sábado, 29 de fevereiro de 2020
Como um brinquedo
Que a literatura, se vier a ser um passatempo para nós, seja um daqueles que se mantêm pela vida inteira e faça com que todos ao nosso redor duvidem permanentemente de nossa maturidade.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
Tristeza
Estou morta, ela disse com a convicção que sempre havia nos seus olhos, e todos lastimaram ter de concordar com ela também aquela vez.
Inocência
Quem me acusará de cultuar a poesia?
Sou só um mascate de parco senso
que trata o sol como artigo
e a lua como mercadoria.
Sou só um mascate de parco senso
que trata o sol como artigo
e a lua como mercadoria.
domingo, 23 de fevereiro de 2020
Resistir, mas com moderação
Algumas resistem mais que as outras, mas todas as modernidades acabam cedendo à tentação de aderir ao sistema. Hesitam, no início, e só aceitam a honraria se ao termo classicismo for anteposto o adjetivo novo. Depois, caem desbragadamente na gandaia.
No Estadão de hoje
O caderno Aliás conta a história de Eduardo Lacerda e prova que Massao Ohno foi um só, mas não foi o único.
Pânico
Na manhã em que seus sonetos começaram a escapar da gaveta e a fugir pela janela, o poeta parnasiano teve um chilique. Se os vizinhos vissem aquilo, o mínimo que podiam pensar era que ele havia regredido ao romantismo.
Hoje na revista Rubem...
... faço o que mais sei: empilho frases.
https://rubem.wordpress.com/2020/02/23/empilhando-frases-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2020/02/23/empilhando-frases-raul-drewnick/
Pródigo
Tantas pérolas jogava aos porcos diariamente que, quando morreu, não tinha mais do que duzentas e oitenta e sete.
sábado, 22 de fevereiro de 2020
Faixas etárias
Drummond derrapou na curva dos cinquenta. Sou muito menos poeta do que ele, e também muito mais ousado: aos oitenta e um ainda escorrego às vezes e culpo o amor, sem ter mais a mínima ideia do que isso possa ser.
Querer e poder
O melhor, nessa história de querer ser poeta, são aqueles pouquíssimos momentos nos quais você se ilude e pensa que realmente pode ser um.
O óbvio
Sei hoje que querer ser poeta foi um projeto infantil. Que mais se poderia esperar de um menino de doze anos?
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020
Soneto de quem sabe que não sabe
Escrever para quê? Que interesse há
De nela achar quem por acaso ler
A história de quem nada soube ser,
A saga de quem nunca saberá?
Quem será tolo,quem nos ouvirá,
Quem tempo perderá para saber
Da vida de quem, pródigo em perder,
Nunca triunfou e nunca triunfará?
Se escrever alguém deve, por que eu?
Não foi, eu sei, para isso que eu nasci,
Nem foi para isso que eu ao mundo vim
Querem o quê? Camões não escreveu?
Pois é. Então façam como eu, que o li,
E deixem que eu não seja nada, assim.
De nela achar quem por acaso ler
A história de quem nada soube ser,
A saga de quem nunca saberá?
Quem será tolo,quem nos ouvirá,
Quem tempo perderá para saber
Da vida de quem, pródigo em perder,
Nunca triunfou e nunca triunfará?
Se escrever alguém deve, por que eu?
Não foi, eu sei, para isso que eu nasci,
Nem foi para isso que eu ao mundo vim
Querem o quê? Camões não escreveu?
Pois é. Então façam como eu, que o li,
E deixem que eu não seja nada, assim.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020
Soneto do voyeur
Ama os cabelos longos que ela tem,
E beijá-los pretende ternamente,
Bem como a boca, voluptuosamente,
E a nuca, e os seios úberes também.
Tudo nela lhe agrada, lhe convém,
E tão intensa, e tão completamente,
Que ele, mais pessimista do que crente,
Pergunta se merece tanto bem.
Talvez ela lhe venha conceder
Que goze um dia ao menos o prazer
De lhe beijar o umbigo apetitoso
E que também um dia lhe conceda
Tocar o tufo de dourada seda
Que ela guarda com zelo religioso.
E beijá-los pretende ternamente,
Bem como a boca, voluptuosamente,
E a nuca, e os seios úberes também.
Tudo nela lhe agrada, lhe convém,
E tão intensa, e tão completamente,
Que ele, mais pessimista do que crente,
Pergunta se merece tanto bem.
Talvez ela lhe venha conceder
Que goze um dia ao menos o prazer
De lhe beijar o umbigo apetitoso
E que também um dia lhe conceda
Tocar o tufo de dourada seda
Que ela guarda com zelo religioso.
sábado, 15 de fevereiro de 2020
Anotação
Se escritor você quer ser,
Escreva com o coração.
Seja claro, simples, não
Escreva por escrever.
Escreva com o coração.
Seja claro, simples, não
Escreva por escrever.
Onde estão as pedras?
Àqueles que amam ver-me aniquilado ofereço hoje mais uma magistral oportunidade: um soneto mais pomposo que um vestido de rainha. Apedrejem-me, por favor, sem piedade. Que mais pode querer um masoquista?
Soneto do lacaio amoroso (para Camões se revirar no túmulo)
Era um lacaio desses de terceira.
No palácio era apenas recrutado
Sempre para o trabalho mais pesado,
Sempre para a tarefa mais grosseira.
Entrara porque amava sua rainha
E declarar-lhe seu amor pensava,
Mas sete anos ali já labutava
E o dia de se declarar não vinha.
Teria no palácio envelhecido
E de tristeza ou de paixão morrido,
Sem prova de seu sentimento dar
Se o rei, afeito a exóticos prazeres,
Não visse nele um dos amáveis seres
Dignos de sua cama frequentar.
