Hoje à tarde
sairei enfim
São dois meses já
e talvez
seja a hora de tentar
Não será impossível
imagino
Abrirei a porta
olharei para o sol
como olhava antes
e se ele estiver distraído
ou de bom humor
é provável
que não me censure
Talvez não haja
nenhum conhecido
na rua
e se houver
pode ser
que sejam discretos
Se algum perguntar
por que estive sumido
há sempre aquelas
respostas vagas
aquele trabalho
que o chefe acha
que só a gente pode fazer
em Nova York
apesar de nosso inglês
deste tamanhinho
ou as férias acumuladas
que acabam levando a gente
a viajar sessenta dias
sessenta dias!
para lugares que
vejam só
nem sempre são apenas
pontinhos em mapas
e para os quais
as companhias aéreas
às vezes resolvem
fazer promoções
Sairei
irei até a confeitaria
e hei de ter coragem
de me sentar
à mesinha mais próxima
do sol e da rua
bem de frente para a vida
Pedirei sorvete
a maior das taças
e ficarei lambiscando
lambiscando a colher
pensando na garota
a quem Fernando Pessoa
revelou que o chocolate
é a melhor das metafísicas
Lambiscando o sorvete
se eu souber ainda
como se faz isso
se eu não vacilar
se ninguém notar
nada extravagante em mim
se eu em algum gesto
não me entregar
se ninguém me denunciar
se ninguém me prender
poderei quem sabe acreditar
que a vida perdoou
os dois meses
em que a amaldiçoei
trancado em casa
e me permitirá
tentar mais uma vez
desfrutar suas belezas
Terei mais uma chance
de descobrir
as bênçãos
que todos conhecem
o sol
a brisa
as flores
os passarinhos
a delícia que é
sentar-se e tomar
um sorvete na confeitaria
Sairei sim
hoje à tarde
já é tempo
Tudo dará certo
Só precisarei
lembrar-me de pôr uma camisa
de mangas compridas
para cobrir meus pulsos
Podem não gostar
dos desenhos que
neles fiz
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