quarta-feira, 31 de janeiro de 2018
Wislawa (para Danusia Curyl)
Enquanto os poetas solenes esperavam um sol glorioso para se inspirarem a escrever suas odes, Wislawa Szymborska recolhia o fiozinho mais friorento e menos brilhante e o acomodava ao lado do gato, no sofá.
Procedimento
A um poeta já mais morto do que vivo, com passagens pelo romantismo e pelo parnasianismo, não convém mostrar-se diante de jovens. A eles, como se sabe, pertence a vida - e também a poesia.
Ibama
Numa blitz na casa de um poeta parnasiano, os fiscais do meio ambiente encontraram mais de vinte cisnes moribundos. Pelo menos três deles, segundo o relatório, estavam sem visto de trabalho e declararam-se franceses.
Hipóteses
Guarde o que você escreve, se for poesia. Não corra o risco de alguns acharem que você está querendo parecer maior que Drummond e outros decretarem que você já conseguiu.
Vaidade
A isenção poética é uma ficção. Sempre haverá aquele poeta que, por um título de cidadão honorário, cante a primazia dos pássaros da pracinha do seu município, jurando que eles são mais afinados que a Sinfônica de Viena.
Declínio
Versejar é um verbo que já teve algum prestigio, assim como metrificar e rimar. Apedrejados em praça pública, fugiram e foram esconder-se nos dicionários.
Hierarquia
A prosa, se posta em dúvida, pode apresentar mil justificativas, invocar mil e uma normas literárias. A poesia não precisa apresentar nenhuma, nem deve. A poesia é a poesia.
terça-feira, 30 de janeiro de 2018
Como deve ser
A poesia há de ser sua melhor parte - tão pura e diferente de todas as outras que você se perguntará, sempre que ela se exprimir, se não é mais um dos truques sujos com os quais você há tanto tempo busca a impossível salvação.
Tal qual (para Helena Russano Alemany e Maria Aparecida Martins Brandão)
As flores também têm antônimos: para cada amor-perfeito, tantos amores-desfeitos...
Rivais
Quando Deus nos criou para sermos testemunhas e narradores de Sua obra, talvez esperasse de nós uma visão mais generosa. Deveria ter pressentido o ciúme que sempre há entre criadores.
Metáforas
Há noites nas quais o velho poeta parnasiano pensa ouvir um rumor de cisnes no quarto. Mas são só os lenços na gaveta.
segunda-feira, 29 de janeiro de 2018
Esquina
Não me leve para o escuro,
Me trate sem aspereza,
Me passe a lição do puro,
A concepção de beleza.
Me trate sem aspereza,
Me passe a lição do puro,
A concepção de beleza.
domingo, 28 de janeiro de 2018
Cotação do dia
Há tanto tempo eu morri que já não sinto nem o meu nem o cheiro das flores que me plantaram no peito.
Hoje na revista Rubem
Tento empilhar, com o desajeitamento habitual, uma dúzia de frases.
(www.rubem.wordpress.com)
(www.rubem.wordpress.com)
sábado, 27 de janeiro de 2018
Soneto do desencanto
Hoje, ao me lembrar de quando,
Há seis décadas ou mais,
Eu vivia proclamando
Meus sonhos e meus ideais,
Me aflige uma nostalgia
Que como dor chega a doer,
Uma culpa, uma agonia,
Um desejo de morrer.
Ah, como pude eu assim
Deixar que morresse em mim
A minha parte mais pura?
Onde ficou a ansiedade
De beleza, de verdade,
De arte e de literatura?
Há seis décadas ou mais,
Eu vivia proclamando
Meus sonhos e meus ideais,
Me aflige uma nostalgia
Que como dor chega a doer,
Uma culpa, uma agonia,
Um desejo de morrer.
Ah, como pude eu assim
Deixar que morresse em mim
A minha parte mais pura?
Onde ficou a ansiedade
De beleza, de verdade,
De arte e de literatura?
sexta-feira, 26 de janeiro de 2018
Acrófobo
Um mês antes de ser internado, começou a importunasros parentes e os amigos, perguntando-lhes se era preciso pegar avião para ir a Estocolmo.
