Dizia-se poeta
e embora lhe faltasse
talvez um monóculo
quem sabe um cavanhaque
tinha certo jeito
e algumas quadrinhas
umas bobas
outras sonsas
todas tolinhas.
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Confissão
O que mais me incomoda não é não ter sido o escritor que sempre quis ser. É ter levado tanto tempo para não ser.
segunda-feira, 28 de outubro de 2019
Sonetinho da rainha famélica
Os lábios dela beijou
E, por ser o que convinha,
Outros nomes descartou
E chamou-a de rainha.
Depois, murmurando minha,
Minha, minha, lhe ofertou
A vida toda que tinha
E ser só dela jurou.
Talvez nisso ainda estivesse
Se a mulher não lhe dissesse:
Fala menos e me come,
Meu lacaio rechonchudo,
Tira a roupa e vem com tudo,
Tua rainha tem fome.
E, por ser o que convinha,
Outros nomes descartou
E chamou-a de rainha.
Depois, murmurando minha,
Minha, minha, lhe ofertou
A vida toda que tinha
E ser só dela jurou.
Talvez nisso ainda estivesse
Se a mulher não lhe dissesse:
Fala menos e me come,
Meu lacaio rechonchudo,
Tira a roupa e vem com tudo,
Tua rainha tem fome.
domingo, 27 de outubro de 2019
De Haruki Murakami
"De certa forma eu sentia a consciência pesada pelo simples fato de ser eu mesmo."
(Do romance Norwegian Wood, tradução de Jefferson José Ferreira, editora Objetiva.)
(Do romance Norwegian Wood, tradução de Jefferson José Ferreira, editora Objetiva.)
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
Soneto de como me dei ao amor
Acreditei no amor como se crê
Que em tudo deve haver algo maior,
Algo bem mais profundo e bem melhor
Do que cada um de nós intui ou vê.
Acreditei no amor, e acreditei
Nele como em nenhuma crença mais,
Nem as comuns e nem as primordiais,
Jamais na vida eu acreditarei.
Desde o primeiro dia em que eu o vi,
Com toda a minha fé me submeti
E dei-lhe tudo que lhe pude dar.
Aquilo tudo que lhe tenho dado
Retribuiu-me ele com solene enfado.
Quem sou para ele em mim acreditar?
Que em tudo deve haver algo maior,
Algo bem mais profundo e bem melhor
Do que cada um de nós intui ou vê.
Acreditei no amor, e acreditei
Nele como em nenhuma crença mais,
Nem as comuns e nem as primordiais,
Jamais na vida eu acreditarei.
Desde o primeiro dia em que eu o vi,
Com toda a minha fé me submeti
E dei-lhe tudo que lhe pude dar.
Aquilo tudo que lhe tenho dado
Retribuiu-me ele com solene enfado.
Quem sou para ele em mim acreditar?
A plenos pulmões
Quando eu escrevia crônicas, parecia um político em campanha. Cumprimentava os postes do meu bairro, conversava com as árvores, assobiava para os cachorros. É o que há de melhor em ser cronista: essa camaradagem com tudo, essa impressão de que nem sempre a literatura precisa ser a tia que, para não manchar a pele, evita expor-se ao sol.
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
Mario e Manoel
No escritório de poesia Quintana & Barros, quando depois do almoço os sócios tiravam meia hora para um cochilo, era como se dois passarinhos cantassem para ninar o silêncio.
Fé
O velho poeta acredita ainda
em quartetos
em tercetos
no ouro puro
dos versos finais
e na ressurreição triunfal dos sonetos.
em quartetos
em tercetos
no ouro puro
dos versos finais
e na ressurreição triunfal dos sonetos.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
22/10
Porque de vós recebi
O que outros me têm negado,
Digo-vos gracias, merci,
Amigos, muito obrigado.
Jamais um homem chinfrim
E de valor tão precário
Foi homenageado assim
No dia do aniversário.
O que outros me têm negado,
Digo-vos gracias, merci,
Amigos, muito obrigado.
Jamais um homem chinfrim
E de valor tão precário
Foi homenageado assim
No dia do aniversário.
