editora Perspectiva.)

terça-feira, 18 de março de 2014

Um provérbio persa

Um provérbio persa que criei agora diz que na lista de prioridades da Morte estão os homens que não têm ninguém a quem desejar uma boa noite.

Eu também

Eu também quis ser poeta. Sobraram-me, desse tempo, o dicionário de rimas de Guimarães Passos e Olavo Bilac e um estoque de palavras como paul, tremedal, exéquias, conúbio e amplexo. Também algumas metáforas, que parecem obras de um aprendiz de marceneiro, tudo feito de uma madeira que, subitamente enlevada pela ilusão poética, se recusa a ser completamente quebrada. Há pedaços dela espalhados por toda a casa, todos se imaginando cisnes, nuvens, brisas e crepúsculos.

Fernanda Lima

Acima do ponto máximo da suprema beleza, dois olhos brilham: os de Fernanda Lima.

Dois poemas de W.B. Yeats

"COM O TEMPO A SABEDORIA

Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade."

                            ***

"APÓS LONGO SILÊNCIO

A palavra após longo silêncio; certo é que,
Distantes ou mortos todos os outros amantes,
Oculta pela sombra a luz hostil,
Corridas as cortinas sobre a noite inimiga,
Dissertemos e dissertemos
Acerca do supremo tema da Arte e do Canto:
A decrepitude física é sabedoria; jovens
Nos amávamos e éramos ignorantes."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

                          ***


Benditos sejam os...

que nos ferem. Só os que amamos muito têm o dom de nos ferir. Benditos os que não nos deixam dormir, os que povoam cada instante de nossa vida com suas lembranças. Delas, das lembranças, são sempre as tristes que acabam ficando, e são essas que valem a vida. Não as fotos no parque ou na exposição, não aqueles sorrisos escandalosamente mancomunados, não aquela pose compromissada com a aparência que a cena terá dez anos depois. Ah, as fotos que nunca se bateram e nunca se baterão, aquelas dos encontros desmarcados, aquelas da noite da qual se esperou tanto em vão, debaixo da chuva, ah, essas são as fotos que ficam para sempre. Nada as apaga da alma, essas fotos que tiramos todos os dias, e continuaremos a tirar sempre, com a imaginação exaltada e as mentiras com as quais vamos mantendo vivo nosso tolo coração.

Virtudes do poeta

O poeta há de ser, de preferência, um tolo. Ser ladino não cai bem aos poetas. O poeta não deve ser um cavaleiro empenhado em combates e conquistas. Ao poeta, se algo lhe couber, que seja por ele se parecer tanto com um menino de dois anos que a família jogou num descampado, numa noite de tempestade, para se afogar e apodrecer.

Cena

Ele se lembra da manhã chuvisquenta em que, tocando-lhe o braço, os cabelos dela lhe disseram que estavam com frio.

Fujão (para o Gianluca)

Dois meninos tentavam derrubar o sol com pedradas. Estavam nisso fazia já meia hora quando um deles gritou: "Olha lá, olha." O outro perguntou: "Olha lá o quê?" Uma nuvem havia encoberto o sol. "Olha lá", insistiu o primeiro menino. "Você viu? O cagão fugiu."

Passagem

Terei morrido
Terás partido
E o que eu bendigo
E o que eu maldigo
E o que bendizes
E o que maldizes
E o que me agrada
E o que me enfada
E o que aprecias
E deprecias
E o que nos move
E nos demove
E o que nos une
E nos desune
E o que nos faz
E nos desfaz
Morto estará
Cinzas será
E o mal e o bem
Cinzas também
Frágil é a vida
Minha querida
Um vão momento
Lançado ao vento
Um passaporte
Um documento
Que traz a morte
E o esquecimento.



Fim

Sabemos já que falhamos.
Deserto, apenas deserto...
Nenhum oásis, longe ou perto.
Contudo nos arrastamos.

"Rosa seca", de Yehoasch

"Caiu de um livro no meu regaço
uma dessas velhas
relíquias de um sonho de juventude:
uma rosa seca.

E eu perguntei ao livro de onde vinha
aquela flor.
O livro calou-se: não chegou ao meu ouvido
nem palavra nem som.

Então meus olhos descobriram uma página
onde havia uma nódoa.
Há muito, muito tempo alguém tinha chorado.
Oh! quando e onde?

