sábado, 31 de janeiro de 2015

Cota

Escrevo para alguns. Tenho poucas lágrimas, talvez uma para cada um - se não vierem todos juntos.

Lacuna

Lastima que a proximidade da morte não tenha exacerbado sua tristeza nem impregnado enfim de um toque dramático sua literatura.

Ma chère

Quando, depois de testar vários, ela se decidiu por um, o par de brincos escolhido cintilou e lhe sussurrou um agradecimento que ela, sempre apressada, não ouviu.

Vila Santo Estéfano

Quando, já com o doente dentro, a ambulância saiu, o cachorro da casa pôs-se a correr atrás dela. O doente voltou na manhã seguinte. O cachorro, nunca mais.

Cotação do dia (2)

Coisas boas não combinam comigo.

Cotação do dia

Os tolos morrem sorrindo.

Soneto do valor que daremos à nossa história

Talvez um dia pudéssemos
Dar ao amor outro nexo
Além disto, deste sexo,
Se um dia nós dois quiséssemos.

Talvez, se nos isentássemos
De dar e de receber,
E, abrindo mão do prazer,
Mais no espiritual pensássemos,

Pudéssemos transformar
Este caso, tão comum,
Em um caso singular.

De nós dois depende a glória,
Minha querida, da história
Que nós iremos contar.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Soneto da possível lembrança (versão final)

Talvez te lembres de mim
Quando outros forem os dias
E as dores e as alegrias
Tiverem chegado ao fim.

Talvez te lembres de que eu
Te confessei com ardor
Que sempre foi teu amor
A força que me moveu.

Talvez te lembres (não sei
Se por afeto ou bondade)
De tudo que disse a ti

E sintas que te falei
Somente e sempre a verdade
E que jamais te menti.

Haicai

A fruta esmaece
Madura, na boca escura
Da noite, que desce.

Tanca

Que paz, que tranquilo
Momento. Tão pachorrento
Que é sono senti-lo.
Em que é, se em nós não, que a vida
Se olvida, que nos esquece?

Amizade

Nós nos amamos
tudo compartilhamos
dia a dia
e continuaremos nos amando
desde que não
estejamos disputando
um palmo de praia no verão
ou uma vaga na academia.

Pensamento do dia

Mortos, notaremos que a vida não nos fará falta nenhuma.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Soneto da procura (versão final)

Meus olhos e os teus olhos nesta noite escura,
Meus passos e os teus passos nesta trilha incerta,
Juntos irão chorando a mesma desventura,
Irão buscando juntos a morada certa.

Ah, não te vença nunca o drama da procura,
Ah, nunca te amedronte continuar. Desperta,
Que em algum canto existe um ninho de ventura
Onde espera por nós, em flores mil aberta,

Sorrindo, a primavera. Desperta, eu preciso
De ti! Dá-me um abraço, acende-me um sorriso,
Consola meu cansaço, e vamos pela estrada,

E vamos pela noite e pela vida afora,
Pois deve estar nascendo, minha triste amada,
Na distância sombria uma límpida aurora.

Três poemas de Martha Medeiros

"toda mulher tem um homem que se foi
um homem que a deixou por outra
um homem que a deixou por um câncer
um homem que nem mesmo a notou
um homem que a deixou por um ideal
um homem que sumiu num temporal
um homem que não passou de dois drinques
toda mulher tem um homem que se foi
um homem que foi preso em flagrante
um homem que prometeu um brilhante
um homem que saiu pra jogar
toda mulher tem um homem
que esqueceu de voltar."

                                *****

"revendo assim rapidamente
nossa história inacabada
fica um mal-estar
uma coisa meio deprimente
parece que nada aconteceu
de importante
e no entanto foi bom pra nós dois
e antes do depois teve muito durante."

                               *****

"sente minha raiva canibal
te mordo te sinto te como
e como me fazes mal."

(Do livro Poesia reunida, publicado pela L&PM.)

Soneto do teu e do meu caminho (versão final)

Vai, podes ir se crês que em ti morreu
O amor que me comove e me arrebata.
Nem sequer temas que te chame ingrata,
Pois nada levas que não seja teu.

Levas o riso? O riso floresceu
Depois de ti, com força de cascata.
Levas também o sonho? O sonho data
De teu primeiro olhar queimando o meu.

Vai, pois, sem um remorso na consciência
Colher as tuas flores na existência,
Deixando embora minha estrada nua.

Vai, não me fites não, assim condoída.
Levas contigo, eu sei, a minha vida,
Mas minha vida é tua, é toda tua.

Soneto do amor inexistente (versão final)

Não era amor, mas tanto me doía
E tão fundo no peito, e tão urgente,
Que não sei se doeria tão pungente,
Se fosse amor o que eu então sentia.

E tão grande existiu, inexistente,
E tão completamente me possuía
Que eu ainda me pergunto, dia a dia:
O que era, para ser tão insistente?

Não era amor, é certo que não era,
Não era mais que falsa primavera,
Que sinfonia feita de rumor.

Melhor assim. Não tendo sido nada,
Poupa-me a situação indesejada
De lastimar agora um morto amor.

Soneto de como o amor nos trata

Como o amor nos trata bem,
Com sua algema de prata,
Seu soco-inglês, a chibata,
Nos dá o que nos convém.

Tanto ata quanto desata,
Bom repertório ele tem,
Se morde, sopra também,
E se preciso nos mata.

O que há de mais prazenteiro
Que estar em seu cativeiro,
Podem dizer-me vocês?,

Gozando todos os dias
As imensas regalias
Da algema e do soco-inglês.

Um haicai de Martha Medeiros

"milionário
tem o controle acionário
da minha companhia."

(Do livro Poesia reunida, publicado pela L&PM.)

Sinistra

O amor não é cego. Cegos somos nós. Desde o primeiro dia ele nos recusa um abraço completo, oculta sua mão esquerda. Sempre soubemos que é nela que ele tem o punhal.

Soneto da indispensável ousadia (versão final)

Quisera ter a ousadia
De te dizer mais, bem mais
Do que palavras banais
E este surrado bom-dia.

E ao desatar a linguagem
Também o corpo soltar
E sem receio ensejar
Às mãos e aos lábios coragem.

Quisera abraçar, quisera
Depois de tamanha espera
E tanto  me consumir

Livrar-me completamente
De toda amarra e corrente
E a vida afinal fruir.

Soneto do milagroso encontro (versão final)

Observo a brisa as árvores tocando
E penso quantas brisas já terão
Soprado iguais, iguais. E assim pensando
Ponho em mim o arrepio da emoção.

Surpreende-me saber que está soprando
Aquela brisa, aquela mesma, e não
Uma outra em outras árvores cantando,
Em outro tempo, em outra floração.

E atônito, e perplexo, vibra em mim
De nosso amor todo o milagre e encanto,
Toda a estranheza de ele ser assim,

Ser ele próprio, e ter querido, e ter
Sabido nos juntar, havendo tanto
Espaço e tempo para nos perder.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Soneto do desejável esquecimento (versão final)

Pensaram: talvez pudessem
Da antiga crença descrer
E tudo mais esquecer.
Pensaram, mas não esquecem.

E vivem assim: enquanto
Se empenham em deslembrar,
Conseguem só recordar
E reviver todo o encanto.

Talvez prossigam tentando
Negar o amor, procurando
Matar a fúlgida chama.

Irão tentar, se esforçar,
Para no fim confirmar
Que ele ainda, e ela também, ama.

