terça-feira, 25 de março de 2014

"Moscou-Varsóvia (26 maio 1956)", de Paulo Mendes Campos

"Se este avião caísse, crispado entre os ouros, as copas e as espadas eu ficaria; sarrafos nas pálpebras, para que se mantivessem abertas durante o incêndio, colocaria;
Se este avião caísse, as madrugadas de meu filho de um terror violeta se elucidariam; na tarde calcinada, a sombra de minha mulher se inflamaria; minha filha não me encontraria deitado sobre o feno, escondido atrás da porta, acima dos cata-ventos com os braços carregados de bonecas; mais do que a minha garra em um livro e um lírio não encontraria; um gesto no espelho, uma espátula de osso, um pensamento;
Se este avião caísse, em uma esquina de Ipanema, eu nunca mais esperaria;
Se este avião caísse, só uma pessoa não diria 'que pena' (a que caía e se esquecia e se consumia, e só se libertaria quando de todo caísse e se esquecesse e se consumisse);
Se este avião caísse, de mim o firmamento em torvelinho se afastaria; os mortos da Lituânia e da Masúria a mim viriam, e no silêncio rodeado de verdura me receberiam; soldado quase desconhecido, mãos desligadas do corpo - exangues e sem armas - ah, a terra de ninguém eu atravessaria;
Se este avião caísse, de arquitetar a condição da criatura um arquiteto a mais desistiria; certo de que outros chegarão a construir a humana arquitetura (o que se faz há muitos anos e se fará em um dia); pousado sobre o meu peito, o pássaro cruento do meio-dia; o criptógrafo egípcio afinal se explicaria; em fragmentos candentes, a minha carne emigraria; espantalho em farrapos, só o vento de leve me espantaria;
Se este avião caísse, sob as arcadas do pátio a poça de sal se extinguiria; a minha túnica amarela entre os anjos se sortearia; sob as telhas dos dragões dourados, os seus flocos, indiferente, a paineira sacudiria; na colina resplendente, quem soubesse ler, leria: 'aqui pousou uma criança que quase nada compreendia'; até que outra morte nos separe, o meu nome no tronco se resignaria;
Se este avião caísse, este papel em cinzas arderia; a estrela rubra do poema nenhum jornal publicaria; fosse cair daqui a pouco, ainda assim o escreveria; a vida e a morte são as amantes, são a esposa, da poesia;
Se este avião caísse, os meus vizinhos compreenderiam; lembrando-se dos meus cabelos no elevador, uma intuição qualquer no ar lhes diria que só não fui um amigo por falta de tempo ou covardia; mas pode alguém perfeitamente amar o seu vizinho se apenas, grave, pela manhã lhe diz 'bom dia'; e então, sentimentais e sem razão, de mim, coitados, se apiedariam; e de se sentirem tão sensíveis, em fino prazer espiritual tudo (de mim) enfim se acabaria;
Se este avião caísse, a música do meu apartamento ensurdeceria; os volumes nas estantes, de já não ter quem os lesse como eu os lia, pardos e fechados ficariam; outros mais sábios vir e servir-se poderiam; mas o meu jeito de ler e pensar desapareceria; no entanto, se este avião caísse, daquilo que é apenas meu a orgulhar-me não chegaria;
Se este avião caísse, já ninguém mais meditaria na ave que passou gemendo contra o vento na bruma fria; o segredo que não cheguei a tocar a ninguém mais preocuparia; só se a meu filho legasse a vocação da tristeza e o heroísmo da alegria;
Se este avião caísse decerto me compadeceria dos que caíssem comigo sem a coragem da poesia; embora talvez fosse eu quem mais saudades levaria; poentes roxos de Minas, praias aéreas da Bahia; chapéu de palha de Leda, olhos castanhos de Lília; pubescência de Teresa, experiência de Maria; prosadores da Irlanda, poetas de Andaluzia; Iang-tsé em Nanquim, das Velhas em Santa Luzia; Etna fumegando em Taormina, em Sienna a Piazza della Signoria; manhãs de iodo na praia, noites etílicas de boemia; bailarinas de Leningrado, gaivotas da Normandia; sorriso da menina, do menino a euforia; Wagner compondo o Parsifal, Nietzsche uivando em Sils Maria; a mulher que foi comigo, a que não foi mas iria; tantas que, mais houvera, para que de vez caísse, pediria;
Se este avião caísse, com ele cairia um homem que pelo menos entenderia a fábula da folha que se desprendeu e desaparecia; e assim seu coração, na terra, no mar e no céu, como de triste e maduro caísse, não se surpreenderia, nem reclamaria; pois esse aflito coração, de ter amado e sofrido, na amplitude da morte se conformaria;
Se este avião caísse, em um domingo azul um peixe até a pedra nadaria; não encontrando o meu anzol, ao alto-mar regressaria; desse desencontro tecido de tão lindos equívocos, a sua carne se salvaria; e o domingo azul do mar ainda mais azul reluziria."

(Do livro Poemas de Paulo Mendes Campos, publicado pela Civilização Brasileira.)

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