Beijei a rosa murcha, a rosa seca
e a lágrima também.
Há muito, muito tempo alguém tinha amado:
Oh! quem? e a quem?"

(Tradução de Cecília Meireles, do livro Quatro mil anos de poesia, publicado pela Editora Perspectiva.)

Você, jovem poeta,

não se envergonhe daqueles surtos de ternura que o atacam quando a noite está alta e a amada está distante. Deixe que eles venham, que se apossem de você inteiramente, que o façam chorar como se você fosse feito só de lágrimas. Desfaça-se em pranto (não tenha pejo da palavra pranto, os velhos não sabem nada de nada). Queira morrer dessa ternura morna, peça a Deus que ela o mate. Depois, escreva sobre isso, jovem poeta. Não pense na arte da composição poética, em rimas, em nada disso que está nos livros como orientação. Escreva e, se sentir, em cada palavra, que ela vale cada uma de suas lágrimas, não se importe com o resto. Você terá feito o que lhe cabe.

Façamos uma revolução

Façamos uma revolução. Sejamos piegas, horrorosamente, ridiculamente, vexatoriamente piegas. Choremos por tudo e por nada, declaremos nossa perversão, a da poesia, esqueçamos tudo que nos ensinaram sobre orgulho e autoestima e nos ajoelhemos diante de quem amamos. Depois, beijemos sua mão como se beijavam antigamente as mãos amadas, sem a polidez social da cortesia e o cheiro de sabonete. Beijemos a mão de quem amamos e digamos enfim tudo aquilo que os manuais de conduta reprovam, usemos todos os adjetivos que há tanto tempo estão guardados em nosso coração e os reforcemos com os advérbios mais exagerados. Sejamos piegas e choremos tudo que já deveríamos ter chorado, até que nossas lágrimas corram por entre os dedos da amada, antes que ela finalmente os passe ternamente em nosso rosto.

Falha

Do laudo não constará, mas tenho certeza de que morrerei de ternura.

Vocês eu não sei,

mas eu, nos momentos mais tristes, sou tocado tão fortemente pela poesia que sinto não poder ser um mártir, para morrer por ela, dizendo um último nome tão docemente que pela janela comecem a entrar abelhas, como se minha cama fosse uma colmeia.

Que de nós fique

Que de nós fique, na memória de uma pessoa amada, ao menos um verso que de vez em quando lhe venha aos lábios, e que ela repita com um sorriso, perguntando: "Não é bonito?" E que se um dia, ao repeti-lo, alguém lhe disser que não fomos nós que escrevemos esse verso, mas um figurão desses de antologia, a pessoa amada diga, talvez com os olhos úmidos: "Mas não é bonito?"

Quando libertarem a poesia

Quando libertarem a poesia, talvez possamos ouvir de novo quadrinhas gentis, sonetos graciosos, pequenas odes ao deus Eros. Nesse dia talvez os sisudos senhores que baniram dos poemas as cotovias e os rouxinóis deixem que eles voem novamente e cantem embaixo da janela de uma jovem pálida que nasceu para ser a paixão de um poeta, pálido também, que não se envergonhe de, em certas noites, trazer no bolso uma estrela dócil como uma ovelha.

Polônia, adeus

Tardei tanto, minha Polônia, fui um filho tão desleixado em meu afeto, que já não há tempo. Não te conhecerei, não sentirei a brisa que sussurrou canções aos ouvidos dos meus antepassados. Não andarei pelas tuas ruas, Varsóvia, imaginando notas de Chopin. Serás, Polônia, o que és: uma palavra que me enternece, como o nome da mãe enternece o filho distante. Não te verei, Polônia, não te verei, Varsóvia. Mas o que mais me dói, o que rasga meu peito ingrato é não ter conhecido a Cracóvia de Wislawa Szymborska. Pelo que sei de ti, Polônia, Wislawa é a melhor filha que deste ao mundo. Ela, por si só, justificaria os gloriosos séculos de tua existência.

Soneto da mulher que cobra seu gozo

Mais, mais, ela me dizia,
E quanto mais me instigava
E quanto mais me excitava
Menos apto eu me sentia.

Entráramos meio-dia,
Quatro o relógio marcava,
Eu já a terceira acabava
Mas ela a quarta queria.

Portara-se docemente,
Mas mudara de repente
E já estava a me insultar.

Ou eu lhe dava mais uma
Ou em hipótese alguma
Ela iria me pagar.