Vida em flor
Morreu aos oitenta e tantos, com aparência de oitenta e poucos. Caminhava todos os dias. Estava escrevendo um romance, o vigésimo primeiro, e dizia que ganhar o Nobel era questão de tempo.
Hoje no Estadão
Ser Shakespeare ou não ser nada, eis a questão.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/desdem-o-gelo-da-alma/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/desdem-o-gelo-da-alma/
quarta-feira, 24 de janeiro de 2018
Vocabulário
No fim do caminho, vamos nos habituando ao convívio com um novo tipo de palavras. Já não nos atraem os brilhos e as retumbâncias que nos encantaram em outras épocas. Ficaram para trás, não os veremos mais, jamais as ouviremos. Caminhamos para a sombra e o silêncio.
Estilo
Olhando orgulhosamente para a filha, a viúva puxa um pouco para baixo as flores do pescoço do defunto: "Teu pai fica tão bem de gravata."
Habilidade
A fama de certos místicos e determinados poetas advém da habilidade com que, estando onde estiverem, olham para o alto, como se fitassem o céu.
A pergunta
Quando nossos mortos nos perguntarem o que fizemos todos esses anos, teremos coragem de dizer a palavra poesia?
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
Sexto andar
O que leva um homem de quase oitenta anos a tentar ainda a poesia? No sexto andar do seu prédio, ele olha melancolicamente para baixo. Depois olha para cima. Se fosse um pássaro, aconteceria alguma coisa antes do ponto final.
A lembrança
No fim da vida, o poeta parnasiano chora quando se lembra das primeiras sílabas que contou. Tinha dez anos e nesse dia descobriu que o mundo fazia sentido.
Categorias
Já devem ter dito mil e uma vezes.Vou dizer pela milésima segunda: antes uma prosa poética que uma poesia prosaica.
segunda-feira, 22 de janeiro de 2018
Pudor
Os poetas antigos tinham mais noção, reuniam-se em grupos quase secretos. Os de hoje berram pelos microfones em vales do anhangabaú.
Venais
Como somos tolos. Uma frase bem concluída, um pálido brilho, e deixamos a corda escondida mais um tempo atrás dos livros, e voltamos a sonhar com glórias.
Mãos
Tratei a poesia com mesuras, respeito, reverência. Só a toquei onde ela me permitiu. Sei de muitos que se divertiram com ela, ou assim disseram. Não me arrependo. Olho para minhas mãos e se sinto algum desagrado é pela velhice delas, somente.
Ninar (para Inês Pedrosa)
Quando sinto pena de mim, ponho-me no meu colo, como se eu fosse meu gato doente.
Correção
Se devo alguma coisa, é à minha tristeza. Eu nunca a exprimi como ela verdadeiramente é: não uma criação minha, uma bijuteriazinha da qual devo orgulhar-me. Foi ela que me criou - e eu nunca soube merecê-la.
Floração
Se a Morte viesse esta manhã, talvez me concedesse mais um dia. Minha tristeza floresceu à noite e creio que merece ser vista enquanto houver sol.
Cotação do dia
Lembram-se de mim quando querem dar o exemplo de um tolo, se bem que nunca me achem perfeito.
domingo, 21 de janeiro de 2018
Luta de classes
A maior inveja dos concretistas é ver as pepitas saindo da boca dos poetas parnasianos e esparramando ouro nos auditórios.
Questão de tempo (para Nelson Cunha)
Já fui um homem melhor. Talvez eu fizesse falta, se tivesse morrido nesse tempo.
Custo/benefício
Estou na fase em que
para ganhar um sorriso a mais
faço a alma dar três piruetas mortais.
para ganhar um sorriso a mais
faço a alma dar três piruetas mortais.
Afronta
E há os chatos que, sem procuração do morto, começam a falar por ele - e falam muito melhor.
Defeito
O bom humor em mim é ocasional, uma espécie de falha de caráter. Por formação e convicção, sou um triste.
