quarta-feira, 29 de junho de 2016

Soneto do que merecemos

De tudo que nos couber,
Nos caiba sempre o menor,
O menos vistoso, o pior,
O que de mais tosco houver.

Que aquilo que recebermos
Sempre muito menos seja
E muito aquém sempre esteja
Daquilo que merecermos.

Seja em qual assunto for,
Principalmente no amor,
Não haja nisso exceção.

Não nos inveje ninguém
Por nosso suposto bem
Ou falsa satisfação.

Avant la lettre

Madame de Chantilly
praticava o bovarismo
antes de madame Bovary.

Opção

Pó é pó
isso é acaciano
tudo é igual no fim

Mas eu por mim
se pudesse escolher
escolheria ser um pó shakespeariano.

Circunstância

Para ver como são as coisas. Se eu conhecesse Beckett naquele tempo, talvez ainda estivesse esperando por Godot.

Um terceto de Georg Trakl

"À noite na varanda nos embriagamos de vinho escuro.
O pêssego arde avermelhado na folhagem;
Doce  sonata, riso alegre."

(De De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, edição da Iluminuras.)

terça-feira, 28 de junho de 2016

Nem pensar

Há textos meus que uma porção de escritores famosos não assinaria nem que o Diabo mandasse. Se Shakespeare está na lista? Claro. Ele principalmente. Shakespeare pode ter sido meio doido, mas não era nada burro.

Poeminha onomástico

Anda bem
quem anda ao sol
e também quem
sem nenhum sol
com Heloisa Buarque
de Hollanda.
     

Pequena ode a Mário Cesariny (versão final)

A amiga Priscylla me falou de ti
Mário Cesariny
e simpatizei com teu nome
igual ao de Sá-Carneiro
e o sobrenome com esse "y" final
tão chique tão francês tão inusual
sugerindo esta rima em "i"

No centro cultural vergueiro
(casa do teu xará Chamie)
buscando o milagre de um livro teu
não encontrei um mas três

Lá estavam fazia trinta
fazia quarenta anos
virgens intocados
e a mim Mário Cesariny
cabia essa mais que alegria
de fazer dar seus primeiros passos
no metrô na sua escadaria
esses já três velhinhos
esses três queridos Mariozinhos teus.

Mario Quintana

Em Mario Quintana o exercício da poesia era tão natural quanto a satisfação de sorrir e a arte de voar.

Soneto de quem és

Em ti cai bem a beleza
Como uma chuva num rio,
Como uma sombra no estio,
Como num rei a realeza.

És toda íntegra, total,
No teu ser, na tua essência,
No teu aspecto e aparência,
Em ti se unem real e ideal.

Para um homem que nasceu
Com a pretensão de cantar
O esplendor, assim como eu,

Que glória é glorificar-te
Como a um prodígio sem par,
Como a uma pura obra de arte.


Nada a ver

Para outros talvez, mas, para mim, escrever não é como respirar. Jamais escrevi uma página sequer dormindo.

Metamorfose

Nossas palavras mais doces nós as gastamos na juventude, com o amor. Se ele voltasse hoje, nos perguntaria o nome do bruxo que nos ensinou a transformar rosas em cactos.

"Reflexão no espelho", de Luis Fernando Verissimo

"Temos que confiar no amanhã
a não ser que descubram
alguma coisa contra ele à noite."

(De Poesia numa hora dessas?!", edição da Objetiva.)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Passos

Quanto mais perto do fim,
Menos eu sei e conheço.
De tudo agora me esqueço,
Tudo se esquece de mim.

Seres sensíveis

O que temos nós a dizer?
Somos seres sensíveis
sentimos tudo
que um ser assim
costuma sentir

Tudo que sentimos porém
é prosaico
tudo só um sentir
que não é nada
senão sentir

Além de sentir
pudéssemos nós fazer
aquilo para que
existe todo sentir:
exprimir.

Tributo

Ainda que nos magoe, nos fira e nos mate, o amor há de ser mencionado sempre com um sorriso pelos nossos lábios, pela lembrança dos dias em que não nos magoou, não nos feriu e não nos matou.

"Mistérios", de Luis Fernando Verissimo

"Ninguém é o que parece
ou o que aparece.
O essencial não há quem enxergue.
Todo mundo é só a ponta
do seu iceberg."

(De Poesia numa hora dessas?!, edição da Objetiva.)

domingo, 26 de junho de 2016

A verdade

Um amor infeliz sempre faz melhor vista, na ralação de um poeta, que um afortunado.

"Trompe l'oeil"

Aos olhos de quem o ama, o ser amado será visto sempre como jamais será por quaisquer outros olhos.

Nem tanto

Seria demasiada pretensão eu querer ter um heterônimo. Um alter ego um pouquinho melhor do que eu já estaria de muitíssimo bom tamanho.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"Que poderia ela dizer para o ursinho fantástico
que poderia ela dizer para o irmão
que poderia ela dizer
                para o gato de pés futuros
que poderia ela dizer para a mãe
depois daquela vez em que deitou toda tesa
                entre as flores bambas
      da margem quente de um rio
      onde caíam samambaias em leque no ar quebrado
                                   do hálito do seu namorado
e os passarinhos muito doidos
                                   se jogaram das árvores
para provar ainda quente no chão
                               a semente de esperma arremessada."

Tradução de Leonardo Froes, de Um parque de diversões da cabeça, edição da L&PM.)

sábado, 25 de junho de 2016

Tão bom

Priscylla, eu gostaria de subir a escada rolante do metrô Consolação abraçado a ti, ao som das notas de La vie en rose, ainda que lastimavelmente deturpadas pelo saxofonista cego.

