domingo, 31 de maio de 2015

Soneto do amor como razão de viver

Quem há de dar-nos sustento,
Quem vai nos alimentar,
Nos vai nutrir, nos bastar,
Se o amor se mostra avarento?

Quem há de dar-nos alento,
Quem há de nos instigar,
Quando nos vem a falhar
Nosso melhor sentimento?

Sem o fascínio do amor,
Qual de nós, seja quem for,
Tem razão para viver?

Sem ele e sua paixão
Nada nos resta senão
Murchar, definhar, morrer.

sábado, 30 de maio de 2015

Amanhã

A quem diremos depois
Com nossa voz inocente
As mentiras que atualmente
Dizemos só a nós dois?

Duelo

Nunca se deve vacilar diante de gramáticos. Eles têm sempre uma última crase para sacar.

Declínio

Francamente
chega a ser indecente
que o sol que brilhou
e os passos acompanhou
de César e Ptolomeu
brilhe atualmente
e acompanhe os passos
de um tipo como eu.

Resumo

Tantas aventuras
tantos ideais
tantas borrascas
tantos temporais
tudo anteontem
tudo ontem
hoje nada mais

Hoje atingido
está o porto
e o capitão audaz
de anos atrás
é um morto
sentado com conforto
no seu sofá.

Pechinchas

Por noventa e nove centavos
você compra um amor naquela loja
e por cem reais
você leva uma caixa
com uma grosa

Por vinte reais
você compra um sutiã
com tudo que tem dentro
mesmo que seja só
papel amassado ou vento.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Mario Quintana

Quase posso ver Mario Quintana no dia em que pegou a dor e a enfiou no envelope, para devolvê-la ao remetente. Quase posso ver seu sorriso quando apanhou o carimbo de urgente.

Frustração

Gostaria de ter sido
Um outro homem, diferente,
No corpo, na alma e na mente,
E de há muito ter morrido.

Persistência

Jamais percamos a fé.
Se não houver condução
Para o inferno e a danação,
Então iremos a pé.

Petição

Se há outra vida post mortem,
Senhores encarregados,
Ouçam desde já meus brados
E dessa lista me cortem.

Just in time

Porque não tem garantia
De perenidade o bom,
Tenhamos sabedoria:
Morrer na hora certa é um dom.

Peça

Não tenhamos ilusão,
Sempre a vida foi assim:
Dizer a palavra sim
E ouvir a palavra não.

Soneto dos seres obscuros

Quem há de amar um ser tosco,
Que nada sabe fazer
Além de sobreviver?
Quem se importará conosco?

Quem, ingênuo, apostará
Num nulo, num joão-ninguém,
Em alguém que nada tem
E nada, nunca, será?

Para nós, seres assim,
Jamais adianta sonhar,
A derrota é sempre o fim.

Não há mudanças possíveis.
Quem há de se interessar
Por seres tão desprezíveis?

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Kama Sutra - DCLXXXII (versão final)

Com o travesseiro entre as coxas, ela anseia pelo momento em que o homem chegará, se deitará sobre o seu corpo, se encaixará ali dentro e irá se movendo de modo a extrair dela, e da cama, aqueles guinchos ritmados que sempre parecem as sílabas de uma virgem gemendo a história de sua primeira noite de amor.

Kama Sutra - DCLXXVII (versão final)

Sempre que se lembra de como, avançando centímetro a centímetro, chegou enfim ao suave tufo ruivo e úmido, ele custa a acreditar que o tenha feito mesmo, naquela noite. E, quando se convence, ele, com uma tristeza aguda, começa a se perguntar por que tirou a mão dali, da relva sedosa onde seus dedos, na escuridão do quarto, pareciam tocados pela benevolência do ouro.

Aritmética

Tivemos sonhos, ideais.
Achamos que vingariam.
Morreram. Mais morreriam
Se nós sonhássemos mais.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

O amor é

O amor é tão tolo, tão inconsequente, tão insano, tão estouvado, tão maravilhosamente, tão magnificamente, tão estupendamente, tão inigualavelmente perfeito.

Estupidez

O amor é aquela estupidez pela qual se sacrificam família, pátria, religião, honra e alma. O amor é a única estupidez que vale todas as estupidezes. O amor é o rei dos reis.

Razão

Não há por que duvidar.
O amor é o melhor motivo
Para alguém se manter vivo
Ou para alguém se matar.

Flerte

Sempre fui tentado a tratar a literatura com todo o amor e a máxima intensidade. Nunca fui correspondido.

De modo

Um advérbio de modo tem a vantagem de poder portar-se como bem quiser: adequada ou inadequadamente.

Nervos

Não há categoria gramatical mais estressada e sujeita a chiliques do que as interjeições.

Mario Quintana

O que a sabedoria de Mario Quintana tinha de melhor era não ser metida a besta. Não era solene ou empertigada. Era mais uma esperteza, certa matreirice, um jeito manhoso de pedir. Como quando ele disse: "Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho." Eu imagino o sorriso galante com que ele fez esse pedido, no qual havia uma astuta sutileza: se a amada o esquecesse bem devagarinho, talvez até se esquecesse de esquecê-lo...

Norma

Não temos os gatos. Os gatos é que nos têm, pela inequívoca lógica da conquista.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Alpinismo social

Houve tempo em que pensei que, se Luciana Villas-Boas e Lucia Riff lessem meus escritos, minha sorte mudaria. O tempo transforma tudo: hoje me peguei imaginando que, se Lady Gaga soubesse quem sou, veria que não pode haver melhor Lord Gagá que eu.

Kama Sutra - DCLXXIV (versão final)

Sabe hoje que deveria ter dito a ela só minha querida. Nada além disso, sempre, sempre. Enredou-se com outras palavras, quis revesti-las de ouro. Minha querida bastaria. Depois de dizer isso uma vez, encantou-se com sua coragem e desandou a dizer coisas que nunca superaram a intensidade simples das duas  palavrinhas: minha querida. Hoje ele as diz ainda, mas há muito já morreu a época dos sortilégios.

Kama Sutra - DCLII (versão final)

Na mão dela, quando ao chegar a beijou, ele sentiu um cheiro de maresia. Presunçoso, imaginou que ela lhe tivesse prestado uma breve homenagem enquanto o esperava no sofá.

Kama Sutra - DCXLV (versão final)

Nem nós dois sabemos o que tanto nossas línguas têm a se dizer quando se tocam com a ponta gotejante de saliva. Certo é que não trocam uma palavra, mas bicam-se como dois sedentos passarinhos.

