Não cumpri jornadas
não segui trajetórias
fui sempre antônimo de tudo
jamais fui mais do que nada
Aspirei a glórias
não atingi a glória
minhas histórias todas
não foram nunca história.
Não cumpri jornadas
não segui trajetórias
fui sempre antônimo de tudo
jamais fui mais do que nada
Aspirei a glórias
não atingi a glória
minhas histórias todas
não foram nunca história.
Render-se alguém ao amor
Não é batalha perdida.
Não há prisão mais querida
Nem mais amável senhor.
Se há algo de que posso me gabar é da minha tristeza. Herdando-a de meus pais e de sua ressentida alma polonesa, eu desde a infância a acolhi com toda a força do meu coração e senti, já naquela época, em que os outros meninos forjavam amigos imaginários, que ela seria a minha mais fiel companheira por toda a vida. Posso dizer, e digo com orgulho, que a tristeza foi uma conquista da minha apaixonada perseverança.
Gramaticalmente falando, salvar-se ou não salvar-se depende da boa vontade de uma partícula apassivadora.
Josefa ontem, voltando das compras: "Olha só que alface linda. Parece uma vitória-régia."
De repente, o domingo se fez tão esplêndido e promissor que ele imaginou que só podia ser uma cilada.
Há livros tão irremediavelmente ruins que nem uma epígrafe de Shakespeare conseguiria salvar.
Meus amigos
o que eu tenho a lhes dizer hoje
eu que sem mérito
falei tanto de filosofia
de estética de poesia
é algo simples
muito simples
algo que ninguém
precisa ser sábio para dizer
meus amigos o que eu tenho
hoje não são sonhos nem ideais
só tenho frio frio
muito frio.
Das cinzas, do pó, do olvido,
Da longa e fria estação,
Da dor, do tempo sofrido,
Os sonhos renascerão.
Mãos à obra é uma exortação que cabe muito melhor aos concretistas do que a qualquer outro tipo de poetas.
Não se relaciona nem com homens nem com mulheres. Não é misantropo, é autodidata em sexologia.
Para tornar ainda mais notável a glória de Shakespeare, considere-se que ele a alcançou sem recorrer a manuais de autoajuda e a cursos de redação criativa.
O haicai é às vezes não mais que um assobio de brisa dormindo na parte mais escura do silêncio.
O defunto aparentava estar tão confortavelmente instalado no caixão que um primo galhofeiro lhe disse, baixinho: "Aí, maganão, você está com a vida que pediu a Deus, hem?"
Num sonho, apareceram-me Sócrates, Platão e Aristóteles, os três querendo me explicar a origem da vida e seu significado. Eu os ouvi com atenção, mas continuei com minha ignorância intacta. Os três falavam grego.
Hoje na rua um transeunte
me perguntou com ar sério
se deixaram abertos os portões do cemitério.
Agora olham para mim
como se olha para um morto
sou um incômodo
um estorvo
Quem me vê, vê
seu rosto como ele
será no futuro
quando o sol de hoje se for
e sobre os olhos baixar
o frio e inarredável escuro.
Éramos jovens e almejamos
a filosofia o conhecimento a sabedoria
Buscando sapiências e excelências
deixamos passar a juventude
e sabemos hoje
com a ciência que conquistamos
que jamais houve ou haverá
maior que ela nem dom
nem graça nem virtude.
Tudo que traço e planejo,
Às pressas e com vagar,
Mais cedo ou mais tarde vejo
Ruir, gorar, fracassar.
E em cada coisa que faço,
Pequena, média ou imensa,
Cansaço, muito cansaço,
É só minha recompensa.
Das metas que idealizei
Nunca em nenhuma cheguei
Além da pífia metade.
Em todas deixei a marca
De minha tristeza parca
E minha incapacidade.
O poeta morreu ontem
e seus sonetos bem acabados -
alguns manuscritos,
alguns datilografados -
há meio século escritos
e nunca publicados
na gaveta guardados
resguardados da glória
e pela imortalidade ignorados
aguardam o dia em que
mãos piedosas os acharão
rasgarão e queimarão
libertando-os do fardo
de serem e de terem
beleza e significado.