No meio de uns papéis

Agora não mais importa,
Mas foi tolice não ver
Que antes mesmo de nascer
A rosa já estava morta.

Reflexões de um lobo

As três corças se aproximam da beira do riacho. O sol já se deita, mas há ainda claridade suficiente, e estranho que elas ousem mostrar-se. Coloco-me de modo a que o vento não lhes leve meu cheiro, e me aproximo. Uma das corças então diz: o lobo deve estar à espreita. As outras duas põem-se a zombar de mim. Comentam que estou velho demais, cego e sem dentes. Não posso contestar essas palavras. São verdadeiras. A mais nova das corças revela receio, mesmo assim, mas as outras duas a tranquilizam. Asseguram-lhe que, se eu tivesse a coragem de aparecer, as três dariam conta de mim. A que parece menos jovem diz estar sentindo meu cheiro e sugere que talvez seja hora de me darem uma lição e me fazerem correr de volta ao lugar de onde vim. Meu orgulho de lobo me enraivece, mas a fraqueza das patas me sugere que eu me afaste. É o que faço, evitando qualquer ruído ao me retirar. Quem sabe o que essas três corças podem fazer comigo? Preciso aprender a dormir enfurnado. Com o cheiro que exalo, um dia posso acordar bicado pelos urubus.

A fiandeira

Quem há de na Vida fiar-se
Se todos sabem, de cor,
Que, se forem comparar-se,
A Morte fia melhor?

Este sangue

Este meu sangue polonês
que correu em veias guerreiras
enlanguesceu-se aqui
e flui com preguiça e torpor
aguado como um arroio
a cujas águas não se ensinou
senão o ritmo sonolento
das cantigas de amor.

Filosofia

Descartes, depois de anos de intensa meditação, descobriu que existia. Por uns instantes gozou o êxtase da conquista. Em seguida, apoiou novamente o queixo nas mãos e fez a pergunta que o deixaria ocupado pelo restante da vida: e agora?

"Meu pequerrucho", de Morris Rosenfeld

"A noite me envolve.
Entro em casa, exausto,
e minha mulher me fala do petiz:
'Brincou o dia inteiro!
Riu! Perguntou: Mamãe,
será que papá me há de trazer um pêni?'

Dormias,
quando na madrugada branca saí para o trabalho.
Volto, estás dormindo.
Quando me verás, meu filho, quando?

Aqui estou.
Junto do teu berço, te observo e vejo,
Sonhas e sorris. Ouço dizeres:
'Que é de o papá? Onde está?'

Beijo-te os olhinhos cor de cinza...
Vejo se entreabrirem teus olhinhos claros.
Não me vês? Me vês, querido?
Mas ele fecha depressa as pálpebras pesadas.

Olha, trago-te um pêni... Toma...
Segura-o nas mãozinhas.
Sonhas... Sorris... Ouço dizeres:
'Que é de o papá? Onde está?'
Estou aqui, pequerrucho! Exausto, mas estou aqui!
Pobre criança, despertarás um dia!
Mas nesse dia
não estará mais aqui o teu papá!'

(Tradução de Carlos Ortiz, do livro Quatro mil anos de poesia, publicado pela Editora Perspectiva.)

segunda-feira, 17 de março de 2014

Arranjo

Nos cemitérios do amor, a maior parte dos túmulos é ocupada por gente que falsificou a carteirinha.

Soneto do homem apanhado num bar para um programa

Quando ela me devolveu
Onde me havia apanhado,
Só uma hora tinha passado,
Mas eu não era mais eu.

Beijos como ela me deu,
Embora eu fosse escolado,
Jamais haviam  provado
Meus lábios, que ela mordeu.

Já tanto tempo passou,
Mas dia a dia ainda estou
Aqui, neste mesmo bar

Onde um uísque ela tomou
E outro uísque ela me pagou,
Para ao motel me levar.

"Saudade", de Rohel Korn

"Tão cheios de saudades estão meus sonhos
que toda manhã
meu corpo cheira a você -
E no meu lábio mordido seca lentamente
o único sinal de dor sufocada,
uma gota de sangue.

E as horas já derramam, como taças,
uma na outra,
a esperança, como vinho precioso
que você não está longe,
que logo, logo, a cada instante,
você pode vir, vir, vir."

