terça-feira, 31 de março de 2020

Perfil

Há defuntos tão autênticos que é como se tivessem nascido já de terno e gravata e com o ar triunfal de quem vai receber um título de cidadão honorário.

Reflexão

Morrer talvez não seja tão ruim -
não precisar mais saber dos outros,
não ter mais que prestar contas de mim.

Dura lex

Os jovens me convenceram de que o soneto é a mais abominável das formas poéticas. Absolveram-me tendo em vista minha idade e meu bom comportamento.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Soneto do garanhão fatigado (para Glauco Mattoso)

No dia em que um repórter consciencioso
Foi designado para entrevistar
Um homem com um currículo amoroso
Capaz de ao de dom Juan se comparar,

O que era esplêndido e espetaculoso,
Digno de se cantar e decantar,
Tornou-se um espetáculo jocoso
Capaz de fazer rir e gargalhar.

O homem, cansado já talvez da fama
Atribuída aos seus préstimos de cama,
Pediu: meu jovem, olhe, eu me cansei.

Não posso mais, não vê como estou fraco?
Já não tenho nem quem me coce o saco.
Meu jovem, diga a todos que eu brochei.

domingo, 29 de março de 2020

Soneto do velho putanheiro

Há muito tempo ele não anda já,
Não vai aos bares, boates não frequenta
Como em mil novecentos e sessenta,
E seu uísque é uma chávena de chá.

O que de melhor houve já não há
E, quando com as lembranças ele tenta
Voltar àquela década perempta,
A memória prazer já não lhe dá.

Às vezes sonha, e o sonho é sempre igual:
Sem saber de que forma nem por quem,
É levado a uma imensa bacanal.

Ele escolhe a melhor puta, a mais nova,
Mas, quando vai montá-la, o expulsa alguém:
Sai já daqui e volta para a cova.


sábado, 28 de março de 2020

Sinônimo infeliz

Chamar um chato de importuno não é só um eufemismo. É um ato de exagerada caridade.

O combate do século

O imortal veste o fardão
e desafia: se tendes coragem,
vinde enfrentar-me, ó vil pandemia.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Coerência

O parente convictamente cético e circunstancialmente alcoolizado chega ao velório e seu primeiro gesto é apertar a bochecha do defunto: você está de brincadeira, não está, Aguiar?

Como gostariam aqueles

Longe soa a música.
Devagar se aproxima.
Com ela vêm o lirismo
E o sentimentalismo.

Que maravilhosa mensagem trazem.
Como gostariam de ouvi-la
Aqueles que agora jazem
Sob os escombros e as ruínas.

terça-feira, 24 de março de 2020

Naquele tempo

Naquele tempo eu morria
Entre a paixão de querer-te
E meu pavor de perder-te.
Naquele tempo eu vivia.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Oração nº 19

Em tempos de agonia
O homem nem pede a Deus que o acuda
Nem à Santa Mãe que o auxilie.
Exalta os charlatães
E atira os poetas aos cães -
Uma página de autoajuda
Vale mais que cem de poesia.

domingo, 22 de março de 2020

sexta-feira, 20 de março de 2020

Carimbo

A calamidade atual deu-lhe uma certeza: é um canalha. Entre uma notícia e outra, pensa em loiras deliciosamente nórdicas.

Praga

Foi o romantismo que me idiotizou assim.
Danem-se Castro Alves com seus arroubos
E Álvares de Azevedo com seu spleen.

Lacuna

Morrer de amor tem um inconveniente:
morre-se por ele uma só vez,
não se morre novamente.

Março, 2020

Em épocas como esta, o lirismo é quase uma ofensa.

terça-feira, 17 de março de 2020

Como um passarinho

Morreu no restaurante, sentado e tão assintomaticamente que o garçom só veio com a conta meia hora depois, para não lhe perturbar o sono.

Tempo

Na idade vil dos oitenta,
Lembrando a vida de outrora,
Você se lamenta e chora:
Como era bom ter setenta.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Risível soneto do atleta e sua conquista

O atleta foi visitá-la
E, quando a porta lhe abriu,
Ela, lisonjeada, o ouviu
Dizer com paixão amá-la.

Ele se pôs a beijá-la
E tanto nisso insistiu
Que ela os beijos retribuiu,
E amaram-se ali na sala.

Mantendo os dois atrelados,
Com as suas bocas unidas,
O amor deixou seu legado:

Os pudores relegados,
As duas bocas mordidas
E o sofá todo quebrado.

sábado, 14 de março de 2020

Má fase

Tudo que faço destoa,
Tudo que tento é fracasso:
Chamei Fernando Pessoa
E quem me veio? O Epitácio.

Como indignar poloneses

As notas que eu tirava no colégio levaram minha família a me considerar um menino promissor. Eu seria grande em tudo que quisesse ser. Quando admiti que minha pretensão era ser poeta, olharam-me com uma indignação que só meia dúzia de poloneses pode expressar tão intensamente.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Saúde pública

Melhor um sertanejo universitário caladão do que dois cantando.

Os excluídos

Os acrósticos e os sonetos não desfrutam de licença poética.

Relação

Já tive mão melhor para a poesia, e ela já teve melhores olhos para mim.

quinta-feira, 12 de março de 2020

"De que lado?"

Do recente livro Nenhuma poesia: uma antologia, de Alexandre Brandão, lançado pela Patuá Editora, extraí esta delícia que há de fazer pensar os irredutíveis e os intransigentes:

"Os de cá
os de lá
o rio que os separava evaporou.

