Já nos demos melhor com as palavras
essas mesmas que hoje
fingem não nos ver
como se fôssemos jecas famintos
chegados à capital
com um nome de pensão anotado
e o endereço de um primo
de impreciso grau
chefe da seção de recrutamento
do serviço de esgotos local.
Você não precisa se preocupar em escolher o melhor sofá da casa para o gato. Deixe que ele mesmo quando chegar, amanhã, escolha. Os gatos fazem isso desde sempre. Como em tantas outras coisas, devem saber o que fazem.
Um dia depois de haver decidido tornar-se um poeta social, tinha já feito duas aquisições indispensáveis à sua nova atividade: uma kombi com vocação suburbana e um megafone.
Sou um desses poetas reconhecidos apenas em cartório, na presença de duas testemunhas.
Submetido a uma sessão de elogios que pareciam encaminhá-lo a uma insofismável santidade, o morto, se os ouvisse, certamente se perguntaria como vinte e quatro horas e um testamento podiam mudar a reputação de um homem.
Que não me caiba uma morte parnasiana, cheia de segundas e terceiras intenções literárias. Que seja uma morte comum, me toque simplesmente no braço e diga: vem. Se for loira e longilínea, agradeço.
Tenho ainda certo jeito de poeta: modos estranhos, tristezas imotivadas, lágrimas inexplicáveis. O resto eu perdi.
Pequenos truques retóricos às vezes fazem com que eu me sinta inflado como um filósofo. Hoje me peguei assobiando uma polca, como se fosse Kant, ao pensar que o único sentido da vida é que a vida não tem sentido nenhum.
Que nem aos cães seja dado
O que de nós talvez reste
Se um dia houverem passado
A dor, a desgraça, a peste.
Era um passarinho sonso, desses que aparecem na página 4 e na 5 já estão na barriga de um gato.
Se há um defeito que se pode apontar num gato, não é sua beleza. É a maneira displicente, quase enfadada, com que a exibe para nós, como se não fôssemos dignos de apreciá-la.
Aos oitenta e dois anos, lamenta não poder dizer sobre o que é sua relação com a poesia muito mais que uma palavra: antiga
Tão fácil será morrer,
Sem dores nem agravantes,
Que havemos de nos dizer
Por que não morremos antes.
Depois vocês me contam, disse o rapaz, começando a afastar-se da esquina onde, no décimo andar de um prédio, a cada momento um homem parecia menos disposto a cumprir a bravata de executar seu salto mortal.
O repertório de um chato é geralmente constituído por duas piadas, sendo uma delas contada somente em ocasiões excepcionais,
Por definição, a mão de um chato há de estar sempre úmida e ansiosa para nos cumprimentar.
Começou a tornar-se mais lento em tudo. Do primeiro gá ao segundo gá de sua integral gaguez passaram-se dez anos de aprendizado.
Já foi melhor nossa voz.
Devíamos tê-la usado então.
Continuamos como antes,
inúteis, insignificantes,
mas talvez nos ouvissem
ou pelo menos fingissem
esses que hoje não.
Era o jarro ideal. Desprovido de inquietações filosóficas, envelheceu sem se perguntar uma vez sequer por que ia diariamente à fonte.
Eu já fui poeta de meia-tigela.
Hoje, se for medir bem, de fato,
Talvez nem mesmo de um quarto.
Na biografia de escritores costumam citar-se qualidades notáveis, como o estoicismo. Pena que os leitores não tenham biografia.
De alguns poetas fica, vinte anos depois, um soneto; de outros, dois ou três versos. A maioria deixa nos leitores a lembrança de uma foto na orelha de um livro: um jovem com cara de sonhador, altivo, pobrezinho, tão boboca, tolo, sorridente, aplicado, confiante em que ser Shakespeare ou Dante é uma questão de tempo.
Quando o gato apareceu bem no começo do poema concretista, alguns viram isso como uma precaução do poeta para que não se atrevesse a aparecer por lá nenhum representante da detestável espécie dos passarinhos românticos.