Camisa 12

Quando soube que o Corinthians só vai jogar à noite, o sol avisou que também só ia aparecer mais tarde.

100%

O enredo de nosso romance foi belo,
Intenso, agudo, certeiro.
Tu foste o meu cutelo,
Eu fui o teu cordeiro.


Estatuto da Carne

Toda nudez improdutiva será implacavelmente taxada e, na reincidência, irremissivelmente confiscada.

Cotação do dia

O sol apareceu tão mirradinho e friorento por aqui que a Operação Cata-Bagulho o atirou para dentro do caminhão.

A arma

A mais certeira forma de enxovalhar a reputação da literatura é embriagar um poeta de dezoito anos, fazê-lo apaixonar-se e dar-lhe a incumbência de presentear a amada com um soneto parnasiano.

Memória

Já mais morto que vivo, conseguiu dizer ao médico que morria não pelas calamidades do corpo, mas pelos estragos feitos em sua alma vinte anos antes pelo amor.

Provisão

Sempre tenho uma reserva de lágrimas para o amor. É o que ele mais busca, é do que ele mais gosta.

E se

E, se em nosso último minuto um passarinho cantar, os ingênuos de sempre naturalmente julgarão que canta por nós.

A voz

Talvez não tenhas ouvido
Mas parece que estão a chamar-te
Da outra margem do rio,
Daquela parte sombria, sabes?,
Onde moram os mortos.

Persona

A vida é um ato fortuito.
Esse que chora, ou que ri,
É alguém que finge por ti.
Tu já desististe há muito.

Agenda

A que feridas pretende o amor submeter-me ainda, para haver-me permitido sobreviver a mais um inverno?

Lucro

Óbito é uma dessas palavras horrorosamente feias que um defunto não precisa mais ouvir.

O teste

Os que virão a morrer de amor são facilmente reconhecíveis. São aqueles meninos que, no cinema, tiram os olhos da cena em que um caminhão esmagará um gato. Os outros abrem um sorriso de antegozo.

Um trecho de Mario Benedetti

"Agora é horrível que eu diga isso (também me dou conta), mas um dia amei você de verdade. Isso deve soar para você como um sino quebrado; no entanto é decorosamente correto."

(De Quem de nós, tradução de Maria Alzira Brum Lemos, edição da Record.)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Cotação do dia

Eu te vi hoje. Eras tão mais bonita quando eu te amava, e eu era tão mais feliz...

Hoje no Estadão

Falo hoje de minha querida São Paulo, esta cidade tão feiosa e tão bela: http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/escreviver/topando-em-toponimos.

Não é?

Parece-me um tantinho pretensioso querer ser poeta. Não é o que Fernando Pessoa era?

Definição

Urinar é uma atividade líquida e certa.

Marketing

O triângulo isósceles pode não ser tão fatal como o das Bermudas, mas seu nome é muito mais assustador.

Um trecho de F. Scott Fitzgerald

"Para mim, não fazia diferença. A desonestidade, numa mulher, é coisa que a gente jamais censura profundamente... A princípio, ela me causou pena; depois, esqueci."

(De O grande Gatsby, tradução de Brenno Silveira, edição da Record.)

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Ficha

Desde a adolescência tenho sido acusado de dezenas de sonetos.

Modalidades

O desejo de exprimir a beleza há de ser em nós constante e intenso. Se for obsessivo, melhor ainda.

A parte ruim

Os poetas costumam ser cruéis com os passarinhos. Não podem ver um, que logo querem engaiolá-los num poema.

Soneto da imitação de Deus

Quer a tenhamos, quer não,
Nunca aos leitores diremos
Que naquilo que escrevemos
Pode faltar-nos paixão.

Sem nenhuma hesitação
Qualquer falta admitiremos,
Qualquer erro assumiremos,
Mas jamais essa omissão.

Com a paixão cremos poder
O ser inteiro e o não ser
Com perfeição exprimir.

Deus, que entende um pouco disso,
Olha e nos diz: "Parem com isso,
Vocês me matam de rir."

O fim

Depois que se vai a ilusão da obra-prima, vai-se todo o resto. Trabalha-se, trabalha-se, mas nada além disso. Trabalha-se. É triste trabalhar assim.

Exceto isso

Eu poderia considerar-me até normal, se não fosse esta mania que tenho de querer ser Shakespeare.

O de sempre

Deus há de me dar hoje duas ou três frases interessantes, alguma talvez até apreciável, nenhuma porém brilhante. Eu Lhe agradecerei, como sempre. Há muito tempo Ele e eu sabemos que não mereço nada além disso.

"Parto da paixão", de W.B. Yeats

"Quando a flamejante e angélica porta se abre num tumulto de alaúdes,
Quando imortal paixão respira em mortal argila,
O nosso coração suporta o flagelo, a coroa de espinhos, o caminho
Povoado de rostos amargos, a ferida das mãos, a ferida dos flancos,
A esponja pesada de vinagre, as flores junto ao rio Kedron;
Sobre ti inclinados soltaremos os cabelos,
Para que leve perfume se desprenda, pesado de orvalho,
Lírios da esperança em sua mortal palidez, rosas de apaixonado sonho."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Pedro Álvares Cabral, se tinhas coisas erradas a fazer, por que não as fizeste em Portugal?

Ideal

Eu gostaria de escrever como se fosse um avô batendo pregos na madeira diante dos maravilhados olhos de um neto para fazer a casinha de um cachorro que a ocupará quando Papai Noel o trouxer.