Sabedoria
Depois de tantas decepções, nesta etapa da vida eu, se tivesse alma, a trocaria por uma glória, ainda que só regional.
De Ricardo Piglia sobre a arte de narrar
"A arte de narrar é a arte da duplicação e do mistério; é a arte de pressentir o inesperado; de saber esperar o que vem, nítido e invisível, como a silhueta de uma borboleta contra a tela vazia."
sábado, 20 de janeiro de 2018
Análise
De uma prova sobre Romeu e Julieta: "Peça bem escrita, apesar da linguagem. Mas o assunto não é original. Parece novela da Globo."
1900 e nada
Havia consciência naquela época, e a de quase todos nós era atormentadíssima. Se falamos disso hoje, riem de nós. Consciência?
Distraído
Um dos piores tipos é o chato afável. A cada instante ele nos pergunta se está tudo bem, quando deveria estar bem claro que gostaríamos de ver um raio fulminá-lo espetacularmente.
Transferência
Deus é quem primeiro nos ocorre quando nós nos descobrimos culpados e queremos terceirizar a responsabilidade. É mais do que justo. Não foi Ele quem inventou os pecados?
Alto-falantes
Os chatos conhecem a nossa história e estão sempre dispostos a contá-la nas situações mais inadequadas.
Ibope
Se você for uma daquelas pessoas que têm defeitos, compartilhe-os nas redes sociais. Se não tiver, invente pelo menos um, de preferência grave, ou você jamais sairá do anonimato.
Suspeita
Mesmo depois de conhecer seu significado, a palavra concupiscência continua a me dar a impressão de que esconde alguma coisa.
Futebolístico
Chato é quem pergunta se você sabe a escalação da Portuguesa de Desportos em 1951 e, antes que você responda, começa a recitá-la.
Adornos
A primeira tentativa de estilo de um escritor consiste quase sempre em pendurar em cada substantivo pelo menos um adjetivo. É a fase dos enfeites. Os textos ficam parecendo árvores natalinas.
Simplificações
No fim, já não queremos saber de onde viemos nem para onde vamos. A pergunta é: como fomos ficar assim?
Prateleira
Que tristeza ver as velhas metáforas penduradas na oficina do poeta, aguardando que ele as apanhe quando precisar falar mais uma vez de banalidades como o sol, a lua e as estrelas.
sexta-feira, 19 de janeiro de 2018
Carapuça
Venho sentindo pelos chatos uma compreensão que já vai tendendo à simpatia. Há muito tempo devia ter desconfiado. A cara eu sempre tive. Faltam-me as galochas para ser um chato clássico.
Hoje no Estadão
O assunto é estilo.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/estilo-ter-ou-nao-ter/
quinta-feira, 18 de janeiro de 2018
Prescrição
O médico recomendou que eu evite esforços. Quase lhe perguntei se posso continuar escrevendo. Ele riria de mim. Seria o que mereço. Esforço fazem os leitores. Irão ao céu, almas generosas.
Relatividade
Seis frases bonitinhas podem não parecer muito, mas já são alguma coisa. Com mais seis, você completa uma dúzia - ou metade de duas.
Ah... (Para Renato Vieira Ostrowski)
Felizes os mortos. Não precisam mais saber de futebol nem política.
Triságio (para Angela Brasil, Ernesto Ferreira, Liberato Vieira da Cunha, Lúcia Maia e Silvia Galant François)
Na manhã de Porto Alegre, o passarinho trinou um nome: quintana. Não gostou. Concentrou-se e trinou melhor: quintana. E melhor ainda, gloriosamente: quintana.
Falta de objeto (para Henrique Fendrich)
Se ainda existisse aquela abominável classe dos que tecem loas, teceriam a quem?
Da utilidade do vento
Perto do fim, pensando nos meus pecados, vejo que eles são muito mais numerosos e maiores do que eu supunha. São tantos e tão infames que por um instante me vejo tentado a perguntar se não estaria acrescentando, a esses todos, um ainda mais terrível: a soberba. Arrependo-me ou me gabo? Quero ser considerado um tipo especial de pó? Pobre vento, o que és obrigado a varrer.
