domingo, 28 de março de 2010
O bagaço e o suprassumo
Quando adolescente, eu respirava ideais. Sei hoje que não entendia nada de nada -- não melhorei muito, de lá para cá --, mas estava disponível para tudo aquilo que pudesse ser considerado uma grande causa. A poesia era, para mim, a maior de todas as grandes causas. No meu amor ingênuo, moldei um lema: o essencial é poesia; o resto é prosa. Nele, estava clara a condição inferior que eu atribuía à prosa. Ontem, num trecho do romance Juventude, que é uma espécie de relato dos anos de formação de J.M. Coetzee, encontrei esta frase, que resume o meu sentimento na ocasião. "Será que, secretamente, é isso a prosa: a segunda escolha, o refúgio de espíritos criativos fracassados?" Coetzee, nessa época, tendia a resvalar para a prosa e, assim, achava-se à beira de uma traição à poesia, que busca sempre -- ou teoricamente deve buscar -- a perfeição, aquele momento único que pode justificar as aflições e o sofrimento de uma vida. A poesia emana do espírito e a ele se dirige. Mas a vida não é só espírito. Na vida, o momento único de beleza e esplendor é isso: um momento único, uma exceção. Aos outros momentos (quase todos e, às vezes, lastimavelmente, todos) cabe melhor a prosa. Marguerite Yourcenar falou disso com clareza e brilho, ao enaltecer o romance como o melhor instrumento para traduzir a vida humana. Porque num romance se admite o bagaço, a dura substância de que são feitos os dias. Os momentos únicos de beleza, que a poesia exprime, faíscam mais veementemente no meio dessa matéria comum, pela força do contraste. Uma vida só de instantes sublimes seria insuportável, levaria possivelmente à alienação e à loucura. Marguerite disse basicamente isto, confrontando gêneros: a poesia almeja a perfeição, o ensaio procura a exatidão, o romance contenta-se com uma expressão que delineia -- em suas misérias e raros êxtases, em seu lixo e em suas parcas estrelas -- um retrato mais próximo da existência humana. Essa talvez seja, no fundo, uma falsa inferioridade do romance.
Belíssima lição. Que bom ter coisas para aprender e não deixar o domingo passar em branco. Um grande abraço!
ResponderExcluirTuna, a Marguerite e o Coetzee são dois dos escritores que melhor conhecem teoria literária. São mesmo mestres.
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