Limpeza

Livremo-nos dessas palavras todas com que nos temos atulhado como se fossem nosso tesouro. Elas falharam, ou falhamos nós, já não importa. É hora de dar-lhes liberdade, soltá-las ao vento. Talvez alguém precise delas e saiba utilizá-las melhor. A nós cabe arejar todos os cômodos e, depois, principiar tudo de novo. Escolhamos então palavras que realmente nos exprimam, e que sejam poucas desta vez. Nosso caminho é cada vez mais curto. Façamos a seleção com maior cuidado agora. Permitamo-nos repetir um único erro da experiência anterior: comecemos novamente pela palavra amor.

Paulificância

Penso ter finalmente descoberto o que falta aos humoristas atuais: um pouquinho de seriedade.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Foi por tal descuido que não vi quando minha antepenúltima amada evadiu-se da lucerna e assim esplêndida e inebriada e nua dançou, sobre as telhas da tapera, a valsa do adeus com estes vendavais de dezembro."

(Do livro O silêncio do mundo, AGE Editora.)

terça-feira, 21 de junho de 2016

15h41

Sem ninguém para atender na lojinha, pus-me a conversar com meu gerente, Monsieur Pierre. Ele começou a se lembrar de pessoas especiais com quem conviveu, e notei sua emoção atingir o auge quando falou de "dona Arlene, tão boazinha". Foi ela, "dona Arlene", quem emprestou Monsieur Pierre para me fazer companhia neste triste bazar de lembranças amorosas. A gratidão de Monsieur Pierre levou-me a pensar em algo que me vem afligindo muito: a hipótese de repentinamente distrair-me, morrer e deixar de dizer, a algumas pessoas, como elas me são caras. É bem o momento de prestar contas. Venho ouvindo, de madrugada, passos leves do lado de fora da casa, femininos e fatais. Chegou a hora de dizer, e direi, por exemplo, que Jorge Cláudio Ribeiro, da Olho Dágua, foi o primeiro editor a ver em mim alguém que talvez pudesse ser escritor. A muitos outros devi, depois, a bondade de fecharem os olhos e não verem meus tantos defeitos: Carmen Lucia Campos, Ione Meloni Nassar, Luciana Miranda Penna, Tatiana Costa. Mas, sem o Jorge, talvez eu não chegasse a conhecer os outros. Com o passar dos dias, quem sabe eu possa, se numa destas madrugadas não me seduzir uma escapada atrás dos passos femininos e fatais, falar de mais pessoas. Não será importante para elas, certamente. Não sou ninguém. Mas será essencial para mim e me fará bem, como agora.

Da natureza do amor

Assim como Deus, o amor é arredio e tanto menos se mostra quanto mais é solicitado. Há em sua natureza algo que repele as exortações, e as súplicas que lhe fazem ele as recebe com horror, como se fossem as palavras gritadas ao megafone por um vendedor numa rua de subúrbio, apregoando apocalipticamente seus produtos de limpeza como se todas as casas ao redor não fossem senão uma grande sentina.

Alerta

Com este frio do cão, amaldiçoado,
Não atendamos nunca a campainha,
Nem se jesus houver enfim voltado,
Nem se a tiver tocado uma rainha.

O requisito

Nesta fase da vida, não devo cobrar-me nada além de modestos trabalhos, coisas mais de artifício que de arte: um truquezinho aqui, um achado ali, uma rima bem-posta ali adiante. A arte não se contenta com isso, com esses pequenos enfeites com que se condecoram touros em feiras agropecuárias. A arte exige uma paixão que conheço bem e que sei já não poder sentir, nem agora nem nunca mais.

Burocracia

Poeta já suficientemente desiludido, sou como um funcionário que, faltando alguns meses para se aposentar, já não se importa em anotar nada além do nome de quem lhe pede passagem. Se for o caso de se tratar, por exemplo, deu uma condessa russa de vinte e sete anos, viúva e célebre pela infinidade de seus casos amorosos, eu não registrarei senão estas oito letras antes de lhe entregar o crachá: Viktoria.

Wislawa e Mario

Wislawa Szymborska e Mario Quintana se dariam bem. Trabalhariam no projeto de repoetização do mundo e suas divergências se restringiriam a tópicos amenos, ligados à escolha dos materiais: dúvidas, por exemplo, sobre a utilização de um arco-íris ou de uma revoada de pombos num poema sobre a paz mundial.

Lupa

Se você estiver lendo um poema
e lhe parecer o mais belo dos poemas
e você estranhar não haver
em nenhum lugar a palavra amor
vá lá bem para baixo
para aquelas letras bem pequenas.

De Liberato Vieira da Cunha

"Essa palavra é simpleza, e serve para designar uma rosa, as areias do mar, ou esse claro olhar com que me presenteaste e que não encontra sinônimo em livro algum do universo."

(De O silêncio do mundo, Editora AGE.)

segunda-feira, 20 de junho de 2016

A pergunta

Quando numa palestra perguntam ao velho poeta "e o amor?', ele para de falar, tira os óculos, concentra-se, demora-se como se estivesse diante da única pergunta essencial para a compreensão do homem e do seu destino, enruga a testa, parece encontrar uma pista e, como se houvesse voltado de outro tempo e dimensão, confia na discrição dos ouvintes e põe-se a falar de qualquer coisa, de tudo menos do amor. Nessas ocasiões, alguém da plateia, por sua própria experiência ou por ter um ângulo especial de visão, talvez veja o poeta passar o dedo no rosto, como se por ele ainda pudesse deslizar uma lágrima.

Desafio final

Eu gostaria de ser um desses moribundos sarcásticos que exigem ver o crachá da Morte e lhe fazem perguntas como qual seria, entre todos, o homem que, se ela fosse mulher, pouparia: Napoleão, Júlio César ou Robert Downey Jr.