Dos versos que tu fizeste
Julgando serem poesia
Não há sequer um que preste.
São todos algaravia.
Foi um homem tão descaradamente mentiroso durante sua longa vida que, no fim dela, os parentes que acompanhavam sua agonia, encerrada com uma sucessão de de doze ais, puseram em dúvida pelo menos oito deles.
Que esplêndido dia.
Errou quem profetizou
Que o sol não viria.
Zeloso, ele sobre as rosas
Formosas brilha, gracioso.
Na reunião dos gongóricos, marcada para decidir que providências seriam tomadas contra os ataques da crítica ao grupo e aos seus princípios estéticos, o líder perguntou aos comandados o que estavam dispostos a fazer. Um deles respondeu, hesitante: Vamos reagir. Outro, vacilante, sugeriu: Vamos lutar. O líder, então, sentindo que era hora de transmitir confiança e energia, deu um soco na mesa e, no melhor estilo do gongorismo, conclamou: Isso, vamos reagirmos. Isso, vamos lutarmos.
Para quem acha que um livro é o objeto ideal para servir como calço para cadeiras trôpegas ou mesas cambaleantes, nada melhor que uma antologia de poemas concretos.
Se em vez de escrever sonetos eu me esmerasse em dar murros em pontas de faca, talvez chamasse mais a atenção e tivesse maior público, sem precisar contar sílabas nem perseguir rimas no dicionário.
Agora que nos restam poucos
é tempo de nos reconciliarmos com os dias -
perdoar os antigos
conviver com os presentes
esperar que os futuros tenham piedade
não cometam represálias
e nos aceitem como somos
nós que outrora os olhávamos
como se não fossem dignos
de presenciar nosso pretenso valor
e nossa presumida majestade/
Do tempo em que fui cronista conservei o hábito de nunca andar sem caneta e bloquinho. Mas, quando souberam que não tenho mais espaço para eles no jornal, os passarinhos, os cachorros, os gatos e os fatos cotidianos dos quais eu falava não me acompanham mais nas caminhadas . Hoje o bloquinho volta para casa como eu: vazio e cabisbaixo.
Durante minha vida toda carreguei um fardo pesadíssimo que julguei ser literatura e não era mais que um cestinho de vime completamente vazio.
Sobre a minha experiência com a literatura, posso dizer que que fui um menino alegre, cheio de boas intenções e propósitos, e um velho amargo que sabe não ter cumprido nem umas nem outros.
Na poesia, o conceito de arte pela arte tem seu apogeu no soneto. Cada sílaba, cada palavra, cada verso busca nada menos que a fulguração única do ouro.
Sou hoje uma dessas pessoas com as quais não se deve desperdiçar expressões como bom dia, boa sorte, bom sucesso. Talvez caiba desejar-me bom repouso, que já é bem mais qe hora.
Havia tantos versejadores já naquele tempo que, no bonde que não tomou, Drummond teria sido o mais ilustre dos passageiros, embora talvez não o único dos poetas.
Era um declamador poderoso, capaz de encharcar os espectadores da primeira fileira com seus perdigotos exclamatórios.
Embora eu não entenda muito bem do assunto, quase tudo que escrevo é sobre o ato de escrever.
Dizem os concretistas que seria a um deles que Deus recorreria se na Criação tivesse precisado de um artista.
O velho poeta adaptou-se bem ao computador. Mas, se o assunto são reminiscências, ele ainda prefere a máquina de escrever.
Não, dizer meus óculos, e não meu óculos, não é mania de grandeza. É uma exigência gramatical.
Quando eu tinha dez anos, uma tia profetizou: eu seria um escritor. Quando cheguei aos doze, ela refez a profecia: eu seria um grande escritor. Hoje, se ela estivesse viva, certamente diria: não perca a esperança, meu querido, nunca.
