quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Assembleia
Que fazem aqueles poetas
aquele grupo egrégio
aquela excelsa confraria?
Que prodígio régio
que taumaturgia
busca essa seleta companhia?
Ou projeta um florilégio
ou arquiteta uma crestomatia.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
Investigação
Se em mim alguém suspeita
Algo de Shakespeare encontrar,
Fiquem todos à vontade,
Podem me revistar.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
Aspiração
Alma minha gentil que te partiste
Deste mundo de dor e provações,
Que possas ter aí, onde subiste,
A companhia da alma de Camões.
O início
O que mais me encantou na poesia foi ela, embora eu fosse não mais que um menino, não me censurar pela tristeza que já começava a me pesar na alma.
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Honestidade
Quem faz literatura deve ter ao menos uma presunção: a de, ao se retratar, parecer melhor do que realmente é. Falar com honestidade da própria grandeza é uma dessas atitudes que cabem apenas aos deuses - e sabemos como costumam ser enfadonhas essas manifestações.
domingo, 25 de setembro de 2022
Lição
É um desses homens que aprendem com o tempo. Aos vinte anos, rompeu com os amigos que o compararam a Shakespeare. Hoje, modesto, os abraçaria.
sábado, 24 de setembro de 2022
Tanca
Tristes os que têm
A vida tão dolorida
Que dela descreem
E pensam, por assim ser,
Que morrer seja uma bênção.
Cotação do dia
Sim, escrevo, já devem ter-lhe dito.
Nada demais, versinhos, vã poesia,
Tudo sem expressão e sem valia,
Nada nem belo nem talvez bonito.
Vocação
Almejou ser poeta, quis tornar-se músico, tentou a advocacia. Fracassou em tudo. No dia de sua morte, teve desempenho tão exemplar no velório, por sua modéstia e compostura, que a opinião foi unânime. Tinha nascido para aquilo.
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
Hospitalidade
Devo ser uma boa companhia.
Há um ano mister Parkinson me disse
Que no dia seguinte partiria.
Tanca
Talvez no final
Tenhamos sorte e saibamos
O que, afinal,
Nós viemos aqui fazer
E ver por que não fizemos.
Tanca
Quem culpe a poesia
De ser fútil e não ter
Nenhuma valia,
Se hoje há, amanhã também
Alguém decerto haverá.
Tanca
Teremos deixado
Talvez duas frases, três,
Mas não um legado.
Iremos só com essa glória
Inglória que merecemos.
quinta-feira, 22 de setembro de 2022
Tanca
Se Deus não houver,
Sabemos o que faremos
Quando o dia vier?
Que mão, que gestos, que braços,
Que passos nos nortearão?
Respeito
Que nós consigamos ser
Às suas leis obedientes
E aos seus chamados presentes
Sempre, enquanto o amor viger.
Infâmia
Uma das grosserias
com as quais os homens
julgavam em longínquos dias
estar homenageando as mulheres
era dizerem que tal ou qual
por serem bem-fornidas
mereciam ser enaltecidas
como se fossem o prato principal
de um banquete para cem talheres.
terça-feira, 20 de setembro de 2022
Artista
Te aplaudiam no começo.
Costuma ser sempre assim.
Hoje acham alto teu preço.
Como pioraste no fim.
Época
A miséria anda em alta. Um dia desses, um fazendeiro notou que haviam furtado a calça, o paletó e o chapéu de seus três espantalhos.
Monumentalidade
Parece inacreditável, ainda hoje, que Ulisses tenha sido escrito por um homem só, mesmo que esse homem seja James Joyce.
Mentor
Mister Parkinson hoje me elogiou.
Disse-me que estou muito bem-disposto,
Mais ágil que o boneco lá do posto.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
Honestidade
O poeta concretista encara com seriedade sua missão. Atualiza-se regularmente em cursos do CREA.
Peculiaridade
O poeta concretista gabava-se de não ter usado uma vírgula sequer em toda sua obra. Um de seus mais notórios inimigos sugeria mentirosamente que ele se gabava também de, com isso, haver contribuído para a preservação do meio ambiente e a salvação do planeta.