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Divagações vespertinas da condessa
A condessa e eu estávamos no jardim. Era uma dessas tardes em que o vento morno assedia as flores soprando-lhes obscenidades. À distância que me impunha minha condição de servo, eu, sentado numa ponta de banco, observava a condessa, que, na outra extremidade, como se estivesse com um bloco e uma caneta nas mãos, murmurava palavras, parecendo organizar uma agenda: às três, as unhas; às quatro, o cabelo; agora... Ela interrompeu a frase e suspirou, como se o vento lhe houvesse sugerido alguma coisa. Eu virei o rosto escandalosamente para ela e suspirei também, com segundas e terceiras intenções. Ela abriu para mim o melhor dos seus sorrisos irônicos e completou a frase: ... agora uma boa soneca. E, formando com o indicador uma negação: ... sozinha. Os homens são todos uns bodes. Os condes e os lacaios.
Segunda, 21/10
Que segunda-feira feiosa e triste, esta. Assim que abri a janela, perguntei-lhe o que aconteceu. Nada, só me furtaram o sol no caminho. Outra vez? Outra vez, ela sorriu. Pareceu-me resignada. Certas segundas-feiras são tão semelhantes a nós...
Sorte
Se o poeta demorasse um minuto para abrir o guarda-chuva, seu belo crânio parnasiano seria atingido pela multicolorida queda do arco-íris concretista.
Em dois tempos
Para saber se é primavera, o velho poeta agora precisa encontrar primeiro os óculos e, depois, lembrar onde está a folhinha.
domingo, 20 de outubro de 2019
Não mais que isso
Tantos tombos lhe deu o amor que hoje, quando lhe perguntam se está novamente apaixonado, ele diz que só um pouquinho e faz um gesto, como se lhe servissem café e pretendesse mostrar quanto quer de açúcar.
Hoje
O velho poeta vai se esquecendo das coisas. Hoje apontou para o alto (o que é aquilo?). Era o sol.
Conditio sine qua non
Fulano de Tal
emérito romancista
e trocista sem igual
não se cansa de dizer:
aceita morrer, mas só
depois de se tornar imortal.
emérito romancista
e trocista sem igual
não se cansa de dizer:
aceita morrer, mas só
depois de se tornar imortal.
sábado, 19 de outubro de 2019
sexta-feira, 18 de outubro de 2019
terça-feira, 15 de outubro de 2019
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
Carreira
Sou um daqueles que se acostumaram com as menções honrosas. Guardo-as todas - estatuetas, diplomas, certificados. Eu as recebi das mãos de prefeitos, vereadores, professores, gestores de feiras de livros, em uma dezena de lugares. Nenhum se chamava Estocolmo.
domingo, 13 de outubro de 2019
sábado, 12 de outubro de 2019
Soneto da mentirosa
Vamos agora supor
Que lhe pedissem, um dia,
Que provasse o seu amor,
Que provas você daria?
Julgo que você diria
Com todo o seu despudor
Que tudo, e até mais, faria,
Por ser ele seu senhor.
Se disso alguém duvidasse
E talvez lhe perguntasse:
Tudo mesmo? Até morrer?
Sei que você certamente
Mentiria novamente,
Por ser seu modo de ser.
Que lhe pedissem, um dia,
Que provasse o seu amor,
Que provas você daria?
Julgo que você diria
Com todo o seu despudor
Que tudo, e até mais, faria,
Por ser ele seu senhor.
Se disso alguém duvidasse
E talvez lhe perguntasse:
Tudo mesmo? Até morrer?
Sei que você certamente
Mentiria novamente,
Por ser seu modo de ser.
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
Autorretrato físico
Na minha idade o fácil
é sinônimo de difícil -
não me move combustível fóssil
nem me impulsiona energia físsil.
é sinônimo de difícil -
não me move combustível fóssil
nem me impulsiona energia físsil.
Nostalgia
Sonetos, ah sonetos, essas garrafas ainda lançadas ao mar, como no tempo em que existia a esperança.
Nobel
De Peter Handke, conhecendo praticamente só o simpático lado futebolístico, eu achava que, futebol por futebol, escolheria para o meu time Camus. E, literatura por literatura, também.
O nome dela
Esta noite lembrou como se chamava aquela garota que, desconfiando de sua fidelidade, o chamava ora de sem-vergonho ora de cafajesto. Era Alê - "com chapeuzinho no ê", como ela lhe explicou no primeiro dia.
Como antes
Às vezes uma palavra ainda lhe faz ferver o corpo. Hoje no jornal uma delas -- sexo - despertou nele uma sensação semelhante à das noites em que, adolescente, suando frio na cama, receava estar sendo possuído pelo Diabo..
