Morrer talvez seja doce.
Nem dores nem agonia,
Quem sabe até como um dia
Pensamos que a vida fosse.
Morrer talvez seja doce.
Nem dores nem agonia,
Quem sabe até como um dia
Pensamos que a vida fosse.
No fim da vida o único pecado que ele ainda cometia com certa frequência eram os sonetos.
Fui aquilo que na época chamavam de rapaz promissor. Diziam que eu tinha muito futuro. Estavam certos, se considerarmos futuro um período entre os vinte e os oitenta anos de idade.
Se para morrer for necessário algo além de conformismo e omissão, tem medo de fracassar, como lhe sucedeu tantas vezes com coisas muito menos importantes.
Como me agradaria,
se Shakespeare eu fosse, e não Drewnick,
escrever uma autobiografia.
Numa autobiografia, quando o autor se empolga, costuma haver mais opiniões do que fatos.
Atingido pelas gotículas poéticas da declamadora, o espectador da fileira da frente puxou o lenço e, encantado, viu-o transformar-se em um gracioso e sedento passarinho.
Desafortunados foram aqueles poetas românticos que passavam dos trinta anos e ainda não tinham morrido de amor. Onde quer que estivessem, com o rosto rubicundo, a calva lustrosa e o ventre inflado, eram recebidos com as gargalhadas e o desprezo que sempre merecem os farsantes.
Justiça se faça aos poemas concretos. Eles acabaram com toda uma raça de esganiçados declamadores.
O benemérito doou cinquenta sacos de cimento para a antologia de poemas concretos.
Por pior que seja uma piada, se quem a conta é um chato ninguém precisará pedir-lhe, por favor, que a repita.
Era um escritor comum mas feliz, que, convencendo-se de ser um gênio pelos manuais de autoajuda, morreu amargurado porque nunca lhe deram o Nobel.
Candidatando-se a uma vaga na seção de sonetos, o pardal foi recusado, sob o argumento de que ali era lugar de rouxinóis e cotovias, e aconselhado a se inscrever no setor de quadrinhas.
Como poeta, tem uma coragem que nunca demonstrou como homem. Chega a ser uma desfaçatez: além de escrever sonetos, tenta publicá-los.
Se um escritor se apresenta como literato, muito provavelmente não será nem uma coisa nem a outra.
Escrever sonetos é hoje, usando uma linguagem policial, como reconstituir a cena de um crime cometido cem anos atrás.
Falemos de flores, falemos de rosas, ainda que nossa voz seja esta, similar à de um homem que por trinta anos tenha sido condutor de gado.
O amor então nos dirá que nunca fomos dignos dele, e nós choraremos tanto que ele terá um momento de hesitação antes de confirmar nossa sentença.
Chora quando se lembra do tempo em que seu dia a dia tinha hifens e no seu futuro havia esperança.
De vez em quando ainda lhe pedem que escreva alguma coisa bem bonita para tal ou qual efeméride, e ele se sente como aquele mágico que, num dia de extrema necessidade, deixou seu coelho e sua cartola numa casa de penhores que um incêndio destruiu no dia seguinte.
Talvez algo de mim fique em alguma parte. Será algo pequeno, como eu sou, porém não tão pequeno que alguém possa dizer: a esse, Deus não concedeu nada.
Convenceu-se de que não devia mais escrever sonetos quando já não conseguia escrever nenhum.
E chega o momento em que, no fim da festa, quando a monumental loira nos pede carona, o chato, bêbado, se aproxima e diz que também está sem carro.
Ter mais fé que excelência
É nosso modo de ser.
Cremos que meia dúzia de maus poemas
Possa nos justificar e nos absolver.
Dedicar a vida à poesia é o que todos os poetas juram fazer - tanto os muito bons quanto os muito ruins.
Tenho pensado na morte.
É a minha filosofia.
Com oitenta e três, me diga,
Em que você pensaria?
https://rubem.wordpress.com/2021/11/14/sacola-de-quinquilharias-raul-drewnick/
Do gongorismo de Deus ao minimalismo de Bashô, longo foi o caminho da arte e árduo o trabalho dos artistas.
Pela visão atual, Shakespeare e Camões não eram nenhuns santos. Também eles cometiam lá seus sonetinhos.
Minha tristeza anda amuada. Vive me acusando de indiferença e até de traição. Diz que já me surpreendeu assobiando e sorrindo e que é intolerável minha mania recente de abrir as janelas de manhã e cumprimentar o sol.
No tempo atual, a verdade
Tem mil e tantas versões,
Todas com subdivisões
E prazo de validade.
Por disposição legal,
todo poema concreto é registrado
no instituto nacional da propriedade industrial.
À cerimônia de inauguração do poema concreto compareceram altas autoridades militares, civis e eclesiásticas.
Há homens estranhos. Conheci um que confessou ter dado a vida toda à literatura e, quando eu ia dizer que sentia muito, abriu um sorriso esplêndido: "E daria outras, se tivesse."
Minha tristeza é como um cão muito amado. Ela me dói desde sempre. Dói-me deixá-la sozinha em casa e dói-me ainda mais, quando a levo a algum lugar, amarrá-la do lado de fora, para que seus olhos lacrimosos não constranjam aqueles cuja alegria escorre da boca como baba.