Kama Sutra - DCXLVI (versão final)

Às vezes o amor ainda goteja nele, como a fonte que, tendo há muito secado, reservou alguns pingos para as ocasionais solicitações da memória.

Kama Sutra - DCLXXXI (versão final)

Enquanto, olhando-se  no espelho, passa languidamente batom, ocorre-lhe uma ideia inquietante: compara sua boca a uma planta carnívora, faz uma careta felina e por um momento não sabe se sente inveja ou pena do homem com quem irá se encontrar.

Tapa

Não há insensatez nem droga mais barata que a literatura: um toco de lápis e um pedaço de papel são suficientes para viciar um homem pela vida inteira e atirá-lo ao mais profundo dos infernos.

Sim, não

Ele pede a ela um favor íntimo, um regalo amoroso. Ela diz que não, Ele volta a pedir. Ela diz não. Ele insiste, implora. Ela diz não. Dirá não até que ele tome por si mesmo o que quer. Há mais de mil e uma deliciosas noites os dois se entretêm e se acabam nesse jogo.

O nome

Às vezes ele, sozinho, lembrando-se dela, lhe diz o nome, como se a chamasse. Mas diz baixo, mais receoso que esperançoso. Se ela se materializasse diante dele, ele não saberia o que dizer nem fazer. Nunca soube, nunca fez.

Mario Quintana

Qual outra cidade além
De Porto Alegre seria
Tão digna de merecer
Quintana e sua poesia?

Soneto que fala das artes do canto e da louvação

Sejamos quem formos nós
E a nossa idade qual for,
Somente adquirimos voz
Ao sopro inicial do amor.

Para que bem o cantemos
Ele a torna melodiosa,
E como nos comprazemos
Com essa tarefa gloriosa!

Nós o cantamos, louvamos,
E nada mais apreciamos
Do que o cantar e o louvar.

E até nosso último dia
Vivemos dessa honraria
De o louvar e de o cantar.

Leitmotiv

Se o amor for seu único assunto, parabéns. E guarde-se dos invejosos.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Kama Sutra - DCLVIII (versão final)

Eu seria capaz de reconhecer todos os que te tocaram. Talvez eles não tenham notado, na ocasião, ou talvez tenham esquecido, mas nos dedos deles ainda certamente há vestígios de pétalas, de brisa, de orvalho.

Queridinho

O amor conosco é cordial.
Nos mata bem devagar, 
Carinhoso, sem deixar
Uma impressão digital.

A época

Um dia, o amor será uma lembrança tão imprecisa quanto, num sonho, o reflexo de um rosto num lago. Será época, então, de desejar a morte como uma bênção.

Júbilo

Submeter-se ao amor é o mais venturoso triunfo que um homem pode conquistar.

Síntese

Quando, com a idade, alcançou os dons da concisão e da sabedoria, toda noite escrevia em seu diário uma só palavra: amor.

Artigo 1º

Se um poeta não fala de amor, está traindo seu ofício.

Inversão

A vida deveria ser só uma parte, uma das subespécies do amor.

Momento

Ter um gato no colo é desmentir, por um momento, a ideia de que a beleza é inapreensível.

domingo, 24 de maio de 2015

Kama Sutra - DCLXIX (versão final)

Nas noites de seus encontros semanais com Márcia, ele já no caminho vai beijando o dedo preferido da amiga, aquele que ela sempre retém entre as coxas agradecidas e chama de meu querido, meu comprido, meu amado, meu tesouro, meu tesão, em meio a estremecimentos que o impregnam de um sabor salino que persiste até o encontro seguinte e o instiga a buscar nele, com a língua, a cálida lembrança da amiga.

Estilo

Muitas vezes, o que se chama de estilo não passa de um bisonho conjunto de maneirismos.

Logro

Escrever bem é comumente o que de pior um escritor pode fazer.

Nomenclatura

Quando a ofensa gramatical é grave, diz-se que foi cometida contra o português; quando é gravíssima, diz-se que foi praticada contra o vernáculo.

Ele a ama

Ele a ama. Já não se importa com o que houve nem com o que haverá. Não lhe importa sequer saber onde ela está. Há muito não sabe. Basta-lhe a convicção de que a ama. Todo o passado e todo o futuro lhe são indiferentes. Descobriu que o amor pode ser algo tão precioso que às vezes convém desfrutá-lo em silêncio, sozinho, com a reverência que se tem diante de uma divindade tão soberana que seria impensável imaginá-la necessitada de arautos.

Solicitude

Beijaria os pés dela - ainda que ela não ordenasse, e mesmo que relutasse.

Nomes

O que mais o magoou não foi a mulher, dormindo, ter dito Dorival (seu nome é Róbson), mas haver acrescentado meu amor.

Classe

O que mais os homens apuram com a idade é o paladar, um refinamento que exercem tanto na cozinha quanto no quarto.

Velório

Que goradas são todas essas mãos
que se agitaram
que imploraram
que acariciaram
que esbofetearam
que plantaram
que colheram
que desfrutaram
que desperdiçaram
e que hoje não têm força
para espantar uma mosca.

www.rubem.wordpress.com

Hoje falo de pequenas coisas, insignificâncias dessas que tanto agradam ao coração.

Mario Quintana

Mario Quintana soava sempre bem: era o mais afinado dos violinos nos poemas líricos e a mais gaiata das gaitas nos poemas sarcásticos.

Trottoir

É coisa bem corriqueira
E uma verdade profunda:
Se as carnes são de primeira,
As almas são de segunda.

Sugestão

Se gostas de espairecer
E aprecias um bom ócio,
Eu te digo que morrer
Talvez seja um bom negócio.

Figurino

Lá vai a poesia
toda arrumadinha
toda jeitosinha
dengosa

Tudo nela combina
a sainha na medida
bem escandida
riminha com riminha
toda certinha
justinha
primorosa

(para que nenhum cretino
venha a confundi-la com prosa).

Trecho de "Primeiro amor", de Ivan Turguêniev

"Eu estava tão feliz e orgulhoso por todo aquele dia, guardei tão vivamente no rosto a sensação dos beijos de Zinaída, com tamanho tremor de encantamento relembrava cada uma de suas palavras, eu desfrutava tanto a minha inesperada felicidade que começava até a sentir medo, eu nem queria vê-la, a culpada dessas minhas novas sensações. Parecia-me que já não poderia pedir mais nada ao destino, que agora só me caberia simplesmente 'tomar um fôlego profundo, pela última vez, e morrer'."

