sábado, 30 de abril de 2016

14h21

Hora de sair, para o lançamento do livro de uma querida amiga. Se no caminho encontrar Priscylla Mariuszka Moskevitch, farei o que ela faz comigo há três anos e quatro meses: fingirei que estou morto - o que não será muito difícil.

Sacrilégio

Levado da breca
o passarinho tomou vinho
do copo de Frei Caneca.

Cotação do dia

Que sentimento pode provocar-me quem se mate por amor? O de inveja, certamente.

Cotação do dia

Às vezes ele acha que morrer seria uma bela vingança. Só não sabe contra quem.

Mario e Manoel

Imagino, feita à mão por um deles, a placa: Quintana e Barros. E, lá dentro, seu Mario e seu Manoel empenhados nas duas únicas atividades do escritório: a beleza e a poesia.

"Diálogo", de Luis Fernando Verissimo

"Temos que confiar no amanhã."

"A não ser que descubram alguma coisa contra ele durante a noite."

(De Poesia numa hora dessas?, edição da Objetiva.)

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Rifão

Em casa que não tem pão
não há farinha de rosca
nem entra ladrão.

Agenda

O melhor de tudo
é não prosseguir
o melhor de tudo
é protelar
o melhor de tudo
é desistir
o melhor de tudo
é renunciar

O melhor de tudo
é não cumprir a rota
o melhor de tudo
é deitar e dormir
sobre os louros da derrota.

Soneto da frivolidade do amor

O amor, nos primeiros meses,
É todo dedicação,
É todo pura afeição,
É todo gestos corteses.

Gentil, cordato, obediente,
Tudo que dele queremos
Sem nenhum esforço obtemos,
Tudo ele nos dá, contente.

Assim é. Depois, porém,
Que ele cativo nos tem,
Parece se arrepender.

Já não lhe importa se estamos
Vivos ou se nos achamos
A dois passos de morrer.

"Ocaso", de Georg Trakl

"Sobre o lago branco
Partiram os pássaros selvagens.
No crepúsculo sopra de nossas estrelas um vento gelado.

Sobre os nossos túmulos
Inclina-se a fronte despedaçada das trevas.
Sob carvalhos, balançamos numa barca prateada.

Sempre ressoam os muros brancos da cidade.
Sob arcos de espinhos,
Oh irmão, ponteiros cegos, escalamos rumo à meia-noite."

(De De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, edição da Iluminuras.)

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Falsa sapiência

Os que têm o amor como assunto único talvez mereçam ser chamados de idiotas. E muito mais, ainda, os velhos, que sempre falam com base numa suposta sabedoria. Se há quem entenda de amor são os jovens, enquanto durar sua juventude.

Ideais

A poesia foi um desses valores que eu tive como absolutos. O amor foi outro. Ainda hoje, apesar de tudo, sou tentado a acreditar neles. Há quem tenha dezoito anos uma vez, na vida. Outros jamais saem dessa idade.

"Nostalgia", de Luis Fernando Verissimo

"Ah, os anos 60...
Eu com dor de cotovelo
(e muito mais cabelo)
ouvindo a Cely Campello
tomando uma Cuba com gelo
e pensando em como eram bons os anos 60
quando se tinha a lembrança distinta
que bons mesmo foram os anos 40
embora menos, claro, do que os 30.
Hoje não consigo pensar assim
por mais que tente.
Ah, como eu era mais nostálgico
antigamente..."

(De Poesia numa hora dessas?!, publicação da Editora Objetiva.)

quarta-feira, 27 de abril de 2016

17h13

Fechar a loja. O gato que acolhi e passei a chamar de gerente ficará aqui, tomando conta dessas coisas que há muito eu sei interessarem só a mim. É uma loucura, isto: uma loja de lembranças amorosas. Os poucos que entraram aqui, neste ano em que a mantenho, não levaram objeto nenhum, até porque eles não estão à venda. Se Priscylla Mariszka Moskevitch um dia viesse, a ela talvez interessasse uma dessas bugigangas. Mas a ela eu não cobraria nada, só um de seus sorrisos, cuja imagem já se vai apagando. Quem quiser conhecer melhor os detalhes de insanidades como esta, que me acomete, leia O O museu da inocência, de Orhan Pamuk. Mas aviso: é um livro tão pungente que, depois de o ler, eu me senti várias vezes tentado a deixar esta insuportável vida.

Bem ali

O melhor sorriso é aquele que se abre no escuro, a um centímetro dos lábios amados.

Cotação do dia

Um sorriso de vez em quando, por que não? Os outros também não fingem?

Soneto do que trouxemos do mar

Ontem, quando saímos mar afora,
Quem viu o nosso rosto sorridente
E o nosso orgulho, quase prepotente,
Espanta-se ao ver nosso rosto agora.

Com que ânimo e com que intenção ardente,
Ontem, ao resolver que era já hora,
Gritei aos homens "Vamos já embora"
E eles me responderam: "Sempre em frente!"

Quantos anseios, quantas esperanças
Levamos nós à decisão do mar,
De suas tempestades e bonanças.

Cumprimos todas as mil e uma rotas
E o que trazemos hoje, ao regressar,
É o cansaço de todas as derrotas.

Aleluia

Se um homem, estando a cinco passos da morte, insiste em continuar nos falando dos maçantes episódios do seu amor malogrado, regozijemo-nos por ser tão curto seu caminho.

Amigos

"De vez em quando o Raul até ria, lembra?"
"É. Mas logo se arrependia. Que enjoativo o cheiro dessas flores!"

Um poema de Giorgios Seferis

"Flores da pedra diante do mar verde
Com veias que me lembram outros amores
Brilhando sob a chuva lenta e fina.

Flores da pedra, figuras
Surgidas quando ninguém falava e que me falastes
E que me permitistes tocar-vos após o silêncio
Entre estes pinheiros, os loureiros selvagens e os plátanos."