Causa

De que morrerás
se o amor
maior que o meu ciúme
me paralisa as mãos
para a esganadura
para o veneno
para a tortura
para o tiro que te estoure
o sexo infiel?

De que morrerás
se não te fere consciência
se não te golpeia remorso
se não te fulmina
a praga das promessas ultrajadas?

De que morrerás
se não te penetra o gume da madrugada
se a droga não te destrói
nem te corrói o esperma cotidiano?

De que morrerás
se tudo te poupa?

De que morrerás?
De nada?


Se quiserem

Se quiserem saber do amor, não perguntem a mim. Se eu soubesse, chegaria a ele ainda que precisasse andar de joelhos, sob os risos de todos os escárnios e as gargalhadas de todas as zombarias.

Um poema de Han Shan

"Vive o homem a vida numa tigela de poeira
É como bichinhos dentro de um jarro
Todo o dia andando à volta
Nunca sai lá de dentro.
Não nos calha a ventura
Só temos em sorte desgraças
O tampo parece um rio
Que corre. Um dia, acordamos velhos."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Algo tão simples

Você sabe, como eu, que nisso tudo há alguma coisa cuja explicação seria fácil buscar em teorias como retornos, vidas passadas, maquinações do destino. Seria charmoso isso, mas por que não acreditar simplesmente em algo óbvio como o amor?

Pois é

Sou um escritor que não te interessa. Por que te interessaria o homem?

Tarde e noite

A tarde será longa, e toda ocupada pelas insuportáveis lembranças do amor. Depois virá a noite e, quem sabe, se merecermos essa ventura, será mais longa que a tarde.

Soneto dos olhos que em vão se abrem (versão final)

Eu abro os olhos em vão.
Cenários tão desolados
Incitam minha razão
A conservá-los fechados.

Quem dera tê-los lacrados,
Imersos na escuridão,
Se, já do mundo cansados,
Dele não querem visão.

Quem dera mortos estarem
Para nunca mais olharem
Para o que não devem ver.

Que mortos sempre estivessem
Para os que por quem padecem,
Para os que os fazem morrer.

Bonjour, Simone

Não tanto pela filosofia,
mas pela amorosa companhia
eu gostaria de ter sido
aquele jean-paul presunçoso
aquele sartre venturoso
que todo dia
dizia bonjour e bonsoir
a simone de beauvoir.

Sartre e Simone

Quando penso em Simone de Beauvoir,
Penso na Torre Eiffel, penso em Montmartre,
Em como gostaria de ver Sartre
E em como gostaria de o enganar.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Terceira cotação da noite, 22h24

Hora de ir buscando aquele recanto do sono em que o amor nem com seu mais astucioso sonho consiga nos encontrar para nos iludir novamente. Se ele vier, que seja como um mendigo a quem daremos um pão mastigado antes de atiçar os cães contra ele. Como ele sempre fez conosco.

Segunda cotação da noite, 21h53

Pensando em me esgueirar e sair sub-repticiamente do blog. Só tenho um assunto - o amor infeliz - e cada vez que falo dele aqui eu me sinto como quem espalha naftalina numa gaveta na qual outrora havia rosas.

Cotação da noite, 21h42

E, embora bem quiséssemos, o amor ainda não nos matou. Só nos deu menção honrosa.

Quando

Se um dia vierem dizer,
Minha amada, que eu morri,
Que saibas, se isso ocorrer,
Que terá sido por ti.

Causa mortis

Seja o motivo qual for,
Não declaremos cistite,
Nem câncer nem pancreatite.
Morramos todos de amor.

Fé (para o Verissimo)

Não sou pessimista

A espera é grande
mas não sou o último da lista
e me contento
se não com a salvação
pelo menos com o advento
da terceira dentição.

Trecho de Margaret Atwood

"As lesmas comiam tudo e não eram comidas por nada. Não ser atraente tem suas vantagens."

(Do conto "O outro lado", do livro Transtorno moral, tradução de Carlos Ramires, publicado pela Rocco.)

Soneto de quando o amor convém

O amor talvez nos conviesse
Se em vez de vir, como vem,
Sem que o procure ninguém,
Jamais inquietar-nos viesse.

Ou se, vindo, nos trouxesse
Todo aquele imenso bem
Que para oferecer tem
Quando agradar lhe apetece.

A mim ele veio, terno,
E proclamando-se eterno
Me abandonou no outro dia.

Morto talvez me encontrasse
Se eu acaso suspeitasse
Que ele assim me trataria.

Protagonista

Em toda peça, grande ou pequena,
Para ele são o roteiro
E os atos, desde o primeiro.
Somente o amor vale a cena.

Notícia

Nota da Associated Press
Acaba de divulgar
Que o monstro do lago Ness
Acaba de se afogar.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A façanha

Sabe-se capaz de trazer para baixo ao menos uma estrela menor, quando isso lhe for exigido pela amada. Vai aos poucos detalhando os planos. A primeira parte ele já sabe qual é: conseguir a amada que lhe cobrará a estrela.

Os três requisitos

Assim como os poemas de Byron e a convicção de que todas as mulheres eram virgens, a tuberculose era essencial na formação dos poetas românticos. Não tê-la era uma desgraça tão grande quanto era, para os parnasianos, não dispor de um cinzel.

O que é

Pode correto não ser,
Nem comovente ou sublime,
Contudo de amor morrer
Também jamais será crime.

Horas noturnas

No casarão bissecular, há muito abandonado, depois da meia-noite há passos furtivos, aproximações silenciosas, suspiros abafados, camas vazias que rangem metodicamente até os primeiros sinais de sol. São os fantasmas dos antigos amores.

RIP

O amor morreu. E daí?
Tudo está bem assim,
Tão mais florido o jardim,
Hoje que o amor dorme aqui.

Modo

Dizem que erramos com o amor,
Por desse modo adorá-lo,
Mas, se ele é o nosso senhor,
Como devemos tratá-lo?

Linha reta

Seja no aspecto que for,
Mínimas são as mudanças.
Ontem fui servo do amor,
Hoje, de suas lembranças.

sábado, 24 de janeiro de 2015

A causa

Não é por manhas de rima
Que às vezes as partes úmidas
Se entretêm com as partes túmidas.
É mais por questão de estima.

Há muito

Há muito já não o esperam
Sequer com um mínimo de ânsia,
Já nem sequer o toleram
Na casa de tolerância.

Talvez

Talvez um dia tu sintas
Amor como o que te dou,
Imenso e verdadeiro. Ou
Talvez um dia tu mintas.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Soneto das sete pragas do amor (versão final)

Entre os malditos maldito,
Te assolarão as mazelas,
As sete pragas do Egito
E outras tantas, piores que elas.

Gozaste a bênção do amor,
O mais completo e divino,
E tiveste o despudor
De declará-lo mofino.

Por esse descaramento
De zombar de um sentimento
Mais nobre que as religiões,

Tu verás a tua vida
Pouco a pouco destruída
Por pestes e maldições.

Sexta, 23/1

Enquanto fôlego temos
E ao menos ainda um pulmão,
A dádiva aproveitemos:
Dias piores virão.

"Na mata", de Gérard de Nerval

"Na primavera, eis que a ave canta:
Nasceu, e logo a voz lhe ouviste?...
Pura, tão simples, algo triste
Sua voz, na mata, nos encanta!

Já no verão, a ave quer par;
É amor, e amor de passarinho:
Uma só vez, e como o ninho
É doce, fiel, na mata - e no ar!

Depois, se vem o outono e a bruma,
Calar, pois vem o frio que mata.
Ah, quão feliz então, na mata,
É a morte da ave, que se esfuma!"