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
Amores raiz (para Ana Farrah Baunilha e Silvana Guimarães)
Que saudades ele tem
de suas musas da periferia:
daquela moreninha que de tesão o chamava
e o bigode lhe mordiscava
na vila maria
e daquela italianinha do belém
que as mãos no seu ombro punha
dizia meu bem ah meu bem
e lhe espremia os cravos à unha.
de suas musas da periferia:
daquela moreninha que de tesão o chamava
e o bigode lhe mordiscava
na vila maria
e daquela italianinha do belém
que as mãos no seu ombro punha
dizia meu bem ah meu bem
e lhe espremia os cravos à unha.
A confirmar
Dois de meus autopresumidos talentos dependem de comprovação: escrever algo que preste e morrer romanticamente.
O pacto
Posso queixar-me da literatura? O pacto de glória que ela fez não foi comigo, foi com um menino de doze anos, mais tolo que os da sua idade, pelo que lembro.
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
No álbum de uma aniversariante
Talvez, daqui a alguns anos, você volte a ler estas linhas. Talvez você sorria como hoje. E talvez, lendo meu nome, você suspire como agora: ah, Raul.
No álbum de uma aniversariante
Faça de conta que desenhei aqui uma flor. E finja que ela é digna de você, apesar de feita por estas mãos desajeitadas que até hoje não aprenderam a lidar com as palavras.
Má fase
Não se sabe com exatidão a década em que os autores de sonetos passaram a ser considerados responsáveis por eles.
terça-feira, 8 de outubro de 2019
Lírica periférica
Nada como uma musa suburbana
mais bela que a mais bela
mordendo devagarinho uma banana
na janela do sobradinho.
mais bela que a mais bela
mordendo devagarinho uma banana
na janela do sobradinho.
Na língua do "p"
Pe-ô pe-pô pe-é pe--tá pe-não pe-viu pe-quem pe-ô pe-man pe-dou pe-à pe-pu pe-tá pe-que pe-ô pe-pa- pe-riu.
Happening
Para inaugurar sua obra-prima -
um prédio de vinte andares -
o poeta concretista convidou seus pares
e saltou do vigésimo andar
de ponta-cabeça na piscina.
um prédio de vinte andares -
o poeta concretista convidou seus pares
e saltou do vigésimo andar
de ponta-cabeça na piscina.
Aptidão
Dos pesquisadores do IBGE
não sei vocês, mas eu penso
que não se pode exigir
nada além de um bom censo.
não sei vocês, mas eu penso
que não se pode exigir
nada além de um bom censo.
Morte dupla
Numa tarde em que ela me usou mais do que de hábito, queixei-me à condessa: "Isso vai acabar me matando." Ela, atirando-se de novo como loba em cima de mim, riu: "Isso o quê?"
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Contraste
Poetas são esses tipos que fazem sonetos para musas pálidas porque não têm coragem de, vendo uma rechonchuda filha de Eva na rua, alongar as vogais num grito daqueles de derrubar viadutos: gostooosaaa.
domingo, 6 de outubro de 2019
Outrora
Saudável era tudo,
até o que me afligia:
minha hipocondria pulava corda
e cabriolava minha tanatofobia.
até o que me afligia:
minha hipocondria pulava corda
e cabriolava minha tanatofobia.
Hoje na revista Rubem
Falo de três celebridades: Deus, Adão e Eva.
https://rubem.wordpress.com/2019/10/06/deus-adao-e-eva-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2019/10/06/deus-adao-e-eva-raul-drewnick/
sexta-feira, 4 de outubro de 2019
O texto
Ele encostou o queixo na nuca da mulher.
Ela riu: que coceguinha.
Ele disse: acho melhor você tirar.
Ela respondeu: eu tiro, então.
Ele comentou: ótimo, estava só atrapalhando.
Ela concordou: é verdade.
Ele sugeriu: agora desligue isso e vamos dormir.
(Assim, suprimida a vírgula, o casal de revisores foi para a cama.)
Ela riu: que coceguinha.
Ele disse: acho melhor você tirar.
Ela respondeu: eu tiro, então.
Ele comentou: ótimo, estava só atrapalhando.
Ela concordou: é verdade.
Ele sugeriu: agora desligue isso e vamos dormir.
(Assim, suprimida a vírgula, o casal de revisores foi para a cama.)