Mario Quintana

Se eu tivesse sido Mario Quintana, ainda que por um dia apenas, não precisaria ser mais nada ou ninguém até o fim de todos os séculos, amém.

Soneto de quem descobre seu valor

No tempo em que o sol luzia
Como se só para mim,
Eu, incrédulo, dizia:
Por que luz tão forte assim?

Pensava, raciocinava,
Procurava alguma razão,
Mas nada justificava
Tanta consideração.

Hoje, imerso em treva e frio,
Pelo sol abandonado,
Não penso em nada, sorrio.

Não há nisso nada falho.
Ao contrário do passado,
Agora sei quanto valho.

"Com o tempo a sabedoria", de W.B. Yeats

"Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 19 de junho de 2016

Projeto

Para erguer um castelo
você de fantasia precisa
de um caminhão de areia
e de um cartão visa.

Cotação do dia

Querem saber o que sou? Um morituro galhofeiro.

E se

E se houver sucedido
Que sem saber
Tenhamos nós já concluído
O que nos cumpria fazer?

E se o que tivermos feito
For essa safra mesquinha
De lastimáveis quadrinhas
E abomináveis sonetos?

Teu amor

Teu amor não se esqueceu de ti
e acompanha tua carreira
teus passos
teus progressos
teus sucessos
teus fracassos
tua falta de eira
tua ausência de beira

Se ganhares o nobel
uma mensagem te mandará
se teu e-mail não tiver perdido
e nada te cobrará
embora tenha sido
como tu mesmo tens proclamado
a fonte do teu amargo aprendizado
e da tua inspiração

E porque às vezes
até um nobel morre
podes ter a convicção -
porque a um homem que acaba de morrer
mais nenhum mal ninguém pode fazer -
que não te visitará
mas no velório se representará
por um punhado de flores.

www.rubem.wordpress.com

Hoje na Rubem falo de gatos, meu assunto predileto, e de coisas secundárias, como a vida.

"Refluxo", de Lourença Lou

"despedida é rasgo na garganta

a dor é tão veneno
que vibra serpentes
nas cordas vocais

despedida é grito no estômago

a ferida é tão bastante
que paralisamos
a coragem de nos reinventar.

despedida é faca no pensamento

penetra penetra penetra
e contorce a crisálida
no exato instante em que recria nossas asas."

(De Bailarina, Editora Penalux.)

sexta-feira, 17 de junho de 2016

XXIV Concurso de Bardos Independentes

Você estava lá e não viu
aquele merda
aquele bostinha
que ganhou o primeiro lugar?
Não, não aquele,
aquele é um babaca
que não sabe nem rimar.
Aquele ficou em segundo lugar
com aquela poesia pavorosa.
Como é que era mesmo?
Estava aqui na ponta da língua,
me escapou.
Era "Segunda primavera", não era?
Lembrou agora? Então.
Você saiu nessa hora?
Ah, que pena,
depois é que ficou bom.
Deram o terceiro lugar,
o quarto, o quinto,
três poesias horrorosas,
e aí foi a minha glória.
Começaram a distribuir
as menções honrosas.

Sabedoria

A velhice vai nos impondo mudanças de perspectiva e se encarregando de dar uma dimensão real ao nosso vocabulário. Infinito é uma palavra que já me acho sem direito de usar, e horizonte é algo que agora significa dezesseis passos, os que dou com extrema dificuldade, nos dias não excessivamente gelados, da porta da sala até o portão.

Esquema

Viver é tão aborrecido que devemos ocupar-nos de outra coisa qualquer e viver só nas horas vagas, se por infelicidade as tivermos.

Quarto 303

Na oitava noite de hospital ele sentiu que seria a sua derradeira. Tinha se conservado vivo com a esperança de que alguém da família, ou algum amigo, fosse visitá-lo. Essa esperança estava morta, depois de diariamente as enfermeiras e as moças da recepção dizerem, em tom evasivo, que certo primo ou um antigo colega de jornal havia prometido aparecer no dia seguinte, sem falta. Ele tomou chá às oito horas, engoliu com dificuldade duas bolachas e, respondendo ao boa-noite da mulher que recolhera o carrinho com a xícara, o bule, a colher e o sachê de açúcar, sentiu, com o fulminante clamor das verdades, que ela seria a última pessoa que ele veria. Todo o seu corpo ficou instantaneamente gelado e ele soube que aqueles eram mesmo seus derradeiros momentos. Então, um pouco por medo da morte, outro pouco por uma súbita esperteza, deixou escorrer a urina pelas suas pernas, primeiro algumas gotas, depois um fluxo cálido, triunfal. Era como se estivesse entrando no paraíso. O calor o envolveu como uma dádiva, enquanto a mulher abria a porta do quarto e saía arrastando o carrinho pelo corredor. Agradecido por aquela última ventura, ele sorriu como um garoto que faz uma travessura, a maior de sua vida, e sabe que jamais será punido.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Cotação do dia

17h19 - Dia frio, coração frio, alma fria. Chegou o tempo da coerência. Nada destoa agora. Tudo caminha para o fim com uma convicção que nenhuma outra fase da vida teve. Não há mais tempo para enganos.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Ad imortalitatem

Será que um dia terei
aquela riqueza mítica
chamada fortuna crítica?

Soberania

O gato olha com desdém para a maritaca friorenta que voa da árvore em busca do sol que, deitado com ele no sofá, espalha ouro sobre seu pelo cinza.

Das atribuições reais

Um dia serei
como uma dessas pedrinhas
que tens em teu jardim.
Passaste por algumas hoje, presumo.
Tu as olhaste?
Olhaste as flores?
Não, não me digas,
não há necessidade,
não precisas.
Há de uma rainha
com jardins
com flores
com pedrinhas
gastar sua majestade?