(Tradução de J. Guinsburg, de Quatro mil anos de poesia, publicado pela Editora Perspectiva.)

Fernanda Lima

Fernanda Lima é a nota mais aguda de uma ária, aquela em que o coração mereceria estilhaçar-se e derramar-se em flores de cristal.

Sentido

Amor? Que significado
Tem a palavra se alguém
A diz assim como quem
Recita um verso estropiado?

Conduta

Quem há de querer amor?
Amor faz sofrer, constrange.
Bem melhor aquele ardor,
Aquela cama que range
Por um momento ou por dois,
E um adeusinho depois.

Leitmotiv

Enquanto a voz não se cansa
E a vida não me destroça,
Cantarei, conforme possa,
Teu nome e minha esperança.

Distância

As estrelas são tão frias,
Distantes de nós, mortais,
Imunes às agonias
E surdas aos nossos ais.

Cena

Menina, não sei se o vento
Te beijou naquele dia.
Só sei dizer que eu, ciumento,
Teus passos todos seguia
E te juro, meu tormento,
Que eu, ah, eu te beijaria.

A metáfora

Um cisne seria uma boa metáfora para o Amor. Um cisne branco, flutuando num lago dentro de uma tela, que pudesse ser retocado, se adoecesse, e repintado, se viesse a morrer.

Falta de pontaria

Bom tempo aquele em que havia
A chuva forte e certeira
Que em dez minutos enchia
O Sistema Cantareira.

Custo-benefício

Se a Morte nos adquirisse
Pelo que achamos valer,
Provavelmente falisse
Sem tempo de perceber.

"Tudo pode tentar-me", de W.B. Yeats

"Tudo pode tentar-me a que me afaste deste ofício do verso:
outrora foi o rosto de uma mulher, ou pior -
As aparentes exigências do meu país regido por tolos;
Agora nada melhor vem à minha mão
Do que este trabalho habitual. Quando jovem,
Não daria um centavo por uma canção
Que o poeta não cantasse de tal maneira
Que parecesse ter uma espada nos seus aposentos;
Mas hoje seria, cumprido fosse o meu desejo,
Mais frio e mudo e surdo que um peixe."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Rapidinha

Ver Fausto Silva chamar Alexandre Frota ao palco do Domingão e anunciar para o seu entusiasmado público, no quadro "Se vira nos trinta": "Quem sabe faz ao vivooooo."

Fernanda Lima

Existir Fernanda Lima é uma prova de que Deus, quando acerta, é insuperável.

Sem intermediários (para Ivna Alba)

Amar o amor pelo amor
É um sensato pensamento:
Render graças ao senhor,
E não a um seu instrumento.

E contudo

E contudo, e apesar de tudo, pulsa ainda o coração, e os olhos olham, e as pernas se movem, mas pulsa para quê, mas olham para o quê, mas para onde se movem?

Que paz

Que paz haverá, que calma,
Se o amor e a rubra paixão
Te açoitam o coração
E te martirizam a alma?

Crença

Não sabia que seria traída, nem que trairia, e o amor para ela ainda era a mais crível de todas as verdades.

Wislawa e mais dezesseis gostam de poesia

Não acredito em poetas que atribuem à poesia a função e a capacidade de salvar o mundo. Isso soa como manifesto, e manifestos não calham bem à poesia. Ela existe para alimentar a alma, para aliviar-lhe a sede (e - não nos enganemos - a alma de poucos, assim como a música de Beethoven, Mozart e Bach).

Desafio aos otimistas

A vocês todos, a quem
O que ocorre é sempre o ideal
E às vezes até o mal
Tem a aparência de bem.

A vocês, que no banal
Sempre algo preciso veem
E para ele louvor têm
Assim como ao essencial.

A esse seu tolo otimismo
Eu venho, com meu cinismo,
O desafio propor

De com empenho tentarem
Em virtudes transformarem
Minha inveja e meu rancor.

Como foi

Um dia, no meio de um pensamento, Descartes descobriu que existia. É o que se sabe. Nenhuma fonte revela se em seguida ele se beliscou.

Tradições

O amor, assim como as múmias e os vampiros, é um desses assuntos antigos que ainda provocam interesse.

Ceagesp

Ela cuspiu o amor como se cuspisse uma semente de melancia. Um fiapo da polpa ficou-lhe na língua. Ela o engoliu.

