terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
A morte de Sultana
Na quarta sessão com o psicanalista, sente que é hora de dizer como matou Sultana. Tem hoje quarenta anos, faz quase dez que matou a cachorra para poupá-la de um sofrimento atroz e sabe que foi por isso que iniciou as sessões. Esse é o seu trauma, e as perguntas que se faz há tanto tempo ele espera ver respondidas agora pelo médico. Deveria ter esperado a cachorra morrer por si só? É normal sentir-se ainda assim culpado por aquilo, como se tivesse acontecido hoje? Isso não é um sintoma de imaturidade? Como nas outras três vezes, rodeia o assunto, contorna-o, e finalmente começa a expô-lo. O médico ouve, imperturbável. Ele fala da doença da cachorra, dos uivos de dor, dos gemidos, dos inúteis tratamentos. Nessa parte já está suando frio e continua a girar em torno dos remédios, das várias esperanças malogradas, e sente que paira no consultório, a cada minuto com mais peso, uma pergunta: e daí? O médico já denota uma leve impaciência. Ele volta, então, quase ao começo e chega de novo à parte dos remédios. É quando o psicanalista, vendo sua aflição, pergunta: "Levou a cachorra para uma morte piedosa, uma injeção?" Ele se segura para não mostrar a indignação que sente: como o médico podia imaginar aquilo, ele levando Sultana para que lhe aplicassem uma injeção letal? "Não, não, eu não fiz isso não, doutor." Sente que precisa dizer tudo logo, de uma vez. "Num início de noite, doutor, eu peguei a Sultana, pus no carro e fui para um lugar no meio do mato." O médico espera a conclusão, mas ele já foi até onde conseguiu ir. Seu suor começa agora a correr pela testa, pelo rosto, pela nuca, pelos ombros, pelo peito. Notando que o médico parece esperar ainda um ponto final, ele junta forças para dizer: "Foi isso. Larguei a Sultana lá, no escuro, a vinte quilômetros de casa." Acaba assim o relato e pergunta-se se o médico ouve, como ele, o estampido do revólver espantando os pássaros e despertando o alarido da cachorrada - o disparo que ele não para de ouvir desde aquele início de noite, quase dez anos atrás.
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