Mecânica

O amor, às vezes se vê,
Tropeça no  bê-á-bá:
Chega bem ao ponto G
Mas enguiça na hora H.

Um poema de Eugenio Montale

"Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
árido, voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada às minhas costas, o vazio atrás
de mim, com um terror de embriagado.

Depois como em painel, assentarão de um lanço
árvores casas colinas para o habitual engano.
Mas será tarde demais; e eu irei muito quedo
entre os homens que não se voltam, com meu segredo."

(De Ossos de sépia, tradução de Renato Xavier, edição da Companhia das Letras.)

terça-feira, 14 de junho de 2016

Antes

Fui um menino quase feliz. Tinha uma roupa só para os domingos. Se bem que os domingos não costumassem ser grande coisa.

Graduações

- Nem sempre eu fui triste assim. É que eu tinha um gato...
- Ai, para!
- É que eu tinha um amor e...
- E...? Conta logo, vai.

Esoterismo

Gatos e sofás são almas gêmeas.

Cotação

Dize-me com quem andas e te direi quanto valem os teus pés.

História

Nunca fui assertivo

Desde que me tenho
como vivo
sou arrastado pelos fatos

Nunca dei um ultimato
só penultimatos.

"Síria", de Eugenio Montale

"Dizem os antigos que a poesia
nos eleva a Deus. Talvez não seja assim
quando me leias. Mas eu o soube o dia em que
graças a ti recobrei a voz, perdido
em meio a um rebanho de nuvens e de cabras
que irrompiam de um barranco a desfolhar
sarças e juncos, e as faces descarnadas
do sol e da lua se fundiam,
estava em pane o motor e uma seta
de sangue sobre uma pedra indicava
a direção de Aleppo."

(De Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, edição da Record.)

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Retrato falado

"Como era o rosto do ladrão? Ah, seu guarda, olhos verdes, nariz aquilino. Moço fino. Musculatura bem distribuída. Ai, seu guarda, ai de mim. Levou-me a bolsa e deixou-me a vida.

Perdão

Se somos roubados pelo amor, é uma boa ocasião para se perdoar o ladrão.

Bem a propósito

Com esse frio, só um mantra bem felpudo.

Soneto em dois tempos

Hoje falas com enfado
Do tempo em que tu me amavas
E em que esse amor proclamavas
Ser o mais belo e sagrado.

Mas nesse tempo dourado
Em torno de mim giravas,
Ou ao menos simulavas,
Com desempenho esmerado.

E nesses lábios raivosos
Que para mim hoje têm
Só pragas e maldições

Colhi beijos deliciosos
Que ainda à memória me vêm,
Úmidos, quentes, lambões.

Cotação do dia

Todos os sinais vitais mantidos, até a fatal memória do amor.

"Ecos do silêncio", de Lourença Lou

"gemidos de guitarra flamenca
morrem no ar
sementes regadas a rum
germinam na carne

do lado de cá do espelho
a bela adormecida
embebeda-se de sonho
e dedilha alucinadamente
o fio da navalha."

(De Equilibrista, Editora Penalux.)

domingo, 12 de junho de 2016

12 de junho

E eu te aparecerei em sonhos, e direi que morri por ti, e mostrarei a marca do tiro, ou o furo da faca, e tu dirás, com esse teu rosto desenhado pelo desdém: "Cai fora, feioso."

Cotação do dia

De vez em quando, apesar de tudo, devemos proclamar que continuamos acreditando no amor, Há falta de boas piadas e 99% das pessoas vieram ao mundo para palitar os dentes, eructar e gargalhar.

Incongruência

Com este frio indecente, ainda há quem defenda a inclusão de El Niño e La Niña no estatuto do adolescente?

"Estranheza", de Djanira Pio

"A multidão
composta por seres
inteligentes
passa a estranhar-se.
Não há ninguém
na grande Montanha.
De coração fechado
nada conseguiremos,
pois não haverá
linguagem possível."

(De Olhares, publicado por RG Editores.)

sábado, 11 de junho de 2016

Um aviso da série dos penúltimos

Ando relapso com o blog. Não me empenho mais como no início. Ele já está com seis anos e meio, 24 mil postagens, e venho me sentindo como se tivessem decorrido dez anos ou mais. Surpreende-me haver chegado até aqui. Devo ter sido hábil não propriamente em conseguir assuntos para preencher tanto tempo e espaço, mas em levar os leitores a acreditar que os tivesse. Seja como for, sinto-me cansado e, além disso, vem pairando sobre mim, levantada por mim mesmo, uma suspeita de fraude. Merece isto aqui ser chamado de blog ou será apenas um diariozinho como tantos outros, sem relevância a não ser para mim mesmo? Quando me ronda esse início de remorso, conforta-me saber que o reduzidíssimo número de leitores diários talvez seja motivo suficiente para me absolver. Absolvo-me, portanto, e firmo comigo mesmo o compromisso de tentar, a partir daqui, algo que certamente não consegui desde o primeiro dia, em 2010: dar alguma utilidade a este espaço. Suspeito que a melhor forma de obter isso seja ir rareando os textos, até que o último se imponha como a mais natural das ocorrências. Peço-lhes desculpas por tê-los feito perder o tempo que perderam com minhas baboseiras. A verdade é que explodiu diante de mim, nos últimos dias, como um armário atirado do décimo quinto andar, a convicção de que eu jamais deveria ter presumido ser capaz de lidar com a literatura. Não me queiram mal. Hei de ir matando o escritor que imaginava ter dentro de mim, para que o homem comum, este que sou e fui sempre, possa morrer sem a aflição de achar que a humanidade perderá alguma coisa quando eu esticar minhas prosaicas canelas.