(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, Coleção Nobel.)

terça-feira, 26 de abril de 2016

22h36

Dormir. Que o homem com quem Priscylla estiver seja mais feio e desinteressante que eu.

O fator

Estarmos nós bem ou não,
Seja no tempo que for,
Depende sempre do amor
E sua disposição.

Causa perdida

Nada mais agora importa,
Tanto faz ser ou não ser.
Que sentido há em viver,
Se o amor já é letra morta?

Mas não

Está escuro e frio. Poderia ser a morte, se o amor nos permitisse esse luxo. Ele nos quer bem vivos, para louvá-lo.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Talvez não demore a época em que proscreverão os livros, banirão os sonhos, exilarão os poemas. E seremos todos comportados autômatos, alheios aos mistérios do amor, incapazes de distinguir o som de uma canção do ruído espectral de máquinas que pouco a pouco engolirão o mundo."

(De O silêncio do mundo, publicado pela Editora AGE.)

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Nós, no salão, e a música

Estamos todos indo.
Cada dia é um a menos na dança,
cada noite se desfaz um par.
Os princípios foram bem estabelecidos,
nem os músicos estão excluídos.
Ontem se foi aquele senhor bonachão
que tocava o tambor como se instigasse
não dançarinos, mas um batalhão.
Esperemos, eu te digo,
aqui é o salão, este é o lugar.
Cada dia é um a menos na dança,
conservemos a esperança.

Alvo errado

Não compreendo a insistência com que me perguntam se é bom ser escritor. Por que não perguntam a um?

Mario Quintana

Assim como Olavo Bilac, Mario Quintana era capaz de ouvir e de entender estrelas. Mas só as gaúchas.

Mario Quintana

Conhecendo o espírito romântico de Mario Quintana, as estrelas, assim que o viam, se punham a piscar.

Linha de montagem

Georges Simenon poderia chamar-se Georges Simenon Olivetti. Era uma máquina de escrever.

Busca

Procurei o amor algures.
Procurei alhures.
Encontrei nenhures.

Só ali

Está sempre com o sexo na cabeça. É o problema. Sempre na cabeça, só.

Reflexo

Teus dedos estão de tal modo pervertidos que, quando ela aparece ou te lembras de sua voz, eles ficam logo inquietos, molhados, escorregadios e mal-intencionados.

Sob nova óptica

Entre os analistas modernos, o flerte, o galanteio e até as preliminares são consideradas ações meramente protelatórias do ato sexual.

Sabedoria

Como diz o velho deitado:
para dormir bem,
durma sempre agasalhado.

Um poema de Giorgios Seferis

"Nas grutas marinhas,
Há uma sede, há um amor,
Há um êxtase
Tão duros quanto as conchas;
Podemos sustentá-los na palma da mão.

Nas grutas marinhas,
Dias inteiros eu te olhei nos olhos,
E eu não te conhecia
E tu não me conhecias."

(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, Coleção Nobel.)

domingo, 24 de abril de 2016

Sem tirar nem pôr

A mais deliciosa conquista do sistema decimal foi o sanduíche de metro.

Índex

Que o amor nos tenha matado é a lógica, nada mais. Que tenhamos gostado tanto talvez seja sem-vergonhice.

Cotação do dia

Quem há de me respeitar? Sou um desses homens que choram se veem um passarinho morto.

Saldo negativo

Dissemos ao amor tantas palavras, todas recusadas. Deveríamos ter dito outras tantas. Como justificaremos todas essas lágrimas que insistem em vir todos os dias, como se as trouxesse o sol?

Honestidade

Quando me vi no apogeu
puxei logo a identidade e mostrei:
ei, esse aí não sou eu.

Revista Rubem

Na edição de hoje, falo de buquinagem e alguns outros prazeres e desprazeres (www.rubem.wordpress.com)

Honestidade

Quando me vi no apogeu
puxei logo a identidade e mostrei:
ei, esse não sou eu.

Dever de ofício

Comovente é a resignação com que os defuntos toleram os perdigotos lançados sobre seu rosto e resistem à vontade de espirrar, provocada pelas brincalhonas coceguinhas do aroma das flores nas narinas.

Compostura

Em certos mortos é fácil ver que, se não fosse o rigor imposto pelas circunstâncias, explodiriam em gargalhadas ao ouvir, no seu último dia, os elogios que durante a vida toda lhes foram negados.

"Lamento", poema de Georg Trakl

"Sono e morte, as tenebrosas águias
Rodeiam noite adentro essa cabeça:
A imagem dourada do Homem
Engolida pela onda fria
Da eternidade. Em medonhos recifes
Despedaça-se o corpo purpúreo
E a voz escura lamenta
Sobre o mar.
Irmã de tempestuosa melancolia
Vê, um barco afunda
Sob estrelas,
Sob o rosto calado da noite."

(De De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, edição da Iluminuras.)

sábado, 23 de abril de 2016

17h31

Fechar a loja. Ouço dizerem que Priscylla Mariuszka Moskevitch está em Beirute. É longe. Certamente não virá tão cedo. E a loja existe por ela. Vou pensar um pouco em mim, para variar. Tenho descurado da religião. Tenho compromisso com São Jorge, às seis e meia.

Beleza interior

Não me acharias tão mofino assim
se pudesses ver o menino
que há dentro de mim.

Na mesma

Tanto tempo tiveste, e não arranjaste desculpa melhor. Declarar a poesia como razão de vida te calhava bem quando tinhas dezesseis anos e tudo que fazias era perdoado porque falavam em teu favor teu rosto de anjo e teus olhos verdes.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Não terei a naturalidade de antes. A espontaneidade é um pássaro que voa em céus longínquos. Talvez seja melhor dizer apenas a minhas amigas que acaba de passar a lua pela janela e pode ser que ainda seja e mesma que um dia brilhou para nós, iluminando um futuro que não houve."

(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, publicado pela Editora AGE.)

