Fonte de renda

 Há um tipo de escritor que, fazendo da literatura uma rameira, a enfeite de sedas, lhe ensine modos oblíquos de seduzir e a coloque nas esquinas do mundo. Observando-a do outro lado da rua, ele abre seu sorriso milionário sempre que um carro para e ela vai se vender mais uma vez.

Volp

Onde estão os hifens que evitariam o horror de alguém dizer que comeu um pé de moleque?

Esforço final

Aos vinte, era a esperança. Aos oitenta,  o que o move ainda no rumo da poesia é a mais obstinada, cega e tola teimosia.

Imponência

Tão imponente se mostrava 

com o peito de flores condecorado

que se não estivesse morto

seria pelo mundo invejado.

A exceção

Seja sensato. Mantenha os olhos sempre abertos para tudo. E não se esqueça de que até a sensatez admite exceções. E lembre que o amor é uma delas.

Tempo melhor

Era um defunto cuja idade os cabelos brancos denunciavam. Mas o rosto sem rugas e corado permitia supor uma infância e uma adolescência tratadas com biscoitinhos de aveia e leite de búfala.

Futuro

Aos oitenta e dois

só um tolo pergunta

o que virá depois.

O nome

Amante das palavras, a mais preciosa de todas ele, com medo de que a furtem, jamais deixa que lhe saia dos lábios. Receia dizer, num descuido ou na inconfidência de um sonho, essa palavra mágica, esse tesouro, esse nome de mulher.

Como se

 Que infames foram os tempos nos quais, ao vermos uma mulher, o primeiro adjetivo que nos ocorria era bela. Como se a um passarinho só pudéssemos atribuir os dons de voar e cantar.

Gratuita servidão

Se o Amor não é o teu senhor

Por que aceitas seu chicote,

Por que lhe abres tua carne,

Por que lambes sua mão?

Melhor assim

Se ela não sabe que eu a amo,

Não saberá por quem sofro,

Não saberá por quem choro,

Não saberá por quem morro.

Substância e forma

 Sempre tive certa verve humorística, que fui desenvolvendo aos poucos. Quando, com vinte e dois anos, eu disse que seria poeta, sorriram. Ao repetir a piada com oitenta e dois, gargalharam.

Pretexto

No romantismo, vivia-se de amor para poder morrer por ele.

In medio

Dependendo dos lábios de quem a proclama, a meia-idade pode ser não mais que uma meia-verdade.

Prodigalidade

 Quando adolescente, era um perdulário nos seus sonhos eróticos. Lembra-se de num deles haver recusado um convite de Marilyn Monroe porque estava com um ménage marcado com Sophia Loren e Brigitte Bardot.

O melhor

Às vezes me ocorrem boas ideias. Hoje, por exemplo, me veio uma: a de que o melhor que posso fazer pela poesia é não fazê-la mais.

Completo

Além de velho e medíocre, era um poeta deselegante e ingrato. Atribuía seu insucesso não aos versos trôpegos e dissonantemente rimados, mas à insuficiente inspiração que lhe proporcionavam suas arredias musas.

O pobrezinho

Reconheço que não era inteiramente poético o  pensamento que me veio no dia em que, tendo prendido a mão numa porta, a condessa se pôs a beijar o dedo ferido: ai, pobrezinho, está doendo muito, está?

Agente duplo

 E há o caso daquele poeta contraditório que, apresentando-se como defensor dos sonetos, atua ao mesmo tempo contra a causa: toda semana comete pelo menos um, daqueles bem descabelados.

Novos rumos

Recentemente convertido às causas sociais, o poeta ainda não se sente seguro de sua escolha. Povo, liberdade e justiça são palavras que não lhe provocam um arrepio nem umedecem seus olhos como ainda ocorre quando pensa em mulheres, flores e passarinhos.

 

Futuro

Quem se queixa da vida aos oitenta

Prepare-se para o que virá depois,

Aos oitenta e um e aos oitenta e dois.

Aviso

 Não confundir erro crasso com erro crássico.

Culpa

Hoje, reconstituindo episódios de sua vida amorosa, ele se sentiu decepcionado e se perguntou se atribuía a culpa ao seu desempenho de jovem ou à sua memória de velho.

Característica

O que costuma haver de mais peculiar na voz de um poeta velho é a tosse.

Vocação

Aos vinte anos eu não sabia,

Mas qualquer um já podia ver

Que meu futuro não era a poesia.

Melhor

Se de manchas se trata,

Melhor é ter uma na reputação

Do que uma dúzia no pulmão.

Covid-19

Meus leitores andam preocupados

Mas não precisam, nem devem.

Escritores velhos costumam morrer

E escritores mortos não escrevem.

Hoje na Rubem

https://rubem.wordpress.com/2020/10/18/a-barriguinha-raul-drewnick/

A história de uma barriguinha

Mare vitae

Jamais chega vivo a um porto

Quem chega sem seus ideais.

Meu mar há muito está morto,

Meu porto agora é jamais.

A postos

O poeta parnasiano

ao se tornar poeta social

imbuiu-se de uma barba revolucionária

de algumas frases de Che Guevara

e com comichões marciais

trocou por exclamações

todos os seus pontos finais.

Personagens

 Se eu resolvesse escrever uma novela policial, a indispensável mulher ambiciosa, sem princípios e fatal teria como modelo a condessa. Eu seria o milionário que também jamais falta num livro desses, ou o  detetive ou qualquer outro tipo - de preferência aquele que fosse mais facilmente atraído, tentado e seduzido pela atraente, tentadora e sedutora mulher.

