segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Mario Quintana

Quando voltava de seus namoricos com as nuvens cor-de-rosa, Mario Quintana trazia nos lábios fiapos de algodão-doce.

Linguagem

No início, eram só as interjeições. Aos poucos foram surgindo os substantivos, adjetivos, pronomes e verbos - e com eles se foi a pureza.

De novo Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch é fruto de uma irrepetível alquimia.

Aparência

Ainda que às vezes não pareça, o amor não é a gaiola; é o pássaro.

Um trecho de Gérard de Nerval

"Amei durante muito tempo uma dama a quem chamarei de Aurélia e que perdi para sempre. Pouco importam as circunstâncias desse evento que devia ter uma influência tão grande em minha vida."

(De Aurélia, tradução de Luís Augusto Contador Borges, edição da Iluminuras.)

domingo, 29 de novembro de 2015

Mario Quintana

Mario Quintana era tão íntimo da beleza que poderia chamá-la de lindezinha ou belezoca, como se ela fosse a gata que realmente era.

A resposta

Se perguntarem o que fazemos, digamos a verdade: que nos dedicamos à poesia. Assim mesmo: que nos dedicamos à poesia. Jamais mencionemos a palavra poeta. Ela costuma ser recebida com um ah, é?

Situação

Sou um homem que perdeu muitas crenças, esqueceu alguns ideais e, se mantém ainda certa esperança, é na visita esporádica da poesia.

Esperança

Um dia ele terá uma revelação. E a poesia então se mostrará simples como a água colhida na fonte pelas mãos de um menino.

Alma

Não pode conceber uma alma jubilosa. A sua é alimentada por infortúnios que, quando grandes, ele lhe dá amorosamente, aos poucos, como se estivesse esfarelando biscoitos para um gato.

Pris (ainda)

Priscylla Mariuszka Moskevitch é um desses platonismos que arrepiam a pele.

Da natureza da poesia

A poesia é arisca. O brilho do sol a intimida. Ela costuma aparecer somente em noites de lua pálida ou sob a vacilante palpitação de um solitário vaga-lume.

Pris

Fiz nascer Priscylla Mariuszka Moskevitch de uma das costelas de minha alma atormentada.

Salvaguarda

Se você entrar na casa do amor
não saia nem se a Morte
apresentar um mandado judicial.

Consciência

Depois de cada uma
dessas trovinhas
que te fazem inflar o peito
e bater as asinhas
pensa em Camões
em Pessoa em Dante
e confessa
porque a verdade é essa:
fora dessa tua confraria
em que os poemas se cozinham
em adulações e banho-maria
és nada mais que um farsante.

Obsessão

Aí ele choramingou: "Quero ser escritor." Repetia uma frase dita seis décadas antes, quando era um menino em cujos olhos havia o brilho de uma esperança cujo malogro ninguém então tinha sido capaz de imaginar.

Seja ou seja

Seja a poesia uma alta expressão do espírito, seja apenas uma forma de entretenimento, eu gostaria de saber fazê-la melhor.

Outra vez

Ultimamente venho sendo sendo surpreendido por gestos que não fazia há muitos anos. Hoje colhi no jardim uma flor e a coloquei num envelope. Peguei a caneta e escrevi, letra por letra, aquele nome que, apesar de todo meu empenho, ainda não consegui esquecer.

Questão de tempo

Nesse dia haverá tanta paz em nosso rosto que, se pudéssemos vê-lo, nos perguntaríamos por que custamos tanto a desapegar-nos da vida e de seus embustes.

Uma frase de Gérard de Nerval

"É um erro crer que a simples presença confirma a amizade. Na amizade, como no amor, é preciso liberdade e confiança. Os animais amam-se de perto, os espíritos de longe."

(De Aurélia, tradução de Luís Augusto Contador Borges, edição da Iluminuras.)

sábado, 28 de novembro de 2015

Foto (acervo do IML)

A corda é a última gravata (e a derradeira bravata) dos desafortunados.

Como antes

Na primeira madrugada, a viúva Seixas receou que fosse um ladrão andando pelo quintal. Agora se acostumou: vira-se de lado e volta ao sono. É só o fantasma do marido dirigindo-se ao quartinho em que por tantos anos dormiu a jovem empregada, hoje com justiça morta.

Circunspecção

O sol só não desce para a Paulista porque não ficaria bem para um senhor tão conhecido e respeitado seguir garotas de cabelos loiros e passear com elas pelas galerias, e descer com elas as escadarias, e ir com elas ao metrô, e acompanhá-las até a zona oeste, e fazer-se substituir pela noite no momento de despedir-se delas com um beijo, no portão.

Clandestino

Ontem à noite, quando ela se enxugou depois do banho, um pingo conseguiu esconder-se entre os seus cabelos, para gozar a suprema delícia de dormir com ela.

Dois parágrafos de Liberato Vieira da Cunha

"Separai uns momentos para recordar o último dia em que vos sentistes feliz, liberta de calendários, descalça numa praia; entregue, nua, a um trecho de música; rendida, na penumbra de um quarto, a lindos, interditos cismares.
      E concedei, Senhora, meio segundo desse claro olhar, volvendo-o, feito por acaso, ao sujeito que finge escrever tudo isto, como se alheio ao universo, como se indiferente à tirania de vosso encanto."

(Da crônica "A dama do celular", do livro O silêncio do mundo, publicado pela AGE Editora.)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Soneto da inveja que os rejeitados provocam

Gostaria de ser aquele tonto
Que ao amor se entregou inteiramente
E acreditando nele firmemente
Só teve em troca mágoa e desaponto.

Gostaria de ser aquele idiota
Que abandonado pela noiva um dia
Chorou na igreja enquanto o povo ria
Dele e da sua estúpida fatiota.

Gostaria de ter amado mais,
De ter sofrido golpes mais desleais
E, de assim ofendido e escarmentado,

Fazer como aquele outro desgraçado
Que rejeitado pelo amor surtou
E na primeira corda se enforcou.

Sinônimos

Ela já teve três maridos, doze amantes sérios e dezesseis mais ou menos, além de uma trintena de rapazes catalogáveis nas categorias de casos fortuitos ou ocasionais. O amor ao próximo, para ela, sempre foi o amor ao seguinte.

Nem

Nem no último bendito dia escaparemos dos perdigotos lançados junto com as palavras de consolação e os elogios ao irrepreensível desempenho que tivemos enquanto vivos.

