quarta-feira, 9 de novembro de 2011
Da utilidade gramatical do pescoço
Ter de lidar com a gramática como meio de ganhar a vida não é uma atividade saudável, pelos efeitos que pude observar em pelo menos duas centenas de revisores, entre os quais certamente me incluo. Não há nada mais terrível que uma maldição rogada por uma crase insatisfeita, dessas que abruptamente são cortadas só porque estão diante de um verbo ou de uma palavra masculina. É fatal. Por melhor cérebro que tenha, um revisor atingido por uma praga dessas acaba, mais cedo ou mais tarde, com os parafusos frouxos. Um deles, seriamente afetado, propôs por algum tempo, antes de ser devidamente internado, uma infalível regra de acentuação que consistia na simples aplicação de uma frase: levantou o pescoço, vai acento! Na seção de revisão do jornal O Estado de S. Paulo, ele pôs em prática esse conceito. Lia os textos em voz alta e, erguendo o pescoço, ia acentuando: Catandúva, Piracicába, melancía, paralélépípedo. Uma noite, atacado por um torcicolo, declarou-se incapaz de trabalhar e, quando um desmancha-prazeres lhe disse que ali estava, escancarado, um grave empecilho para a aplicação de sua teoria, respondeu que toda regra tem uma exceção e concluiu, quase bem-humorado: "E não é todo dia que se tem um torcicolo." Mas logo se enfureceu, quando o detrator de sua regra de acentuação, com um provocativo sorriso, sugeriu haver outro caso que impedia seu uso. "E qual seria?", o teórico perguntou. O outro, depois de uma longa pausa antes da estocada, disse: "Você já pensou se um dia você esquece o pescoço em casa ou dentro do ônibus?"
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