Modos
A mulher do poeta o censura, no jantar: não sei como você consegue fazer tanto barulho para mastigar uma rosa, Irineu.
quarta-feira, 17 de janeiro de 2018
Aqueles outros (para Djanira Pio)
Os fantasmas que de madrugada se enfiam em nossa cama com aquelas intenções de praxe ainda passam. Piores são aqueles que gostam de pés e vêm fazer coceguinhas.
Alerta
Continuarem crescendo unhas nos mortos talvez seja um sinal de que não vamos para um lugar muito pacífico.
Detalhe
A única coisa que um pseudopoeta como eu pode fazer em benefício dos seus leitores é acertar a pontaria dos seus perdigotos ao tentar dizer a palavra amor.
Medida de segurança
Se alguém lhe disser que a poesia é sacrossanta, fuja antes que ele puxe o primeiro soneto.
Recital
Não pagaram o cachê ao declamador e, naquele sábado à noite, ele fez o que melhor fazia: não declamou.
Modos de ver
Pela justiça e pela religião eu não sei. Mas, pela gramática e pela sinonímia, os últimos serão os derradeiros.
Itinerários
Há filósofos que precisam de gps para ir da Paulista à Liberdade mas naturalmente conhecem aquele atalho único que conduz à verdade.
Intimidade
A intimidade do poeta com as palavras deve ser como a dos amantes que, um nos lábios do outro, bebem a água do chuveiro.
De Lêdo Ivo
"Como os navios de guerra, quero soçobrar com as luzes acesas."
(De Confissões de um poeta, publicado pela Difel.)
(De Confissões de um poeta, publicado pela Difel.)
terça-feira, 16 de janeiro de 2018
Se possível
Tenha o poeta a idade que tiver, o melhor será que tenha sempre entre dezoito e vinte anos.
Cemitério
Os mortos insatisfeitos só não armaram ainda uma rebelião porque já há algum tempo andam com problemas de comunicação.
Avó
Nos seus últimos dias, zangava-se com as flores porque não lhe respondiam. Contava-lhes que ia fazer uma viagem. Partiu sem dizer para onde ia.
segunda-feira, 15 de janeiro de 2018
Retoques (para Alexandre Brandão)
Melhorar um gato é uma dessas tarefas para as quais um poeta tem sempre melhor jeito e a exata astúcia.
Autoajuda
Com as mãos no gradil do viaduto, como as garras de um pássaro, ele olha para baixo e se incentiva: você pode.
Esquina
O gato está estendido na caçamba. Os dois meninos se aproximam.
"Ele está morto?"
"Parece."
"Põe a mão. Vê."
"Por que não põe você?"
"Eca. Cheiro de podre, né?"
"É. De peixe. Acho que está dentro da barriga dele."
"Ele está morto?"
"Parece."
"Põe a mão. Vê."
"Por que não põe você?"
"Eca. Cheiro de podre, né?"
"É. De peixe. Acho que está dentro da barriga dele."
De Lêdo Ivo, sobre a verborragia
"X. fala, fala, fala. Clama, denuncia, grita, sussurra, gorjeia, acusa, deblatera, perora. E tudo o que fica dessa impressionante catadupa verbal é uma franja de saliva na comissura dos lábios."
(De Confissões de um poeta, publicação da Difel.)
(De Confissões de um poeta, publicação da Difel.)
domingo, 14 de janeiro de 2018
Solidez
Os concretistas construíram os primeiros castelos de areia resistentes na história da literatura.
Donativo
Pediram ao velho poeta que doasse um objeto para o bazar de uma igreja. Ele abriu a gaveta de primaveras e puxou a de 1968.
Hoje na revista Rubem
Ponho na prateleira uma porção de frases felizmente rápidas demais para alguém lhes achar defeitos.
https://rubem.wordpress.com/2018/01/14/frases-largadas-na-prateleira-raul-drewnick/
sábado, 13 de janeiro de 2018
Caminhando para Ela
Não sabemos quando
Nem onde Ela nos ceifará.
