O projeto

Há muito não sabe dos amigos. É um alívio. Não precisa ficar pensando no que diria se lhe perguntassem como anda aquele antigo projeto literário.

Honra ao mérito

Com oito décadas de vida, seis delas dedicadas aos sonetos, passou a ser chamado de Sua Magnífica Obsolescência. 

Ontem na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/12/25/os-sonetos-e-as-mulheres-raul-drewnick/

Despeito

Cheguei a ter alguma relação com a literatura. Foi há muito tempo. Eu era pouco mais que um menino. Não me lembro muito bem dessa época. Mas posso lhes dizer que ela jamais me tratou como deve ter tratado o menino William Shakespeare. 

Glória

Lutou, sofreu, empenhou-se,

Gastou-se todo em buscar

O que a  vida não lhe trouxe

Nem a morte vai lhe dar.

A molecona

Não brinque com a Morte

melhor nem tentar

Você lhe dá o dedo

ela exige a mão

você lhe dá a mão

ela agarra o braço

e o outro braço

e tudo mais

que você queira

ou não lhe queira dar

A Morte é uma molecona

que não sabe brincar. 

A hora

Alguém nos pedirá que não nos preocupemos, que logo estará tudo bem, e nossos lábios talvez não consigam dizer uma palavra. Caberá então aos olhos, também cansados, exprimir nosso último gesto de gratidão. 

Conhecimento de causa

Toda manhã o velho etimologista abre a janela e cumprimenta o sol. Nos dias normais, diz olá, Hélio; naqueles em que se sente mais bem-disposto, diz salve, salve, Helinho.

Coerência

Quando a repórter perguntou aos sócios da Quintana & Barros o que significava precisamente para eles a palavra simplicidade, citada por ambos como fundamental para o sucesso da empresa, seu Mario disse: "Simplicidade, no nosso caso, é", e parou. Seu Manoel, então, retomou a frase: "Simplicidade, no nosso caso, é" e parou também. Os dois trocaram um sorriso. Seria impossível encontrar uma resposta mais coerente.

 

Autenticidade

Na livraria, o vendedor, atendendo um comprador, foi à estante e notou que as traças haviam devorado os cinco volumes da coleção A gastronomia pelo mundo.

Justiça fiscal

 O poeta parnasiano foi multado por não apresentar as guias de importação de seus cisnes franceses.

Crônica policial

O vento da madrugada fez uma travessura: sacudiu a ameixeira do jardim e foi jogar seus frutos na rua. De manhã, a indignação de todos, apontando o poste ladrão. 

Oraçãozinha

Que eu seja sempre digno de minha dor e que jamais possa apequená-la com as trôpegas palavras de minha inepta literatura.

Os dedos da condessa

 A condessa tinha dedos longos, capazes de suscitar todo tipo de metáforas e fantasias. Uma que eu apreciava era imaginar tê-los em volta do meu pescoço, apertando-o até o instante em que, docemente subjugado, eu dizia que sim, que a amava muito.

A causa

Nas noites em que é mais agudamente atacado pela melancolia, ele abre o arquivo de sonetos. Lê meia dúzia deles, lembra-se dos detalhes de cada um, das dificuldades e do prazer que lhe deram todos, como se os estivesse reescrevendo, e um sorriso vai atenuando os traços de seu rosto de velho. Nessas ocasiões, sente-se como um rebelde consultando papéis em que um dia outros rebeldes encontrarão as senhas para o restabelecimento de uma época dourada. Seus olhos têm então um brilho que ninguém estranharia ver num fanático religioso.

Palavra contra palavra

Há décadas proclama ter com a poesia uma relação que ela jamais reconheceu. 

O sinônimo

Se lhe pedirem um sinônimo para amor, responderá afeto, ou estima, ou afeição. Inábil na gramática do amor, talvez não lhe ocorra dizer Priscylla, o mais perfeito de todos, por ser sinônimo também de mulher.

Onipresença

 Pobre de ti poesia

chamada aqui

ali invocada

requisitada interpelada convocada

para honrar vivos

para reabilitar mortos

para criar reputações

para melhorar necrológios

para salvar biografias.

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/12/11/nos-tempos-de-scott-e-zelda-raul-drewnick/

Lembrança

Se te lembrares de mim,

Lembra-me com simpatia,

Como eu fui no melhor dia,

Não como sou hoje, assim.

 

O nome

Se chamasse por Deus tão fervorosamente quanto chamava por ela, talvez não fossem tão sombrias suas noites, nem tão desesperançadas.

Autoconhecimento

Tem idade suficiente para se conhecer bem. Sabe que é fraco de caráter, traidor e covarde. No Dia do Juízo Final, se for necessário, entregará a literatura numa bandeja.

Em sociedade

Há poetas que qualquer família respeitável teria prazer em receber, se não andassem sempre na companhia dos piores sonetos.

Dezembro, 2022

Nada mais me move,

Me alenta ou comove.

Não me levo mais a nenhum lugar,

Somente me deixo ir,

Simplesmente me deixo levar.

Estou tão morto já

Quanto um vivo pode estar.

Os donos

 Os dias, tanto os atuais

Como também os futuros,

Pertencem ou aos mortais

Ou então aos morituros.

Os sonetos e o direito penal

Há cinquenta anos, se um poeta se dispusesse a escrever uma quadrinha e terminasse fazendo um soneto, seria celebrado pelos confrades e agradeceria a todos os deuses pela inesperada proeza. Com a mudança de hábitos e gostos dos leitores e o surgimento de uma brilhante geração de penalistas, que culminaram com a tipificação do soneto como delito de lesa-literatura, quem hoje tenta uma quadrinha e consegue um soneto comete um crime preterintencional. Mais ou menos como se alguém, ao assistir a um número circense em que três palhaços andassem em bicicletas sobre um arame, atirasse uma pedra para derrubar o chapéu de um deles e acabasse, por um inimaginável ricocheteamento, fazendo o trio todo estatelar-se com as bicicletas no picadeiro.

A condessa e a maçã

 Ver a condessa mastigar uma maçã era absolver Adão por todos os pecados que tenha cometido e condená-lo por todos os outros que não tenha ousado cometer.

Seu Mario e seu Manoel

Segundo o relato de um ex-colaborador, num dos aniversários do escritório Quintana & Barros, quando seu Mario se preparava para cortar a primeira fatia do bolo, dez ou doze borboletas, surgidas do nada, esvoaçaram graciosamente sobre sua cabeça, enquanto seu Manoel, o sócio, comentava triunfalmente: eu não disse que elas viriam?