sábado, 15 de janeiro de 2011
Odiemo-nos, querida
Melhor ter sido assim. Fomos poupados pelo Destino e também - justiça nos façamos - por certa intuição de grandeza. Deu tudo errado, as ruínas nos dificultam os passos, não há como negar, e, no entanto, a pergunta é: como seria se tivesse dado certo? Estaríamos certamente consultando prospectos de viagem, fingindo antecipadamente venturas, elogiando-nos como companheiros ideais para tudo, mas saberíamos já que em Tóquio, ou em Paris, ou em Havana talvez, precisaríamos num fim de tarde qualquer nos olhar honestamente e admitir que, depois de tanta poesia, tanto fragor, tanto sofrimento e lágrimas, havíamos traçado o mesmo insípido roteiro daqueles que por séculos, tendo recebido o sopro do amor, o rebaixam depois a um joguinho medíocre e falso, a uma trama que julgam destinada a durar trezentas páginas, se tanto durar a vida. O amor, quando atinge os humanos, deve consumi-los antes que eles comecem a se vangloriar dele e a considerá-lo como se fosse um acontecimento cotidiano. Para ser intenso como deve ser, o amor vive pouco. Ao amor repugnam palavras de uso diário, como camisolas e pijamas. O amor rejeita seu lugar em cômodas e gavetas. O amor não se conserva em naftalina. Regozijemo-nos então pelas ruínas, minha querida, pelas feridas da alma, e não deixemos que elas se curem ou possam ser enganadas com agrados ou confortos. Odiemo-nos, se necessário, em nome disso que cabe a tão poucos por bênção dos deuses, que é maior do que nós e que em nossa lembrança só sobreviverá se tivermos o estoicismo de aceitá-lo como finito que é e se jamais permitirmos que nossa história seja mais uma dessas que são relatadas muitos anos depois por uma voz decrépita enquanto um dedo molhado em saliva velha vai virando as folhas de um álbum, nas quais as fotos revelam constrangedoramente rostos dos quais, se um dia o amor neles pousou, retirou depois seu dom e graça. Odiemo-nos, minha querida, enquanto resta ainda em nós ao menos uma faísca de amor. Jamais seremos melhores do que fomos neste tempo, e este tempo, felizmente, já se despede de nós.
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