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Frase

Ficar conversando com seus botões não dá camisa a ninguém.

Cotação do dia

Eu gostaria de ser um gato pequenino e tolo que, atravessando a rua sem cautela, fosse atropelado e morresse ouvindo minha dona dizer: ah, meu pobre, ah, meu pobrezinho, como vou viver agora?

Boletim

Reumatismo, lombalgia,
corpo doído,
alma cansada.

Se viesse a glória
nem mais ela me salvaria.
Me aliviaria um tantinho,
um nada,
e também logo me pesaria.

Um poema de Giorgios Seferis

"Os carvões no nevoeiro
Eram rosas germinando em teu coração,
E a cinza recobria teu rosto
Cada manhã.

Desfolhando sombras de ciprestes
Foste embora, no último verão."

(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, Coleção Nobel.)

quinta-feira, 21 de abril de 2016

20h00

Fechar a loja. O gato que a Arlene me trouxe, e eu nomeei gerente, prometeu tomar conta de tudo até amanhã. Vou pagar-lhe dobrado hoje, como não? É feriado. Ou foi.

Cotação do dia

Não sou incomum.
Não sou outro,
Não sou duplo,
Sou nenhum.

Áurea

Tesouro meu, quintessência
Do ouro, do sol, do fulgor,
Prova maior da existência
E da excelência do amor.

Mais

Sou ganancioso. Há certos dias - hoje por exemplo - nos quais, se me perguntassem uma coisa que eu gostaria de fazer, eu escolheria duas: fechar os olhos e morrer.

488

O maior prazer que os leitores podem sentir com os meus 493 sonetos, menos cinco, é ignorá-los do primeiro ao décimo quarto versos.

Work in progress

Com a mão no suave tufo
E os dedos no macio mato
Ele antegoza o próximo ato.

Contemporaneidade

Neste tempo até o sexo
tarde o que tardar
tem de ser expresso.

Vestibular

Prepare-se para a morte.
De forma constante e séria,
Estude toda a matéria,
Depois confie na sorte.

Mandão

O asterisco é prepotente. Aparece no meio do texto e nos manda para o pé da página, onde aquelas letras miúdas zombam de nossos olhos.

"Deus", de Luis Fernando Verissimo

"na sua infinita bondade
me botou na classe média
me livrou de ser da Arena Jovem
e de problemas na próstata.
Mas o telefone
da Luana Piovani, até agora,
nada..."

(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Cotação do dia

Se eu estivesse um pouquinho mais morto, já teriam me enterrado.

Indício

Perguntam-me, pela minha voz, se estou morrendo. Vocês ainda não ouviram nada.

Front

A cama é palco daquelas batalhas em que os conquistadores se empenham para ser conquistados e, para não haver dúvida, se rendem mais de uma vez.

Soneto em que o amor figura como réu

Pesados todos os fatos
E todos os argumentos,
E os bons e os tristes momentos,
Sejamos ao amor gratos.

Quaisquer que sejam os atos
Passíveis de julgamentos,
Se formos os dois isentos,
Se nos mostrarmos sensatos,

Concluiremos certamente
Que, se o amor nos enganou
E traiu perversamente,

O que ele deu a nós dois
Muito mais que compensou
O que nos tirou depois.

Um poema de Saint-John Perse

"E outros, por seu turno, sobem à ponte
e eu suplico, de novo, que me estendam a vela... mas quanto a essa lanterna, bem podeis apagá-la...
Infância, meu amor! é a manhã, são
coisas doces que suplicam, como o ódio de cantar,
doces como a vergonha, que treme nos lábios, das coisas ditas de perfil,
ó doces, e que suplicam, tal a voz mais doce do macho se ele consente em dobrar sua alma rouca para quem se dobra...
E agora eu vos pergunto, não é a manhã... um gosto em respirar
e a infância agressiva do dia, doce como o canto que estira os olhos?"

(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, Coleção Nobel.)

terça-feira, 19 de abril de 2016

Bem ali

O ponto G
é aquele que
na hora H
para nosso desaponto
sempre está
um tantinho para cá
ou um pouquinho para lá.

Cotação do dia

Um homem há de saber destruir-se, ou lenta ou rapidamente. No primeiro caso, recomenda-se o auxílio de um desses amores que se dizem tão mais legítimos quanto mais tempo ocupam nos calendários. No segundo, será útil uma paixão tresloucada que tenha algum conhecimento sobre revólveres, venenos ou saltos de oitavos andares.

Lógica

De mesa
que não tem pão
ninguém espere sobremesa.

Lobo

Por mais modesto que seja, um soneto acaba sempre exibindo seus dentes de ouro.

Medida poética

Uma quadrinha
o que não pode nunca
é ter a pretensão
de tornar-se um quarteirão.

Prática

"Ele ficava louco quando eu fazia isto", disse a jovem viúva, antes de mordiscar o lábio dele como se fosse um biscoito que merecesse ser comido com requinte.

Limpeza

A estrela caída no quintal
Vai para os recicláveis
Ou para o lixo normal?

"O olhar", de Manoel de Barros

"Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida."

(De Poemas rupestres, edição da Record.)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Mario Quintana

Mario Quintana
era um passarinho
que assobiava Lupicínio.

O tema

Que, se me restar ainda tempo, eu tenha a sabedoria de usá-lo falando só de amor, como deveria ter feito sempre.

Para sentir de novo

Morri muitas vezes pelo amor. E morri em tal gozo que, volta e meia, o coração diminui capciosamente seus batimentos e ameaça interrompê-los, para sentir de novo aquele desfalecimento que é, dos êxtases humanos, o mais profundo e o mais intenso.

Mario Quintana

Mario Quintana
era um passarinho
que assobiava Lupicínio.

Petição

Deem-me um amor verdadeiro (não um desses de mãozinhas dadas e voltinhas pelo shopping). Deem-me um amor que faça chorar, um desses que esfole e mate, e eu inundarei o mundo de lágrimas, antes de morrer jubiloso.