Exortação

Depois de meses de seca, com a lavoura já quase toda morta, uma noite ele ouviu uma trovoada longínqua e saiu para o campo, gritando para o céu: "Chove, filho da puta!"

Capítulo Um

No início, pedi abraços ao amor; depois, implorei beijos. Assim começou a história no fim da qual me vi sem alma.

"Composição", de Mariana Ianelli

"A lenta e refinada arte
De fazer nascer um adágio -

Extrair o peso a cada pedra
E ver mais alto o edifício
A cada coisa abandonada
A cada rosto de si mesmo perdido -

Esse edifício transparente e musical
Onde se vê um pássaro sobre ruínas."

(De O amor e depois, edição da Iluminuras.)

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Larry David e eu

Se fôssemos gêmeos, eu lastimaria sua feiura; e ele, a minha falta de graça.

Pontos de vista

Ferreira Gullar disse que a crase não foi feita para humilhar ninguém. A opinião da crase não é bem essa.

Ranhetice

No meio do caminho tinha uma frase. Um gramático passou por lá e agora há uma crase.

Inépcia

Que desastrada é minha arte:
Meu recado não sei dá-lo
E, quando vou consertá-lo,
Mando o anexo sempre à parte.

"Para findar", de Cesare Pavese

"Recomendo aos meus pósteros
(se é que os haverá) no rol das letras,
o que é pouco provável, que façam
uma bela fogueira de tudo aquilo que à
minha vida concerne, meus feitos, meus não feitos.
Não sou um Leopardi, deixo pouco o que arder
e já é muito viver em percentagem.
Vivi a cinco por cento, não aumenteis
a dose. Mui amiúde, ao contrario, chove
no molhado."

(De Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, edição da Record.)


quinta-feira, 9 de junho de 2016

Passeata

Um movimento para mudar o mundo? Estou fora. Ainda não aprendi nem como funciona este.

Acepção

Se você não ama tresloucadamente, desvairadamente, indesculpavelmente, vá ao dicionário. O que você sente não é amor.

Variedade

As mudanças gramaticais ocorrem para que nossa ignorância esteja sempre atualizada.

Seis dias

Entre outras
tacadas certeiras
Deus construiu o mundo
sem empreiteiras.

Geopolítica

Brasília é uma ilha
de edifícios arrojados
cercada de tubarões
por todos os lados.

"Eutanásia", de Lourença Lou

"o corpo
- poema em desconstrução -
lambe melancolicamente
as páginas de um rimbaud

a alma
- poesia em decantação -
aspira sofregamente
a fumaça do free azul

(e a vida vai escorrendo
ao som de blues da ampulheta)."

(Do livro Equilibrista, Editora Penalux.)

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Ponto de vista

Dizem que ela agora pinta os cabelos. Não importa. Eu enxergo cada dia menos e o melhor ouro é sempre o da memória.

Literatura

E chega um dia em que escrever é só escrever. Você não está mais ali, a alma também não. É uma transação da qual participam só a sua caneta e o seu bloquinho. Nesse dia, você deve aceitar a imposição do tempo e dizer ao menino, que por acaso tem os seus olhos e o mesmo nome, que é hora de desistir, embora ele olhe para você com o ressentimento dos enganados.

"Dia e noite", de Eugenio Montale

"Até uma pluma voando pode desenhar
tua forma, ou o raio que brinca de esconder
entre os móveis,  ricocheteando dos tetos,
o reflexo do espelho de um menino. Sobre a borda dos muros
rastros de vapor alongam a agulha
dos choupos e embaixo, em seu poleiro, arrufa-se o louro
do amolador. Depois a noite sufoca
na pracinha, e os passos, e sempre este tremendo
esforço de afundar para ressurgir iguais
dentro de séculos, ou de instantes, de pesadelos que não podem
reencontrar a luz dos teus olhos no incandescente
antro - e os mesmos gritos e os longos
prantos na varanda
se ecoa de repente o tiro que te arroxeia
a garganta e te rompe as asas, oh perigosa
anunciadora da aurora,
e despertam-se os claustros e os hospitais
a um lancinante clamor de cornetas..."

(De Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, edição da Record.)

terça-feira, 7 de junho de 2016

23h00

Só abri a loja agora, e apenas para levar uns biscoitinhos para o meu gato e gerente, Monsieur Pierre, e um pouco de leite, que ele tanto aprecia. Não me olhou com ressentimento. Talvez meu rosto inspire mais compaixão do que imagino. Serão tão notáveis assim as marcas do amor?

Coincidência

Ela disse chamar-se Priscylla Mariuszka Moskevitch, e isso me soou como se um violino o tivesse dito, assim como em 10 de abril de 1920 os passageiros, no embarque, louvaram a majestade do nome Titanic.

Status

Eu gostaria de ser imortal. Já que não é possível, que eu fosse ao menos um produto não perecível.

Medida cautelar nº 1

Não se apaixonem. Mas, se acontecer, saiam por aquela antiga tangente: errar é humano.

Sete

O amor tem sete vidas
para atrair-nos
para cativar-nos
para seduzir-nos
para escravizar-nos

O amor tem sete mortes
para dar-nos.


Leitmotiv

Tudo que não seja beleza nem a ela se refira deveria ser riscado de nosso bloquinho como se riscássemos num jornal a foto de um cordeiro esquartejado.

Estufa

Aos meus sonetos coube a sina
De serem conservados
Em tristeza e naftalina.