(Tradução de Tatiana Belinky, publicação da L&PM Pocket.)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Kama Sutra - DCLXXXI (versão final)

Ele a olhará deitada, esplêndida como o sol. E agradecerá aos deuses porque o privaram dos meios de tocá-la. Ele a olhará, e nos seus olhos brilhará o êxtase agradecido dos mártires postos diante da divindade.

Doce tolice

As histórias de amor deveriam ser sempre tolas e protagonizadas por tolos. O amor não é uma empresa mercantil, e a pior coisa que pode acontecer com ele é precisar apresentar balanços e resultados. Se o amor tiver gerente, que ele seja tolo também e, se possível, louco.

Tão

A lembrança do amor há de ser aguda e persistente, e doer de tal forma que, mesmo sendo grata e doce ao nosso coração, às vezes sejamos tentados a implorar a Deus que nos mate.

Compaixão

Quando ela ajeita os cabelos assim cuidadosamente, como se cada fio de ouro fosse um gatinho recém-nascido, ele imagina quantos homens e mulheres já se fascinaram com esse gesto, e quantos ainda se fascinarão, e sente uma tristeza absurda por todos eles, por todas elas.

Boca

De três em três meses, sempre no dia 1º, ela me manda um envelope. Dentro, um delicado papel sem nenhuma palavra, só sua boca impressa em batom escarlate. Procuro conter o impulso dos meus lábios, mas às vezes, faltando ainda alguns dias para a chagada do envelope, já quase não se distingue sua boca, e o papel tem um sabor triste.

Idade

Todos os gatos que amou morreram. Já não se lembra se eram vinte e nove, trinta e dois ou quarenta e três. Até um ano atrás, era capaz de dizer o nome de cada um. Deveria tê-los anotado então. Sente-se culpado por isso, mais do que por qualquer outra coisa, e concorda quando alguém diz que os velhos não prestam para nada.

Tenacidade

Escreve pelo menos cinco horas por dia e lê dez páginas de Shakespeare. Faz isso desde os quinze anos. Está com mais de setenta e mantém vergonhosamente algumas das crenças da juventude.

Um trecho de "Cleópatra, uma biografia", de Stacy Schiff

"Restaurar Cleópatra significa resgatar uns poucos fatos e também remover o mito incrustado e a propaganda envelhecida. Ela era uma mulher grega cuja história ficou a cargo de homens cujo futuro estava em Roma, a maior parte deles funcionários do império. Seus métodos históricos são pouco claros para nós. Eles raramente mencionam suas fontes. Confiavam em grande parte na memória. Para padrões modernos são polemistas, apologistas, moralistas, fabulistas, recicladores, fazem cortar-colar, são hackers. Apesar de toda a sua erudição, o Egito não produziu nenhum bom historiador."

(Tradução de José Rubens Siqueira, publicação da Zahar.)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Nova casa

Talvez, se um dia voltares,
Um muito estranho endereço,
Que nem eu ainda conheço,
Seja tudo que encontrares.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Plenitude

Quando os cabelos dela, ultrapassando a cintura, passaram a lhe cobrir graciosa e louramente as nádegas, seu homem colocou ali a mão prazerosa: "Posso agora tocar de uma só vez, com estes cinco dedos, os meus dois mais preciosos tesouros."

Mario Quintana

A poesia era fiel a Mario Quintana, e ele retribuía, se bem que ela o recriminasse às vezes por trocar certos olhares com a prosa, além de marotas piscadelas.

Saber

Saber que existe o mar, e que se pode encontrá-lo, caminhar por ele até o momento e o lugar em que é possível desistir docemente de tudo, fechar os olhos e deixar-nos levar.

Fruto gorado

Se sofreste pelo amor, se choraste como um sonso, se te atormentaste, se tiveste ímpetos de matar-te, e se estás aí, forte como um bezerro e corado como um tomate, que diabo de homem tu és?

Furto

Eram três meninos sentados uma noite na praia, com as mães. Dois deles estavam empenhados em erguer um castelo. Não viram a estrela que, caindo lentamente, pousou no colo do terceiro. Este sorrateiramente a enfiou no bolso da camisa, sentindo-a palpitar como um segundo coração, acusando-o em cada palpitação do mais vil e mais excitante crime que até então ele cometera: o indesculpável e inafiançável furto da beleza.

Instruindo Marlon Brando

Nas últimas semanas, o sr. Lucas deu de falar do tempo em que, trabalhando como assistente de direção em Hollywood, ensinava o novato Marlon Brando a decorar falas. No começo, os velhinhos gostaram e o incentivavam a contar mais. Mas, a partir do dia em que ele narrou como instruía Marlon Brando a aperfeiçoar a técnica do beijo, a tendência foi acharem que talvez houvesse alguma fraude naquilo tudo e que a reputação do asilo poderia ser prejudicada. Passaram a não dar mais ouvidos às histórias do sr. Lucas sobre Marlon Brando, que no entanto iam ficando cada vez mais interessantes.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Soneto que desaconselha a literatura

Se glória queres obter
Fazendo literatura,
Prova maior pode haver,
Me diz, de tua loucura?

A literatura exige
O que em nós de melhor há
E nunca afrouxa ou transige,
Nem nunca transigirá.

Se tuas mãos tu usares,
Que seja para afagares
Coxas mansas e macias,

Não para a prosa tentar
Nem a poesia almejar,
Nem outras algaravias.



Perda

Quem nunca fez declarações em nome do amor não sabe as deliciosas tolices que perdeu.

Mais uma

Se pudéssemos morrer pelo amor mil vezes, morreríamos mil e uma, e ainda lhe pediríamos desculpas.

Opção

Entre o risonho amor e a vida, quem há de escolher a megera?

Presente

A vida deveria ser como uma joia singela que coubesse numa elegante caixinha e pudéssemos levar à amada. Ela a pegaria, exclamaria que linda! e perguntaria se podia mesmo ficar com ela, se ela não nos viria a fazer falta. Com que júbilo diríamos que não, que absolutamente não, lastimando intimamente que não tivéssemos outra joia e outra caixinha, ainda mais belas.

Travessura

Às vezes ainda o amor bate à sua porta e, quando ele vai abrir, sai correndo. É sempre a mesma garota ruiva e sardenta, que lhe mostra a língua e ri, ri, ri. Há cinquenta anos ela faz isso, e ainda não lhe apareceu uma ruga.