Melhoramentos
À segunda edição de sua antologia o concretista acrescentou um playground e uma piscina.
Fonte
A musa de um poeta concretista, talvez o mais famoso e mais bem-sucedido de todos, era a pirâmide de Quéfren.
Suspeita
O poeta concretista atribui à inveja e às pragas lançadas pelos parnasianos as rachaduras surgidas em sua obra-prima um mês depois de concluída.
Evento
O monumental poema concretista de Petrus Pedrygulhos foi inaugurado com a presença de altas autoridades militares, civis e eclesiásticas.
Os eleitos
Sujeitos de sorte são aqueles que nunca são picados por toda uma colmeia, mas no máximo por meia.
Se ou se
Não sei se o que mudou foram os poetas ou o mundo. Fato é que há muito tempo nenhum deles se dispõe a carregá-lo nos ombros.
Capital inicial
Um amor frustrado e algumas lágrimas já não bastam para transformar alguém em poeta, mas ainda são um bom começo.
domingo, 18 de setembro de 2022
Versão
Morramos nós do que for,
Mintamos tão cabalmente
Que acredite toda a gente
Que nós morremos de amor.
sábado, 17 de setembro de 2022
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
A pequena estrela
Coisas estranhas vêm ocorrendo com o velho poeta. Hoje, em sua caminhada matinal diária, ele encontrou uma estrela. Era das pequenas, bem pequenas, dessas que às vezes, por distração das mães, se desprendem do céu e vêm parar numa rua de subúrbio. O poeta a apanhou com cuidado e, ao colocá-la no bolso da camisa, lembrou-se de que assim repetia um gesto de trinta ou quarenta anos antes, quando, no mesmo lugar, havia recolhido outra pequena estrela. Por um instante, ficou aturdido. O que tinha feito com ela? Ah, sim, recordava-se agora, estava guardada no mesmo estojo em que ficava o relógio, relíquia de família, dado por seu pai num aniversário muito longínquo. Era curioso aquilo: achar uma companheira para a estrela do estojo. Feliz, apressou-se a voltar para casa e, assim que chegou, foi pegar o estojo e o abriu. Dentro, só havia o relógio. Ele puxou então a estrela do bolso da camisa: "É você, é você. Eu devia ter desconfiado. Por que é que você estava fugindo? Ah, eu sei, pobrezinha. Eu a deixei trancada aqui todos esses anos. O que eu esperava que você fizesse?" Ele a beijou e a repôs no bolso: "A partir de hoje, você vai estar sempre comigo, onde eu estiver."
quarta-feira, 14 de setembro de 2022
Tarefa
Ninguém nunca lhes pediu isso, mas os poetas sempre souberam que sua missão no mundo é carregá-lo nos ombros, para ninguém possa censurá-los por viverem a se lastimar.
terça-feira, 13 de setembro de 2022
Reizinho
Lá vai o poeta todo inflado
reinar o seu reinado -
de dia o sol o homenageia
e à noite a lua cheia
e o céu estrelado
Lá vai o poeta tolo ludibriado
pelo caminho homenageado -
se um dia se uma noite chegar
não vai encontrar
nem reino nem reinado.
segunda-feira, 12 de setembro de 2022
sexta-feira, 9 de setembro de 2022
Soneto da grandeza imaginária
Na época de minha áurea mocidade,
Tão superior, tão forte eu me julgava
Que se eu então morresse calculava
A perda que teria a humanidade.
Ludibriado por minha ingenuidade,
Tão grande poeta eu me considerava
Que não pensava, que não suspeitava
Que era um rei sem nenhuma majestade.
Quando chegou a idade da razão
E desfez minha tola presunção,
Eu pude meu tamanho compreender.
