Chegou a primavera
e ele cachorro velho
para os jovens superar
acorda antes do sol
levanta o nariz
e põe-se a farejar
Há um aroma de postes
no ar da manhã
uma fragrância ácida
de postes e de árvores regadas
pela urina espumante e ansiosa
um cheiro de terra
e grama revolvidas
uma urgência de sêmen que aguarda
o instante de se disseminar
e gotejar triunfante
em cima do maior tesouro
da vida
É preciso interpretar
os sinais
e ele cachorro velho
sabe como nenhum outro cão
interpretá-los
Os jovens não sabem
Os jovens enganam-se
e tomam rumos
que os levam a outros rumos
e por fim ao rumo nenhum
onde não há cachorra nenhuma
Com as veteranas narinas
ele persegue
o aroma fugidio
o aroma morno
que desde o início
dos tempos marca o caminho
do gozo e do cio
Às vezes
a pressa
o faz esquecer a sabedoria
e o lança na direção
de um carro que a contragosto
se desvia
Mas com o passo seguro
apesar da pata pendente
que um combate antigo quebrou
ele não se deixa iludir
pelo olor dos papéis engordurados
atirados na frente dos bares
se fecha para a tentação
do lixo nas esquinas
e continua com
as narinas atentas
porque outra
e maior
é hoje sua fome
aquela fome suprema
que move cães e homens
sobre a terra
desde a primeira manhã
Anda assim horas
seguido pelo sol
grande cão do céu
até que ao meio-dia
o cheiro agudo e acre
lhe indica que chegou
Chegou tarde porém
Seu nariz não é o mesmo
ele cachorro velho
agora reconhece
e seus olhos também
ele percebe
já o traem
Na névoa leitosa
que a luxúria do sol espalhou
ele não distingue
se em torno da cadelinha
que se debate
requisitada pelo
inadiável amor de séculos
há vinte trinta
ou cinquenta cães
que cheirando
como ele não soube
intuíram antes
os pungentes aromas
e rosnam agora
concedendo-lhe ainda a chance
de sair manquejando
com sua pata estropiada
e sumir por onde veio
se quiser continuar a ser
um cachorro velho
mas vivo
porque ali
poucos se serviram
a tarde é longa e
também a noite
e não há lugar
para mais nenhum
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