(De Cinquenta poemas, tradução de Mauro Gama, publicado pelo Ateliê Editorial.)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Quem

Quem há de nos aceitar,
Quem há de dar-nos espaço,
Depois que o amor nos chupar
E só deixar o bagaço?

Castidade

Devo de ti ficar longe,
Todo o tempo, a vida inteira,
Como se fosse eu um monge
E tu fosses uma freira?

Quintal

Nada mais me salvará.
Hoje sei que apenas sou
Um monte de folhas ou
De lixo à espera de pá.

Tal

Tal como as águas correntes
São hoje apenas lembradas,
As perdas estão presentes
E as glórias todas passadas.

Cotação do dia

Me enfada tanto viver
Que sentirei me privar
De no caixão me olhar
E rir por morto me ver.

"Uma alameda do Luxemburgo", de Gérard de Nerval

"Ela passou, a rapariga
Tal como um pássaro. Na mão,
Leva uma flor, luzente amiga;
Na boca, o mais novo refrão.

Talvez só ela, nesse mundo,
A meu fervor responderia,
E a minha noite, a tocar fundo,
Com um só olhar aclararia!

Que nada... Foi-se a juventude.
Adeus, clarão que me luziu.
Ó rapariga, ó plenitude...
Era a ventura - já fugiu!"

(De Cinquenta poemas, tradução de Mauro Gama, publicado pelo Ateliê Editorial.)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Paz

O coração finalmente
Está agora apaziguado.
Morreu ontem, de repente,
E foi hoje sepultado.

Votos

Amor, que o mijo te regue,
Que as estações te maltratem,
Que as pragas todas te matem
E que o diabo te carregue.

Talião

Com o que nos oferta o amor
Havemos de ser coerentes.
Tenhamos raiva, rancor,
Arreganhemos os dentes.

Obra

Quisemos tanto, nos demos
Em vão. Em nossos arquivos
Estão os exemplos vivos
De tudo que não fizemos.

Quem? O Raul?

Procuro aqui, acolá,
Dia a dia, sempre, assim.
Nem aqui nem ali há
Ninguém que saiba de mim.

Cotação do dia

O Amor lhes prometeu mil e uma venturas, e eles o seguiram, sob o sol. No décimo dia, já quase mortos de sede, suplicaram-lhe que adiantasse ao menos uma ventura: a da água. O Amor imediatamente os conduziu a um rio tomado por jacarés: "Água? Dividam-na com eles."

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Machadiana

Bentinho, onde já se viu,
Com aquela cara de missa,
Se Capitu não traiu
Foi uma grande injustiça.

Glória

Quer vocês creiam, quer não,
Meus versos fama tiveram
E várias vezes fizeram
Rilke virar no caixão.

Do amor

Do amor agora o que temos
É o barco desmantelado,
O norte já desnorteado
E dois fantasmas nos remos.

"Nos sonhos", de Wislawa Szymborska

"Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente
e não só com os vivos.

Dirijo um carro
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.

Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço mansa na relva.

Respiro sem problema
debaixo d'água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.

Sou mas não tenho que ser
filha da minha época.

Faz alguns anos
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim.
Com toda a clareza."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)



segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

"Amor à primeira vista", de Wislawa Szymborska (para Mariana)

"Ambos estão certos
de que uma paixão súbita os uniu.
É bela essa certeza,
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes
nunca havia se passado nada entre eles.
Mas e as ruas, escadas, corredores
nos quais há muito talvez tenham se cruzado?

Queria lhes perguntar,
se não se lembram -
numa porta giratória talvez
algum dia face a face?
um 'desculpe' em meio à multidão?
uma voz que diz que 'é engano' ao telefone?
- mas conheço a resposta.
Não, não se lembram.

Muito os espantaria saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado
para se transformar no seu destino
juntava-os e os separava
barrava-lhes o caminho
e abafando o riso
sumia de cena.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Quem sabe três anos atrás
ou terça-feira passada
uma certa folhinha voou
de um ombro ao outro?
Algo foi perdido e recolhido.
Quem sabe se não foi uma bola
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas
onde a seu tempo
um toque se sobrepunha ao outro.
As malas lado a lado no bagageiro.
Quem sabe numa noite o mesmo sonho
que logo ao despertar se esvaneceu.

Porque afinal cada começo
é só continuação
e o livro dos eventos
está sempre aberto no meio."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

Identidade

Não sei por que eu sou assim,
Podendo tantos outros ser.
Se você quiser saber,
Pergunte, mas não a mim.

Futuro

Amor não quero jamais.
No máximo um sentimento
Tranquilo e tão modorrento
Quanto os afetos normais.

Tua poesia

Não incomodas os vivos
com tua poesia

Eles a acham boa
e te fazem elogios

Os mortos no seu sono
não podem te escutar

Mas se passares
diante de certos túmulos

O melhor que fazes
é te calar.

Soneto do cão cujo dono é o amor

O amor é o dono de nós.
Vivemos para servi-lo,
Para atendê-lo e acudi-lo
Quando nos chama sua voz.

Do amor nós somos o cão,
Ele nos traz na coleira,
Nos coloca a focinheira,
Nos dá ou nega a ração.

Que sorte termos assim
Alguém para nos cuidar
Desde o início até o fim.

Podemos, quando morrermos,
Com a nossa cova contar
No lugar que merecermos.

Fatia

São trinta cães, ou cinquenta.
O amor sente compaixão
E atira, com sua mão lenta,
Uma fatia de pão.

Conduta

O que me convém fazer
É nada saber de ti,
Para quando te perder
Não saber o que perdi.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Soneto da leveza do amor (versão final)

Que o amor nos possa ser leve
Como a sombra de uma pluma
E mais tênue ainda e mais breve
Do que um borbulhar de espuma.

Que ele a modéstia assuma
E sendo simples qual deve
Nunca a jactância nenhuma
Nem à soberba nos leve.

Que, viva quanto viver,
Viva o necessário só,
E, no dia em que morrer

E se transformar em pó,
Que ele tenha em nós cumprido
O que do amor é exigido.

Perenidade

O que foi feito
dos nossos feitos?

Pareciam perfeitos
para a posteridade
sólidos monumentos
destinados ao eterno
e mofam hoje
numa gaveta
num caderno
comido já
pelo esquecimento
e pela umidade.

Questão de estilo

Talvez, no que eu tenho escrito,
Eu possa o mesmo ter feito
Que por Shakespeare foi dito.
Pena que foi com meu jeito.

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje, falo de minha São Paulo, júbilo e tormento, mãe e puta, êxtase e degradação.

A pergunta

No dia em que viria a matar-se, logo no café da manhã ele ouviu novamente as censuras do pai e a pergunta de sempre: o que pretendia fazer da vida?

Wislawiana (2)

Vamos escrever por quê,
Se o livro fica na estante
E você, passando adiante,
Não o pega e não o lê?

Wislawiana

Alguns gostam de poesia.
Aos outros, à multidão,
Poemas causam aversão,
Como um escarro na pia.

Alívio

Quando a vida se torna insuportável, sempre penso que gostaria de ter sido William Shakespeare - não pela imortalidade, mas pelo alívio de já estar morto.

Para quem

Escrevo, escrevo. Quem lê?
Lê Marta, lê Ana Lessa,
Lê Lia, o que me interessa?
Escrevo para você.

Cotação do dia

De tudo, apenas ficou
Aquilo de que me lembro
E faz de mim o que sou:
Certa manhã de dezembro
E três outras que relembro.
O resto o tempo levou.