Mario Quintana

Dizer Quintana ou dizer poesia são duas formas de expressar o mesmo mágico fenômeno que mantém cada vez mais leitores agradecidos e fascinados.

Até

Sente-se crápula, sórdido, inferior, mas às vezes pensa que aceitaria a compaixão, se lhe oferecessem.

Inanição

Sem as migalhas de amor que ainda restam em arquivos bem antigos, o blog já teria morrido à míngua.

Hipótese

Se cinco anos de sofrimento não matam um homem, talvez ele deva pensar na hipótese de não ser amor o sentimento que o aflige.

Espelho

Se os poetas não se lastimarem por amores perdidos, como nós, se não ameaçarem matar-se, como nós, e não se mostrarem ridículos, como nós, para que nos servirão? Ao diabo com eles e sua versalhada.

Regime

Se o amor não nos escravizar, não nos encarcerar, não nos submeter a uma ração mínima de pão e água, não nos açoitar, como faremos para ter no corpo aqueles arabescos e no rosto aquela palidez romântica que nos cai tão bem?

Areia

Cada dia que passa reforça o meu espanto de ver como o tempo é capaz de se acumular até sobre um homem morto.

Nem nem

Desafortunado é o homem que, tendo reunido méritos para morrer pelo amor, não cumpre o seu destino e não é considerado digno nem de viver por ele.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Vide bula

Atenção, ó garotas, atenção, rapazes.
Se vós pensais em desta vida despedir-vos,
Talvez com a minha idade possa eu sugerir-vos:
Os venenos do amor são os mais eficazes.

Soneto do que no final saberemos

Nós saberemos, no fim,
Que a esperança é infundada,
Que a vida é estúpida, e nada
É tão importante assim.

Saberemos que esta crença,
Que no amor a nossa fé
É tão ou mais tola até
Do que de hábito se pensa.

Quando a verdade soubermos
E crenças não mais tivermos,
Perguntaremos então:

Por que por tantas tolices
Fizemos tantas asnices
Cometer o coração?

Cisne

Toda vez que alguém dissesse a palavra cisne, em qualquer língua, um violino deveria fazer simultaneamente a tradução.

"Plus a mais"

Deram aos pleonasmos esse nome horrível como castigo por quererem sempre parecer mais do que são.

Nomenclatura

Não me resigno à ideia de uma planta florífera, por mais desgraciosa que pudesse ser, chamar-se asfódelo.

Mario Quintana

Mario Quintana e a poesia mantinham um acordo. Nunca, em suas conversas, usavam palavras que não fossem tão claras, simples e belas como uma borboleta branca pousando em um gramado soberanamente verde-escuro.

Ainda

O amor será sempre como aquele gatinho que, morto há muitos anos, insistiremos em ter visto ainda, certas tardes, lambendo as patinhas no sofá.

Cotação do dia

Morrer em 2010 teria livrado meus arquivos de poemas tão ruins...

Companheira

Maravilhosa, delicada, comovente,
Nosso tesouro máximo no fim da vida,
Companheira adorada, presença querida,
A lembrança do amor nos mata lentamente.

domingo, 17 de maio de 2015

Mario Quintana

Enquanto o passarão voava
Fazendo pose de avião,
Quintana, bem bonachão,
Voejava e passarinhava.

Ou ou

Há duas maneiras de estar vivo: ou pelo amor ou apesar dele.

Soneto da morte que talvez mereçamos

De todos os condenados
Que o amor fez executar
Só a nós coube lamentar
Havermos sido poupados.

Como escória rejeitados
Só nos restou invejar
E a boa sorte exaltar
Dos companheiros amados.

Talvez, quem sabe, algum dia
Também nos possa caber
Essa suprema honraria

De ter a sina adequada
E de pelo amor morrer
A morte mais abençoada.

Niilismo

Não almejar, não querer,
Não lutar, não se obstinar.
Deixar a vida passar,
Deixar a vida morrer.

Cotação do dia

Repetir a palavra de ordem: desistir, desistir, desistir.

sábado, 16 de maio de 2015

O que

Não é a rejeição, nem
A objeção, que mata um homem.
O que o fere, o que o consome
É o continuado desdém.

Mesmo quando

Do escritor se espera que diga sempre tudo bem, mesmo quando diz que não tem nada a dizer.

Primeira fase

Hoje ele sabe que o tudo é apenas o rosto com que se apresenta inicialmente o nada.

Síndrome de Salinger

Fazer sucesso rapidamente
conseguir a consagração
ter o mundo aos pés
desdenhá-lo
almejar a solidão
buscá-la
conquistá-la
com merecimento
e o agradecido deslumbramento
de um ermitão.

Conduta

Não ter nenhuma ambição.
Ao que a vida oferecer
Sorrir torto, agradecer
E dizer sempre que não.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Depois

Depois de tudo virá
Aquele tempo em que nada
De nossa vida passada
Ou futura existirá.

Sedução

Os cabelos procuram-lhe a cintura,
Aquela curva abrupta e proeminente
Que o olhar dos homens vagarosamente
Percorre com um frisson de gostosura.

Graus

Ter buscado a beleza não foi uma insensatez. Insensato foi não havê-la buscado com maior intensidade, não ter dado a vida por ela.

Gran finale

Qualquer que tenha sido a nossa insignificância, a nossa pequenez, a nossa falta de valor, tendemos a encarar nossos últimos dias como se estivesse ruindo o Império Romano.

Soneto das duas estações

Em meu tempo mais dourado
Me chamou a primavera,
Mas eu, quase com enfado,
Só lhe respondi: espera.

O tempo era ilimitado
E o mundo nada mais era
Que um lugarejo, um condado
Submetido à minha esfera.

Enquanto eu rei me julgava
E meu reinado gozava,
A primavera passou.

O inverno me chama agora
E eu peço: não vá embora,
Me espere, porque eu já vou.

Devoção

Me agradaria montar
Um maravilhoso templo
E nele um corpo louvar,
Um como o teu, por exemplo.

Esplendor

Que nunca venha a faltar-te
O brilho, o fulgor exato
Que fazem distinguir-se a arte
Do pálido artesanato.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Mario Quintana

Duvido tu resistires,
Não rires, não gargalhares,
Quando leres ou ouvires
Quintana e seus quintanares.

Agenda

Ou na ocasião indevida,
Ou no momento adequado,
Sempre têm a morte e a vida
O seu encontro marcado.