No palácio era apenas recrutado
Sempre para o trabalho mais pesado,
Sempre para a tarefa mais grosseira.
Entrara porque amava sua rainha
E declarar-lhe seu amor pensava,
Mas sete anos ali já labutava
E o dia de se declarar não vinha.
Teria no palácio envelhecido
E de tristeza ou de paixão morrido,
Sem prova de seu sentimento dar
Se o rei, afeito a exóticos prazeres,
Não visse nele um dos amáveis seres
Dignos de sua cama frequentar.
Heresia
Ler Emily Dickinson em voz alta é como se Pantagruel apagasse com um arroto uma vela numa missa de sétimo dia.
Ser e querer
Na ficção de um escritor, o que não é autobiográfico é quase sempre o que ele queria que fosse.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
Mal-entendido
Hoje me deu a louca, ele disse aos amigos, que, arregalando os olhos e passando a língua nos lábios, perguntaram: ela era gostosa?
Capitu e Bentinho
Ainda há quem censure Machado de Assis por não ter dito, com todas as letras e mais algumas, se Capitu traiu Bentinho ou não. Cáspite! Literatura não é documentário.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
Empreendedorismo
Sou especialista em empreendimentos malsucedidos. Se atiro um bumerangue em Santos, dez minutos depois me avisam que ele se afogou em São Vicente, ou um pouco à frente.
Incompleta precocidade
O menino que o poeta foi era melhor do que ele, embora não soubesse ainda medir o mundo em decassílabos.
domingo, 9 de fevereiro de 2020
Hoje na revista Rubem
Textos do tempo em que o Café Caboclo era irmão do Açúcar União.
https://rubem.wordpress.com/2020/02/09/textos-de-ocasiao-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2020/02/09/textos-de-ocasiao-raul-drewnick/
sábado, 8 de fevereiro de 2020
Inocência
Comentava-se a morte de um cachorro. Meu neto Gianluca, então com cinco anos, perguntou, aflito: vô, só cachorro morre, né?
Soneto dos nomes trocados
Me chama de Pablo, diz
Anita, Dora abraçando,
Enquanto Dora, a agarrando,
Pede: me chama de Luís.
Dotadas de dons viris,
As duas vão se xingando,
Mordendo, unhando, ignorando
Beijos e toques sutis.
Saciada a fome carnal
E extinto o instinto animal,
As duas podem agora
Serenamente abraçar-se,
Com lábios doces beijar-se
E chamar-se Anita e Dora.
Anita, Dora abraçando,
Enquanto Dora, a agarrando,
Pede: me chama de Luís.
Dotadas de dons viris,
As duas vão se xingando,
Mordendo, unhando, ignorando
Beijos e toques sutis.
Saciada a fome carnal
E extinto o instinto animal,
As duas podem agora
Serenamente abraçar-se,
Com lábios doces beijar-se
E chamar-se Anita e Dora.
Norma
Nada contra quem, depois dos oitenta, faz ou pensa fazer poesia. Desde que cada poeta, ou candidato, siga uma norma: manter-se respirando, se possível bem.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
Promoção
Encerrada a carreira, o poeta concretista foi chefiar o setor de habitações populares do BNH.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
Soneto do amado ausente
Meia-noite e meia já
E no frio apartamento
Ela espera ainda o momento
Em que ele enfim chegará.
Já muito atrasado está,
E ela, no seu sofrimento,
Pensa com qual argumento
Desta vez ele virá.
Seu desejo, tão adiado,
Se acende, e o dedo molhado
Não resiste à tentação.
Ela o faz abrir caminho
Sem pressa, devagarinho,
E deita-se sobre a mão.
E no frio apartamento
Ela espera ainda o momento
Em que ele enfim chegará.
Já muito atrasado está,
E ela, no seu sofrimento,
Pensa com qual argumento
Desta vez ele virá.
Seu desejo, tão adiado,
Se acende, e o dedo molhado
Não resiste à tentação.
Ela o faz abrir caminho
Sem pressa, devagarinho,
E deita-se sobre a mão.
Precocidade
A família assiste em casa a um filme do Mastroianni. Que ator! Como faz tudo maravilhosamente bem. Quando ele ri, o menino ri também: olha, mãe, já sei rir em italiano.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
Amém
Quando morreres,
seja qual for
o cemitério para onde fores,
que possam nunca perturbar
a paz que mereces desfrutar
os vendedores de pamonha
os cães copuladores
e os três esganiçados tenores.
seja qual for
o cemitério para onde fores,
que possam nunca perturbar
a paz que mereces desfrutar
os vendedores de pamonha
os cães copuladores
e os três esganiçados tenores.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020
Descoberta
Uma semana depois da morte do marido, a viúva se pergunta por que ele jamais lhe disse que tinha tantos e tão solícitos amigos.
domingo, 2 de fevereiro de 2020
O detalhe
Na época do romantismo, o que fazia um poeta ser o preferido pelas mulheres era às vezes um detalhe aparentemente banal, como ele ter, ou não, cavanhaque e olhos azuis.
sábado, 1 de fevereiro de 2020
Maktub
Não importa o que façamos.
O futuro será o que Deus quiser
E o que para ele previu Nostradamus.
O futuro será o que Deus quiser
E o que para ele previu Nostradamus.
Maktub
Ora vá chupar uma laranja é o tipo de frase capaz de soar como uma grosseria. E no entanto pode ser o mais cavalheiresco dos eufemismos.
Chance perdida
Lembrando-me dos desastres aos quais me lançou o romantismo, penso que deveria ter descido das nuvens, fincado os pés no chão e aderido ao concretismo.
Fenômeno
É uma dessas loiras longilíneas típicas do verão, que começam a se espreguiçar num dos quartos de cima e só se desenrolam inteiras na piscina, faiscando ao sol.