Sabemos que nos espera
E para Ela caminhamos
E nos apressamos.
Apressemo-nos mais
Antes que Ela desista de nos esperar.
Nem onde Ela nos ceifará.
Sabemos que nos espera
E para Ela caminhamos
E nos apressamos.
Apressemo-nos mais
Antes que Ela desista de nos esperar.
Bem-aventurança (para Paulo Almeida)
Contra as tentações da vaidade, o melhor, para um escritor, seria manter-se tão ocupado com seu ofício que não chegasse a ter tempo de publicar um livro sequer.
O resgate
Era um arco-íris dos bem pequenos, filhotinho. O menino o salvou da enxurrada, levou-o para casa e o enxugou todinho, cor por cor.
Soneto da supremacia dos mortos
Pelo que diz toda a gente
E pelo que aprendi eu,
É infeliz todo vivente,
Feliz é só quem morreu.
A antiga lei ainda vige,
Injusta, disparatada:
Dos vivos tudo se exige,
Dos mortos, contudo, nada.
Se dos vivos recusamos
A métrica, o tom, a rima,
Dos mortos tudo é obra-prima.
Se só os mortos amamos,
Nosso conforto é saber:
Todo vivo há de morrer.
E pelo que aprendi eu,
É infeliz todo vivente,
Feliz é só quem morreu.
A antiga lei ainda vige,
Injusta, disparatada:
Dos vivos tudo se exige,
Dos mortos, contudo, nada.
Se dos vivos recusamos
A métrica, o tom, a rima,
Dos mortos tudo é obra-prima.
Se só os mortos amamos,
Nosso conforto é saber:
Todo vivo há de morrer.
sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
Hoje no portal do Estadão
A garota toca a campainha e ele, suando frio, se lembra.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/a-garota/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/a-garota/
quinta-feira, 11 de janeiro de 2018
Lei de Newton
Pesquisa recente mostrou que os poetas condoreiros se atiravam do quinto andar e morriam no térreo, exatamente como os demais poetas.
1.103.º
Morrer tão cabalmente que o milésimo centésimo terceiro convocado a dizer nosso nome diga, como todos os anteriores: não é ninguém.
Os dois lados
Não se preocupe se você se disser poeta e os outros acreditarem. Mas preocupe-se no dia em que você começar a acreditar também. Há tanta coisa melhor a fazer.
Idade da razão
Na velhice está a sabedoria,
Sei disso. Precisei envelhecer
Para hoje finalmente compreender
Que não entendo nada de poesia.
Sei disso. Precisei envelhecer
Para hoje finalmente compreender
Que não entendo nada de poesia.
Reflexão do dia
Não quero ser um mártir da poesia - nem sequer um sacerdote. Dedico-me a ela há tantas décadas que julgo merecer algum reconhecimento, uma gloriazinha, ainda que de fim de semana. Será tão pecaminoso isso? Meu nome não é Frei Santa Rita Durão.
quarta-feira, 10 de janeiro de 2018
Declaração
Declaro para os devidos e os indevidos fins que amo todos os poetas - vivos ou mortos - mas que, se fosse dar o ressentido coração polonês, seria a dois: Wislawa Szymborska e Fernando Pessoa.
Cotação do dia
Só me faltava essa: ficar brigando pela poesia, que não me deu nada além de rimas desrimadas. Chega. Descubram quais são os poetas que ainda respiram e entendam-se com eles. Tenham cuidado. Alguns deles se consideram deuses e estão cheios de braços direitos.
Gente fina
No grupo que frequentamos, sabemos que Shakespeare não foi tudo aquilo. Mas a discrição, além do senso crítico, é uma das qualidades que temos.
Para constar em ata
Na segunda reunião do grupo, os três melhores poetas do Brasil decidiram criar a categoria gênio e imediatamente preencheram as três vagas, sob recíprocos aplausos.
Nova Arcádia
Os poetas de carteirinha reuniram-se e proclamaram-se os melhores do Brasil. Por enquanto são três e acham que é um bom número.