Fatalidade

Se soubesse que ia morrer cinco minutos depois de acordar, não teria interrompido sua sonequinha da tarde.

Símile

Saber por que se escreve deveria ser tão óbvio quanto saber por que se respira.

Mario Quintana

Na calada da noite porto-alegrense, naqueles instantes únicos em que até o Guaíba dormia, Mario Quintana conspirava, com a lua e as estrelas, pela causa da poesia.

Jesus, segundo Jorge Luis Borges

"Uma das pessoas mais extraordinárias da história, que além de tudo tinha um modo mítico de pensar. Pensava através de metáforas; nesse sentido seria um dos maiores poetas da humanidade."

(Do livro Dicionário de Borges, de Carlos R. Stortini, tradução de Vera Mourão, edição da Bertrand Brasil.)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Soneto do rapazinho de aluguel (versão final)

Como te faz mal lembrá-la.
Ah, como ela estava bela,
Sentada junto à janela,
No grande sofá da sala.

Chegaste e foste beijá-la,
E a cada beijo dado ela
Exibia a língua dela
E te mandava chupá-la.

Depois, deitada na cama,
Ela exigiu: "Me ama, me ama."
Mas, quando o sexo acabou,

Ela te mandou embora:
"Nós nos vemos qualquer hora."
Mas nunca mais te chamou.

100%

A um homem nunca se negue
Uma morte que o seduza,
Uma mulher que a produza
Nem um diabo que o carregue.

Cotação do dia

Se você pode morrer por amor, está esperando o quê?

RSVP

Quando eu morrer
não precisas aparecer

Ninguém notará
se tu não fores

Manda um dos teus rapazes
com um macinho de flores.

Circa 2016

Teus futuros escombros
já te pesam sobre os ombros
como um cadáver.

Uma estrofe de W.B. Yeats

"Antes da colina vivia a senhora French, e uma vez
Quando velas e candelabros de prata
Iluminavam o escuro mogno e o vinho,
Um criado que adivinhava sempre
Todos os desejos de tão respeitável dama,
Correu e com as tesouras do jardim
Podou as orelhas de um labrego insolente
E trouxe-as num pratinho coberto."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O trunfo (versão final)

Ela ainda tem a bunda
e sabe que é por ela
que ele ainda
lhe diz palavras amáveis
e tem gestos afáveis
como lhe procurar a chinela
ou lhe preparar o chá

Sabe que é por ela
pela sua bunda
que não será ainda hoje
que ele lhe dirá
minha cara sinto muito
já deu muito certo
mas já não dá

Esse dia virá
mas não hoje
ela tem certeza
mas não já

Quem tem uma bunda assim
pagã não morrerá.

Trajetória

Anteontem num nicho
ontem na caçamba
hoje no lixo.

Decadência

Um meliante
furtou do meu brasão
o leão rampante.

Por que não?

Tudo bem, eu sou pó.
Não quero me eximir.
Mas que pena, que dó,
Não poder ser um pó
Chamado Shakespeare.

Dois versos de Friedrich Hölderlin

"Acaso crês que os deuses em vão abriram
Os pórticos e nos suavizaram o caminho?"

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Revelação

Por anos e anos você pensa que não tem nenhuma importância e de repente descobre que não tem importância nenhuma.

Retrato

Não era bonita
e tinha pelancas
dessas que de um dia
para outro dia aparecem

O que a salvaria
seriam umas boas ancas
se ela as tivesse.

O provedor

Sofrimento sempre houve
e sempre haverá.
O amor é nosso pastor
e nada nos faltará.

Sobre a juventude

"Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?"

(Friedrich Hölderlin.)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Soneto de como nos vemos agora

Não te importas comigo, e eu
Te vejo como se vê
Alguém que se amou e que
Há muito tempo morreu.

Não sinto mais a paixão,
Nem mais aquela agonia
Que intensamente eu sentia
Com teu "sim" ou com teu "não".

Depois de o melhor gozarmos
E de o pior nós suportarmos,
Venceu-nos a indiferença.

Se eu vivo queres saber?
Se vives eu quero ver?
Nenhum de nós em nós pensa.

Soneto do paraíso perdido

Chegou o tempo em que tudo
Que nos nutria morreu.
Foste a culpada? Fui eu?
Não dizes, e eu fico mudo.

O que podemos dizer?
Por nosso falho juízo
Tivemos o paraíso,
Não o soubemos manter.

Pelo que do amor zombávamos,
Pelo desdém que lhe dávamos
E pelo que o escarnecíamos,

Direito de chorar temos,
Agora que nós vivemos
No inferno que merecíamos?

Messe

O que colhes agora é o outono.
Onde estão as flores, aquelas
Que desprezaste?
O que recolhes agora são folhas,
Não tens mais escolhas.
O que mais merecem
Tuas mãos amarelas?

"Mors-Amor", de Antero de Quental

"Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
De noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor.
E o corcel negro diz: 'Eu sou a Morte!'
Responde o cavaleiro: 'Eu sou o Amor!'"

domingo, 22 de novembro de 2015

Soneto do malfadado blog

O blog está na pior fase e a
Saída será fechá-lo.
Deixaram de visitá-lo
Ucrânia, Angola e Malásia.

A Rússia já me abandona
E o mesmo fará a China.
Na minha cara Argentina
Nem mais me lê Maradona.

Enquanto meu sonho sonha
Com leitores na Polônia
E nos Estados Unidos,

Os leitores da Alemanha,
De Portugal e da Espanha
Já me fecham seus ouvidos.

Soneto das aflições que o amor impõe

Quem se dá todo ao amor
E o resto da vida esquece
Todo infortúnio merece
E a desgraça, e o dissabor.

Quem do amor é devedor
Perde o juízo, enlouquece,
Porque ao amor apetece
Ser da alma e corpo senhor.

Quem com ele se endividar
Haverá de se afligir,
Sofrer e se atormentar,

E se ao amor tudo der
Verá o amor lhe exigir
Também o que não tiver.

Revista Rubem

Hoje falo, como quase sempre, de fragmentos, lascas, ninharias que por acaso fazem parte da vida e às vezes são sua única justificativa (www.rubem.wordpress.com).

"O epitáfio de Swift", de W.B. Yeats

"Swift navegou até ao seu repouso;
Não pode aí a feroz indignação
Lacerar-lhe o peito.
Imita-o se fores capaz,
Entorpecido viajante do mundo;
Ele serviu a liberdade humana."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 21 de novembro de 2015

Cotação do dia (4)

Quando declararem amor a você, espere ao menos uns três dias para começar a duvidar.