In extremis

Ele gostaria de morrer tão sufocado de beijos que não pudesse sequer dizer o nome do seu assassino: o amor.

Sorte

Quando te conheci, eu já era suficientemente velho, mas, graças a Deus, ainda razoavelmente tolo. E tu me enredaste.

Mario Quintana

Um tantinho de Mario Quintana por dia é essencial. O coração se aquece e a vida, para rimar, agradece.

"Pêssego", de Manoel de Barros

"Proust
Só de ouvir a voz de Albertine entrava em
orgasmo. Se diz que:
O olhar de voyeur tem condições de phalo
(possui o que vê).
Mas é pelo tato
Que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca
Que o alarme da carne grita.
E se abre docemente
Como um pêssego de Deus."

(De Poemas rupestres, edição da Record.)

domingo, 17 de abril de 2016

17 de 4

Seja sim, seja não, já estou no prejuízo: os brados cívicos afugentaram os bem-te-vis da minha ameixeira.

Repasse

Com a mão gelada ele lhe percorre o corpo e a acusa: fria, fria, fria.

Desconstrução

Custei a perceber
que ela era só ouropéis
da cabeça aos pés.

Medida cautelar

Contra o jugo de viver
morrer é o mínimo
que podemos fazer.

A única

O amor é aquela farsa sem a qual não suportaríamos a crueza de viver. Os que juram amar-se sabem que mentem, mas absolvem-se, porque incorrem naquela mentira que, entre todas, é a única que se pode considerar necessária.

Déjà vu

Não há pior desfeita
que fazermos uma frase
e nos dizerem
que é uma frase feita.

Equilíbrio

Enquanto juízo nós temos,
Não procuremos a glória,
Não almejemos a história
E nem de amor cogitemos.

"Antissalmo por um desherói", de Manoel de Barros

"a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão

seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore

Deus ordenara nele a borra
o rosto e os livros com erva
andorinhas enferrujadas."

(De Gramática expositiva do chão, edição da LeYa.)

sábado, 16 de abril de 2016

15h21

Fechar a loja. Reabri-la à noite talvez, ou talvez não. Ela só serve para atestar a minha insanidade. Ando tão preso a essas lembranças amorosas que descuro de tudo. Tenho um compromisso religioso, hoje, e nem sei ainda a que horas. O Paulinho Unzelte sabe do que se trata.

Democracia

Tanta atoarda, tanta fanfarra.
Quem há de ouvir
O canto da cigarra?

Fac-símile

Se Deus nos fez à Sua semelhança,
Por que nos queixaremos
Da careca e da pança?

Light

Não há como discordar.
O modo mais natural de morrer
É parar de respirar.

Um poema de Saint-John Perse

"Os ritmos do orgulho descem os pesados vermelhos.
As tartarugas rolam nos estreitos como astros pardos.
Enseadas sonham sonhos plenos de cabeças infantis...

Sê um homem de olhos calmos que ri,
silencioso que ri sob a asa calma da sobrancelha, perfeição do voo (e da borda imóvel da pestana volta às coisas que viu, tomando os caminhos do mar fraudulento... e da borda imóvel da pestana
ele nos fez mais de uma promessa de ilhas,
como quem diz a alguém mais moço: 'Tu vais ver!'
E é ele quem se entende com o patrão do navio)."

(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, Coleção Nobel.)

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Cotação do dia (2)

Definitivamente, não tenho coragem. A Morte precisará fazer tudo sozinha.

Literalmente

Caiu das nuvens
quando a lua, na lata,
o chamou de nefelibata.

Fulgor

Um gato deveria ser um acontecimento raro, um instante de pura magia, como, no espesso negrume da tarde, a repentina floração de um arco-íris.

Mérito

Chegando o tempo devido,
Nós haveremos de ter
O descanso merecido
Para o cansaço de ser.

Tal qual

Vi na net um cachorro tão esperto, fazendo coisas tão incríveis com uma bola de basquete, que logo me veio a frase: ele merecia ser um gato.

Cotação do dia

Talvez fique de mim, no final de tudo, apenas uma frase tola, como esta: viver foi a única tarefa que me deram, e eu falhei.

"Finalmente", de Luis Fernando Verissimo

"Quando a Terra terminar
com uma grande explosão solar
e tudo virar pedaço
que era pedra, pau ou aço
e os continentes e os mares
forem todos pelos ares
e os Alpes e as muralhas
forem apenas migalhas
numa nuvem espalhada
que gira em torno do nada,
sei que então, e só então
voando em formação
com moedas e dedais
e os restos de catedrais
será finalmente encontrada
aquela minha Parker 51
com tampa prateada."

(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Cotação do dia

Não tenho medo de morrer. Não tenho feito outra coisa na vida.

Mario Quintana

Às vezes, acho que Mario Quintana era um menino que escrevia como gente grande. Às vezes, acho o contrário.

Felicidade

Dentes havia
e a carne do amor
era macia.

Lojinha do amor

Depois das fases de desconto
e da liquidação,
a capitulação:
o amor passa o ponto.

Resumo

A sabedoria é o tempo de ver
como são banais
todos os ideais.

O defunto cobiçoso

Estou dentro do caixão.
Já ouço os golpes da enxada.
Ainda não me deram nada.
Os coéforos, onde estão?

Um poema de Manoel de Barros

"Com aquela maneira de sol entrar em casa
E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais -
como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejar de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do silêncio.
Depois o menino achou na beira do rio uma pedra
canora.
Ele gostava de atrelar palavras de rebanhos
diferentes
Só para causar distúrbios no idioma.
Pedra canora causa!
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram."

(De Poemas rupestres, edição da Record.)

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Mais

O amor pode ser muito melhor ou pior do que tudo quanto dissermos dele.

Realce

Digam o que disserem, morrer por amor é um ato de puro charme. Perguntem a uma corda se ela prefere um pescoço ou um balde.

