quinta-feira, 22 de julho de 2010
Lírica (230) - Intelectuais
Conheceram-se numa tarde, na sala de leitura de uma biblioteca - ele atrás de substanciosas literaturas, ela em busca de excelsas filosofias. Conversaram muito nesse dia, embora a ele não encantassem os Kants e Kierkegaards dela e a ela não dissessem nada os Flauberts e Nabokovs dele. O diálogo foi, por isso, como a leitura de uma peça em que cada um dos atores, educado, espera acabar a fala do outro para entrar. A situação mudou no terceiro dia, depois que ele notou como os lábios dela se umedeciam convidativamente quando pronunciavam expressões como causas primeiras e imperativo categórico. A conversa teve jeito de conversa nesse dia e também no seguinte, quando ela, embora fosse uma tarde fria, apareceu com uma minissaia. A partir daí, os dois esqueceram um pouco as normas de construção de um texto literário e os cânones da filosofia. Tudo caminhou bem, até o dia em que ela, dizendo ter lido um livro de Dostoiévski, comentou que o achara fraquinho. Ele, para revidar, embora nunca tivesse lido um trecho sequer de Sartre, proclamou a opinião de um amigo antiexistencialista: a de que Sartre não era nem filósofo nem escritor. Depois desse incidente, analisando bem tudo, ele já não achava tão soberbos os lábios nem as pernas dela, grossas demais para os refinamentos exigidos pela filosofia. Continuaram frequentando a biblioteca, cada um agora em uma mesa, e foram infelizes para sempre, como costumam ser os que se deixam seduzir ou pela vã literatura ou pela árida filosofia.
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