Cotação do dia (3)

A desculpa que arranjei para não me atirar do viaduto (seria o de Santa Ifigênia, por motivos sentimentais) é a de que ela age assim comigo por me saber masoquista.

Escreviver

Na crônica desta semana, no portal do Estadão, falo de alguns assuntos que costumam causar barracos nas redes sociais (http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/escreviver/criandocasona internet).

Eufemismos (versão final) - Para o Xico Sá

Num mês quente ou num mês frio
Que bom seria se tu
Fosses dar em Katmandu
Ou Portugal de navio.

Aquele

O amor de que vos falo é aquele irrealizável, não aquele que comemora bodas de prata e de ouro com groselha e bolinho de fubá.

Cotação do dia (2)

O mais triste de tudo é ter a certeza de que nunca, nem para os seus dedos nem para os seus dildos, ela murmurou meu nome.

Cotação do dia

Que, quando tocar hoje a pele de seu novo brinquedo amoroso, ela não se lembre de mim. Que eu vá para o inferno levado por meu ciúme, nunca pelo meu rancor.

Soneto de quem censura a amada

Amada, por que te custa
Minha súplica atender
Se é tão fácil entender
Que minha causa é tão justa?

Amada, por que negar
Um beijo, um simples abraço,
Se tudo que tenho ou faço
Somente a ti quero dar?

Amada, por que és mofina?
Querida, por que és sovina?
Não vês como estou sofrendo?

Um olhar teu, um sorriso,
É tudo de que preciso
Para continuar vivendo.

Tesouro

Fio por fio, com a língua amorosa, ele rega a áurea relva que guarda um dos tesouros que ela às vezes lhe oferece.

Mariana Ianelli

Escrever é um dom que Mariana Ianelli e mais alguns poucos têm.

Cartão de visita

Antes de dizer que a ama, ele lambe a orelha dela, para que suas palavras sejam recebidas como devem.

A hora certa

O amor há de ser cobrado à meia-luz, ou luz nenhuma, naqueles instantes em que as longas e mentirosas palavras são substituídas pelos indesmentíveis gemidos.

Parceiras

A demência e a literatura caminham juntas. No meu caso, a demência está sempre alguns passos à frente.

Soneto de como viver sem o amor

Ao amor te escravizaste
De corpo e alma. O que era teu
Inteiro tu lhe entregaste,
E o que foi que o amor te deu?

Fizeste perguntas, tantas,
E o amor não te deu respostas.
Fizeste loucuras, quantas,
Mas o amor te deu as costas.

Com raiva, sem compaixão,
Recusou tua paixão,
Mas por que te preocupares?

Aonde vais, por onde passas,
Há muito vinho nas taças
E putas nos bulevares.

Um trecho de Ubiratan Brasil

"A escrita e a loucura caminham juntas, ainda que por trajetórias tortuosas. As certezas movediças, o humor incerto, o limite frágil, tudo contribui para que alguns escritores alimentem suas obras graças a uma mente totalmente aberta, delirante. Foi o que incentivou figuras tão díspares, como o carioca Rodrigo de Souza Leão, o francês Antonin Artaud e o paulista Renato Pompeu, entre outros, a criarem verdadeiras joias literárias. E também a mineira Maura Lopes Cançado, que escreveu pouco, mas com muita intensidade."

(Extraído do artigo "Carinho e agressão", publicado hoje no Caderno 2 do Estadão.)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Soneto da inaptidão para o sucesso

Não torçam por mim. Sou fraco,
Não tenho prestígio, história,
Não alcançarei a glória,
Serei sempre nulo, opaco.

Escrito está meu destino
E o que nele foi traçado
Foi meu medíocre passado
E meu futuro mofino.

Não conseguirei mudar
Minha maneira de ser,
Nasci para fracassar.

Ah, não apostem em mim.
Eu sou perito em perder,
Perderei até o fim.

Tardiamente

Restou-lhe a luxúria, e ele se lastima por ter se consumido e definhado com o amor e não haver percebido, tanto tempo atrás, que os brincos e as saias justas sempre foram só uma indicação dos pontos em que a carne deveria ser lambida e mordiscada.

Um trecho de W.B. Yeats

"Oh, sábios que estais no sagrado fogo de Deus
Qual dourado mosaico sobre um muro,
Vinde desse fogo sagrado, roda que gira,
E sede os mestres do meu canto, da minha alma.
Devorai este meu coração; doente de desejo
E atado a um animal agonizante
Ele não sabe o que é; junta-me
Ao artifício da eternidade"

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

18h34

Hora de fechar tudo e ficar por conta do Corinthians. Não serão aceitas ligações de amores recentes nem pretéritos. Danem-se todos (principalmente os pretéritos, aqueles cuja blusa tem nos ombros digitais de marinheiros e proxenetas).

Ardil

Às vezes, quando a possui com a imaginação, simula ser outro, para ver se consegue um agradinho especial.

Poder

Desde menino sabe que qualquer mulher do mundo está ao alcance da sua mão.

Inquietação

Há algum tempo mudou para a madrugada o ritual amoroso oficiado diariamente por sua mão. Ela, dormindo no outro lado da cidade, não sabe por que, lá pelas duas, de umas semanas para cá, acorda inquieta. Ele nunca lhe dirá.

Finesse

Ela se julga a salvo dele. É um cavalheiro e não voltará a importuná-la. Se ela soubesse o que faz sua mão direita agora, e que nome seus lábios suspiram.

Uminha

Sua mão direita está a serviço da memória; a esquerda, da imaginação.

Tesão

Roçar a penugem fulva
Que orna e protege a bainha
Da rameira e da rainha,
Preciosa relva da vulva.

Soneto do amor, esse menino

Sejamos justos. O amor,
Para dizer a verdade,
Não tem a ânsia da crueldade
Nem ganas de malfeitor.

O amor é só um bebê
Que encharca de mijo a cama,
Resmunga, embirra, reclama,
Sem ter quê e nem por quê.

É turrão, abominável.
Nós, entretanto, o julgamos
Tão terno, meigo, adorável.

E, por ser assim gracioso,
Que ele nos mate deixamos,
Por matar-nos tão gostoso...

Segredo

Vós, que toda manhã saudais o sol e exaltais a vida, o que sabeis vós que eu nunca soube?