ABNT 2.1

Cuidar da alma, porque o corpo já está com um pé no quarto 9 e o outro na quadra 3.

Quem morre

Não somos nós que morremos.
É aquele que transformamos,
Aquele que deturpamos
Desde o dia em que nascemos.

O que foi

Sob os olhos da lua, um gato preto começou a atravessar a rua. Poderia ser um haicai, se não tivesse surgido um caminhão.

O motivo

Se não existe para ser relatada, para que serve a vida?

"Meu cão", de André Spire

"Meu cão,
Por que razão quer você que eu lhe ame?
Procedi mal hoje;
Não fui justo;
E você corre para junto de mim!

Quando uma prostituta passa e lhe faz um afago,
Meu cão, você a afaga;
Quando o açougueiro lhe joga a carne,
Você late, você pula;
E a empregada que não tem senão uma alma tão pequena,
Você a olha com seus grandes olhos doces.

Meu cão,
Por que razão quer você que eu lhe ame?"

(Tradução de Zulmira Ribeiro Tavares, do livro Quatro mil anos de poesia, publicado pela Editora Perspectiva.)

domingo, 16 de março de 2014

Ruas

Se estás na rua e eu estou
Numa rua bem ao lado,
Mesmo assim, que tolo eu sou!,
Pareço estar exilado.

Aquele sentimento

Amor amado,
Amor querido,
O teu legado
Será medido.

Terás magoado,
Terás doído,
Serás louvado,
Terás sentido?

Serás cantado,
Reconhecido,
Ou renegado
E desmentido?

Serás lembrado,
Serás traído,
Serás lembrado
Ou esquecido?

Sylvia Plath no dia de sua redenção

Não mais rodopiar em torno
Do nada, dia após dia.
Não mais esse rolar morno
Da vida, e o tédio, e a abulia.
Me aceita e me engole, forno.
Quero o fim, quero a agonia.

Por quê?

Por que me mandas gazelas,
Por quê, por quê, meu Senhor?
Tu me exauriste o vigor,
Que esperas que eu faça com elas?

À deriva

Por imposição da rima
E desta mente pacóvia,
Morrerei sem ir a Lima
E sem conhecer Varsóvia.

A prova

Um dia riremos disso tudo - e mostraremos finalmente que desde o início o amor nunca foi algo que pudéssemos merecer.

O rei no churrasco

"É uma brasa, mora."

No asilo

No jantar, uma das velhinhas estranhará o gosto da carne e perguntará às outras se notaram a ausência do gato que todas as tardes aparecia no jardim. "Aquele ruivo horrível?", dirá a mais esfomeada. "Até que ele está gostoso."

"Possa o Nome enviar sua oculta luz", de Iaacov Ben Iaacov Ha-Kohen

"Possa o Nome enviar sua oculta luz
para abrir, aos servidores seus, portões de auxílio
Para lhes aclarar o coração imóvel, detido na mais escura noite.

Possa o grande Rei fazê-lo emergir em perfeição
e acerto,
E nos abrir portões de senso,
E acordar o amor de outrora, e dos antigos dias."

(Tradução de Zulmira Ribeiro Tavares, do livro Quatro mil anos de poesia, publicado pela Editora Perspectiva.)

A surpresa

"Bom, foi o que ele sempre disse que ia fazer", observou um amigo. "Curioso que ele nunca me pareceu um homem convicto. Nunca eu acreditei quando ele dizia que pelo menos uma vez por semana dava uma passada pelo viaduto, embora não fosse caminho."

Cotação do dia (14)

O bufão extrai do próprio peito o punhal e diz uma frase shakespeariana, enquanto o público gargalha tão estrepitosamente que o circo parece sob risco de desabar. Um menino grita: ""É extrato de tomate", o que faz a gargalhada retomar o ímpeto. Três companheiros do bufão correm para socorrê-lo, o que os põe em condição de igualdade artística com o moribundo. "Palhaços, palhaços", gritam os espectadores, finalmente satisfeitos com o espetáculo. "Vou acabar morrendo de tanto rir", diz um senhor, enquanto o bufão morre por ele e pelos outros.

Cotação do dia (13)

Apesar de todas as aflições e todos os apelos da alma, aguardar com resignação o dia que nos está destinado. Ser um defunto honesto, sem truques nem subterfúgios, merecedor das flores - não como aqueles que provocam cochichos no velório e a frase "você sabe como foi?".