Missão

Não abrir o suplemento de hoje, que conta a história do Estadão. Não ler, não dar chance ao belo nem ao imortal. Não chorar.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Leitmotiv

Só sei falar do amor. Cada
Verso sempre dele fala
E sobre o restante cala.
Nada mais me importa nada.

Soneto dos derradeiros dias

Como escorrem modorrentos
Agora todos os dias,
Os meus últimos momentos
De existência e de agonias.

Morreram meus sentimentos,
Findaram as alegrias,
Ficaram só os tormentos
E as frias melancolias.

Hoje o que eu anseio, apenas,
São as derradeiras cenas.
Por que elas demoram tanto?

Não sendo protagonista,
Espero, medíocre artista,
Isolado no meu canto.

Passado

Logo os poemas começaram a feder na gaveta. Rosas falsas, frutas podres, vermes mexendo-se preguiçosamente entre as sílabas.

Compaixão

Na segunda noite, quando começou a chover mais forte, um menino pegou na gaveta um casaco velho e foi estendê-lo na caçamba, sobre o gato morto.

Soneto do ursinho branco

Vim contar-lhes um segredo
Que contar só pretendia
Na minha autobiografia:
Eu fui do amor um brinquedo.

Eu era um ursinho ledo
Em cujo pelo luzia
A neve mais luzidia
E um fulgor de manhã-cedo.

Minha dona me adorava
E no colo me aninhava
Nas noites de tempestade.

Dito assim, ficção parece,
Mas minha alma não se esquece.
Foi verdade, ah, foi verdade!

Adverbial

Amo tudo aquilo que és.
Tua alma, principalmente,
E o corpo, naturalmente,
Da cabeça até os pés.

Soneto do bufão morto

Quando eu morrer, perderás
Com a morte do teu bufão
Tua maior diversão:
Tolo igual não acharás.

Talvez, até, sentirás
Ao contemplar meu caixão
Quão mal me tratas, e então,
Quem sabe, até chorarás.

Será, porém, um instante,
Um minuto só, não mais,
E tu seguirás adiante.

Haverá sempre cruzeiros
Intensos, sensacionais,
Com aqueles teus marinheiros.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Falando português claro

Pena Augusto dos Anjos estar morto. Ele teria coragem de dizer que o amor é uma sarna. Pena Plínio Marcos não estar vivo. Ele não teria medo de dizer que o amor é um tremendo filho de uma puta esburacada.

Ele, ela, querela

Enquanto ele a censura, ela
Diz que é dele toda a culpa.
Nenhum dos dois se desculpa,
Enquanto o amor se esfarela.

Cotação do dia (2)

Tudo na mesma: infrutiferamente apaixonado - o que quer dizer insuportavelmente vivo.

SP, 11h20

Com este calor, até a preguiça exige certo heroísmo.

Cotação do dia

Serei sempre um menino trocando a alma por um sorriso. Um bom negócio.

Estilo

Não há nenhuma calamidade que um bom texto não possa piorar.

Estratégia

Fui ao enterro do teu gato, em 2010. Imaginei que isso pudesse valer-me, um dia. O amor zomba das premeditações.

Soneto da virgem lamentosa

Nem eu me tolero mais.
Pareço uma rapariga
De uma época bem antiga
Clamando ao céu com meus ais.

Recriminam-me os meus pais,
Dá-me conselho uma amiga,
Porém não há quem consiga
Ditar-me rumos normais.

Só choro e ameaço matar-me
Se não vier logo buscar-me
Meu noivo muito adorado.

E enquanto o retorno espero
Em sonetos eu me esmero
Como este, destrambelhado.

Cinco versos de Giorgos Seféris

"O amor tem sede de lágrimas e as busca
imagem de nossa alma, as rosas curvam-se
nas folhas se ouve o palpitar do mundo
como um caminhante, acerca-se o crepúsculo
depois a noite e, depois da noite, o túmulo."

(De "A cisterna", extraído do livro Poemas de Giorgos Seféris, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Nova Alexandria.)

Rito

Se para o amor vais atuar
E aspiras à perfeição,
Lembra-te de colocar
A máscara de bufão.

Soneto do que o amor nos ensina

O amor nos dá a lição
De que nada do que existe
Dura, perdura ou persiste
E querer o eterno é vão.

Vem como o verão, glorioso,
Arde freneticamente,
Mas esfria de repente
E vem o outono brumoso.

Como um generoso autor,
Promete-nos esplendor
Em todos os seus enredos.

No início ele nos dá tudo,
Na parte final, contudo,
Nos furta os anéis e os dedos.

A surpresa

E era em tâmaras, e era em pêssegos, e era em sutis olores que o estudante, embriagado de paixão e de poesia, pensava naquela noite, ao entrar pelos fundos da casa e observar que a amada havia outra vez deixado acesa a luz do quarto onde ele se daria todo a ela, se um revólver não cuspisse sobre seu rosto o fogo e a cólera do marido ultrajado.

O velho e o marinheiro

Não consinta em mudar,
Deixe assim como está.
O que o velho quer dar
O moço já lhe dá.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

MQ

Que passarinho sapeca era o Mario Quintana. Depois que perdeu o medo de gente, então...

Onde se encontra o amor

Esperas amor de quem?
Se o amor existe, é aqui,
Não acolá nem ali,
Só em ti, e em mais ninguém.

Somente o poderá ter
Quem ao próprio âmago for,
Porque nada mais é o amor
Que um atributo do ser.

Se

Se ainda em mim existe vida
Depois de tanta tortura,
É esta fraca, moritura,
Casca pelo amor cuspida.

Tarefa

Sinto um cansaço profundo,
Enorme, imenso, sem fim.
Me cabe ir até o mundo,
Se o mundo não vem a mim.

Soneto das mentiras desmascaradas

Agora já não me importa
Saber se a sua gatinha,
Aquela meiga e cinzinha,
Está viva ou está morta.

E aquela sua cachorra
Tão boba e tão adoentada
Já não me interessa nada.
E a papagaia? Que morra.

Aquilo tudo que é seu
Em mim há muito morreu
E você sabe por quê.

Sabe também que menti
Em tudo que disse aqui.
Se vivo, ainda, é por você.

Soneto do amor ingrato

Cedemos à tentação
E quando o toque escutamos
Logo nos alvoroçamos,
Fomos abrir o portão.

Era o amor, como pensamos,
E com que satisfação
Lhe ofertamos nosso pão
E vinho providenciamos.

Ele o nosso pão comeu,
O vinho todo bebeu
E rogando-nos mil pragas

Chamando-nos de mesquinhos,
Retomou os seus caminhos,
Foi reinar em outras plagas.

Álibi

Você me dirá, eu sei,
Estou até prevenido,
Que foi um mal-entendido,
E eu, claro, acreditarei.

Eu

Sim, sou aquele cretino
Que num soneto horroroso
Chamou o amor de divino.
Sim, sou aquele leproso.

Tão pouco

O que lhe custa, querida?
Não estou pedindo aquilo,
Só me empreste o seu mamilo
Para uma casta lambida.

"Discurso na seção de achados e perdidos", de Wislawa Szymborska

"Perdi algumas deusas no caminho do sul ao norte,
e também muitos deuses no caminho do oriente ao ocidente.
Extinguiram-se para sempre umas estrelas, abra-se o céu.
Uma ilha, depois outra, mergulhou no mar.
Nem sei direito onde deixei minhas garras,
quem veste meu traje de pelo, quem habita minha casca.
Morreram meus irmãos quando rastejei para a terra,
e somente certo ossinho celebra em mim este aniversário.
Eu saía da minha pele, desbaratava vértebras e pernas,
perdia a cabeça muitas e muitas vezes.
Faz muito que fechei meu terceiro olho para isso tudo,
Lavei as barbatanas, encolhi os galhos.