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Eis aí razão bastante para que só cultives a fé no hoje, no agora, neste momento que flui sem retorno.
Para que só depares esperança neste instante e em cada mínimo prodígio de que se tece: o vento da primavera que invade impressentido teu outono; a dança terminal das andorinhas na luz de junho; o olhar da desconhecida que, provinda de teu futuro, habitou há muito e tão intensamente teu passado."

(Do livro de contos O silêncio do mundo, edição da AGE Editora.)

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Paciência

Não se matem pelo amor. Esperem um pouco, que ele fará isso por vocês.

Época

A situação está mais para sóis depoentes que para sóis poentes.

Mario Quintana

O tempo de Mario Quintana era hoje, e sua estação - com as mudanças levíssimas que de vez em quando ele fazia para conseguir mais sol e mais flores - sempre foi a primavera.

O que será

Um dia talvez me descubram - e então saberei se será a glória ou o frio.

Definição

Situação desesperadora é aquela na qual o mínimo que você pode fazer é dar uma assobiadinha, sair de mansinho e ir morrer ali adiante.

O momento

E chegou o momento em que, tendo o romantismo se esgotado nos beijos iniciais, ele sentiu vontade de ser um daqueles personagens que em certos livros se põem a morder, a arranhar e a desembainhar a espada gotejante.

Cena

Seu rosto não estava num de seus melhores dias, mas ele, suspenso acima dos objetos da sala, era, em sua imponente honestidade de suicida, merecidamente o protagonista.

Manobras

Ela tirou o sutiã devagar e o equilibrou meticulosamente sobre o encosto da cadeira. Também devagar, fez descer a calcinha pelas pernas, pegou-a e colocou-a ao lado do sutiã com solenidade, como se condecorasse um oficial. Na cama, ele esperava o momento em que ela afinal viria e seria castigada por sua morosidade e por sua imitação de lua.

Cotação do dia

Sabe hoje que lucraria se tivesse morrido em qualquer ano antes de 2010.

Manobras

Ela tirou o sutiã devagar e o equilibrou meticulosamente sobre o encosto da cadeira. Também devagar, fez descer a calcinha pelas pernas, pegou-a e colocou-a ao lado do sutiã, como se condecorasse um oficial. Na cama, ele esperava o momento em que ela afinal viria e seria castigada por sua morosidade e por sua imitação de lua.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Há pessoas que observam pássaros, navios, estrelas. A mim coube este banal mister de espiar a vida alheia. Não me entrego a ele por inclinação à curiosidade ou por gosto da bisbilhotice. Me aplico a tão estranho encargo pela razão trivial de que não escrevo apenas ante uma folha de papel em branco, uma tela iluminada de computador. Escrevo em cada hora e segundo, lendo, dirigindo, sonhando, batalhando na dura estiva da sobrevivência."

(Extraído da crônica "Ritual de sedução", do livro O silêncio do mundo, publicação da AGE Editora.)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Soneto daquele tipo lá

Como vai ser, minha amiga,
Quando chegar a ocasião
E alguém lhe pedir que diga
Como vai o bobalhão?

O bobalhão serei eu.
Você se recordará
De mim, e do jeito meu,
E dirá: "Aquele lá?

Ele está morto e enterrado,
Morreu de amor o coitado,
Morreu chamando por mim."

E isso que dirá você
Será verdade porque
Tudo terá sido assim.

No "face"

Tu sabes
o que eles querem
de verdade
quando nutrem
tua vaidade
quando te curtem
te compartilham

Tu sabes muito bem
minha querida
o que move cada curtida
o que há por trás
de cada compartilhada

Tu sabes muito bem
o que eles querem
mas talvez tu queiras também
minha adorada.

Nós

Eu era tão infantil
você era tão pueril

Uma tarde
espatifamos o mundo
só por brincadeira

Ainda ouço, minha amada,
aquela barulheira
e nossas gargalhadas.

Personagem

Uivando na lua cheia,
Fuçando sempre no lixo,
Comendo bosta de bicho,
O amor é o louco da aldeia.

"Jane, a louca, acerca de Deus", de W.B. Yeats

"Esse amante de uma noite
Chegava quando queria,
Pela aurora partia
Quer eu quisesse ou não;
Os homens chegam, os homens partem:
Tudo permanece em Deus.

As bandeiras sufocam o céu;
Os guerreiros marcham;
Cavalos com armaduras relincham
No palco da grande batalha
No estreito desfiladeiro:
Tudo permanece em Deus.

Diante dos seus olhos a casa
Que desde a infância estava
Desabitada, em ruínas,
Iluminou-se de repente
Da porta ao telhado:
Tudo permanece em Deus.

Jack feroz foi meu amante;
Tal como um caminho
Por onde os homens vão
O meu corpo não se queixa
Mas continua a cantar:
Tudo permanece em Deus."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Cotação do dia (2)

Há pessoas que não se importam em nos matar, desde que seja mantido seu ponto de vista.

Jeito

Assim como o amor, algumas flores, quando murcham, se recusam a recuperar o viço, ainda que regadas pelas chuvas mais bonançosas. Só as mãos certas e palavras afetuosas são capazes de fazê-las voltar à vida.

Um trecho de Friedrich Hölderlin

"Apenas a ti, heroína, a tua luz te mantém na luz
E a tua paciência, amável, te mantém no amor;
E nem sequer estás só; estás acompanhada nos teus jogos,
Onde quer que floresças e descanses entre as rosas do ano;
E o próprio Pai te envia ternas canções de embalar
Pelas mãos de musas que respiram suavidade.
Sim, é ela mesma! Ainda vejo diante dos meus olhos a Ateniense,
Em corpo inteiro, pairando e aproximando-se em silêncio, como dantes.
Espírito amável! E tal como da fonte dos teus pensamentos serenos
O teu raio de luz recai, abençoando, sobre os mortais;
Do mesmo modo mo demonstras e dizes, para que eu a outros
O repita, pois também outros há que o não creem,
Que a alegria, mais imortal do que os cuidados e a fúria,
Num dia áureo se tornará por fim quotidiana."

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Cotação do dia

Amanhã serão pó essas pedras com que nos ferimos, mas já terá passado o tempo das rosas.

domingo, 15 de novembro de 2015

Por quê?

Como entender a birra contra crianças que vivem perguntando por quê?, se os filósofos, aqueles adultos metidos a sabichões, não fazem outra coisa?