Tudo pronto

Já decidiu. Amanhã começará a escrever uma novela que mudará o conceito de pornografia. Deu o primeiro passo: já escolheu o pseudônimo que usará.

O secretário

Deus criou os homens e incumbiu Shakespeare de catalogá-los, com todos os matizes de sua grandeza e de sua miséria.

"O amante diz da rosa no seu coração", de W.B. Yeats

"Tudo quanto é feio, destruído, todas as coisas gastas, velhas,
O grito de uma criança à beira do caminho, o rangido de uma carroça que se arrasta,
O pesado andar do lavrador, passo a passo sobre o limo invernal,
Maculam a tua imagem que engendra uma rosa no fundo do meu coração.

Tão grande á a mácula das coisas torpes que não pode ser descrita;
A minha ânsia é tudo reconstruir e sentar-me num verde outeiro solitário,
Com a terra, o céu, a água renovados, como um cofre de ouro
Para os meus sonhos da tua imagem que floresce numa rosa tão profundamente no meu coração."

(De Uma antologia, tradução José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

11h29

Não abrir a loja hoje. Não abri-la nunca mais. Deixá-la definhar com suas lembranças de amor. Talvez as tenhamos superestimado. Pode-se acreditar que o destino repita histórias de Paulo e Virgínia, de Dante e Beatriz? O amor, por menos que nós queiramos, deve ser isso que penso hoje: uma coleção de equívocos e pieguices.

Soneto do que devemos preservar

Não nos gastemos assim.
Alguma coisa de nós,
Ainda que um fio de voz,
Conservemos para o fim.

Saudemos o sol, cantemos
Com toda a nossa poesia
As excelências do dia,
E o dom da vida exaltemos.

Façamos isso, mas não
Entreguemos ao verão
Nossa energia total.

Que nos sobre algum alento
Para amaldiçoar o vento
Em nosso inverno final.

Mario Quintana

Ah, esse Quintana... Veio-me ontem em sonho e deu-me, ainda quentinho, um poema e a permissão: "É seu. Pode publicar, sem problema. Tem até um pouco do seu estilo... Pode publicar, eu estou dizendo. Não precisa agradecer. É só uma quadrinha."

Malhação

Viver é um exercício diário
Tão compulsivo e arbitrário
Que é como se fosse um vício.

Chicana

Mas sempre haverá o amor
e sobre ele poderemos lançar nossas frustrações
o equívoco de nossas rotas
a fragorosa ruína de nossas frotas
 e nossos marinheiros morrendo
gritando ainda contra as ondas
suas derradeiras maldições.

Três versos de Margaret Atwood

"O que quer que seja, somos nós com os violinos
enquanto as luzes se esvaem e o grande navio afunda
e a água se fecha sobre ele."

(Do poema "Canção do barco", do livro A porta, tradução de Adriana Lisboa, edição da Rocco.)

domingo, 5 de junho de 2016

Como se o amor já não estivesse extinto

Hoje na revista Rubem (www.rubem.wordpress.com.) falo desse sentimento do qual entendo cada vez menos.

Traços (para Mariana Ianelli)

Sobre um poema, ainda que nos solicitem, não devemos fazer nunca uma análise. No máximo, deixemos uma impressão, como as pegadas de um passarinho na areia, num dia de vento forte.

Resumo

Falhamos em tudo. Fomos
O inverso do que almejamos,
O oposto do que sonhamos,
Nada além de nada somos.

Perigo

Receando descobrir como podem ser falsos seus próprios sorrisos, certas pessoas se afastam rapidamente de mim se começo a falar do amor que tenho à minha melancolia.

O gato e dois passarinhos

O gato sonha que está dormindo no quintal e que um passarinho cisca em torno dele. O gato se agita. O passarinho voa. Outro passarinho se aproxima. O gato estremece, sacode-se, acorda. Tem um ar de satisfação. Lambe a pata, passa-a na boca. Boceja. Parece que vai levantar-se, mas reacomoda-se no sofá e volta a dormir.

Metamorfose

Em certos dias ele se lembrará do amor e sentirá não ter mais lágrimas para chorá-lo, mas apenas um alívio que precisará controlar para não transformá-lo em satisfação e na mais canalha das alegrias.

"Morte", de W.B. Yeats

"Nem temor nem esperança assistem
Ao animal agonizante;
O homem que seu fim aguarda
Tudo teme e espera;
Muitas vezes morreu,
Muitas vezes de novo se ergueu.
Um grande homem em sua altivez
Ao enfrentar assassinos
Com desdém julga
A falta de alento;
Ele conhece a morte até ao fundo -
O homem criou a morte."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 4 de junho de 2016

Prêmio

A nuvem confundiu um periquito com uma das folhas do limoeiro e, por achá-la a mais graciosa de todas, deixou cair sobre sua asa o primeiro e amoroso pingo.

Simbiose

A poesia deveria nascer em árvores e confundir-se de tal maneira com os frutos que não se pudesse distinguir um soneto de uma maçã.

Tesouro

Depois de cada reunião em que os parnasianos declamavam seus poemas, um funcionário recolhia com luvas e uma pinça as vogais de ouro lançadas no tapete junto com os preciosos perdigotos.

O pacto

Assumiu compromisso com a morte. Ainda não disse nada à vida, continua a tratá-la como sempre, mas é impossível que ela não tenha notado ainda como são falsos agora seus sorrisos. Depois de cada um, ele mesmo sente engulhos, como se tivesse comido uma fatia de fígado cru.

Soneto do que se alcança por mérito

Talvez um dia saibamos
Por nosso empenho ou acaso,
Ainda que com anos de atraso,
Onde foi que nós erramos.