Responsabilidade limitada
Há causas que só respondem por seus efeitos se eles não cheirarem mal e não tiverem outros defeitos.
Meio a meio
Para o poeta desiludido de tudo, estar quase morto não é um alívio. É só a confirmação lógica de que ainda está quase vivo.
Trajetória
A poesia brasileira acelerou tudo em 22, chegou zunindo a 45 e aí empacou melancolicamente, como uma mula novecentista.
terça-feira, 9 de janeiro de 2018
Pose
Conheci um defunto que me disseram ser cronista. Devia ser, mesmo. Era todo empertigado, o tipo de sujeito que passa a vida sem conseguir fazer uma frase que não comece com a palavra eu.
Perfeição
A aspiração do moribundo parnasiano é cumprir logo o rito e transformar-se em estátua de mármore.
segunda-feira, 8 de janeiro de 2018
Resignação
Não, minha querida amiga, eu não ganhei o concurso de poesia de Itambiquara da Serra. Fui o segundo. Sim, minha querida amiga, o mundo é injusto.
Engenhoca
Não, minha querida amiga, eu não tenho uma maquininha de fabricar sonetos. Seria uma boa desculpa, mas eles são ruins por meu próprio mérito.
Desmentido
Não, minha querida amiga, eu não vou continuar a fazer sonetos. Segundo você mesma, eu nunca os fiz.
Muitos
Muitos se incomodam quando os poetas choram. Dizem que é uma atitude ignóbil. Querem o quê? Que os poetas exibam as cáries ao sol, como todos esses tolos por aí?
Instantaneidade
Damos ao amor todo o poder sobre nossa vida e, para nosso êxtase e glória, ficamos esperando que ele nos mate logo na primeira esquina.
Impostura
Dizem que não escrevo sonetos. É uma lástima. Pensei que esse fosse o nome dessas coisinhas nas quais ponho toda a alma.
Até dez
Não, minha querida amiga, contar sílabas não é tão difícil quanto parece, pelo menos até a décima.
Sentido
Não, minha querida amiga, rimas toantes não são as que conduzem as outras. Na poesia não cabe o conceito de boiada.
Pista falsa
Não, minha querida amiga, enjambement não é uma artimanha amorosa inventada pelos franceses.
Acordo
Digam que eu nada entendo de viver. Mas por favor nunca, mesmo que seja verdade, sugiram que eu não entendo nada de poesia.
Fiel
A Morte nos acompanha desde o nosso primeiro dia. E no último, quando a Vida nos abandona, ela continua conosco.
domingo, 7 de janeiro de 2018
Soneto dos mártires do amor
Quando você diz amor,
Desperta imediatamente,
Fale você com quem for,
Histórias de antigamente.
O amor tem mártires, gente
Que para servi-lo, e por
Fazê-lo completamente,
Morreu sem pejo ou pudor.
Por esses que isso fizeram
E tudo pelo amor deram,
Para assim o merecer,
Pense muito sempre, pense,
E pense mais, e repense.
Não diga amor por dizer.
Desperta imediatamente,
Fale você com quem for,
Histórias de antigamente.
O amor tem mártires, gente
Que para servi-lo, e por
Fazê-lo completamente,
Morreu sem pejo ou pudor.
Por esses que isso fizeram
E tudo pelo amor deram,
Para assim o merecer,
Pense muito sempre, pense,
E pense mais, e repense.
Não diga amor por dizer.
De "Quase memória", de Carlos Heitor Cony
"No quase-quase de um quase-romance de uma quase-memória, adoto um dos lemas do personagem central deste livro, embora às avessas: amanhã não farei mais essas coisas."
(Companhia das Letras.)
(Companhia das Letras.)