Cautela

Antes de te pores a testar cordas e premeditar venenos, convém que te conheças a ti mesmo, para não matares a pessoa errada.

"Uma flor entre as páginas", de Mariana Ianelli

"Olhai o jasmim como cresce
Entre o muro lamacento e o telhado,
Como continua a florir no meio dos campos gelados -

Nem o lírio dos Evangelhos
Nem a rosa branca de Rilke
Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles."

(De O amor e depois, publicação da Iluminuras.)

sábado, 14 de novembro de 2015

Cotação do dia (3)

Ao pular do viaduto, procurou, com extrema concentração, não pensar nos heróis da sua infância.

Cotação do dia (2)

Antes de saltar de cima da mesa, ainda apertou o laço, como se acertasse uma gravata.

Cotação do dia

Sente-se como um morto que, tendo conhecido  por alguns instantes o lado de lá, e gostado, acorda ensurdecido pelas exclamações de júbilo por sua volta.

Único recurso

Quando os beijos já superavam duas dezenas, e cada um que se acrescentava era mais longo que todos os anteriores, ele imaginou por quanto tempo conseguiria, só com eles, manter ainda em seus braços aquela mulher que começava a arfar como uma triatleta concentrando-se para o esforço final numa prova.

A vantagem

Quando, depois de trocarmos comentários sobre nossas dores, ele acrescentou, como derradeiro trunfo, que a dele era crônica, senti inveja, por ser tão literário seu mal.

!!!!!!

Há exclamações que não temos o direito de conter: com todos os diabos, como escreve o Liberato Vieira da Cunha!

Mario Quintana

Tantos poetas - e, no entanto, é sempre o Quintana que eu pego na estante quando quero saber coisas do amor.

Viciado

Às vezes ele se lastima pelas insinuações eróticas que há em alguns de seus mais puros impulsos. Como este, agora, de recolher com a língua, nos olhos dela, as duas lágrimas com as quais, ao mesmo tempo, ela se despede dele e quer retê-lo.

Mario Quintana

Ser Mario Quintana sempre foi para Mario Quintana a maneira mais simples de ser.

Agora outrora

Como a um sorvete
ele a lambeu
com língua reverente
e unindo passado e presente
com lentidão ritual
lhe parecia ser
um menino que lambia
chocolate
morango
pistache
com primícias de pecado
e sugestões de sal.

Dois parágrafos de Liberato Vieira da Cunha

"Pois, mais do que uma peça teatral, a vida é sonho. Ninguém te devolverá os segundos que extraviaste com dispensáveis pesares, infortúnios descartáveis, sofrimentos vãos.
   E os deuses não te perdoarão, ao bateres às portas do Paraíso, cada minuto em que ignoraste a arte de amar."

(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, Editora AGE.)

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Culpa dos adjetivos

Ele a idealizou tanto que, quando ela mostrou ser o que era - uma esplêndida mulher de magníficas tetas, coxas soberbas e uma bunda majestosa, capaz de finalmente empinar o pipiu do Davi de Michelangelo -, ele a achou igual a todas as outras.

Plano B

Por um ideal ou por uma mulher. Gostaria que sua morte tivesse um sentido, algum sentido, qualquer sentido - de preferência grandioso, para compensar sua vida fracassada.

"Tecendo a manhã", de João Cabral de Melo Neto

"Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão."

(De Novas seletas, publicação da Editora Nova Fronteira.)


Cotação do dia (2)

Mostremo-nos como somos: desprezíveis. E, se alguém revelar compaixão por nós, sejamos ainda mais desprezíveis: aceitemos.

Motivos

Se não fossem o amor e a arte, por que resistiríamos à tentação de tantas cordas, tantos venenos, tantos viadutos, e aos mornos beijos da água da banheira em nossos pulsos, suplicando para ser colorida com o nosso sangue?

Cotação do dia

Quando nem a ideia do suicídio o excita mais, está na hora de você mudar alguma coisa na sua vida.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Soneto da falsa concepção de vida

Por mais que a venham louvar
Os poetas epicuristas
E os ingênuos hedonistas,
A vida não é gozar.

O gozo é um instante raro,
Um relâmpago, um clarão,
Um engano, uma exceção,
Pelos quais pagamos caro.

Existe o amor, é verdade,
Mas ele na realidade
Nunca é o que os tolos pensam.

O amor é um desses tormentos
Que fazem, nalguns momentos,
Morrer ser como uma bênção.


Mario Quintana

Aquele sorriso maroto nos lábios de Mario Quintana parecia o de quem estivesse ouvindo piadas picantes de um querubim.

Uma estrofe de W.B. Yeats

"Mais se demora a imaginação
Na mulher ganha ou na mulher perdida?
Se na perdida, admite que te afastaste
De um grande labirinto por orgulho,
Covardia, alguma parva e excessiva sutileza
Ou qualquer coisa que já se chamou consciência;
E que se à memória se recorre, o sol
Entra em eclipse e o dia em extinção."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicação de Assírio & Alvim, Lisboa.)


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Ouro

Hoje que não mais o digo
Sei que, quando eu o dizia,
O teu nome era poesia
Na garganta de um mendigo.

O sonho

Sempre que sonha, ele volta dos setenta anos para os dezesseis e segue atrás do cheiro morno da rameira para a qual nunca teve dinheiro suficiente. Ele a alcança numa das esquinas sombrias do sonho, mostra-lhe um maço de notas, sobe com ela ao quarto e pela primeira vez lança o leite juvenil dentro do corpo de uma mulher. Quando acorda, conserva ainda por alguns instantes o sorriso de gozo, antes de, como sempre, sentir que está encharcado de mijo.

Aquele

O amor é aquele maltrapilho a quem mandamos uma criada levar rapidamente um pãozinho, para devolver a paz à nossa consciência e o aroma de rosa ao nosso jardim.

Amor

Um dia tu dizes: sim,
Agora acabou. No entanto
Tu disseste isso já tanto
Que hesitas: é mesmo o fim?

Memento

De ninguém que já morreu
Jamais se deve ter dó.
Um morto é um pouco de pó
Que atingiu seu apogeu.

Instinto

Um coração velho encolhe-se e refugia-se mais para o fundo do peito sempre que ouve aproximar-se o caminhão do lixo.

Experiência

Eu que conheço bem
os pecados e os vícios
digo a vocês que o amor
é o malefício dos malefícios.

Soneto do amor soberbo

Também eu já fui incauto
E, encantado pelo amor,
Dele me tornei fiador
E seu mais convicto arauto.