Sei hoje, como há muito deveria,
Que há de se conservar viva a poesia
Muito depois do dia em que eu morrer.
quinta-feira, 8 de setembro de 2022
Usurpador
Que criatura patética sou eu,
Que venho como poeta me passando,
Vivendo sonho alheio e o nome usando
De um menino que há muito já morreu.
quarta-feira, 7 de setembro de 2022
Morte sábia
Morrer aos poucos é ciência
Para quem sabe o que faz.
Eu sei bem. Estou morrendo
Desde quando era rapaz.
Imerecida celebridade
Sobre ela, dizia-se que uma tarde, ou uma noite, deixara um homem beber vinho em seus lábios. Quando se perguntava quem havia sido esse homem, a única versão incontestável sustentava que era um homem de bigode. Nada mais se sabia dele. Durante algum tempo, ela foi uma espécie de celebridade do bairro, por conta desse episódio. Quando tudo já parecia destinado ao esquecimento, surgiu, sem se conhecer a origem, uma nova versão: a de que fora uma mulher, e não um homem, que sorvera o vinho em sua boca. Se alguém houvesse sugerido a hipótese de essa mulher sequiosa ostentar um bigode, talvez a história tivesse ainda algum fôlego, mas não foi o que aconteceu, e hoje nem os mais antigos moradores do bairro falam dela.
O mal
O psiquiatra explicou ao velho poeta que síndrome da falsa Beatriz é o nome do mal que acomete os que, como ele, debitam a falta de sucesso literário à insuficiente beleza de suas musas.
Culpa
Às vezes, o velho poeta se sente como se fosse um comerciante que, prestes a fechar definitivamente seu estabelecimento, descobre que por trinta anos, sem querer, vendeu aos fregueses mercadorias de má qualidade.
terça-feira, 6 de setembro de 2022
Noviciado
Alguém me disse que a vida é sempre mais importante que a literatura. Mas eu era tão jovem, tão bobinho.
Enfim a glória
Antes de conseguir o primeiro lugar no concurso nacional, ele parecia ser só mais um poeta cheio de ilusões e de menções honrosas.
Tudo pela arte
Já fui bem mais aberto a experiências. Houve uma época em que, para melhorar minha poesia, eu teria aceitado qualquer recomendação, até a de usar monóculo e cavanhaque.
Equívoco
A ambição tão celebrada pelos manuais de autoajuda como instrumento essencial para todas as conquistas, incluindo as literárias, foi a causa de minha desventura. Eu deveria ter me contentado com as quadrinhas, com as trovinhas.
Réu
Esclarecimento
Não é verdade que eu tenha proposto uma campanha pela salvação dos sonetos. Cheguei a pensar nisso, é certo, mas não havia mais o que fazer por eles. Tinham sido já declarados mortos, com efeitos retroativos, discutindo-se apenas se mereciam ser poupados da sentença um de Dante, dois de Shakespeare e três de Camões.
domingo, 4 de setembro de 2022
Caminho
No sonho, sorriu e foi-se,
Seguindo a mulher que tinha
Na mão esquerda uma bíblia,
Na mão direita uma foice.
sábado, 3 de setembro de 2022
O endereço
Ao selecionar as roupas do velho poeta morto, para doação, a viúva teve um momento de indignação. Num paletó encontrou um papel. Era um endereço. Já havia começado a maldizer o finado, supondo-o traidor, quando atinou com o que era aquilo: indicações de como chegar ao monte Parnaso.
Por nós
Por mais que nos venhamos a esforçar,
Nunca seremos mais do que já somos.
Por nós não hão de os sinos badalar
E nem chorar por nós os cinamomos.
sexta-feira, 2 de setembro de 2022
Tempo de chegar
Sejamos dóceis. Tenhamos
A perspicácia de ver
Que nosso tempo de ser
Há muito passou, e vamos.
Crueldade
Já no primeiro livro que leu, o menino sentiu como pode ser cruel a literatura. Na página inicial apareceu um passarinho que voou e cantou até a página dois, quando acabou na barriga de um gato chamado Devagar.
quinta-feira, 1 de setembro de 2022
Perfil
Não sou nada além de um homem
Comum, um desses que a glória
Não coroa, nem a história,
Que a vida e o tédio consomem.