Destino

Nos avisaram, e não
Acreditamos, que um dia,
Por prazer e vocação,
Nosso amor nos mataria.

Dentro das normas

Foi sempre o amor nosso guia,
E desde o início sabíamos
Que por ele viveríamos
E que ele nos mataria.

Farsante

Eu morro sempre no instante
Em que outro, herói de verdade,
Imporia sua vontade
E seguiria triunfante.

Prêmio

Eu gostaria de ser
Um escritor que tivesse
Escrito tudo e pudesse
Enfim deixar-me viver.

Estação

Quando chega o inverno, já
Não clamamos pelo amor.
Se vier, ou se esquivo for,
Que diferença fará?

Proporção

De todas as parcelas que compõem a vida, o amor é a única maior que ela.

Tal qual

Não há um dia em que o valor da literatura não seja contestado. Às vezes mais, às vezes menos do que o valor da vida.

Linha reta

Ter um estilo significa, na maioria dos casos, escrever mal sempre da mesma forma, obedecer a um padrão de mediocridade.

Em massa

Os críticos vivem decretando mortes; ora da poesia, ora da novela, ora do romance, ora de toda a literatura. Jamais dizem, porém, que atividade passariam a exercer se todas essas mortes se confirmassem.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

A gaveta (15) - Mulher (versão final)

Mulher,
Hoje que o tempo me salvou de ti,
De ti e de minha robusta fraqueza,
Hoje que meu pensamento
Teve alta afinal
E se libertou das grades do sentimento,

Hoje lembro sem temor teu nome
E como teu corpo pulsava nele,
Tanto, tanto,
Que ao pronunciá-lo
Meus lábios tinham sabor de beijo,
Orelha, seio, sexo.

Quantas garrafas,
Quantas lágrimas, mulher,
No caminho de tua posse impossível.

Mas hoje, hoje que te refaço
E surpreendo secos meus olhos,
E a mão não tateia mais
A tranquilidade errônea do conhaque,

Semeio o sono, mulher,
Com teu nome despojado da carne,
E teus olhos de chama extinta
Velam serenos as ovelhas do meu sonho.

Mario Quintana

Assim como no futebol a bola sempre passa por entre as pernas de jogadores bisonhos e vai procurar neymares, pelés e maradonas, a poesia buscava Mario Quintana onde ele estivesse, e ia faceira como vão as mais belas mulheres ao encontro do homem amado.

Ambição

Eu, que tanto falei sobre a dor e a morte, gostaria de escrever algo sobre a alegria, um poema curto, dez ou quinze palavras que soassem quase simultaneamente e com a alegria maravilhosamente estúpida e ensurdecedora que deixa no ar uma revoada de periquitos.

Lógica

Ainda que seja só para transgredi-la, conheçamos a gramática.

Imagem

Um cisne num lago
talvez te resumisse
talvez te descrevesse
imagem terna do amor
se um escultor -
o melhor -
te esculpisse
se alguém melhor que eu
te escrevesse.

Confissão

Arrependo-me dos poemas sombrios que vim espalhando por toda a vida: tanto pessimismo, tanta autodestruição. Que, no fim de tudo, dois ou três leitores possam lembrar-se de mim pelos livros juvenis, pelos personagens que consegui preservar do meu niilismo.

Um trecho de Enrique Vila-Matas

"Toda a obra de [Robert] Walser, incluído seu ambíguo silêncio de vinte e oito anos, comenta a vaidade de toda empresa, a vaidade da própria vida. Talvez por isso só desejasse ser um zero à esquerda. Alguém disse que Walser é como um fundista que, prestes a alcançar a meta cobiçada, detém-se surpreso e olha os mestres e condiscípulos e desiste, ou seja, permanece em seu lugar, que é uma estética do desconcerto. Walser me lembra Piquemal, um curioso sprinter, ciclista dos anos 60 que era ciclotímico e às vezes se esquecia de terminar a corrida."

(De Bartleby e companhia, tradução de Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista, publicação da Cosacnaify.)

terça-feira, 12 de maio de 2015

Libelos

O que venceu Catilina
Talvez de forma arbitrária
Ao invés de uma verrina
Foi uma catilinária.

Ainda?

Fizemos pouco, talvez.
Fizemos mal. O melhor
Que fizemos foi o pior.
Tentaremos outra vez?

Nem tanto

Curioso como alguns jogos de palavras, certos trocadilhos, podem dar a impressão de ser a mais profunda filosofia.

A Morte

O sr. Lucas conversa com os companheiros de asilo sobre a Morte. "Não tenho medo dela", diz. "Vi um filme em que a Morte era uma atriz francesa muito linda." Perguntam-lhe: "Qual era o nome dela?" Ele se impacienta: "Morte, ora. Estamos falando de quê?" Explicam-lhe que querem saber o nome da atriz. "Ah, não lembro agora. Mas era maravilhosa, vocês precisavam ver."

"Quando estamos perdidos", de Carson McCullers

"Quando estamos perdidos, o que nos conta a figura?
Nada se parece com nada. Mesmo assim, o nada
Não é vazio. O Inferno se configura:
Sobre relógios observados em tardes de inverno, estrelas malignas,
Mobiliário exigente. Tudo desvinculado
Com ar no meio.

O terror. É do Espaço, do Tempo?
Ou de ambas as concepções a conjunta trapaça?
Para os perdidos, paralisados entre as ruínas que provocaram,
Tudo o que não é ar (se não for realmente engano)
É imobilizada agonia. Enquanto o Tempo,
O idiota sem fim, corre gritando pelo mundo."

(De Coração hipotecado, tradução de Adriana Oliveira, publicação da Novo Século.)

segunda-feira, 11 de maio de 2015

A gaveta (1) - Mãe (versão final)

A casa dormia.
Lá fora, no jardim,
Algum mistério preparava
A rosa do novo dia

Eu que sonhava
Na casa que dormia
Sonhava com uma rosa -
Diversa, mas rosa,
Flor que um dia
Por algum mistério
A terra chamaria

No sonho
Minha mãe, rosa,
Me sorria.


A gaveta (10) - Reservado (versão final)

Pura, minha infância.

Não tive prima que me iniciasse
No canto escuro do porão
Não tive empregada que me usasse
Não tive mão safada
Seguindo a imaginação

Quanto aos meninos
Troquei com eles
Figurinha pião
Sopapo bolinha
Coisa pouca, mesquinha

Vivia simples
Sem saber que em mim crescia
A flor de angústia a flor de sangue
Dilacerada depois
Dia a dia
Pelos dentes podres da madrugada

Eu nem pressentia então
Mas a morte já me reservava.