E, por seus olhos traiçoeiros,
Por sua fala enganosa,
Por sua boca de rosa,
Sacrifiquei meus cordeiros.

Calando os orgulhos meus,
Eu o proclamei meu deus
E dei-lhe a alma e o coração.

Com desdém ele me olhou,
Os presentes apalpou
E, soberbo, disse "não".

"Envelhecer", de Mario Quintana

"Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas."

(De Os melhores poemas de Mario Quintana, Global Editora.)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

"Alguns gostam de poesia", de Wislawa Szymborska

"Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Leitura e literatura

Amanhã, terça, às 10h, estarei num bate-papo na Biblioteca Amadeu Amaral, no Jardim da Saúde.

Mario Quintana

Diante das frases de Mario Quintana, tão simples e graciosas, tenho sempre a tentação de compará-lo a um gato muito jovem perseguindo uma bolinha de pingue-pongue astuta e rápida como uma lebre.

www.rubemwordpress.com

Na crônica deste domingo falo de miudezas, essas coisas das quais é feita a vida.

Mario Quintana

Para conquistar corações, arte na qual ninguém o excedia, Mario Quintana usava só um sorriso, que pertencia a dois rostos: ao dele e ao da sua poesia.

Soneto da frase que resume tudo

Chego ao tempo em que toda a minha vida,
Com tudo que de bom nela fruí
E todo o mal que nela padeci,
Pode ser numa frase resumida.

Outros, de mente mais esclarecida,
Quem sabe tenham visto o que não vi.
Eu digo, simplesmente, que vivi,
Da maneira mais simples conhecida.

Nunca fiz mais do que fazer eu pude
E nunca tive uma especial virtude.
Pelo apreço que tenho ainda à verdade,

Eu só tenho a dizer, e lhes direi,
Que sempre tudo quanto cultivei
Nada foi além de mediocridade.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

13h21

Fui entregar as chaves da loja na imobiliária. O dono as pegou e me desejou boa sorte. Agradeci. É tudo que tenho a dizer. Caberia aqui literatura? Era uma loja, só, não uma urna grega.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A palavra

Se amor for a palavra que você tem a dizer, diga-a antes que alguém a diga melhor que você.

Filosofices em torno da loja

16h51. Um senhor, desses que pela aparência mereceriam sempre o título de filósofos, entrou para falar comigo. Claro que começou a conversa perguntando: por quê? Por que estou fechando a loja? Eu respondi genericamente: por uma porção de coisas. E sugeri ter passado  recentemente por um drama pessoal. Ele, certamente um conhecedor das fraquezas humanas, arriscou: a morte de um ser amado? Neguei. Bebida? Neguei. Jogo? Neguei. Mulher?, ele tentou. Eu não disse nada, só sorri (e nesse sorriso ele talvez tenha notado uma acusação de charlatanice). Em qual acontecimento da vida de um homem, venturoso ou catastrófico, não se adivinha a mão de uma mulher?

Tema

Há muito o amor não é mais assunto,
Há muito é um tema já esgotado,
Tão sem sentido e tão desbotado
Como um lírio na mão de um defunto.

Lógica

Por que não hás de chorar, se até a tua musa ri de ti?

Má companhia

Sei finalmente por que sou este ser indigno. Li o pernicioso Lobato na juventude.

Norte

Por rumos certos ou tortos,
Queiramos ou não queiramos,
No fim nós sempre chegamos
À morte, porto dos portos.

Solamente una vez

Por mais belo que seja, e ainda que atinja a perfeição, o suicídio nunca é um sucesso que chegue à segunda edição.

Penúltimos instantes da loja

13h45 - Amanhã à tarde entregarei as  chaves. Sentado aqui, no meio deste vazio, sinto-me como o participante único de um velório antecipado. Há alguns minutos um cachorro parou na calçada e olhou aqui para dentro. Deu um latido cujo significado não entendi e, depois, ergueu a pata e deixou anotada sua presença antes de seguir seu rumo. Terá sido uma homenagem, minha loja querida?

Carreira

Vocacionado para o suicídio, jamais investiu suficientemente nesse talento.

Body and soul

Gostaria de tê-la visto nua, ao menos uma vez. Tem certeza de que acharia perfeito seu corpo, assim como achou dócil sua alma cruel.

Um trecho de "Os sofrimentos de Werther", de Goethe

"Oh! que fogo devorador me corre nas veias, quando por acaso nossos dedos se tocam, ou quando os nossos pés se encontram por debaixo da mesa! E, apesar de fugir logo com eles, como de um braseiro ardente, uma força secreta me obriga a chegá-los novamente, numa vertigem que se apodera de todos os meus sentidos! E se, a conversar, ela pousa a sua na minha mão, ou, no interesse do diálogo, se aproxima de mim, bafejando-me o rosto com o seu delicioso hálito, parece-me que vou cair aniquilado, como que ferido por um raio... E, Guilherme... se eu ousasse... aquela celestial candura... aquela confiança... Mas não... não... este coração não está assim corrupto! Fraco, sim... fraco é o que ele é, mas essa fraqueza não é corrupção. Carlota é sagrada para mim; todos os meus desejos se calam na sua presença. Junto dela perco toda a consciência de mim próprio... é como se a minha alma se me espalhasse pelos nervos."

(Da coleção Grandes romances universais, tradutor não mencionado, edição da W.M. Jackson.)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Antepenúltimos gemidos da loja

Hoje, lá pelas quatro e meia, um senhor abrigou-se embaixo do toldo. Olhou para dentro, talvez na esperança de que eu fosse vendedor de capas ou guarda-chuvas (ah, como os homens, apesar de tudo, são crédulos). Vendo tudo vazio, estranhou: "Está esperando entregarem os móveis?" Eu disse que sim, evitando a tentação de lhe contar a verdadeira história. Ele fez mais uma pergunta: "Aqui vai ser o quê?" Eu respondi que vai ser uma loja. "Mas loja do quê?" Menti: "De artigos esportivos." Ele olhou para os três sacos de lixo: "O dono antigo largou tudo isso aí?" Fiz que sim. O homem balançou a cabeça: "Ele tinha cara de doido. Eu nunca entendi o que ele vendia aqui." Antes de ele acenar e sair de volta para a chuva, eu disse: "Eu também não."

Aplicativo

As noites de quarta-feira se tornaram mais excitantes depois que ele mandou tatuar um santo ajoelhado nas costas, ali onde ela o chicoteava gritando: "Geme, filho da puta! Geme!"