O nome do morto
Ontem estive tentando lembrar-me do nome de um morto antigo, um gorducho simpático que nunca se negava a devolver a bola aos meninos quando ela caía na sua casa. Revi cenas do velório, o seu corpo no centro da sala, as velas, as lágrimas da mulher, dona Clara. Lembrei-me também de como ela o chamava, ainda, lamentosa. Nílson, Nélson, Gérson? Era um nome assim. Depois recuperei na memória a chegada de uma chuva desatada e, vindo com ela, uma garota maravilhosamente bela. Ela entrou e, sacudindo-se, esparramou pingos pelo assoalho. Disseram-me que morava no Rio. Nunca mais eu a veria. Chamava-se Iara e, enquanto eu recordava seus cabelos, pelos quais a água escorria, desisti de saber o nome do morto e o deixei dormindo ao som da chuva crescente.
A predileta
No fim da terceira piada, os risos foram cortados pela explosão de choro de um dos presentes ao velório. Era o irmão do defunto: "Ele gostava tanto dessa."
Outrora
Há muito está extinta a espécie de bem-aventurados poetas nas mãos dos quais, em suas caminhadas noturnas, caíam frutas e e estrelas.
sábado, 6 de janeiro de 2018
Soneto dos figurantes (para Amauri Ernani e Paula Giannini)
Chegamos ao último ato
E nada grande fizemos,
Nem glória alguma obtivemos
Nem nada fomos, de fato.
Alguém nos chamou, o ouvimos,
Nosso papel recebemos,
Em dois minutos o lemos
E logo ao palco subimos.
Foi uma trama tolinha
Na qual, por sorte madrasta,
Não fomos rei nem rainha.
Nada chegamos a dizer,
Mas já nos dizem que basta,
Que já podemos morrer.
E nada grande fizemos,
Nem glória alguma obtivemos
Nem nada fomos, de fato.
Alguém nos chamou, o ouvimos,
Nosso papel recebemos,
Em dois minutos o lemos
E logo ao palco subimos.
Foi uma trama tolinha
Na qual, por sorte madrasta,
Não fomos rei nem rainha.
Nada chegamos a dizer,
Mas já nos dizem que basta,
Que já podemos morrer.
Claque
Num lance de bom humor,
Subindo ao último andar,
Gritou ao se arremessar:
"Aplaudam-me, por favor."
Subindo ao último andar,
Gritou ao se arremessar:
"Aplaudam-me, por favor."
Abençoada ignorância
Se as flores soubessem que alguns poetas ainda as chamam de bênçãos do céu e sorrisos da natureza...
Bem no centro
O morto estava tão florido e tão bem instalado, no centro da sala, que mesmo quem não entendesse nada de decoração o aplaudiria.
Imponência
Alguns mortos conservam o narigão empertigado, como generais acompanhando no palanque um desfile cívico-militar.
Revide
Há mortos que nos perseguem em pesadelos, como se lhes tivéssemos feito alguma desfeita no velório.
Procon - Resolução nº 1/2018
A partir desta data, os poemas concretistas serão vendidos não mais por unidade, mas por peso.
sexta-feira, 5 de janeiro de 2018
Honestidade
O poeta concretista gastou todo seu 13º para pagar as dívidas com a loja de materiais de construção.
Licença
Há poetas que distribuem cartões para atestar que são, como dizem, do ramo. Ali constam, com prosaica exatidão, os dias e horários em que eles se encontram disponíveis se quisermos informações sobre rosas, estrelas e outros prodígios antigos sobre os quais só eles têm o direito de se manifestar.
Hoje no Estadão
Paula descendo a escada, maravilhosamente nua.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/adoravel-paula/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/adoravel-paula/
quinta-feira, 4 de janeiro de 2018
Cautela
Para os provérbios, e para a suposta verdade que expressam, talvez convenha ouvir o que um deles diz: nada como um dia depois de outro.
Subliteratura
Enquanto não aprendemos verdadeiramente a escrever, fazemos o que podemos: escrevemos bonito.
quarta-feira, 3 de janeiro de 2018
Hipótese
Um poeta corre sempre o venturoso risco de dizer palavras ao vento e vê-las fugir transformadas em pássaros.
terça-feira, 2 de janeiro de 2018
Resgate
Entre os objetos do morto, com a letra que ele tinha na infância, um dos filhos encontrou alguns sonetos, os primeiros de tantos que a vida inteira ele continuaria escrevendo e nos quais, até o último dia, confiou estar a garantia de sua riqueza e de sua glória.