Com/sem

Amor, como te cai bem
Essa roupinha singela.
Tu ficas tão linda com ela,
Tu ficas tão linda sem.

Incompletude

Poeta, ele tem um problema:
Acerta um verso, dois versos,
Acerta vários, diversos,
Mas jamais acerta um poema.

Soneto da bondade do amor

Por muito que antigamente
Me tenha feito sofrer,
Do amor não posso dizer
Que foi comigo inclemente.

Foi sempre digno, decente,
Como um amor pode ser,
E me ensinou a entender
Quão caro custa o presente.

Sugeriu-me que eu o amasse
Mas que não exagerasse,
Que soubesse me cuidar,

Porque sempre chega o dia
Em que alegria a alegria
Uma a uma iremos pagar.


Um trecho de "A Vênus das peles", de Sacher-Masoch

"É mesmo uma satisfação envolver uma bela e voluptuosa mulher em suas peles - ver, sentir como seus magníficos braços nus entram na pele deliciosamente suave, como os cachos ondulantes do cabelo se levantam para se assentar sobre a gola, e quando ela a tira, então, o doce calor e um sutil perfume de seu corpo persistem no pelo dourado da zibelina - sim, é de perder os sentidos."

(Tradução de Saulo Krieger, publicação da Hedra.)

Idade

O sr. Lucas não gosta que digam no asilo que ele é novo ainda. Sempre sabe exatamente sua idade, com a precisão de anos, meses e dias. Tem uma visão heroica sobre a própria vida e é capaz de falar horas sobre o seu café da manhã de 8 de março de 1998 ou a internação por pneumonia na noite de 30 de dezembro de 2003.

O clube

O sr. Lucas costuma contar aos outros velhos do asilo suas aventuras com Marilyn Monroe. Eles gostam de ouvir. Eles mesmos tiveram aventuras semelhantes com Marilyn.

Persistência

Há tantos anos ele diz
que o amor não morreu
que amores são feitos
para durar e perdurar

Há tantos anos ele diz
que já começa a acreditar.

domingo, 10 de maio de 2015

www.rubem.wordpress.com

O texto de hoje na revista Rubem é uma mixórdia, uma fragmentação em busca de um pouco de poesia.

O tempo

Chega o tempo
não mais de viver
o tempo de dar
uma ajeitada aqui
uma disfarçada ali
o tempo de se enfeitar
de se preparar
para morrer.

Mario Quintana (p/ Silvia Galant François)

O menino Mario Quintana compartilhava com a poesia intimidades singelas e travessuras como a de trocar beijinhos enquanto a professora explicava no quadro-negro que a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.

sábado, 9 de maio de 2015

Saudade

Amor, tu me maltrataste
E quando, amor, me habituei,
Me deixaste. Amor, não sei:
Por que tu não me mataste?

O nadador

Ele se atirou ao rio

Na margem deixou
um paletó
com a identidade
um nome qualquer
rodrigo joaquim
coisa assim
e uma foto de mulher
de rosto bonito
com um nome escrito atrás
que ele nunca voltou para pegar.

Patti e Robert no Chelsea

No escuro
Robert Mattlethorpe
toca a cicatriz
de Patti Smith
e lhe mostra os dedos

Olha como ficaram
como brilham
parece que tocaram
uma estrela
uma flor de lis.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Spleen

Está pronto já
para suas obras-primas

Arranjou uma doença do pulmão
um manual de versificação
e um dicionário de rimas.

Sonetos

Sonetos são aquelas composições poéticas celebrizadas por Camões e diligentemente pioradas pelos poetas modernos, que só não conseguem efeitos mais devastadores por se tratar de apenas catorze versos.

O retorno

No asilo, o gatinho imaginário do sr. Lucas sumirá por três dias, e ele se recusará a se alimentar até o psicólogo convencê-lo de que o pequeno animal voltou. Ao vê-lo, o sr. Lucas achará seus bigodes mais compridos.

Soneto de quem jura pelo amor

Que bobas são todas essas
Promessas loucas de amor
Que juradas com fervor
Não foram mais que promessas.

Ouvi tantas, tantas fiz,
E enquanto ingênuo as ouvia
E arrebatado as fazia
Eu me sentia feliz.

Fui tolo em acreditar
Que alguém - homem ou mulher -
Possa pelo amor jurar.

Podemos tudo querer,
Porém se o amor não quiser
Querer jamais é poder.

Não!

Obras completas é uma expressão que costuma despertar nossos mais recônditos bocejos.

Inocentes

Os leitores são por acaso obrigados a sofrer porque em 1900 e nada pusemos na cabeça que seríamos escritores?

Meio ambiente

Empilhar todas num caminhão
e torcer para,
onde as jogarem,
não provocarem contaminação
minhas rimas em "ão".

Um trecho de "A Vênus das peles", de Sacher-Masoch

"- Mas Severin... - Wanda interveio contrariada -, o senhor me julga capaz de ser essa mulher, que maltrata um homem, um homem que tanto me ama, como o senhor?
- E por que não, se é por isso que a adoro tanto? Só se pode verdadeiramente amar o que está acima de nós, o que nos oprime pela beleza, pelo temperamento, pelo espírito, pela força de vontade, e se torna nossa déspota."

(Tradução de Saulo Krieger, publicação da Hedra.)

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Fases

Ansiou por amor. Contentou-se com afeto. No fim, já lhe bastavam migalhas de piedade, que ele rotulava como condescendência.

Estátua

Nosso erro não foi abraçá-la, beijá-la, dizer-lhe palavras doces. Foi não tê-la abraçado mais forte, beijado mais, retê-la em nossos braços e dizer-lhe: fica, fica, fica! E tê-la prendido irrecorrivelmente, como se aquele fosse o momento mágico que o Destinho houvesse designado para nos transformar numa estátua consagrada ao Amor.

O aprendizado

Um dia você nota que não é mais um menino de sete anos. Às vezes você leva setenta anos para descobrir. A esse cruel aprendizado costuma dar-se o nome de maturidade.

Então

Então escrever se tornou sua vida e, nas noites em que se batia febrilmente com as ideias, os sentimentos e as palavras, amaldiçoava aqueles que lhe haviam garantido a ventura, a realização e a glória.