O amor já morto estará
E nenhuma novidade,
Seja mentira ou verdade,
Coisa alguma mudará.

No dia em que isso ocorrer,
Nós poderemos saber,
E afinal compreenderemos,

Você, minha querida, e eu,
Que tudo que em nós morreu
Morreu porque merecemos.

"Para ser gravado numa pedra em Thoor Ballylee", de W.B. Yeats

"Eu, o poeta William Yeats,
Com velhas tábuas de moinho e lousas verde-mar,
E ferro forjado na forja de Gort,
Restaurei esta torre para a minha esposa George;
Possam estes sinais permanecer
Quando tudo for ruínas outra vez."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Por aí

Pelo andar da carruagem, devo estar em Estocolmo por volta de 2059, se ainda houver Suécia e Prêmio Nobel.

Presunção

Um blog dá, a quem o escreve, a impressão de que, se não se colocar diariamente nele ao menos um texto, alguém sentirá falta.

O básico

A ideia que eu tenho de um lar é um gato cochilando no sofá. Todo o restante pode ser como for.

Hipótese

Para morrer talvez baste apenas fechar os olhos com um pouco mais de convicção.

Avaliação

Falando a verdade
sou péssimo em tudo
menos na mediocridade.

Doze versos de Margaret Atwood

"A ninguém importa quem ganha as guerras.
Importa no momento:
gostam das paradas, dos vivas;
mas depois a vitória perde a importância.
Uma taça de prata sobre a lareira
gravada com um ano ou outro;
uma horda de botões cortados de cadáveres
como suvenires, algo vergonhoso
que você fez com intensa raiva oculta
da vista dos outros.
Sonhos  ruins, um pouco de pilhagem.
Não há muito o que dizer a respeito."

(Do livro A porta, tradução de Adriana Lisboa, publicação da Rocco.)

00h23

Cochilei de novo debruçado sobre a mesa e só agora vou fechar a loja. Foi mais um dia sem visitante nenhum. À tarde passou por aqui um fiscal da prefeitura que olhou para os livros, os discos, as fotos, as folhas com versos rabiscados (essa dispersão que poderia ser uma metáfora do caos) e me perguntou o que eu pretendia com isso tudo. Eu lhe disse que, apesar do desalinho, a loja é na verdade uma exposição e que eu a venho mantendo na esperança de um dia ver entrar nela alguém, aquele ser único que a inspirou e tem relação com todos esses objetos. Ele entendeu que eu aguardava uma mulher tola o suficiente para adquirir a disparatada coleção. Quando eu informei que nenhum dos objetos está à venda, ele balançou a cabeça: "Que estranho, isso. O senhor é poeta?" Respondi que não, sentindo toda a tristeza por ter lidado tanto e tão intensamente com o amor sem haver aprendido a exprimi-lo em versos ao menos aceitáveis. Todas as outras reminiscências imagino também que nada valham e provocariam risos naquela pessoa única e especial, se um dia ela entrasse aqui.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Paraíso

Não apreciaria morrer agora. Gosta das prerrogativas de doente, dos agrados que elas lhe valem e dos remédios que lhe dão na boca, antes da colherada de mel.

Ferro em brasa

O amor nos escolhe
com carinho e cuidado

Somos o seu gado
o seu ouro
o nome
e o renome
do seu matadouro.

Mario Quintana

Os prodígios de Mario Quintana tiveram sempre a marca da simplicidade. Se comparados aos fenômenos naturais, pode-se dizer que ele não relampejava nem trovejava. Contentava-se em chover, em chuviscar.

Diagnóstico

Que nota vocês dariam à felicidade de um homem que quando não está cochilando está pensando em dormir?

Ali

Ele sorri quando lembra como ela, tentando parecer enérgica, dizia que aquilo era proibido, uma safadeza, que ele não se atrevesse a continuar, mas ficava só nas palavras, que iam perdendo a aspereza, transformando-se em murmúrios que soavam cada vez mais como uma permissão para que ele persistisse em beijá-la ao redor do umbigo, fazendo-a contorcer-se de gozo e cócegas.

"Arca da lembrança", de Mariana Ianelli

"Um sol de opala se uma tarde é pasto da memória,
Uma luz de chá dourando o canto cego de uma sala
E sobre a mesa o espelho d'água

A ocasião do ato secreto

De repovoar veredas, antros, mirantes do passado,
Saudade que vai juncando de ramos, conchas e corais
Todo o imenso dorso de um barco naufragado."

(De O amor e depois, edição da Iluminuras.)

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Mario Quintana

Uma tarde, Mario Quintana parou numa esquina e ficou olhando para o céu. Durava já alguns minutos a contemplação quando as pessoas viram o que ele via: um arco-íris saudando um poeta.

Mario Quintana

Um bando de andorinhas brigava para chamar a atenção de Mario Quintana. Uma senhora elegante, em cuja sombrinha o sol se espreguiçava, comentou: "Assanhadas!"

O fruto

Mais que o permitido
à libido apraz
o proibido.

Lar

Se tiver
mãos que o afaguem
e uma poltrona
que lhe apraza
o gato estará
sempre em casa.

Conduta

No amor
o primeiro passo
é essencial
e os posteriores também

Não os dê nunca
e seja feliz
amém.

"Sem-utopias", de Lourença Lou

"quando me vires passando
pelo tempo dos ventos
e vires reverberando em mim
o aflorar da primavera
não atravesse a rua

não te prometo calmarias
nem que passarás incólume
pelo brilho das estrelas
que carrego comigo

mas te ajudo a transbordar os dias
com a plenitude da vida que
ronda e espreita estes versos."

(De Equilibrista, publicação da Editora Penalux.)