Da alma
Esperar que o amor se exprima pela carne, pela pele e pelo sangue é ignorar que ele vem da alma e apenas dela pode vir. Toda vez que o dissermos, haverá de ser tão rapidamente que ele não tenha tempo de perverter-se em nossa língua e em nossos lábios. Que ele paire em nossa boca não como uma folha sobre o lago, mas como a sombra dela, por um segundo e não mais.
segunda-feira, 1 de janeiro de 2018
Na terra do Vampiro (para Henrique Fendrich)
Acho que eu viveria bem em Curitiba. De cada cinco curitibanos um é polonês, e eu poderia talvez tirar enfim algum proveito do meu sobrenome.
Mão dupla
Diante de mortos sempre tive, desde o primeiro, um sentimento que acabei descobrindo ser recíproco: a timidez.
Amor substantivo concreto
Amor no concretismo
não é romantismo,
é coisa séria.
É empirismo, pragmatismo,
efeito do princípio
matéria atrai matéria.
não é romantismo,
é coisa séria.
É empirismo, pragmatismo,
efeito do princípio
matéria atrai matéria.
Aparência
Que, mesmo por engano ou acaso, tenhamos dito um dia uma frase que haja feito alguém por um instante pensar que talvez não fôssemos tão insignificantes quanto sempre nos imaginamos.
Dicção
Alguns dizem a palavra amor e sorriem. Não sabem - e se lhes contarem não acreditarão - quantos morreram por pronunciá-la como sempre se devem pronunciar palavras sagradas.
Um poema de Seamus Heaney
"Quando todos os outros estavam na igreja
Eu era ao descascarmos batatas só dela.
Quebravam o silêncio, uma a uma, soltar,
Como solda a cair de um ferro de soldar:
Entre nós frios consolos, o que se partilha
Cintilando num balde de água limpa.
E de novo soltar. Agradáveis salpicos
De nossa faina nos devolvendo o juízo.
Assim, enquanto à sua cabeceira o vigário
Com mão armada orava para a agonizante,
Alguns respondendo e alguns em pranto,
Lembrei-me de seu rosto para o meu voltado,
Do hálito no meu, da fluente faca descida -
Jamais tão próximos para o resto da vida."
(De Poemas, tradução de José Antonio Arantes, Companhia das Letras.)
Eu era ao descascarmos batatas só dela.
Quebravam o silêncio, uma a uma, soltar,
Como solda a cair de um ferro de soldar:
Entre nós frios consolos, o que se partilha
Cintilando num balde de água limpa.
E de novo soltar. Agradáveis salpicos
De nossa faina nos devolvendo o juízo.
Assim, enquanto à sua cabeceira o vigário
Com mão armada orava para a agonizante,
Alguns respondendo e alguns em pranto,
Lembrei-me de seu rosto para o meu voltado,
Do hálito no meu, da fluente faca descida -
Jamais tão próximos para o resto da vida."
(De Poemas, tradução de José Antonio Arantes, Companhia das Letras.)
Vampira anos 2000 (para Ana Farrah Baunilha)
Lembro-me dela, de minha adorável vampira. Tão consciente, tão atualizada, estou quase dizendo moderninha. A paixão com que ela me levava para a cama, me manuseava e chupava todo meu sangue, com os dedos enluvados e o canudinho.
Erro
Onde foi que nós erramos?
Vivemos muito, sofremos,
Quando mandaram morremos,
Porém vivos continuamos
Vivemos muito, sofremos,
Quando mandaram morremos,
Porém vivos continuamos
Maldição
Abomináveis são os mortos que, não tendo nos devorado toda a carne, se foram dizendo que esperarão por nós.
Fora de cartaz
Se eu estou morto e tu morta
Ninguém mais nos perguntou.
Há muito a peça acabou.
Quem quer saber? Quem se importa?
Ninguém mais nos perguntou.
Há muito a peça acabou.
Quem quer saber? Quem se importa?