Dois trechos de "Só garotos", de Patti Smith

"No começo de junho, Valerie Solanas atirou em Andy Warhol. Embora tendesse a não ser romântico com relação aos artistas, Robert [Mapplethorpe] ficou muito abalado com o fato. Ele adorava Warhol e o considerava o artista vivo mais importante. Foi o mais próximo da idolatria de um herói que chegou na vida. Respeitava artistas como Cocteau e Pasolini, que misturavam vida e arte, mas, para Robert, o mais interessante de todos era Warhol, documentando a mise-en-scène humana em sua Factory prateada.
  Eu não me sentia como Robert em relação a Warhol. Seu trabalho refletia uma cultura que eu queria evitar. Odiava aquela sopa e não ligava para a lata. Eu preferia um artista que transformasse seu tempo, não que o espelhasse."

                                                                         ***

"Meu pai admirou o virtuosismo do desenho e o simbolismo das obras de Salvador Dalí, mas não via mérito nenhum em Picasso, o que levou à nossa primeira desavença séria. Minha mãe ficou ocupada cercando meus irmãos, que deslizavam pelo piso liso de mármore. Tenho certeza de que, enquanto descíamos a grande escadaria, eu parecia ser a mesma de sempre, uma menina embasbacada de doze anos, toda braços e pernas. Mas secretamente eu sabia que havia sido transformada, comovida pela revelação de que os seres humanos criavam arte, de que ser artista era ver o que os outros não conseguiam ver."

(Tradução de Alexandre Barbosa de Souza, publicação da Companhia das Letras.)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Definições

Definições científicas às vezes são patifarias que se cometem contra a beleza, como no caso do arco-íris.

Trinta

Morrer de amor chegou a ser por alguns séculos uma filosofia, e nesse período seus adeptos, antes dos trinta anos, geralmente já a haviam cumprido integralmente.

Índice

O amor ainda é uma doença importante, embora mate cada vez menos.

Cotação

Alguém que sempre se encantou mais do que conseguiu exprimir.

Ainda que

Digamos sempre que é o amor a nossa lembrança mais bela, ainda que precisemos mentir.

Ameixeira

Minha ameixeira é cortejada pela brisa e pelos passarinhos. Ainda não deu frutos, mas eles haverão de ser doces.

Beleza

A beleza deveria estar presente em cada minuto de nossa vida, como uma longa e incurável doença, dessas que nos fazem ter febres e visões de anjos.

Tribunal

Escrevi versos tão ruins, poemas tão escabrosos, que seria uma indecência invocar a beleza como motivação, para inocentá-los.

Mario Quintana

Mario Quintana chamava a beleza de minha guria.

Mario Quintana

Com Mario Quintana a beleza se sentia sempre em casa, como um gato na poltrona predileta.

Fonte

Que generoso é o amor. Nunca recusa lágrimas aos nossos olhos, quando nos lembramos dele.

Atenuante

Se nos perdermos, que seja procurando a beleza.

Espetáculo

Expõe as chagas do amor
na esquina
por moedinhas

A exposição anda mal
e como!

A arrecadação
não paga o gasto
nem do mercurocromo.

Realidade

É hora de reconhecer,
Por triste que seja, e atroz:
Não temos por que viver,
Ninguém precisa de nós.

Asco

Sinto asco de mim
quando arreganho minha tristeza
como uma fenda peluda
como uma aranha cabeluda
como uma parte pudenda.

Pragmatismo

Deixamos o amor morrer
como um gato de sede

Depois
sem tristeza ou alegria
pegamos o pote
e bebemos o leite
que lhe caberia.

Síndrome de Roth

Em tom doído
dizemos não ter
mais nada a dizer
como se algum dia
tivéssemos tido.

Ele

A não ser nos momentos em que o amor fala por nós, tudo que temos a dizer em toda a nossa vida é nada.

Mario Quintana

A poesia era para Mario Quintana o que Mario Quintana foi para a poesia: essencial.

Script

Se for a  morte matada
O script do nosso destino,
Que seja a boca a arma usada
E seja o amor o assassino.

Ela

Era uma dessas mulheres amorosas capazes de afogar quatro gatinhos numa bacia, embrulhá-los como se fosse dá-los de presente e ir enterrá-los no quintal, cantando para eles e chamando-os de filhinhos.

Literatura

O que era nobre
fonte de êxtase
e de danação
de noites insones
e febris madrugadas

O que era a busca
da fugidia perfeição
e das belezas inalcançadas
hoje é hobby
distração
tranquila decifração
de palavras cruzadas.


Um trecho de "Só para garotos", de Patti Smith

"Minha mãe me deu The fabulous life of Diego Rivera no meu aniversário de dezesseis anos. Transportei-me para o universo de seus murais, suas descrições de viagens e atribulações, seus amores e seu trabalho. Naquele verão arranjei um emprego sem carteira em uma fábrica, conferindo guidons de triciclos. Era um lugar horrível para trabalhar. Eu escapava em meus devaneios enquanto trabalhava. Ansiava por entrar na fraternidade dos artistas: a fome, o modo de vestir, o processo e as orações. Eu me gabava de que um dia seria amante de um artista. Nada parecia mais romântico para minha cabeça de jovem. Eu me imaginava como Frida para Diego, musa e criadora. Sonhava em conhecer um artista para amar e apoiar e trabalhar lado a lado."

(Tradução de Alexandre Barbosa de Souza, publicação da Companhia das Letras.)

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Fracasso

Tivemos tantos motivos
Para estar mortos. À mão
Tivemos corda, facão,
E, ai de nós, estamos vivos.

Enfim

Estarmos mortos será
Tão simples, tão desprovido
De charme, brilho e sentido,
No entanto nos bastará.

Mas

Estou aqui, tu estás,
O destino nos juntou.
Parece perfeito, mas
O nosso tempo passou.

Mario Quintana

Mario Quintana sabia
Que o rumor e que o clamor,
Que a centelha e que o fulgor,
Que tudo e nada é poesia.

Traço

Amor, que palavra vaga,
Rabisco tosco na areia,
Que um toque da maré cheia
Num instante vem e apaga.

Happy end

Talvez venha nos buscar um navio imensamente iluminado que nos levará enquanto estivermos dormindo. Acordaremos numa praia sobre a qual estará estendido gostosamente o sol e, quando saltarmos para as ondas, perceberemos estar livres do respirador, do soro e do zum-zum das enfermeiras.

Tu e ele

Quando te vê passar com aquele tipo, minha ameixeira bate na janela tristemente, para me avisar. Mas meu infiel Totó, a quem tu deste o nome e agrados, se eu abrisse o portão correria para te lamber as mãos e fazer festinha para aquele teu estropiado amante.