Dividiu-se, desapareceu, aos quatro ventos se espalhou.
Surpreende-me quão pouco de mim ficou:
uma pessoa singular, na espécie humana de passagem,
que ainda ontem perdeu somente a sombrinha no trem."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

Soneto dos inolvidáveis suplícios

Em mim o amor encontrou
O tolo que procurava
E, quando fui ver, já estava
Escravo como ainda estou.

Quando ele me subjugou,
Eu tão carente me achava
Que tudo nele adorava,
Até o que me magoou.

Lembro-me dos seus suplícios,
Que se tornaram meus vícios
E minha única alegria.

Se ele quisesse voltar
Para mais me castigar,
Juro que eu o aceitaria.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Soneto do que me faltou ser

O que me faltou, eu sei
Agora, feito o resumo,
Foi ter tomado outro rumo,
Porém eu jamais ousei.

Sofri tudo que sofri
Julgando que era normal
E, mais, até essencial
Tudo que vinha de ti.

Me faltou orgulho ter
Para diferente ser
Daquele que tu me achavas.

Me faltou te confrontar
E, talvez, te chicotear
Como tu me chicoteavas.

Está escrito

Adão que se mete com Eva
No inferno logo se afunda.
Um dia na bunda leva
E no outro leva na bunda.

Ainda que tardia

Custamos muito a notar
E notamos, todavia,
Que o melhor que em Sartre havia
Foi Simone de Beauvoir.

Soneto das múltiplas faces do amor

O amor é um tipo faceiro
Que para nos encantar
Jamais há de precisar
De fama nem de dinheiro.

O amor é um tipo velhaco
Que para nos seduzir
Faz de tudo, até fingir
Que é desprotegido e fraco.

Com aquela cara de trouxa,
Se a nossa atenção afrouxa
Ele logo nos engana.

Mesmo sendo assim infame,
Haverá sempre quem o ame.
O amor é um puta sacana.

Original

Eu vi. O cara pintou o arco-íris e depois pulou lá de cima.

Astúcia

Mesmo de olhos vendados, guardei o caminho que leva ao cativeiro do amor. Quando ele menos esperar, estarei batendo à sua porta.

Cotação do dia (2)

Como nos acham ridículos os que nos ouvem bater, com a baba escorrendo pelo queixo, ainda na tecla do amor. Como nos achamos ridículos, nós. E como continuamos, apesar da dor na mão e do teclado escorregadio.

Cotação do dia

Um desejo de reduzir, de suprimir, de simplificar. Transformar o fim da vida em algo como um haicai, ainda que feito pelo mais bisonho discípulo do mais obscuro dos mestres.

Um trecho de J.M. Coetzee

"Leva um livro de poesia no bolso, às vezes Hölderlin, às vezes Rilke, às vezes Vallejo. No trem tira ostensivamente do bolso o livro e se absorve nele. É um teste. Só uma garota excepcional apreciaria o que está lendo e reconheceria nele um espírito excepcional também. Mas nenhuma garota nos trens presta atenção nele. Isso parece ser uma das primeiras coisas que as garotas aprendem quando chegam à Inglaterra: não prestar atenção nos sinais dos homens."

(Do romance Juventude, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Companhia das Letras.)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Nomes

Quando sentiu estar vivendo seus últimos dias, pegava uma lista de nomes de mulher e passava todas as horas em que estava consciente dizendo Alessandra, Aline, Amanda, Antônia, Bárbara, Beatriz, Camila, Cássia, Cecília, Dalva, Dulce, Efigênia, Esmeralda, Fátima, Gisele, Heloísa e os outros quinhentos que havia anotado em ordem alfabética, para que, ao entrar nos estertores da morte, pronunciasse qualquer um, menos o da Priscylla por quem morria.

Cotação do dia

Entendo agora por que o amor me deixa respirar. Respiro só por ele.

Boca no mundo

Se você estiver apaixonado, não se limite a dizer. Grite, berre, até que caiam todas as lâmpadas dos postes, todos os frutos das árvores e todos os pássaros do céu.

Talvez

Ter ouvido Chopin, ter visto as telas de Frida e ter lido Mariana Ianelli são coisas a levar em conta. Por essas pequenas epifanias, como bem definiu Caio Fernando Abreu, talvez, como dizem, a vida afinal valha a pena.

Soneto para Frida (versão final)

O que me alenta me dói,
Me fere o que me sustenta,
O que me nutre me rói,
Me mata o que me alimenta.

Reclusa, quieta em meu canto,
Viajo minhas tantas viagens
E é do meu riso e meu pranto
Que vivem minhas paisagens.

Eu sou inteira e fração,
Imensidão dividida,
Um rio manso, um vulcão.

Sou morte, paixão, sou vida,
Sou sim, sou talvez, sou não,
Sou eu, sou todas, sou Frida.

Porta

Batemos à Sua porta
E clamamos, dia a dia,
Mas ele nunca se importa.
E por que se importaria?

Risíveis dramas

Os dramas, quando não se consumam, transformam-se em torpes comédias. Tal qual o suicida que, errando o nó na corda, fica chutando o ar como se pedalasse uma bicicleta e gritando socorro com sua garganta imerecidamente salva.

Manual

Um dia, quando soubermos
Com as manhas do amor lidar,
Talvez possamos amar,
Se nós dois ainda o tivermos.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Palimpsestos em pintura não são raros, como tem revelado a tecnologia avançada no trabalho de pesquisa de restauradores, que já desvendaram pela técnica de raios-X pinturas inteiras debaixo de quadros de Edvard Munch, Jean-Baptiste Camille Corot, Hieronymus Bosch. Casos assim podem dizer muito sobre uma obra desde o seu primeiro esboço, sobre os caminhos incertos e mutáveis de um processo de criação. Dizem também mais do que isso, mais do que propõem as especulações no campo da ciência e da teoria da arte. Palimpsestos falam de histórias recônditas, de um rosto debaixo de outro rosto, de uma página sobreposta a outra, tudo aquilo que existe subterraneamente e sobrevive, como a própria essência do pensamento, mantido em zona de penumbra, gravado porém com letras de fogo, guardando-se para o momento certo de ser revelado. Segredos da vida por trás da arte."

(Da crônica "Palimpsestos", do livro Breves anotações sobre um tigre, edições ardotempo.)

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Bicampeão

Morreu aos sessenta e dois
mas antes
aos quarenta e dois
foi eleito rei  momo
e outra vez
aos quarenta e três

Aos quarenta e quatro
teve um enfarto
e depois disso
ninguém sabe bem
o que ele fez
se fez.

Presunção

Em certos escritores nota-se alguma pompa quando proclamam: não tenho mais nada a dizer. Soa não como uma declaração de que estão travados, mas como se o mundo já não tivesse nada que achem digno de exprimir.

Soneto do que o amor nos exigiu

Fizemos o que pudemos,
Conforme o amor nos ditou.
O que ele exigiu nós demos,
E até o que nem cobrou.

O que ele ordenou dissemos,
E foi tanto o que ordenou!
O que ele exigiu fizemos,
Nada do que quis faltou.

Porém foi pouco, talvez,
Porque ofendido se fez
Como um mendigo turrão

Que tendo carne pedido
Houvesse só recebido
Alguns farelos de pão.