Cotação do dia

Estes olhos que me olham no espelho são olhos já de um defunto. Afasto-me antes que os lábios me digam, cara a cara, esta verdade tão aguda quanto o sol matutino.

"Fuga", de Giorgios Seferis

"Era isso nosso amor;
Falava, voltava, trazia-nos
Uma pálpebra baixa, infinitamente distante,
Um sorriso petrificado, perdido
Na relva da manhã;
Uma concha estranha que nossa alma
Tentava decifrar a todo instante.

Era isso nosso amor, progredia lentamente
Tateando entre as coisas que nos envolvem,
Para explicar por que recusávamos a morte
Tão apaixonadamente.

Embora nos agarrássemos a outras cinturas,
Enlaçássemos outras nucas, loucamente
Confundíssemos nosso hálito
Ao hálito do outro,
Embora fechássemos os olhos, era isso nosso amor...
Nada mais que o profundíssimo desejo
De suspender nossa fuga."

(Tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta, Coleção Nobel.)

terça-feira, 12 de abril de 2016

Mario Quintana

Foi escrever graça e escreveu garça. A partir dali, foi como se o poema ganhasse asas. Na troca de letras, ele viu o dedo de Mario Quintana.

Velório (2)

Pobre morto.
Tão sem defesa contras as tias velhas
E os perdigotos.

Velório (1)

Dirão que fomos legais.
Não foi o que nós sempre dissemos
De tantos defuntos boçais?

Ora

Quando estivermos morrendo, diremos: ora, então é isso, ora, então é assim? E nos lembraremos de outras vezes em que morremos, por obra, graça e perversidade do amor.

Zero estrela

Se o cabaré é antigo
e lá nunca ninguém viu o xico sá
é melhor ir à igreja, amigo.

Isso aí

Falando sério
de verdade
nem eu confio mais
na minha veracidade.

Autorretrato

Já não me esmero em fingir,
Hoje sei bem quem sou eu:
Sou quem se pôs a cair
Sem atingir o apogeu.

História

Desejei a posteridade.
Aspirei à eternidade.
Só atingi a longevidade.

Persistência

Já se submeteu a três processos de regressão a vidas passadas. Fará o quarto. Não descansará enquanto não descobrir que foi Shakespeare.

Um poeminha de Luis Fernando Verissimo

"Sei que você não gosta do assunto,
isso de virar defunto ou, mais apropriadamente,
presunto.
Mas ninguém escapa da sina
de ter muita proteína
e morrer, assim, al punto.
A biologia, meu caro, não erra:
estamos todos na cadeia alimentícia
da Terra."

(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)


segunda-feira, 11 de abril de 2016

Ego (para Fabíola Lacerda)

Sou um sádico egoísta: meu chicote só extrai lamentos de minha carne.

Sinopse

Ninguém como você
para me malfazer
a seu bel-prazer.

A palavra

Nenhuma palavra melhor que gato. Assim que penso em dizê-la, meus lábios se alvoroçam e abrem-se num sorriso.

Melhor seria

Podíamos ter morrido, já, num daqueles tempos em que nosso rosto causaria a comoção que sempre causa a morte de um jovem - não este rosto no qual, se alguma vez houve indício de vida, há de ser um fato que talvez se possa ver em alguma foto no álbum quase todo comido pelas traças.

Atitudes

Há quem se disponha a morrer pela literatura. Há quem pense poder viver dela.

O dom

Temos o dom da palavra para dizer exatamente o que somos: nada.

(Des)vantagem

Morrer é sempre uma questão de tempo. No meu caso, acho que tempo demais.

Se toque

Que você aos dezessete anos tenha pensado em ser escritor não quer dizer nada. Que você, aos setenta e sete, não tenha conseguido, quer dizer tudo.

Pilhéria

Ousaremos ainda falar de amor, com estes lábios aos quais, para se parecerem um pouco mais com os de um defunto, só falta que neles pouse uma mosca?

Mais cinco haicais de Giorgios Seferis

"Como juntar
Os mil ínfimos resíduos
De cada homem?"

         ***

"Pois que tem o leme?
A barca descreve círculos
E nem uma gaivota."

         ***

"Ela não tem olhos.
As serpentes que guardava
Devoram-lhe as mãos."

          ***

"Nesta coluna,
Um buraco. Vês nele
Perséfone?"

          ***

"Escreves
Baixou a tinta
A maré sobe."

(Tradução de Darcy Damasceno, publicado pela Editora Delta, Coleção Nobel.)

domingo, 10 de abril de 2016

Revista Rubem

Falo hoje sobre o amor e outras velharias (www.rubem.wordpress.com).

Geração espontânea

Trabalhar um poema
é hoje desleal, tanto
quanto um pecado mortal.
O poema deve vir pronto
e parecer escrito por um tonto
ou pelo espírito santo.

Danação

O passarinho da literatura
todo dia vem nos acordar
com seu mantra cruel:
trabalhar, trabalhar, trabalhar -
quem não trabalha não ganha o nobel.

Cotação do dia

Talvez tenhamos algum tempo e com ele consigamos fazer o que não conseguimos ainda com nenhum: viver.

Um poema de Karl Axel Karlfeldt

"Teus olhos são dois fogos e minh'alma é de estopa.
Afasta-te de mim, antes que ela se inflame
como uma brasa dentro de mim mesmo.
Sou um violino que possui no bojo
todas as canções do mundo.
Podes fazê-lo tocar a música que quiseres.
Afasta-te de mim! Oh, chega-te para mim!
Quero arder, quero refrigerar-me.
Eu sou desejo e nostalgia,
vivo na fronteira entre o outono e a primavera;
as cordas estão tensas, deixa-as cantar, ébrias e loucas,
num último e magnífico canto, todos meus anos de amor!

