terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Resumo

 Se fosse resumir o que fiz nas últimas seis décadas, eu diria: tenho escrito. Que os leitores completem a frase com o advérbio que lhes parece mais adequado.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Soneto de como se deve negociar o amor

Quem do amor quer e espera pagamento,

E cada abraço e cada beijo dado

Anota sem perdão e com cuidado,

Agindo tal qual age um avarento,


Não merece reparo ou escarmento

Nem ser, por ser assim, vilipendiado

E pelos outros homens apontado

Como um homem vulgar, sem sentimento.


Quando de amor se trata, o perdulário

Que nada exige em troca do que deu

No fim é sempre visto como otário


E quando na penúria se encontrar

Lhe dirão que a miséria mereceu

Por jamais ter sabido negociar.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/12/26/itens-nem-todos-basicos-raul-drewnick/ 

sábado, 25 de dezembro de 2021

Arquétipo

Era um poeta sonetoso, obstinadamente empenhado em vestir de ouro suas estátuas, velhas e frias como seu coração. 

Sucesso

 Ninguém, na véspera, o julgaria capaz de tanto, mas ali estava ele, majestosamente estendido, com o nariz apontado para o teto, iluminado por quatro velas cerimoniais, sob dezenas de olhos respeitosos

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Bons antecedentes

Houve tempo em que os sonetos, não tendo ainda revelado sua má índole, frequentavam casas de família e eram ditos pelos lábios de gentis senhorinhas em reuniões dominicais.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Soneto do amor e de seus vassalos

Quem é que, se do amor for um vassalo

E se puder, por essa condição,

Ter o prazer, além da obrigação,

De venerá-lo e de reverenciá-lo,


Irá diminuí-lo, contestá-lo,

Não lhe dizer o sim, dizer-lhe não,

Recusar-lhe louvor e submissão

E por seu despotismo denunciá-lo?


O amor há de ser sempre inocentado

Por quem por ele for escravizado

E, se queixas lhe forem dirigidas,


Não serão pelas dores que causar,

Por mais que possam ser, e machucar,

Mas por não serem mais, e mais doídas.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Amenidades

Perguntam-me como estou,

Como vou, como tenho ido.

Digo que estou bem, que vou

Bem, e que tenho morrido. 

Ambivalência

 Dizer que Shakespeare, no que fez, foi deus não é só uma verdade; é também um cacófato.

Cartilha

 E dia virá em que o vovô não verá mais a uva.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Pronto-socorro

Depois de três dias vomitando pedregulhos, o poema concreto entrou em agonia e foi levado num guincho a um escritório de engenharia. 

Perfil

 Um poeta concretista

tem gelo na mão,

cimento na boca

e uma pedra no coração.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Soneto da chama que me animava

Nas horas arrastadas e sombrias

Em que a noite me envolve em pesadelos,

Lembro-me com saudade dos meus dias

E choro ao na memória revivê-los.


Aquelas desatadas alegrias

E aqueles sonhos, bom seria tê-los,

Ao invés destas dores e agonias,

E de novo fruí-las e mantê-los.


Ainda que só por um momento mais,

Por um instante só, depois jamais,

Quem me dera na pele adormecida


Sentir aquele sol que me incitava,

Aquela chama que me despertava

No tempo em que era vida a minha vida.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Soneto de tudo quanto o velho superestimou

 Hoje, quando avalio o meu passado,

Invade-me um profundo desencanto

E a decepção de agora saber quanto

Estive a meu respeito equivocado.


Tudo de que me tenho vangloriado

E que foi para mim razão de encanto

Agora sei que não valia tanto

E que por mim foi sempre exagerado.


As glórias todas de que me gabei,

Os triunfos que cantei e celebrei,

As pompas e as excelsas honrarias


São o que sempre foram e serão:

Uma farsa, um embuste, uma ilusão,

Um velho enaltecendo velharias.

O último suspiro

Antes de esticar de vez as veneráveis canelas, quem sabe eu tenha forças ainda para concluir um projeto poético: Quatrocentos sonetos - A vida criminosa de Raul Drewnick. Haverá de ser, se não um acontecimento artístico, uma indubitável proeza estatística.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Características

 É um poeta assim assim:

nem muito bom

nem muito ruim.

Talvez melhorasse

se ao seu repertório acrescentasse

um pouquinho de esplim.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Pensamento do dia

 O mundo é tão raso, tão chão.