Um poema de Li Bai

"Nas Escadas de Jade cresce
Ainda o branco orvalho,
O frio que toda a noite
Encharcou umas meias de seda.

Ela desce
A persiana de cristal
E contempla a Lua
Envidraçada - do Outono."

(Do livro Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

Sucesso

Tudo mudou nestes anos.
Pobres poetas condoreiros,
Tristes vates parnasianos,
O mundo é dos sanfoneiros.

Soneto da mulher e do punhal

A cada instante, querida,
Em que a me ver tu te negas,
Mais uma tábua tu pregas
No caixão da minha vida.

E em cada noite indormida
Eu colho quadrinhas bregas
Ou então sonetos piegas
De construção descabida.

Por que, ó mulher fatal,
Não cravas logo o punhal,
Por que, por Deus, não me matas?

Tu pouparias assim
Aos meus leitores e a mim
Ouros baços como latas.

Limites

Quando se trata do amor,
É tudo sempre maior.
Dele se espera o que for,
Para o melhor ou o pior.

Crítico

Quem me diz que provoco só emoções vulgares, como a do amor, são geralmente aqueles que conhecem diariamente a cotação do euro e do dólar e saberiam usar um monóculo, se o tivessem.

Assim

Observem que traste estou.
Ouço pouco e pouco enxergo,
A qualquer brisa me vergo,
Assim o amor me moldou.

Um poema de Giorgos Seféris

"Três anos
ali parados, esperamos o mensageiro,
a perscrutar bem de perto
os pinheiros a praia e as estrelas.
Confundindo-nos à relha do arado ou à carena do barco
buscávamos encontrar de novo a semente primeira
para recomeçar o antiquíssimo drama.

Voltamos para nossas casas alquebrados,
braços e pernas enfraquecidos, boca requeimada
pelo gosto de ferrugem, de salsugem.
Ao despertar, viajamos para o norte, forasteiros
afundados na névoa das asas imaculadas de alvos cisnes que nos feriam.
Nas noites de inverno, endoidecia-nos o vento cortante de leste
e no verão nos perdíamos na agonia do dia que não sabia morrer.

Levávamos atrás
estes baixos-relevos de uma arte humilde."

(Do livro Poemas de Giorgos Seféris, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Nova Alexandria.)

Ronda

Hora de dormir. Dizem que o sorrateiro amor faz sua ronda por aí. Não custa ajudá-lo. Apaguemos a luz e esqueçamos de fechar a janela.

Única

Escrevo para ti, a única. Por um desses mistérios da vida, saberás que são para ti estas palavras, e saberei que as lerás, talvez agora mesmo, embora jamais venhas a responder.

Uma

Escrever é uma dessas coisas em que ainda podemos ser honestos, desde que consultemos apenas o coração.

Imunidade

Uma das coisas que mais gosto de dizer quando não há ninguém ouvindo é: esse Murakami é ruim pra cacete. O que ele ensinou em Princeton terá sido, por acaso, compostagem?

Para leres às seis da matina

Alguns me perguntam se o nome dela  é Priscylla Mariuszka Moskevitch. É.

Uma estrofe de Giorgos Seféris

"Diziam-nos que venceríamos quando nos submetêssemos.
Submetemo-nos e encontramos a cinza.
Diziam-nos que venceríamos quando amássemos.
Amamos e encontramos a cinza.
Diziam-nos que venceríamos quando renunciássemos à nossa vida.
Renunciamos e encontramos a cinza."

(Do poema "Homem", extraído do livro Poemas de Giorgos Seféris, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Nova Alexandria.)

domingo, 11 de janeiro de 2015

Revisão

Não escrevo mais para a posteridade. Desisti. Ela demora muito para responder.

Se é

Alguns me perguntam se o nome dela é Priscylla Mariuszka Moskevitch. É.

Cotação da noite

Mais uma vez não saímos para o dia. O sol deu uma passadinha, nos chamou, mas ficamos no sofá, com as lembranças. Eram tantas que chegou a noite, e nem sabemos por qual delas foi que choramos mais.

Soneto da avareza do amor

Vocês têm muito pudor
E talvez isso não contem,
Porém bem sabem que o amor
Será sempre melhor ontem.

Para nos atormentar,
Ele mantém o cuidado
De sempre menos nos dar
A cada dia passado.

No dia em que o conhecemos,
Só nesse é que recebemos
Inteira sua alegria.

Convém então desfrutá-lo,
Pois nunca iremos achá-lo
Como no primeiro dia.

Cotação do dia

Estar morrendo por um ideal do qual jamais cheguei perto, cujo rosto vi meia dúzia de vezes e que, pelo que me lembre, jamais sequer me sorriu.

sábado, 10 de janeiro de 2015

O motivo

Se o teu umbigo eu beijasse,
Querida, jamais seria
Para que em ti praticasse
O dom da onfalomancia.

Sábados

Que seria dos sábados, se o amor não tivesse marcado tantos deles com seu batom e suas lágrimas?

O reencontro

Não falaríamos do passado, de méis e punhais. Não falaríamos do futuro. O futuro, para nós, se existiu, foi no passado. Hoje não teria mais sentido. Eu sou um homem que a terra já há muito reclama. Nos diríamos duas ou três coisas, como oi, bom te ver, suco ou café, e aproveitaríamos o tempo para sorrir, como duas pessoas que, nada mais tendo a querer uma da outra, podem dar-se ao exercício de sorrir por sorrir. Cinco minutos bastariam para o oi, bom te ver, para os sorrisos e para o suco ou o café.

Um, dois

O que é um dia ou são dois?
Do amor é essa a saciedade:
Um dia, dois, e depois
A vazia eternidade.

Funeral do amor

Precisaria haver um violino, mas que soasse mais agudo que dez, mais pungente que mil, e chorasse em cada nota como a estrangulada alma de um passarinho.

Um trecho de Mariana Ianelli

"O que a vida afastou uma biblioteca reconcilia, de modo que Sartre pode agora dividir pacificamente o espaço de alguns centímetros com Merleau-Ponty e Camus, García Márquez pode topar com Vargas Llosa, e Saramago ter Lobo Antunes como um bom vizinho. Aqueles que a vida uniu de repente se desligam e vão morar a muitos livros de distância. Hannah Arendt na ala norte, Heidegger na ala oeste, Henry Miller três andares acima de Anaïs Nin. E há os duetos tanto na vida como numa biblioteca, Goethe e Schiller, Claudel e Gide, Faulkner e Steinbeck, Sophia de Mello Andresen e Jorge de Sena. São tantas as as combinações e tão intimamente divertido jogar com elas que pode acontecer de I-Juca Pirama acabar aconchegado entre a Ilíada e a Eneida. Ou então, num canto da estante, lugar ideal para um ninho de fênix, podem se encontrar Alejandra Pizarnik, Sylvia Plath e Anne Sexton. Também não falta a ironia da sorte, que, por uma emergencial economia de espaço, põe lado a lado Ezra Pound e Brecht."

(Da crônica "Sete mil vidas", extraída do livro Breves anotações sobre um tigre, edições ardotempo.)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Amor - sinopse

Amor amado,
Amor querido,
O teu legado
Será medido.

Terás magoado,
Terás doído?
Serás louvado,
Terás valido?

Serás cantado,
Reconhecido,
Ou desprezado
E desmentido?

Serás honrado,
Serás traído,
Serás lembrado
Ou esquecido?

Resquícios

Depois que foste, assumi
Hábitos reminiscentes.
Hoje de manhã lambi
A tua escova de dentes.