Sonetinho redondilhoso

Morramos nós do que for,

Que seja de algo ditado,

Imposto e determinado

Pelo tribunal do amor,

Pois, sendo ele o julgador,

O castigo mais pesado

Há de ser por nós julgado

Um presente de valor.

A morte mais impiedosa

Será para nós preciosa

Se vier pela sua mão.

Decida o que decidir,

Não iremos resistir,

Não lhe diremos que não.

Os sobreviventes

Um amigo, que como eu se apaixonou pela condessa no seu tempo, comentou recentemente que ela, se quisesse, teria comido inteirinho qualquer homem. Concordei e nos olhamos melancolicamente, com o mesmo pensamento: por que ela, tendo podido, não havia, para nosso prazer e glória, nos devorado?

Poderosa

A condessa tinha o dom, se suspirava, de tornar pecaminoso até o ato de levar aos lábios um pedaço de pão.

De prontidão

Se notam que o escritor está começando um romance erótico, os advérbios se põem à disposição imediatamente, apressadamente, voluptuosamente, lubricamente, desavergonhadamente.

Identidade

Antigamente, até o mais novato dos passarinhos de um parque reconhecia lá de cima um poeta. Hoje este, para entrar, precisa exibir a carteirinha e o recibo do sindicato.

Entre os lábios

 Hoje teve uma recaída romântica. Mastigava um sanduíche, uma situação mais do que comum, quando certa mulher, a quem dedicara muitos dias e vários maus sonetos, lhe veio à lembrança e lhe arrancou um suspiro que não podia ser atribuído ao pão nem ao presunto. Pensativo e imaginativo, ele olhou para o teto e seus lábios ficaram livres pata sussurrar reverentemente um nome.

Lacuna

Que falta de consideração e de estilo têm aqueles que relatam em detalhes seus pecadilhos de gula, desamor ao próximo e cobiça e resumem em duas ou três palavras seus pecados de fornicação.

Menos

Não, meu caro, trepanação não é essa orgia toda que você está imaginando.

Rival

Dizem os parnasianos que Deus andou garatujando alguns sonetos e que eles eram quase tão bons quanto os de Olavo Bilac.

O viajante

 Agora me contento com miudezas. Como aquele homem que, tendo sonhado desde menino com viagens fabulosas, passa os dias na poltrona, girando um globo terrestre e visitando todos os lugares nos quais gostaria de estar antes de precisar ir ao definitivo.

Épocas

Há cem anos um soneto bem-sucedido bastava para garantir a fama de um poeta. Hoje, metade de um já provoca protestos e passeatas.

Resumo

Sempre fui um poeta consumado.

Pena que além de mim

Mais ninguém tenha notado.

Nem tanto

Quando digo que estou vivo

Espero que você possa entender

Que estou vivo só por dizer.

Lógica

Aqueles que enaltecem a velhice e depreciam a juventude precisam ter certa desfaçatez ou idade bastante para isso. 

Estatística

Quando dois tolos bem tolos se encontram, é provável que pelo menos um deles seja poeta.

Tipos

Há os condoreiros (os poetas sociais)

E há os como eu (os poetas comuns

com dores abdominais).

Ao relento

Os amores não correspondidos

dormem do lado de fora

famintos sedentos encolhidos

latindo como cães perdidos

sem nenhuma esperança nos latidos.

Consciência

Se eu fosse mulher

julieta em vez de romeu

nunca me aceitaria

jamais me toleraria

nunca me permitiria

nem sequer ser vista

com um tipo como eu.

A obra

 Fizeram o amor

com tanto enfado

que tendo terminado

se atiraram imediatamente

culposamente

a uma nova versão

mais ampla e bem acabada.

Descrença

Os últimos poetas românticos ainda falavam da alma, porém os leitores começavam a perceber que, assim como acontecera com o amor, faziam versos nos quais não se notava mais nenhuma convicção.

O sonho

Chegam a ser cruéis, agora, seus sonhos. No mais recente, quando ele se aproximava de um grupo de mulheres, elas se dispersaram. Ao acordar, ele se lembrou de uma piada na qual algumas cachorrinhas que conversavam numa esquina se punham repentinamente em fuga: ih, vamos, vamos logo, que vem vindo aquele cachorro bobo de nariz gelado.

Ciúme

 Quando a bela Ismália enlouqueceu, uma prima feiosa e despeitada comentou: antes ela do que eu.

A megera

Depois de cada uma das mil trezentas e oitenta e três reformas pelas quais passou a gramática nos últimos vinte e tantos anos, a pergunta esperançosa e aflita, sempre acompanhada por uma decepcionante resposta, é: acabaram com a crase?

Hoje na revista Rubem

Um texto sobre a vaidade.

https://rubem.wordpress.com/2020/10/04/se-esta-rua-fosse-minha-raul-drewnick/https://rubem.wordpress.com/2020/10/04/se-esta-rua-fosse-minha-raul-drewnick/https://rubem.wordpress.com/2020/10/04/se-esta-rua-fosse-minha-raul-drewnick/

Instrumento

 Tem saudade da época em que a tristeza era como uma ferramenta do seu ofício de poeta.

A imagem da Morte

Chegou a acreditar que a Morte fosse uma ruiva voluptuosa, e antecipava como seriam prazerosos seus momentos derradeiros quando viesse o dia. Hoje prefere imaginar que a Morte seja só uma voz discreta e assexuada, que não lhe dirá nada além de uma palavra: vamos.