Um trecho de "A Vênus das peles", de Sacher-Masoch

"Hoje ela tomou de súbito o seu chapéu e o seu xale, e tive de acompanhá-la ao bazar. Lá encontrou chicotes, longos chicotes de cabo curto, usados para adestrar cães.
   - Estes devem servir - disse o vendedor.
   - Não, são pequenos demais - discordou Wanda, olhando-me de soslaio. - Preciso de um grande.
   - Ah, para seu buldogue? - inquiriu o comerciante.
   - Sim, ela respondeu impositiva. - Do tipo com o qual se tratavam escravos insubordinados na Rússia."

(Tradução de Saulo Krieger, publicação da Hedra.)

domingo, 3 de maio de 2015

Soneto da última palavra

O nome do amor será
O que, em meu último dia,
Crispada pela agonia,
A minha boca dirá.

Por certo fraco soará
Em minha voz então fria,
Sem vigor nem energia,
E o amor não o escutará.

Ah, quanto o meu coração,
Sempre com tanta paixão,
Se esforçou para o chamar.

Se ele nunca veio ver-me,
Melhor eu não atrever-me
A nem na morte o esperar.

Cançoneta

O morto é um corpo gorado,
O sonho, um fato fingido,
O rei, um velho fedido,
O amor, um fruto bichado.

Meu gato

Amor, meu gato pequeno,
Quem pôde assim te matar?
Que monstro pôde te dar
Vidro moído com veneno?

Condição

Se um poeta não for abençoado com as aflições de um amor infeliz, deve ter humildade e duvidar de sua vocação.

Modo

Não acredito em sobriedade na poesia. Ela há de ser descaradamente sentimental, vergonhosamente romântica, abrir-se em gritos e rasgar-se como uma puta velha abandonada pelo seu jovem gigolô querido.

Embuste

No fim, as únicas lembranças que teremos serão as do amor - e tão turvas, tão infiéis, tão mentirosas, tão capciosamente concentradas nos primeiros dias, que nos farão sorrir como um idiota diante de uma catedral incendiada.

Beleza

Quando a beleza nos toca
Com seu mágico fulgor,
Nossa pele grata evoca
As mãos douradas do amor.

Quadro social

Quando rimou azul com taful e iníquo com delíquio, nem a associação dos poetas tolerou: cassou-lhe o registro.

sábado, 2 de maio de 2015

Cotação do dia

Alguma coisa lhe diz que ele morreu em certa manhã de dezembro.

P... nenhuma

Inefável é uma palavra que não quer dizer nada. É uma espécie de sinônimo de luxo para bulhufas.

Arranjo

À meia-noite o fantasma não toca mais Clair de lune no piano, desde que o gato preto passou a dormir no sofá da sala.

Pesadelo

O amor passou diante dele como um imenso navio iluminado. Quando ele se atirou ao mar, tudo imediatamente foi tomado pela treva e, do meio das ondas que o levavam mais e mais para longe, uma gargalhada escarneceu de suas pernas travadas pelas câimbras: você está morto, você está morto, você está morto.

Reverência

Curvou-se diante do amor um dia, e, recordando-se hoje de todas as submissões de sua vida, sorri: é a única que repetiria.

Seu amor hoje

Hoje o amor que ele viveu é como uma história ouvida há muito tempo de alguém e de cujo final já não se lembra, embora tenha quase a certeza de que foi triste.

Símil

Vou repetindo a história de meu sogro. Nos últimos anos, ele era só um velho no sofá, até restar só o sofá.

"Despedida no asilo", de Djanira Pio

"A velha, mastigando nada, apertou a mão da filha. Não conseguia soltar, a filha precisou puxar, com firmeza, a mão. O carro partiu e se transformou em uma mancha escura, aos olhos cansados da velha.
   Pessoas se aproximaram solidárias e a filha amada já era só uma vaga lembrança."

(Do livro O ciclo da vida, publicado pela Editora Scortecci.)

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Amorzinho (versão final)

Foi um carneirinho,
Foi luz, foi alvura,
Foi muito carinho
E tanta ternura.
Morreu, aqui jaz.

Foi lã, foi arminho,
Foi fio, doçura,
Foi tolo, bobinho,
Viveu na cordura.
Morreu, durma em paz.

O que é

A vida é um lance
um vislumbre
um relance

um instante
de cintilação
na treva
para a treva depois
se tornar mais treva.

Parque

Ela sonha que um rapaz
vai se apaixonar por ela
por seu jeito de falar
pela sua beleza
e que empolgado
vai se aproximar
e chamá-la de princesa

Ela imagina
como vai se seduzir
quando descobrir
que ao chamar princesa
o rapaz chamará por ela
e como ela recatada vai se mostrar
e dizer princesa?, princesa?
Pode me chamar só de Isabela.

Pastoril

Que alegres são os cordeiros
e como ordeiros vão
sob um céu rasgado de luz
e um sol de ouro
balindo no caminhão
em que o amor
com apressada e mercenária mão
os conduz ao matadouro.

Sáfaro

Sou um homem nocivo, a quem só apraz escrever sobre desgraças e lágrimas. Nunca lancei uma semente à terra. Se a lançasse, a terra a recusaria.

Lágrimas

Se, mortos, pudéssemos chorar por nós, eu deixaria cair sobre o meu rosto uma lágrima pelo amor, e outra pela tolice de haver acreditado nele.

O mesmo tanto

O amor há de ser lembrado sempre pelo seu melhor momento. Esse momento deve estar inteiro em nossa memória e, se algo mudarmos nele, que seja para torná-lo ainda melhor, mesmo que precisemos mentir um pouco, assim como o amor sempre mentiu um pouco para nós.

Autocrítica

Fui escritor
ou pelo menos assim pensava
o tolo que havia em mim

Se eu tivesse sido grande
e merecesse biografia
não seria a mim
que recorreria.

Evolução

O politeísmo surgiu com o crescimento do mundo, como uma forma de distribuir melhor as tarefas e evitar o estresse de deus.

Normal

Estaremos mortos, e isso não representará absolutamente nada para nós.

Peça

No fim, morremos. Essa é a parte mais difícil. Não pressupõe prática nem aprendizagem. Difícil é chegar até ela.

Primeiro

Se você me tocasse, a primeira coisa que eu faria seria morrer de gostosura. Depois, não sei.