Ciúme

Ciúme daquele pardal,
Ave insolente e daninha,
Saltitando no varal,
Bicando tua calcinha.

Soneto do que se prometeu

Desculpe, minha querida,
Mas eu vou decepcioná-la.
Eu lhe prometi a vida,
Mas já não quero mais dá-la.

Jamais, querida, a traí,
Lhe digo com convicção,
Mas você, pelo que ouvi,
Não pode dizer que não.

De nós, a vida quem deu
Foi você, minha adorada,
Mas não a quem prometeu.

Você a deu a mais de um,
E a alguns em dose dobrada,
Mas nenhum era o Raul.

"Depois da chuva", de Eugenio Montale

"Sobre a areia molhada surgem ideogramas
de pés de galinha. Olho para trás
mas não vejo santuário nem asilo de aves.
Terá passado talvez um ganso cansado, ou talvez manco.
Não saberia decifrar aquela linguagem
ainda que fosse chinês. Uma simples aragem
a apagará. Não é verdade
que a Natureza seja muda. Fala ao deus-dará
e a única esperança é que não se ocupe
muito da gente."

(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

Cotação da madrugada

Ele acredita que do outro lado da cidade alguém o ouvirá, se ele gritar a senha: amor. E ele grita, com a certeza inabalável dos insanos.

Ninharias

Amores são tão comuns.
Chegam tão doces, tão ternos,
Nos juram que são eternos,
Logo são nada, nenhuns.

Dois

Acredito haver dois homens, no mundo, capazes de ouvir e de entender estrelas. Um deles é certamente um poeta. O outro, um surdo imaginativo.

Só disso

Não preciso
de muito
não

Algumas palavras
algumas apenas
e a certeza plena
ou ao menos
alguma
certeza
de que as dizes
com o coração.

Oito versos de Giorgos Seféris

"Mulher que na minha alma te hospedas
tua surpresa é o que me resta
formosa mulher amada, nesta
tarde que absurdamente definha,

e os teus olhos de círculos negros
e a noite e seu calafrio ligeiro...
Quimera, espada do meu silêncio,
curva-te e entra outra vez na bainha."

(Do poema "Comentários", extraído do livro Poemas, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Nova Alexandria.)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Cotação da noite

A Giorgos Seféris, quando longe dela, doía-lhe a Grécia. A mim, desterrado dele, dói-me o amor, muito maior do que a Grécia e o mundo.

Soneto do que eu daria pelo amor

Agora, que aqui estou
Vivendo os últimos dias,
Lembro aquelas alegrias
Que você me propiciou.

E apalpo minhas mãos frias
Que um dia você pegou
E com carinho apertou
Nas suas, mornas e esguias.

Quem dera eu sentir pudesse
De novo aquele calor
Cuja lembrança enternece.

Por ele, minha querida,
Daria seja o que for:
A alma, o coração, a vida.

Soneto de como eu douro meu passado

Eu vivo para lembrar.
Tudo é para mim passado,
O novo não tem lugar,
O futuro está vedado.

Me resta agora ficar
Em meu sofá ancorado
E as recordações puxar
Entre dormindo e acordado.

Às vezes nesse exercício
Eu exagero no vício
De tudo meu exaltar.

É uma forma interessante
De tornar menos frustrante
O jogo de recordar.

Ontem

Nas pastas do meu arquivo,
Dos versos que eu escrevi
Para dedicar a ti
Só o vírus ainda está vivo.

Capacidade

Olhe, você é quem sabe
Se ele tem lugar no seu,
Sei que no coração meu
O amor certamente cabe.

Soneto dos conselhos que nos dão

Aos olhos dos detratores,
Os sentimentos são fúteis,
As emoções são inúteis
E tolos são os amores.

Para eles, o homem não deve
Prender-se nunca à paixão
E jamais no coração
Deve haver mais do que neve.

Eu, simples que sou, não sei,
E, creio, não saberei
Se estão certos ou errados.

O amor cruel, que me maltrata,
Que me fere e que me mata,
É o melhor fado dos fados.

Cotação do dia

Nos últimos meses de vida, sua misantropia o fez pedir que aumentassem o volume da campainha. Passava os dias sentado no sofá, e só se mexia para anotar quantas vezes ela tocava, quantos seres indesejáveis ele mantinha do lado de fora, como deveria ter feito durante a vida toda.

Trecho de uma carta de Joyce para Nora

"Trepe comigo, querida, de todas as novas maneiras que a tua luxúria te sugerir. Trepe comigo vestida com o teu traje de passeio completo com o chapéu e o véu, o teu rosto corado do frio e do vento e da chuva e as tuas botas enlameadas, ou montada nas minhas pernas quando eu estiver sentado numa cadeira e subindo e descendo sobre mim com os babados das tuas calças aparecendo e o meu pau duro para cima na tua boceta ou me cavalgando sobre o encosto do sofá. Trepe comigo nua apenas com o teu chapéu e as tuas meias nós deitados no chão com uma flor carmesim no teu buraquinho de trás, cavalgando-me como um homem com as tuas coxas entre as minhas e a tua bunda gorducha."

(Do livro Cartas a Nora, tradução de Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante, publicado pela Iluminuras.)

Soneto do tempo em que éramos jovens

Nós éramos jovens nessa
Época. O mundo se abria
Para nós, se oferecia,
Se entregava à nossa pressa.

A vida era uma promessa
De renovada alegria
E para nós sempre havia
O melhor lugar na peça.

Nada então nos ameaçava,
Nada nunca se alterava.
Mas logo tudo mudou.

O jovem que no passado
Viveu um sonho abençoado
É hoje esse velho que sou.

O momento

Mais uma vez, uma só,
E já, porque depois tua
Carne e a minha carne nua
Não serão mais do que pó.

Lenga-lenga

Depois das juras eternas
O amor, esse ser safado,
É sempre desmascarado
E enfia o rabo entre as pernas.

Rotina

Será sempre assim. O amor
Promete a safra dourada,
O brilho intenso, o fulgor,
E jamais entrega nada.

Dois anos

Dois anos, já, sem te ver
E por mais que sofra e chore,
E por mais que a morte implore,
Como é difícil morrer.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Soneto da fonte da qual bebíamos

Quando nós fomos felizes,
Nessa época não sabíamos
Que código nós seguíamos,
Que normas, que diretrizes.

Simplesmente aproveitávamos
O que nos apetecia
Sem saber o que regia
Aquilo que desfrutávamos.

De tudo aquilo era o amor
O indesmentível mentor,
A causa, a origem primeira.

Quando de nós se cansou,
Ele de nós se livrou
Com soberana maneira.

Trecho de uma carta de Joyce para Nora

"Perdi a tua estima. Eu desperdicei o teu amor. Deixe-me, então. Afaste as crianças de mim para poupá-las do malefício da minha presença. Deixe-me afundar de novo no lodo de onde eu vim. Esqueça de mim e de minhas palavras vazias. Volte para a sua vida e deixe-me sozinho para a minha ruína. É errado viver com um animal vil como eu ou permitir que suas crianças sejam tocadas pelas minhas mãos.
(...)
   Começo a compreender isso agora. Eu matei o teu amor. Eu te enchi de desgosto e de desprezo por mim mesmo. Abandone-me agora às coisas e aos companheiros que eu apreciava tanto. Não vou me queixar. Não tenho o direito de me queixar ou de levantar nunca mais meus olhos para você. Eu me degradei inteiramente a seus olhos."