Aproxima-te de mim, afasta-te de mim!
Ardamos ambos como uma noite de outono;
a alegria da tempestade transpassa nossa bandeira de sangue e de ouro,

até que o vento se aquiete e que eu veja
teus passos fugirem ao crepúsculo,
tu, a última a seguir minha ardente juventude."

(Tradução de Ivo Barroso, publicado pela Editora Delta, Coleção Nobel.)

sábado, 9 de abril de 2016

Ainda não

Poderia ser meu último dia. Parece que não. É quase meia-noite e devo render-me novamente ao corriqueiro: será só mais uma véspera de domingo.

19h23

Hora de fechar a loja. Não deveria tê-la reaberto à tarde. Os objetos amorosos me fitaram tal qual vêm me fitando ultimamente: como se estivessem num cativeiro - quando minha única intenção sempre foi convencer, muito mais a mim que aos outros, que amei um dia, muito, e talvez tenha sido amado.

Mario Quintana

O parnasianismo, tão bom para meia dúzia de parnasianos, por pouco não arruinou Mario Quintana.

Mario Quintana

O momento em que Mario Quintana se transforma em Mario Quintana é aquele em que passa a dizer as coisas sérias com seu célebre bom humor.

Um tanto

Os poetas são sempre aqueles que acabam me dizendo mais coisas, pelo modo  como as dizem, quase não dizendo.

Coerência

Os que morrem por amor são sempre aqueles tidos como idiotas antes desse gesto grandioso. E depois também.

Otimismo

Shakespeare estava de bom humor quando disse que o resto é silêncio. Tudo é silêncio.

Pátina

Meu rosto
quando no espelho se vê
não entende como um dia
pretendeu encantar
(e encantou)
uma mulher
sendo essa mulher você.

Condomínio

A água está pelando. Uuhh!
Como se o sol embriagado
Na piscina tivesse se atirado
Completamente nu.

Defina amor

O amor é como os transatlânticos que vemos de longe, iluminados, lançando ao céu os jubilosos sons da orquestra. De manhã, chegam até nós, na praia, os restos da festa: bitucas, taças partidas, guardanapos dos quais o mar bebeu o batom, uma calcinha.

Três pequenos trechos de Ma Jian

"Ele era tão vulnerável quanto um coelho num laboratório. Covardia e cegueira se tornaram suas únicas habilidades na vida. "

                                                                         ***

"Só as pessoas rejeitadas por quem amam conhecem o verdadeiro peso do coração humano."

                                                                         ***

"Alguns anos depois, as condições melhoraram um pouco. Os prisioneiros recebiam tiras de jornal para limpar os traseiros, e por isso podiam ao menos ler fragmentos de notícias do mundo exterior."

(Do romance Pequim em coma, tradução de Heloisa Mourão, edição da Record.)

13h36

Hora de fechar a loja. Talvez não reabri-la à noite, se bem que ao amor provavelmente convenha aparecer à meia-luz, para não revelar inteiro seu sorriso, falso e mortal.

Baque

Na manhã em que conheci Priscylla Mariuszka Moskevitch, minhas convicções românticas sofreram um abalo: a primeira coisa que notei, nela, foi a bunda.

Escambo

Faz muito tempo, já, que troquei a alma pelo amor. Não me arrependo. Desde o início eu soube que acabaria no Inferno.

Aparência

Para quem pelo amor
se dispôs tantas vezes a morrer
você parece disposto outra vez.

Bem a propósito

Obcecado por sexo, é com os que tem na braguilha que ele conversa quando fala com seus botões.

Nada a ver

Não sou depravado como pensas.
Apenas gosto de tudo
Que ao teu corpo pertença.

Cinco haicais de Giorgios Seferis

"Lança ao lago
Uma só gota de vinho.
O sol se ensombra."

          ***

"Cadeiras vazias
As estátuas voltaram
Ao outro museu."

          ***

"Será a voz
Dos amigos defuntos,
Ou a do gramofone?"

          ***

"Já de novo vestiu-se
A folhagem da árvore
E tu a balires."

          ***

"Mulher nua
A romã que se partiu estava
Cheia de estrelas."


(Tradução de Darcy Damasceno, edição publicação da Editora Delta, Coleção Nobel.)

sexta-feira, 8 de abril de 2016

20h36

Hora de fechar a loja por hoje e torcer para os ratos, que a cada dia deixam mais sinais, continuarem devorando esses deploráveis objetos que outrora beijávamos porque eram presentes do amor.

Comme il faut

Há bundas tão empertigadas que não lhes cairia nada mal uma gravata.

Posição

Certas bundas mereceriam as honras, a projeção e a remuneração de um ministério.

Reverência

Há bundas diante das quais, se fôssemos educados, deveríamos tirar o chapéu, se o usássemos.

Não, porém...

O amor não precisaria ser muito mais simples. Bastaria que não fosse tão complicado.

Antiautoajuda

Seremos como uma gota de chuva no mar e faremos a diferença: nenhuma.

O dia

Lembro-me do dia em que a literatura me seduziu para sempre. Eu era jovem, muito jovem. Se não fosse, poderia ter simplesmente me encantado com o texto, de William Saroyan, sem incorrer na ideia de que talvez um dia pudesse vir a escrever como ele.

Um poema de Saint-John Perse

"As carnes assam ao vento, os molhos se compõem
e o fumo remonta os caminhos ao vivo e alcança quem andava.
Então o Sonhador de bochechas encardidas
se desprende
de um velho estriado de violências, de astúcias e esplendores,
e ornado de suores, para o cheiro da carne
desce
qual mulher que arrasta: seus panos, toda sua roupa e seus cabelos desfeitos."

(Tradução de Darcy Damasceno, Editora Delta, Coleção Nobel.)

quinta-feira, 7 de abril de 2016

19h21

Fechar a loja. Hoje, como sempre, ela mostrou o que é: um fracasso, como tudo que fiz até agora. Que ridículos estes pôsteres, estas fotos, estes poemas que jamais disseram nada senão a mim.

