domingo, 11 de agosto de 2013

Os bandidos de amanhã

O menino e a menina vão pela calçada, ele com uma bola na mão, ela com uma boneca no colo. É uma manhã gostosa de sol, apesar de ser ainda inverno, e os passarinhos alvoroçados esvoaçam de um telhado para o outro, declarando alegremente seu nome: bem-te-vi. A pequena rua, encravada num bairro miserável da periferia, identifica-se com a vida dos moradores: é estreita e tortuosa. Por ali poucos carros passam. Aqui o progresso não chegou e basta olhar para as casas mirradas e sujas para ter certeza de que ele não chegará nunca. Ou talvez venha só no dia em que se transformarem em pó essas construções rebeldes, levantadas sem engenheiro nem alvará.
   Não são só os carros que não circulam muito por aqui. Também o dinheiro é uma presença rara e sua pouca assiduidade se reflete em toda parte - na quitanda de azulejos que podem ter sido azuis ou marrons quando era possível ver sua cor, na padaria empoeirada, na farmácia de aspecto doentio, nas pessoas e em sua roupa.
   Se estivessem em um bairro menos desafortunado e em vez de ser uma manhã de setembro fosse uma tarde de fevereiro, o menino e a menina poderiam ser confundidos com um casal de espantalhos indo para um baile de carnaval.
   Tudo neles - até a bola e a boneca que levam - tem a marca da segunda mão. E os dois meninos que andam pela mesma calçada, dez metros atrás, não destoam. São dois promissores projetos de mendigo, embora queiram passar por malandros. Eles se aproximam, com seus passos gingados, do menino e da menina. A um metro ou dois, cobrem rapidamente o rosto com máscaras feitas de meias de náilon, põem a mão no bolso e, no instante seguinte, já encostam o revólver na nuca das vítimas. Seus gritos arrepiam:
   - Boca fechada e vão passando tudo que vocês têm! Rápido! Rápido, senão a gente estoura a tampa da cabeça de vocês!
   Motoristas e pedestres, sem ação, assistem a todos os lances do roubo. Os assaltados entregam a bola, a boneca e outras quinquilharias - um pião e uma bolinha de gude que saem do bolso do menino, um colar já quase sem contas que um dos pequenos bandidos arrancou do pescoço da menina. Os assaltantes se enfurecem:
   - É só isso que vocês têm? Cambada! Cadê o dinheiro? Ou espirra já essa grana ou nós vamos esvaziar o revólver em você!
   Um homem cria coragem e resolve tomar uma atitude. Grita com os assaltantes, exige que deixem em paz as vítimas. Seus gritos e sua ordem são recebidos com gargalhadas, tanto dos assaltantes quanto dos assaltados. O homem descobre, então, que era tudo brincadeira, quando os participantes invertem os papéis. É com as vítimas, agora, que ficam os revólveres de plástico e, por isso, há no rosto da menina uma satisfação que não havia quando ela estava com a boneca. O menino também está mais feliz do que com a bola.
   Divertem-se assim as crianças sem lar e sem escola da periferia. Montam todo dia, para os olhos indiferentes da sociedade, a peça de sua carência e desamor. Algumas terão sorte, esquecerão a infância. As outras serão aquelas que amanhã ou depois nos mandarão parar, em um lugar qualquer desta cidade. Nesse dia, suas palavras não serão de brincadeira e suas armas não serão de plástico.

(Crônica do livro Pais, filhos e outros bichos, publicado pela Lazuli Editora e pela Companhia Editora Nacional.)
  

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