sexta-feira, 15 de novembro de 2013

"Blackie na Antártida", de Margaret Atwood

"Minha irmã telefona, interurbano:
Blackie foi sacrificado.
Doença incurável. Debilitação e sofrimento.
Tristeza geral.
Achei que você ia querer enterrá-lo,
diz ela, às lágrimas.
Então o embrulhei em seda vermelha
e o coloquei no congelador.

Ó Blackie, esse teu nome dado
sem rodeio ou artifício por menininhas,
gato preto pulando de telhado em telhado
com touca e avental de boneca,
Ó ídolo matreiro de rosto peludo
que resistiu a adoração e maus-tratos,
com frequência sem arranhar,
Ó tu que uivavas contumaz
para a lua, tortuoso enjeitado,
astrólogo neurótico
que previa o desastre
criando-o.

Ó companheiro fiel da meia-noite
que tens a cor da meia-noite,
Ó tu que te apossavas dos travesseiros,
com teu bafo de fígado cru,
onde estás agora?

Ao lado do hambúrguer congelado
e das asas de frango: um paraíso
para os carnívoros. Jazendo em seda vermelha
e pompa, como o Faraó
num templo metálico branco, ou
um explorador de ossos finos
da Antártida numa parca gélida,
alguém que não escapou. Ou
(vamos encarar os fatos) um pacote
de peixe. Espero que ninguém
a caminho do jantar
desembrulhe a ti por engano.

Que afronta, ser equiparado
à carne! Como os gatos, odiavas
ser ridículo. Tinhas fome
de justiça, em horas fixas e sob a forma
de fatias de carne assada
com molho.
Querias o que
estivesse no teu caminho.
   (A morte
é, contudo. Ridícula. E está no seu caminho.
No nosso também.
Justiça, eis o que vamos nos tornar.
E então há a piedade.)

(De A porta, traduzido por Adriana Lisboa, publicado pela Rocco.)

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