Se não fingirmos intimidade com as estrelas,

Quem nos prestará atenção?

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Soneto do humano que se sobrepôs ao divino

 Às vezes penso que vivi à toa.

Medíocre em tudo aquilo quanto fiz,

Eu, como tanta gente, fui feliz

E tive, como tantos, vida boa.


Não tive tudo quanto pretendia,

O dom que desejei, quase divino,

A fama que almejei desde menino,

Mas tive muito mais do que devia.


As coisas acolhi como me vieram,

Tudo aceitei de tudo que me deram,

Com os louros que sonhei não fui premiado.


Reneguei a leveza a que aspirava,

Esqueci-me do ideal que me norteava,

Morri balofo como um afogado.


domingo, 12 de dezembro de 2021

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2021/12/12/nao-mais-que-algumas-raul-drewnick/ 

Soneto da paixão extemporânea

 Como quem se apaixona e, apaixonado,

Perde toda a razão, o senso e o tino,

E vai de desatino a desatino,

Sem saber o que é certo e o que é errado,


Eu também, como um tolo enamorado,

Quanto mais me avalio e me examino,

Com o que comigo ocorre não atino

E nada entendo, e não compreendo nada.


Que obsessão pode ser esta de agora,

Tão sem sentido, já, e fora de hora,

Para um homem decrépito como eu?


Que paixão pode ser ainda sentida,

Que vida pode ser ainda vivida,

Por quem há tanto tempo já morreu?


(Soneto da paixão extemporânea)


sábado, 11 de dezembro de 2021

Soneto da ideia pela qual vivemos

 Hoje, quando nos pomos a lembrar

Daqueles dias, da época dourada,

Da juventude esplêndida e encantada

Em que nos permitíamos sonhar,


Lembramos, com vergonha, com pesar

E com a alma ferida e derrotada,

Da ideia, em nós nascida e cultivada,

De podermos o mundo aprimorar.


Éramos muitos, éramos bastantes,

Todos firmes, enérgicos, atuantes,

E à nossa missão todos devotados.


Nós vivemos por ela, nós lutamos,

E por ela é que somos e que estamos

Agora todos mortos e enterrados.



Facínora

Um soneto se emenda; um sonetista, jamais. Tenha ele sessenta, setenta ou oitenta anos, sempre pode surpreender e, no meio da mais pacata das reuniões, sacar do bolso com a mão trêmula mais uma de suas enferrujadas armas de catorze tiros. 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Soneto do enfado que causam a vida e o amor

 Se ontem viver foi ventura

E eu fui um ser venturoso,

Foi-se esse tempo ditoso

E hoje viver é tortura.


É tempo de dor e agrura

E eu, hoje um ser pesaroso,

Na vida não acho gozo

E nem na literatura.


Tudo me provoca enfado

E nada mais me traz agrado,

Seja eu amante ou leitor.


Definho eu a cada instante

E os livros também, na estante,

Morrem de mofo e bolor.


quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Última chance

 Talvez eu possa ainda ter

Meus erros e meus pecados

Injustamente perdoados

Um pouco antes de morrer.

CLT

 O poeta social quer somar ao seu tempo de aposentadoria a época em que, desconhecendo Engels e Marx, defendia os direitos das flores e dos passarinhos.

Beleza

 Quando o poeta apontou o arco-íris, um fiozinho multicolorido enroscou-se em seu dedo indicador.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Reunião

 Não ter mais nada a dizer

É agora tudo que tenho.

Devia calar, me abster,

Mas eu insisto, mas venho.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Volume

Na tarde em que o menino enterrou no quintal seu gato atropelado, os passarinhos, talvez por ser o primeiro dia da primavera, pareciam cantar com mais entusiasmo do que nunca.

Passatempo

Respirar é, mal ou bem,

O que nós vamos fazendo.

Enquanto a morte não vem,

Viver nos vai entretendo.

Balanço

Ao céu, se eu chegar, será pela misericórdia de Deus; ao inferno, por minhas próprias e humanas pernas. 

O fim

 Chega aquela época da vida em que nossos olhos cansados, se forem postos diante da Beleza mais uma vez, não se importarão se for a última.

A pergunta

Se não temos de Shakespeare

Nem as palavras nem a voz,

O que há de a literatura querer de nós?