Cotação do dia

Nos lábios de um velho, amor é a mais triste e inócua das palavras.

Cotação do dia

Reconhecer o fracasso é o primeiro, honesto e decisivo passo para você se tornar um fracassado.

Google

Eu também
barco fuleiro
de um só passageiro
fui comigo a pique

Se vocês querem saber
que grandioso pode ser
um barco engolido pelo mar
liguem o micro e cliquem
em titanic.

Estratégia

Se você quer se tornar conhecido, arranje pelo menos meia dúzia de amigos. Se você quer se tornar famoso, arranje pelo menos um inimigo.

RIP

Ser um morto tem muitas vantagens. A de não estar vivo é a principal, naturalmente.

Fila

Que sorte daninha.
O amor nunca puxa para a brasa
A minha sardinha.

Efeito retardado

O amor é aquela besteira que às vezes, dez anos depois, você ainda não sabe que cometeu.

Três versos de Margaret Atwood

"O que quer que seja, somos nós com os violinos
enquanto as luzes se esvaem e o grande navio afunda
e a água se fecha sobre ele."

(Do livro de poemas A porta, tradução de Adriana Lisboa, edição da Rocco.)

quarta-feira, 6 de abril de 2016

18h13

Fechar a loja e concentrar-me para uma cerimônia religiosa que tenho às 21h45. Valeu o dia, hoje. Diverti-me no "facebook" - pondo aquelas gravações absurdamente ridículas - e a postagem de uma amiga, Arlene Colucci, me inspirou uma frase que será o título do meu próximo livro, que venho escrevendo com prazer único: "Contra gatos não há argumentos". Até

Título do meu próximo livro

Contra gatos não há argumentos.

Maldito Newton

O amor é uma estrela cadente
que não cai nunca
na sacola da gente.

Cotação do dia

Oh tempora! Oh mores!
Por que não morri?
Meu Deus, já vivi
Abris bem melhores.

Esquina

A literatura é uma rameira.
Te apalpa a braguilha
De olho na algibeira.

Quintana, Drummond

A pedra de Quintana é tão viva quanto a de Drummond. Há vários caminhos para a poesia. Mario e Carlos são dois dos melhores. Penso neles e me surge, inteiro, o significado da palavra alpondras.

Exercício

Chorar é um bom exercício.
Eu o aprendi com o amor
E com a ajuda dele
O transformei em um vício.

Dalton

Se numa página de Dalton Trevisan um casal se desfrutar em pé, num escritório de despachante, não será perversão. Será talvez, por parte dela, a urgência do amor. Por parte dele, será provavelmente a preocupação de não estragar o único sofá, comprado em doze sofridíssimas prestações.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"Como lágrima morna -
Uma gota nos olhos entorna.
De uma altura sem fim,
Alguém chora por mim."

(De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)

terça-feira, 5 de abril de 2016

Soberbia

Eu tu nós
que andamos por aí
de nariz empertigado
mais para o alto ainda
vamos tê-lo apontado

Essa suprema soberbia
nós a gozaremos deitados
no caixão refestelados
em nosso último dia.

Autoria

Se for um poema bem-feito
uma ode uma epopeia um soneto
não será meu

Se for uma quadrinha
bem simplesinha
só não será minha
se o autor não for eu.

Nós, o amor e o tempo

Exageramos. Chamamos o amor por tanto tempo que já nem lembrávamos quando foi que começamos a chamá-lo de nossa janela. Na tarde na qual enfim ele veio e olhou para nós, que o olhávamos também desde quando surgiu andando no início da rua, nós e ele tivemos o mesmo impulso, e o seguimos: nós fingimos não vê-lo, ele simulou não nos ver. O tempo não altera só as feições e as formas; adultera também o caráter.

Arrufo

"Eu estou duas horas aqui dizendo que estou disposta a morrer por você. E você? Você não me diz nada? Ficou surdo?"
"Se você me ama tanto, mesmo, posso pedir um favor? Será que você não consegue dar um jeito de morrer um pouquinho mais rápido?"

O que é

Do amor não se entende nada
Do que ele diz ou dizia.
O amor é uma patacoada,
O amor é uma algaravia.

Um poema de Marina Tsvetáieva

"Gosto de beijar
As mãos, e gosto
De semear os nomes,
E ainda - escancarar
As portas!

Apertando a testa,
Escutar como o passo grave
Se torna leve,
Como o vento embala  
A floresta insone
Que quer dormir.

Ah, noite!
Algures correm riachos.
Estou com sono.
Durmo, eu acho.
Algures, na noite,
Alguém se afoga."

De Indícios flutuantes, tradução de Aurora F. Bernardini, edição da Martins Fontes.)   

segunda-feira, 4 de abril de 2016

22h11

Clamar pelo amor, ainda, não é mais nem tolice nem anacronismo. É sinal de idiotia.

Veritas

Meu rosto é um pergaminho.
O tempo só melhora o vinho.

Mas não

O amor é aquela insensatez
que você sempre pensa estar cometendo
pela última vez.

10h54

Nós chamamos o amor, ainda, e continuaremos a chamá-lo. Se ele ouvir, não reconhecerá nossa voz, adulterada por tantos anos de humilhação e ressentimento.

Sina

Ninguém me ama
ninguém me lê
ninguém me chama
de Mallarmé.

Prudência

Deixemos o amor quieto. Só voltemos a importuná-lo quando tivermos uma vara mais longa para cutucá-lo.

Bom assim

Que nada venha a mudar.
Amor, tu nos sequestraste,
No teu porão nos trancaste.
Amor, nos deixa ficar.

Tudo

No fim da vida, sobrou-me a poesia. Pode parecer pouco. É mais do que mereço;

Uma frase de Liberato Vieira da Cunha

"Pois um cronista que sonha ser poeta é como um vaga-lume namorando a aurora."