Os de lá
os de cá
a estrada que os margeava erodiu.


Os de lá e os de cá
lado a lado
não sabem mais de que lado estão."

quarta-feira, 11 de março de 2020

De ler

Aos amantes da poesia e das histórias de amor recomendo o livro A vida peculiar de um carteiro, de Denis Thériault, construído com base em haicais. Publicação da Casa da Palavra.

Mania de grandeza

A palavra legado é um dos exemplos da tendência atual, às vezes ridícula, de em tudo buscar o épico. Fulano esquece o guarda-chuva no ônibus Penha-Lapa e pronto: Fulano deixou um legado para a cidade.

Desforra

Como réplica aos poetas românticos, sempre pendurados nas nuvens, os concretistas passaram a construir prédios cada vez mais altos.

Melenas

Os poetas românticos costumavam morrer antes que a natureza os privasse de sua mais notável característica: os cabelos longos.

terça-feira, 10 de março de 2020

Sobre a beleza parcimoniosa

Quem escreve aforismos ou epigramas e não se chama Millôr Fernandes nem tem seu brilho dificilmente verá publicado um livro seu. Por melhores que sejam seus textos, se forem empilhados em cem ou cento e vinte páginas já não se destacarão tanto a partir da décima ou décima primeira. Uma solução é dividi-los em partes reunidas sob títulos chamativos (amor, ódio, arte, canibais). Fora disso, o autor deve satisfazer-se em vê-los picados, no varejo, em jornais ou revistas. Marguerite Yourcenar, em observações feitas a propósito das vantagens dos romances, aponta esta: por sua extensão,eles fazem a beleza (comparada ao sumo das frutas) sobressair em contraste com as partes menos apreciáveis, denominadas por ela de bagaço.  Uma beleza intensa todo o tempo acaba, ainda que isto soe estranho, por se tornar monótona ou pedante.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Sonetinho do dodói na mão

Do quarto ela me chamou.
Porque na sala eu fiquei,
De novo ela chamou: ei,
Se você não vem, eu vou.

Quando ela veio, vi que ela
Estava toda despida,
E quis beijá-la: querida,
Eu nunca te vi tão bela.

Ela me disse que não
E me estendeu sua mão:
Me beija aqui, que está doendo.

Obedeci com prazer
Até ela me dizer:
Ai, você está mordendo.

Destino

Fui um menino triste. Era inevitável que eu me deixasse seduzir pela poesia.

A história

Desde meu primeiro dia,
Fui sempre meu pior amigo,
Meu mais severo inimigo,
A  mais atroz companhia.

domingo, 8 de março de 2020

Na revista Rubem hoje

https://rubem.wordpress.com/2020/03/08/frases-a-torto-e-a-direito-raul-drewnick/

Exibo minha maior virtude. Construo um amontoado de frases que só teria algum sentido se desmoronasse..

sábado, 7 de março de 2020

Status

Certas manias me fazem acreditar às vezes que sou um escritor de elite. Depois do café da manhã, do almoço e do jantar, só escrevo depois de escovar os dentes.

Duplo defeito

Quando aquele senhor empertigado, deslocando a sílaba tônica, me chamou de misantropo, descobri que, além de ser aquilo de que ele me acusava, eu era uma anomalia gramatical.

Shakespeare e os outros dois

Se, como frequentemente a tentação nos sugere, atribuirmos ao talento de Shakespeare uma origem que não seja estritamente humana, precisaremos dar a Deus, ou ao Diabo, a mais alta posição entre os maiores escritores de todos os tempos.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Check-up

Sou um espécime típico da melhor idade.
Respiro ainda com regularidade
como um desses trintões que desde os dez
entopem de fumaça os pulmões
e consigo ainda diariamente
dar dois ou três passos elegantemente
se me perdoarem um ou dois tropeções.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Soneto do joguinho amoroso

Um beijo só, só um, é o que ele pede
Choroso, há mais de dez minutos já,
E insiste: um beijo só,  me dá, me dá,
Mas a mulher o beijo não concede.

Nesse jogo amoroso vão os dois,
Sentados no sofá, ansiando e adiando,
A cada negação antegozando
O gozo pleno que virá depois.

Há muitos anos já que, diariamente,
Seguem as normas detalhadamente
E, quando o instante exato enfim chegar,

No quarto já despidos estarão
E ela, que no sofá diz sempre não,
Na cama nada irá mais recusar.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Generosidade

Quando descobrem que escrevo sonetos, alguns me dão tapinhas no ombro, me consolam: podia ser pior.

terça-feira, 3 de março de 2020

Soneto da mulher cantando no chuveiro

Cantando embaixo do chuveiro, Lia
Fez o seu dedo médio deslizar
Impudente, macio, devagar,
No tufo que a água, lânguida, lambia.

Acompanhando a mão, que vinha e que ia,
Sentindo já o ventre se eriçar,
Parou subitamente de cantar:
A letra da canção já lhe fugia.

Agora apenas concentrada em não
Pensar em nada que não fosse a mão,
Que mais ao fundo já se aventurava,

Um nome murmurou, e o repetiu,
E de tanto dizê-lo enfim sentiu
Que ao prazer todo o corpo se entregava.


segunda-feira, 2 de março de 2020

Projeto

Talvez agora morrer
seja tudo que minhas forças
me permitam fazer.