"Gosto de viajar no último banco. Vai-se mais resguardado de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se veem caras.
Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que não o são, e pode-se fazer aos amigos que o são a surpresa de lha pagar, numa traição delicada, pelas costas - o que, como fineza, tem na sua independência um especialíssimo sabor. - Por fim, pode-se fumar sem a preocupação de ser incômodo a senhoras, porque muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência de não haver outro depois do último.
Aliás, deixo de fumar perto de senhoras, não por uma particular deferência, mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear um cigarro é prazer tão leve e tão fino, que o simples pensamento de que alguém no-lo possa estar amaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante das espirais."
(Da crônica "A roupa e o gesto", extraída do livro Memorial de um passageiro de bonde, publicado pela Editora Hucitec.)
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