(De O silêncio do mundo, publicação da Editora AGE.)

domingo, 3 de abril de 2016

21h58

Fechar a loja. Tê-la aberto num domingo é bem coisa de aparvalhado, esse tipo de gente que, quando fala de amor, baba uma gosma farinácea achando que é raspa de estrela.

O caminho (para Liberato e Eduardo Vieira da Cunha)

Penso que o melhor caminho para um poeta seja não o que leva à sabedoria, mas aquele que possa devolvê-lo à ingenuidade da infância. A busca do menino que todos nós fomos há de ser a missão de cada um. Alguns terão a sorte de reencontrá-lo. Ele estará olhando ainda para o céu, como se o sol fosse algo ainda não corretamente nomeado.

Reconhecimento

Se um dia Priscylla Mariuszka Moskevitch, por sua má sorte, voltasse a me ver, o que diria quando minha tristeza a reconhecesse, no meio da multidão, e se atirasse em seus braços dizendo mamãe?

Priscylla

Mestra do traço e da colagem, por que Priscylla Mariuszka Moskevitch me retratou tão esquálido e mal-ajambrado?

Alívio

Logo Priscylla Mariuszka Moskevitch poderá caminhar por esta São Paulo desvairada sem o receio de se deparar com a minha incômoda figura. Estarei confinado àquele ponto da Consolação em que se concentram os hospitais e o cemitério.

Ainda que

É preciso ter um gato em casa, ainda que seja um bibelô feito com a mais ordinária das louças.

Posteridade

Tenho pouco tempo, quase nenhum mais. Morrerei com a fama de tolo romântico e o rótulo de ridículo sonetista. Talvez me absolvam da primeira, mas do segundo jamais

Auréola

Que paciência têm os gatos. Como suportam resignadamente nosso amor. Como nos toleram quando interrompemos seu sono para dizer-lhes de novo, e de novo, e de novo, que são nosso mais precioso tesouro. E como deve custar-lhes fingir que gostam muito, muito mesmo, quando os abraçamos e os beijamos como se quiséssemos sufocá-los.

Um trecho de Ma Jian

"Você se lembra de estar parado no meio da Praça, o vento quente soprando em seu rosto. A Praça era como o quarto em que está deitado agora: um espaço quente com um coração vivo, aprisionado no centro de uma cidade gelada."

(De Pequim em coma, tradução de Heloisa Mourão, edição da Record.)

sábado, 2 de abril de 2016

Afronta poética

Cyrano de Bergerac
toda vez que espirrava
uma estrela derrubava
da constelação de Bilac.

Mudança de rota

Buscando meu lugar no mundo
o maior o primeiro
gastei minha chama

Hoje me satisfaria
com uma modesta honraria
e um segundo de fama.

Gatucho (para Silvia Galant François, Ernesto Ferreira e Liberato Vieira da Cunha)

No Sul, é um fato: se o miado é forte, deve ser um maragato.

Vice-versa (para Aden Leonardo)

Imaginamos ter gatos. Chegamos a acreditar nisso. Mas são eles que nos têm.

Fama

Por amar muito, de louco
Já sou chamado, e cretino.
Mereço melhor destino:
Nem tanto assim, nem tão pouco.

Síndrome de Bilac

Você se acha tolo por ficar toda noite olhando as estrelas. E elas, que toda noite ficam olhando para você, o que são?

O recado

Quando você pensa conhecer todos os truques do amor e imagina estar imune a eles, certa manhã um passarinho aparece, dá três bicadas na sua janela e avisa que tem um recado a dar. Você pergunta de quem é, e ele diz que você sabe muito bem.

Doxomania

Glória a Deus, sim,
E que um pouquinho dela
sobre para mim.

Um trecho de Juan José Saer

"O instante, respeitado amigo, é morte, só morte. O sexo, o vinho e a filosofia, ao arrancar-nos do instante, preservam-nos, provisórios, da morte."

(De As nuvens, tradução de Heloisa Jahn, edição da Companhia das Letras.)

sexta-feira, 1 de abril de 2016

21h54

O amor enterra seus dentes em nossa nuca, nos sacode, nos sangra, nos mata. Depois nos leva com cuidado para fora, passa a língua nas patas e retira de si qualquer vestígio nosso.

21h42

O amor é gentil. Quando passa pela calçada na qual estamos largados como um pombo agonizante, usa a habilidade com que lança seus perdigotos para, se algum nos atingir, que seja só de raspão, em nome dos bons tempos.

21h33

Confiávamos em que o amor nos mataria. Faz tempo, já. Alguns anos. Foi uma confiança vã. O amor nos estropiou e nos largou na calçada, naquele ponto em que nunca bate sol. Temos frio e fome. Mas, se dependermos dele, viveremos eternamente. Ele nos quer assim, estropiados.

Natureza-morta (para Patricia Mesquita)

Na mesa, o sol mastigando um pão amanhecido.

Ladainha

Abri a janela
e ouvi do sol
a mesma rima
e a antiga balela:
a vida é bela.

Tabuinha

O que não me dói
não me representa.
O que não me falta
não me acrescenta.

Soneto em que mais uma vez se amaldiçoa o amor

Abraçado ao meu rancor,
Deitei-me na cama fria
E, triste com o que dizia,
Maldisse o nome do amor.

Senti-me falso, farsante,
Eu, que do amor tinha sido
Parceiro tão decidido
E tão dedicado amante.

Mandei-o ao diabo, ao inferno,
Mas logo, em meu tom mais terno,
Chamei-o de amor amado.

Assim calei a razão,
Como se fosse eu, e não
Somente o amor o culpado.

Um poema de Giorgios Seferis

"Este corpo que aspirava a florir como um ramo,
Carregar-se de fruto, tornar-se flauta no gelo,
Imergiu-o num enxame rumoroso a imaginação
Para que passe, e o prove, o tempo músico."

(De Poemas, tradução de Darcy Damasceno, publicação da Editora Delta.)