(Do livro Cartas a Nora, tradução de Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante, publicado pela Iluminuras.)

Aleluia

Quando o amor, na cena final, nos enterra seu punhal prateado, o júbilo grita em nós por todos os poros.

www.rubem.wordpress.com

Na crônica desta semana falo da mania que nos torna risíveis: a ânsia de buscar a glória.

Nome

Surdo, não ouço mais nada
Além da voz interior
Que repete com fervor
Teu nome, minha adorada.

Distância

Que amável tu és, assim.
Por que não és sempre igual?
Tu nunca me tratas mal
Quando estás longe de mim.

Ainda

O amor antigo ainda clama,
Reclama ainda os seus direitos,
E apesar dos seus defeitos
O coração diz que ainda o ama.

De qualquer forma

Quem dá o corpo ao amor
Deve também a alma dar
Porque, seja como for,
Ele com ela há de ficar.

Viagem

Sempre que contemplo o mar,
Tenho o ímpeto de partir
Numa viagem longa, de ir,
E de nunca mais voltar

Três haicais de Giorgos Seféris

"Cadeiras vazias
as estátuas voltaram
para outro museu."


          ***

"Profundamente
pensativos os seios dela
no espelho."


          ***

"O mundo se afunda
cuidado, vai deixar-te
só sob o sol."

(Do livro Poemas de Giorgos Seféris, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Nova Alexandria.)





terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Escândalo

Não é o amor que nos mata. Nós é que morremos por ele. E que escandaloso é o nosso último sorriso.

Soneto do que devemos ao amor

Talvez um dia possamos
Lembrar em sua inteireza
A incomparável beleza
Do tempo em que nos amamos.

Talvez então consigamos
Ter a necessária frieza
Para admitir a torpeza
Com que do amor nós tratamos.

Nós dois dele nos servimos,
E tudo dele fruímos
Sem uma gota deixar.

Talvez um dia choremos
O que por ele devemos
Há muito tempo chorar.

Soneto de como o amor nos trata

No começo o amor nos trata
Como um colecionador
Que examina com fervor
Seus tesouros de ouro e prata.

Mas logo ele nos maltrata,
Nos xinga com despudor,
Nos ataca com furor
E nos submete à chibata.

Depois de nos desfrutar,
Nos virar e revirar,
Nem quer ouvir nossa voz.

Enquanto vai se afastando,
Ficamos para ele olhando,
Mas ele olha para nós?

Ser

Valemos pelo que fomos.
Tudo nosso é já passado,
Já morto e já sepultado.
Fomos, já, mas já não somos.

Soneto do perdedor

Quando conheci o amor
Eu era um tipo banal,
Um homem simples, normal,
Mas não ainda um perdedor.

Tão belo me pareceu
No dia em que o conheci
Que no mesmo instante vi
Ser ele bem melhor que eu.

Para dele digno estar
Tentei me modificar,
Quis ser o que não podia.

O amor me fez compreender
Que nasci para perder,
Como enfim o perderia.

Logo ali

Estou já na última curva
Da estrada que enfim me leva
Ao coração da água turva
E ao lado eterno da treva.

Reserva

Quando tu forças tiveres,
Nunca mais as desperdices
Com jogos e outras tolices
Como amores e mulheres.

Soneto do amor viajante

Posso agora parecer
Alguém sujeito a remoques
Mas cheguei a receber
Mensagens de Nova York.

Ah, como feliz eu estava.
Naquela época dourada
Meu amor não me trocava
Por nada ou por quase nada.

Batia-se tenazmente
Por gente triste e carente
Na Índia e no Afeganistão.

Viajava muito, sumia,
Porém nunca se esquecia
De me mandar um cartão.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Cotação do dia

Aceitar que não sou nada. E não fazer nada que possa mudar isso.

Soneto do que devemos lamentar

Se em tudo que nós fizemos
Existe algo a lamentar
É que ao amor nunca demos
O que devíamos dar.

Sabendo como sabíamos
Como o amor era exigente,
Demos tudo que podíamos,
Porém não foi suficiente.

Demos a alma, o coração,
O sentimento, a razão,
Todas as coisas vitais.

Mas hoje, quando lembramos,
Amargos nos perguntamos:
Ah, por que não demos mais?

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Soneto das palavras gastas com o amor (versão final)

Ninguém nos daria ouvidos
Mesmo que nos esgoelássemos
E ainda que nós esgotássemos
Nossos gritos e gemidos.

Tentamos em tempos idos,
E ainda que nos esforçássemos
Não houve quem escutasse os
Nossos apelos seguidos.

Assim ocorreu. Falhamos,
E nunca mais nós tentamos.
Se um dia preciso for,

Como nós procederemos?
Que palavras usaremos?
Gastamos todas com o amor.

Cotação do dia

Vivo de lembranças. Este cantinho, este blog, foi um espaço que criei para me exprimir, num tempo em que achava ter algo a dizer. O amor era ainda um assunto que eu podia citar sem provocar risos, e eu imaginava estar escrevendo a história de um. E estava. Bem ou mal, ela está nos textos mais antigos. O resto, de dois anos para cá, são tentativas de ressuscitar Lázaro. Não creio que vá conseguir. Resta conservar o espaço para aquilo que o blog promete desde o início (Literatura), embora esse rótulo quase nunca tenha sido mais que um pretexto para generalizar aquilo que era íntimo e se passava somente entre mim e meu coração maravilhosamente apaixonado. Uns fiapos de autoestima e de decoro (depois de me haver exposto como um mendigo chamando abjetamente atenção para as feridas) me incitam a parar. Venho fazendo isso, vocês devem ter notado. Se este blog tiver ainda alguma razão de ser, ela estará nos textos de dois ou três anos atrás. Talvez neles tenha persistido alguma literatura, misturada aos mais bizarros queixumes que um ser humano há de ter produzido. Tanto preparo literário para aizinhos que qualquer adolescente, em qualquer época, extraiu com mais autenticidade. Se voltar aqui, será para falar de coisas que sobraram de um homem que ruiu espetacularmente, como um prédio implodido. A quem interessarão esses escombros?

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

2015

Que 2015 nos dê, enfim, tudo. E que o amor nos furte tudo, com a nossa apaixonada aquiescência.

Os dois

Um se chama Pablo. O outro, Stéfano. Ela os  mata de ciúme. Os dois são passionais como todos os latinos e possessivos como só alguns dildos conseguem ser.

Soneto da hora de pagar os gozos

Digo a ti que em tudo vias,
Até no pior, um motivo
Para cantar alegrias
Pela bênção de estar vivo.

Digo a ti, que amor juraste
Ao deus da eterna beleza
E que o seu dom desfrutaste
Assim como o da riqueza.

Digo a ti que o que fruíste
Nada, nem ninguém, existe
Que possa apagar esse gozo.

Mas nada irás mais gozar.
Chegou a hora de pagar
Cada momento gozoso.

Soneto dos poréns e dos nãos (versão final)

Fechei a porta ao afeto,
Aos risos e às alegrias,
Odeio as manhãs, os dias,
E o sol é meu desafeto.

Exalto as noites vazias,
Que passo fitando o teto,
E sou o filho dileto
Da mágoa e das agonias.

Ó tu, que sabes quem és
E que me puseste assim
Com teus poréns e teus nãos,

Que eu possa ainda, antes do fim,
Ir por onde vão teus pés,
Sentir em mim tuas mãos.

Ambos

Nós somos da mesma praia,
És fosca, amor, e eu opaco,
Espécies da mesma laia,
Farinhas do mesmo saco.