Por inteiro

Ela era ruiva também ali, como ele imaginara, e seus dedos, que um minuto antes tinham se enfiado entre as chamas dos cabelos, sentiram, pelo morno contraste, o que Nabokov quisera dizer com a expressão "fogo pálido".

Fiapos

Toda vez que se lembra do umbigo dela, como o viu naquela noite, ergue a língua até o lábio superior. Mas jamais recuperou o gosto que sentiu, e o aroma, naquilo que parecia ter só a aparência de um caroço de pêssego.

Sutiã

Às vezes ele pede à mão que o leve de novo à tarde em que, adolescente, apalpava no cinema o sutiã da namoradinha enquanto a beijava. Chega a sentir um cheiro de balinha misturado com saliva no banheiro e acaba-se num gozo que se exacerba quando a memória traz de volta a voz da garota: "Devagar! Isso. Não. Aperta!"

Pornografia

A pornografia é um erotismo que se cansou de comportar-se bem.

O dedo

Tirou o dedo médio do monte coberto de escura relva. A mulher, que estava com os olhos semicerrados pelo gozo, abriu-os: "O que foi? Não está bom? Continua." Ele trouxe o dedo à boca, suspirou: "Delícia. Você é tão... salgada. Uhm..." Ela agarrou o dedo dele, deu-lhe uma lambida, duas: "Delícia mesmo. Ai, põe ele de novo lá. Põe ele no meu sal."

11h43

Pareciam tantos, os objetos da loja. Reduziram-se a três sacos de lixo de 50 quilos: uma mixórdia de recordações miúdas, de lembranças, de bugigangas, de medíocre história. Que tolice comete quem, em nome do amor, santifica tantas baboseiras. Postos aqui neste canto ao lado da porta, os sacos parecem três soldados vencidos, obrigados a permanecer em pé por um regulamento ao qual juraram obediência, num tempo mais que remoto. Quando eu os colocar fora, hoje à noite, os cachorros não se deterão para cheirá-los. Não erguerão a pata. Nem urina merecem três soldados sobre os quais pesam o vilipêndio e a desonra. Quando forem descarregados no aterro municipal, talvez alguns dos objetos chamem a atenção dos catadores. Um menino talvez pegue um dos livros e resolva ficar com ele, enganado pelo título: Fantasma sai de cena. Pensará ser o relato das aventuras de um herói. E Philip Roth entrará pela primeira vez num barraco de favela. Bem, o que importa dizer é que a loja está vazia. Mas ficarei sentado aqui ainda, com as prateleiras vazias, até sexta-feira. Não me eximirei de um minuto sequer do sofrimento que construí para mim.

Análise literária

A literatura começa a ficar interessante quando você percebe que onde se diz ele (ele pediu um beijo à mulher, ele a viu sorrir) se quer dizer você: você pediu um beijo à mulher, você a viu sorrir, você a beijou impetuosamente, porque os olhos dela lhe ordenavam isso, como os de uma rainha subitamente encantada com o olhar atrevido de um lacaio e com a pulsação de sua braguilha, na qual parecia debater-se um peixe fisgado.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Aos amigos do facebook

Estou saindo do facebook de forma um pouco menos indelicada do que na primeira vez, quando fui abrupto e grosseiro. Para não deixar sem resposta os amigos virtuais e tratá-los como merecem, sem fazer "listinhas" de preferidos, venho passando seis horas diárias lá. Tem sido prazeroso, mas ando extremamente cansado. Sexta eu saio definitivamente. Até lá irei me despedindo, com o carinho que devo a todos. O contato no face é tão direto e "íntimo" que vem me incomodando ver tanta gente boa e honesta ler o que escrevo, comentar os textos comigo (e até elogiá-los), quando me sinto cada vez mais inseguro do que faço e cada dia mais tentado a me considerar um farsante, um homem que se expõe ao máximo, como um pedinte sentimental. Isso não é literatura, é chantagem emocional, é matéria para psicanálise. Aproveito esta palavra (psicanálise) para fazer constar que, assim como na primeira vez, minha saída tem relação com o ingresso, no face, de pessoas que acendem meus mais desencontrados sentimentos e acabam me levando, sempre, à paranoia e à depressão. Uma delas, em especial, me tornou irremediavelmente insano e doente, com uma campanha de desmantelamento psicológico que dura já cinco anos, com tréguas que são também instrumentos de tortura. A ela concedo todos os méritos pela crueldade que tão eficazmente soube usar comigo. Deveria dizer-lhe o nome, para que outros não sejam destruídos, embora certas destruições possam ser consideradas doces por tolos como eu. Tentarei ir curando este homem frágil para buscar em mim alguma coisa que possa ainda, quem sabe, servir a alguém, se bem que apenas como entretenimento. Talvez escreva ainda para este blog, esporadicamente. Gostaria que fossem textos capazes de me levar a uma maturidade que eu já deveria ter atingido. Aqui eu posso ser mais digno. Tenho no máximo cem leitores por dia; no face eram (ou serão até sexta-feira, quando eu me afastar) 1.700 amigos - e por serem isso, amigos, usei-os em benefício de meu ego, dando piruetas e cambalhotas em troca de mimos e aplausos. Sinto muito.

11h21

Comecei a recolher os objetos na loja. A sempre tola emoção torna o ritmo lento. Preciso acelerá-lo. Devo ver, enfim, o que qualquer homem sensato veria: o amor é uma balela, e bizarros são seus objetos. Até sexta tudo estará terminado e chamarei a caçamba. Obrigado a quem visitou a loja e a quem manifestou o desejo de visitá-la. Já não vale a pena, agora. Quem se interessa em olhar para uma pilha de lixo? Quem acreditará que, remexendo-a, possa encontrar algo mais que boboquices às quais um cretino deu um valor exagerado, ligando-as ao amor? Sexta voltarei a me fechar ao mundo, como convém a quem não sabe lidar com ele. Fiz isso uma vez, há alguns anos, mas recaí na tentação de me exibir. Continuarei dando vazão a minhas sandices por aqui, talvez, ou nem isso. Será um registro que fará sentido só para mim. Nada mais de curtir, compartilhar, comentar. Desisti de fazer-me entender. Jamais consegui mostrar-me como queria ser visto pelas pessoas às quais mais me interessava expor-me. Se continuar escrevendo (crônicas ou contos), me refugiarei na comodidade da terceira pessoa. A primeira pessoa, aquela pela qual se exprime a alma, morreu de cansaço e incapacidade.