Nos dias de inspiração aguda, o poeta parnasiano cuspia pérolas do alto de sua torre de marfim.
A literatura é uma dessas tolices que, se não forem combatidas no início, podem levar um homem ao ridículo e, em casos especiais, até a prêmios e condecorações.
Morrer por amor seria uma hipótese que eu talvez ainda hoje levasse em consideração. Mas precisaria ser um desses amores fulminantes, que não dão ao fulminado tempo de dizerem ai nem de escreverem versos estropiados.
O que os poetas antigos mais amavam não eram suas donzelas, mas o maravilhoso dom que tinham de fazê-lo aspirar apaixonadamente por elas, sofrer desesperadamente por elas e morrer gloriosamente por elas.
Até o fim do ano, este blog, iniciado em 2010, chegará a 36 mil textos. Vocês perguntarão: e daí? E eu perguntarei também: e daí?
Os escritores costumam reunir-se em duas ocasiões: ou para montar uma antologia ou para falar mal dos confrades.
Foram-se os tempos dos poetas que, se não tinham doenças incuráveis nem amores impossíveis, inventavam umas e outros e se descabelavam, e se flagelavam, e se desmanchavam de chorar. Hoje os poetas escrevem uma prosa feita de exclamações e conclamações e distribuem cestas básicas na periferia.
Que posso eu ainda querer,
Qual deve ser meu intuito?
Talvez morrer sem sofrer.
Viver é decerto muito.
Estou vivo
e deveria sentir-me feliz por isso -
dizem-me com desagrado,
como se minha tristeza
fosse um estorvo
ou o mais abominável dos pecados.
Quando, nos últimos anos de vida, o poeta foi aniquilado por doenças de todo tipo, comentou-se que era a recompensa mais do que merecida por sua juventude dedicada aos sonetos e a outros vícios.
Para rasgar um coração, para dilacerar uma alma, não há melhor instrumento que a voz de Amy Winehouse.
Não tenho mais o que mostrar. Exibo minha tristeza há tanto tempo que hoje, quando a chamo ao palco, o público resmunga: "Não, não, outra vez?" e forma-se a fila dos que vão ao guichê para pedir o dinheiro de volta.
Continuar escrevendo depois dos oitenta anos costuma ser um ato mais de desespero que de esperança.
Quando o meu dia chegar
De dar adeus e morrer,
Que eu possa a honra merecer
E ser um morto exemplar.
Sobre minha relação com a poesia, o que de mais honesto posso dizer é que tenho sido perseverante.
Na primeira vez em que exprimi o desejo de ser poeta, isso poderia ser considerado um ato de pura modéstia. Eu tinha menos de vinte anos, e alguns jovens como eu já haviam declarado intenções bem mais ambiciosas, como a de salvar ou destruir o mundo,
Sofrer é uma das coisas
Que melhor sei fazer.
Sofro por tudo,
Sofro por nada,
Pelo motivo certo,
Pela razão errada,
Sofro por sofrer.
Se falo tanto do ato de escrever, é muito menos por conhecê-lo do que por amá-lo apaixonadamente. É, para mim, muito mais uma arte do que um ofício.
Escrevo como quem sente
Que tudo que hoje lhe ocorre
Não se dará novamente.
Escrevo como quem morre.
Dourada foi a época em que os artistas do mundo todo passavam ao menos um ano em Paris. No regresso traziam sempre alguma novidade, mesmo que fosse um bigode ou um cavanhaque.
Habituado a lidar com as flores, os passarinhos e as mulheres, o desiludido poeta romântico hoje convertido às causas sociais procura rimas para povo, cidadãos, liberdade e luta e a cada poema que faz imagina que com ele se deflagrará uma revolução.
Seria inadequado eu dizer que a poesia me deve alguma coisa. Pode alguém considerar sério um pacto que um velho bisonho, na época ainda com vinte anos incompletos, diz ter firmado com uma senhora brilhante e respeitabilíssima?
As palavras do amor eram pura melodia. Elas nos embriagavam, nos inebriavam, nos enfeitiçavam tão completamente que nos censurávamos sempre, por nos julgarmos indignos de ouvi-las. Quando descobriu nossa pequenez, ele se foi e levou suas palavras a ouvidos que nosso despeito e nossa maldade diariamente amaldiçoam.
Todos sabiam de que venturoso mal padecíamos no tempo em que nos subjugava o amor. Nossos olhos encovados e nosso agradecido rosto de mártir nos denunciavam.
O que tínhamos fomos dando ao amor. Depois que se apossou de tudo, nunca mais vimos seu rosto de anjo e seus olhos pedinchões.
Embora até possam dizer que não, os leitores, apesar de todos os modernismos, ainda esperam que os poemas, falem do que falarem, falem principalmente do amor.
É um poeta, mas acima de tudo um bom homem. Não guarda mágoas, não abriga rancores. Talvez um dia até perdoe os suecos, se enfim lhe derem o Nobel.
O poeta foi pedir ao marceneiro uma escada para colher uma estrela que a chuva pendurou numa árvore do quintal.
Só no fim de sua vida perfeccionista e presunçosa o poeta parnasiano foi julgado por crime contra a humildade.
Ver um cordeiro ser triturado por uma sucuri é uma das melhores formas de descrer de Deus.