Equívoco
Quando o rei todo pimpão
com a roupa nova em folhinha
se exibiu para a apreciação da rainha
ela os olhos fechou
e enrubesceu -
com essa aí foi que você chegou
no dia em que nasceu.
com a roupa nova em folhinha
se exibiu para a apreciação da rainha
ela os olhos fechou
e enrubesceu -
com essa aí foi que você chegou
no dia em que nasceu.
Megafone
A voz da razão
que há muito não se pronunciava
voltou hoje com seu furgão
para reproclamar
que melhor pamonha não há
que a de Piracicaba.
que há muito não se pronunciava
voltou hoje com seu furgão
para reproclamar
que melhor pamonha não há
que a de Piracicaba.
Pistas
Para distinguir um provérbio, deve-se identificar sua sabedoria - o que nem sempre é fácil - ou sentir o cheiro de naftalina que todos exalam.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Megalomania
A mania de grandeza comumente apontada nos escritores é hoje mais do que evidente. Além daquilo que sempre fizeram, eles estão editando, revisando, divulgando e custeando os próprios livros.
Idade áurea
A literatura já foi bem mais fascinante em outras épocas, como aquela na qual, antes de serem considerados incapazes de fazê-la, os candidatos tinham o direito de passar ao menos cinco anos em Paris.
Namoradinhos
Mais um beijo assim e eu morro, gemeu a menina de treze anos, romanticamente. O garoto de catorze beijou-a então tantas vezes quantas permitiu seu fôlego. Vendo-a ainda viva, censurou sua falta de palavra. Ela o incentivou: você não vai desanimar, vai?
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
As voluntárias
Sonha com mulheres elegantemente vestidas que lhe pedem contribuição para uma instituição de caridade e repentinamente começam a se despir sensualmente . Escolha uma, sugerem, e ele assiste ansioso ao coletivo desnudamento. Cada uma delas está envolta em mil e um véus e nenhum deles parece disposto a desprender-se do formoso corpo que envolve. Ele admira uma, deseja outra, adivinha numa terceira algo mais exótico que nas anteriores, consome-se antecipadamente. Naturalmente acorda e no quarto não há nenhuma das mulheres. Sorri, resignado. Se fosse um sonho realmente mau, elas teriam tido tempo de deixar em sua mão a inscrição de sócio colaborador de algum asilo de velhotes.
Pesquisa
Ninguém me perguntou nada, mas, se me permitissem escolher o pecado que me levará ao inferno, seria certamente o da luxúria, de preferência com agravantes.
Poeminha besta
Minha amiga
recordando hoje
o que eu fazia contigo
quando éramos amigos
gozei de novo
os beijos todos que te dei
e até os que não
como aqueles que premeditei
dar em teu umbigo
e naquela outra parte de ti
que não mencionarei.
recordando hoje
o que eu fazia contigo
quando éramos amigos
gozei de novo
os beijos todos que te dei
e até os que não
como aqueles que premeditei
dar em teu umbigo
e naquela outra parte de ti
que não mencionarei.
terça-feira, 1 de outubro de 2019
Conhecimento de materiais
Depois de descrever em minúcias a prodigiosa gostosura que tinha acabado de ver no metrô, o poeta concretista resumiu: de repente, parece que eu tinha uma viga de ferro no meio das pernas.
In medio virtus
É um casal equilibrado. De manhã, fala a linguagem do afeto. À tarde, o idioma do amor. À noite, a língua do sexo.
Laissez-faire
Se o cérebro insiste em arrastá-lo para bandalheiras, ora, quem é você para contrariá-lo?
Trunfo
Coçando a barbicha, o cafajeste do bairro dizia, não tão enigmaticamente quanto pensava e desdenhando aquela outra parte do corpo geralmente citada, que ela era seu maior patrimônio sexual.
Desconfiança
Na terceira noite, desconfiando de certas maneiras do fantasma, a viúva perguntou: é você, Gurgel?
Magia
Um nome de mulher, dito com o timbre certo na noite apropriada, pode eriçar os pelos do escuro.
O desejo
E houve aquela grávida meio sem noção que certa madrugada exigiu que o marido fosse comprar um chá da Pérsia.
As perdas
No dia em que se descobriram e se juraram namoradas, elas lastimaram as sedas que haviam negado aos dedos e o sal de que haviam privado os lábios nos dois anos de prosaica amizade.
Voo falho
Na tarde em que morreu o velho poeta, os parentes escolhiam o terno com que seria sepultado, quando de um deles escapou o que poderia ser um pombo, se houvesse justiça no mundo, mas era um maço de cigarros Minister, possivelmente da década de 1970.