Malévola

A glória literária
é uma cortesã
que te nega hoje
o que te recusará amanhã.

Rotação

O mundo não gira todo o tempo em torno do egocentrista. Só dezesseis horas por dia, já abstraídas as oito regulamentares de sono.

De Mario Sergio Conti para Ivan Lessa

"21/11/00
Preclaro Ivan,
não aguento mais ouvir falar de poesia. Sobretudo das suas poesias. Mudo o papo para um tema definitivamente másculo: balé.
Botei paletó e gravata e fui ao balé. De táxi, pois o tempo urgia. Na rua Xavier de Toledo, entre a Biblioteca Mário de Andrade e a ladeira da Memória, o trânsito encaralhou de vez. Disse ao chofer que iria o resto do caminho a pé. Ele me olhou como se tivesse dito que iria me atirar da amurada da ladeira da Memória. Vaticinou que não chegaria vivo ao teatro. Fiz ouvidos de mercador e desci do carro, depois de pagar-lhe o preço da corrida. Gritei: 'Olha o rapa!' e, qual o mar Negro ante o cajado de Moisés em Exodus, o oceano humano se abriu e passei, célere, antes que se fechasse novamente. Sentamos na quinta fileira.. O espetáculo era A rota da seda. Achei-o deslumbrante. Não existe nada mais lindo do que corpos femininos em movimento. E que corpos."

(Do livro Eles foram para Petrópolis, correspondência entre Conti e Lessa, publicado pela Companhia das Letras.)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Soneto do que não se deve negar a um morto

Quem a um morto há de negar,
Mesmo a um sem eira nem beira,
A visita derradeira
Ou aquele último olhar?

Quem, mesmo a um morto sem classe,
Compaixão recusaria
E a presença negaria
Se a ocasião se apresentasse?

Quem agiria assim, quem?
Diríamos que ninguém.
No entanto, certos defuntos

Não há quem queira tocá-los
E nem sequer mencioná-los,
Como indigestos assuntos.

Resolução

Ontem à noite, sem conseguir dormir, cheguei à decisão que há muito deveria ter tomado: até domingo fecharei para sempre a loja. Há já um interessado em alugá-la, e, se bem que eu imagine quanto trabalho e sofrimento me dará reunir todos os meus objetos amorosos, não voltarei atrás. Farei tudo com calma. Não posso pegá-los aos montes e enfiá-los em sacos. Hei de examinar novamente um por um, cada qual com a merecida reverência. Que destino terá a maior parte deles já está resolvido, também. Eu os atirarei ao fogo. Os poucos que sobrarem serão os que me farão companhia em casa até o dia derradeiro, que me parece estar próximo. Se mantiver a lucidez até o fim, é provável que  me faça queimar também, com essas memórias - se não julgar indevido, como julgo agora, misturar meu corpo impuro e inútil a fragmentos de alma.

Soneto do nosso amo, o amor

Ele é o nosso pior vício.
Já desde o primeiro olhar,
O primeiro toque, o início,
Se empenha em  nos ensinar

Que só para conhecê-lo
É que viemos a nascer
E que só em entretê-lo
Devemos nos entreter.

Ele nos manda cantar,
Ele nos manda dançar,
E nós cantamos, dançamos.

Se exigir que nos matemos,
Por ele nos mataremos,
Como os servos pelos amos.

Eles (nós)

Há seres humanos mais malignos e destrutivos que a lepra, a peste, o câncer e as guerras. Quem melhor do que nós para saber disso? Eles são nossos semelhantes.

Os que

Os rejeitados pelo amor são devorados pelo ciúme, pela inveja, pelo ressentimento. Vivem sob o signo da mesquinhez e morrem secos, tristes, amargurados. Até a memória que deixam é amaldiçoada.

domingo, 1 de novembro de 2015

Condição

Há mulheres que, quando elevadas à condição de deusas e levadas às estrelas, sentem vertigem e descem correndo para a companhia de basbaques.

Protesto (para o Xico Sá)

Que raiva!
Aumentam os impostos
e cadê lady Godiva?

Cotação do dia

Morrer por amor é algo que se deve fazer logo, imediatamente, enquanto ele merece ser chamado por esse nome.

Internet

Eles te curtem, te comentam, te compartilham, minha cara. Mas não te enganes: querem o mesmo de ti - e não são teus lindos olhos, nem o perfil que alteras diariamente.

Divina

Zelda foi coerente: viveu e morreu maravilhosamente louca.

A causa

Se você pode morrer pelo amor, por que escolherá outra tolice?

12h13

Tenho pensado em mudar-me para a loja. Aos domingos - dias em que abri-la seria quase como pedir que me enfiassem numa camisa de força -, atormenta-me a saudade dos meus objetos queridos, daquele sachê de açúcar que recolhi disfarçadamente, daquele pedacinho de rótulo que ela arrancou de uma garrafa e que peguei como se fosse jogá-lo fora. O amor vive só - e ainda - nessas miudezas que, tocadas, fazem o coração bater como os tambores de mil antropófagos celebrando uma ceia.

Estrepe

A dor amorosa não respeita domingos nem feriados. Dói. Dói. Não nos deixa viver. Não nos deixa morrer em paz.

Júbilo

Na manhã em que se descobriu apaixonado, precisou sentar-se num dos bancos do jardim por onde caminhava, para não cair. O gorjeio dos passarinhos transformara-se num som retumbante e jubiloso, como se vindo de um órgão testando as paredes de uma catedral.

E agora?

A vida vai mudando nossas opiniões. Algumas obrigações, como a de morrer, acabam se tornando hipóteses aceitáveis - e até agradáveis.

Apontamento

Que a vida seja uma referência para a arte, não uma diretriz.

Um trecho de Gore Vidal

"A prova de que a vida humana pode ser tão perfeitamente sem sentido, vista à escala de uma sociedade humana quanto o é na eternidade, deixou aturdida uma geração inteira, e o choque causado por essa constatação, mais do que qualquer outra coisa (certamente mais que as descobertas dos terapeutas mentais ou das novas técnicas de automação industrial), provocou um deslocamento dos valores humanos, que por sua vez tornou inevitável uma coisa como o Novo Romance."

(Do livro De fato e de ficção, tradução de Heloisa Jahn, edição da Companhia das Letras.)