A história da família é modesta
Cem anos ou um pouco mais
de casamentos óbitos nascimentos
todos acontecimentos triviais
matéria obscura de cartórios
sem interesse para os jornais
Numa mudança perdeu-se aquela foto do avô
com seu uniforme de marinheiro
e um dos filhotes da gata se extraviou
mas devem ter sido fatos corriqueiros
porque foram há um mês
e nenhum jornal até hoje os noticiou.
É injusto atribuir inteiramente aos sonetos minha má fama. Há outras causas, dezenas, talvez centenas, embora todas miúdas, como fazer promessas falsas, negar pão aos pobres e admirar a mulher do próximo.
A Deus eu não me canso de rogar
Que, dos pecados todos que cometo
E dos que eu ainda venha a praticar,
Nenhum seja mais torpe que um soneto.
Ontem trajes de seda pantufas
ambrosias alfenins trufas
hoje trapos sapatos furados
morangos mofados migalhas bulhufas.
Esplêndido dia!
Nós não merecemos tão
Completa alegria.
O mar já nos chama e a vida
Convida o sol a brilhar.
O que mais lastimou o poeta parnasiano quando a mulher o deixou foi nunca mais poder contemplar a fluência e o ritmo exato de seus passos, perfeitos como um alexandrino.
Depois de tantas catástrofes
de tantas calamidades
e tantas odisseias
talvez desistir não fosse ruim
talvez morrer não seja má ideia.
Vive hoje metodicamente
gasta seus advérbios de modo
economicamente
um pouquinho de manhã
um tantinho à tarde
à noite mais um bocadinho
e livre das aspirações de glória
de antigamente
dorme longa
anônima e gostosamente.
Ter dedicado a vida inteira à literatura pode indicar que me falta exatamente a principal qualidade de um escritor: a imaginação.
Não quero mais chorar
educadamente
civilizadamente
Quero chorar
desavergonhadamente
um choro de soluços e de ranho
um choro como aqueles
choros torrenciais
que choravam
os homens de antigamente.
Talvez, assim como aconteceu àquele aluno que estudou um ponto só e calhou de ser justamente esse o que lhe coube no exame final, tenhamos a sorte de, em nosso dia derradeiro, contar com a simpatia do anjo da morte. Ele nos perguntará se sabemos o que é morrer, e nós por nossa vez lhe perguntaremos se morrer é fechar os olhos. Ele nos dirá que sim, que morrer sempre foi somente isso, nos dará parabéns, e de olhos fechados seguiremos o caminho que ele nos apontar.
Quem hoje sonetos faz,
Por mais que tenham valia,
Maior sucesso fariam
Se fossem como os fazia
O incomparável Luís Vaz.
Depois de uma época bela
Vivemos esta, nefasta.
Num dia vem a procela
E no outro vem a borrasca.
Quando Pessoa morreu
que pena
com ele morreu
uma centena
Quando eu morrer
não haverá perda
que falta há de fazer
um zero à esquerda?
E chegou o momento afinal
de trocarmos nossa burrice natural
pela inteligência artificial.
Quando nada mais tiveres
que cause a inveja dos homens
e a atenção das mulheres
quando disseres adeus
e não houver ninguém
que te diga para ficar
quando os primeiros passos deres
e começares a te afastar
verás como pode ser
leve uma caminhada
quando não se tem nada
que cause a inveja dos homens
e a atenção das mulheres.
Agora que o gato morreu e o sofá é ocupado apenas pelo avô, o sol tem aparecido só esporadicamente na sala.
Que bela cena é uma gata se espreguiçando, esticando-se languidamente, encompridando-se para alcançar seu sono no sofá.
Mesmo que só um pouco
me deixe ficar
me dê uma beirada de cama
ou um cantinho de sofá
Não sei latir muito bem
nem miar
mas se você me perdoar
por eu ser presunçoso
posso tentar ser carinhoso
e serviçal como um poodle
ou um gato angorá.
É um homem que ainda chama as mulheres todas de minha fada e minha rainha, embora o truque só tenha dado certo uma vez, trinta anos atrás.
Já ne terceira ou quarta noite percebi que a condessa me encarava como uma menina de dez anos encararia um saquinho de pipocas depois de duas horas de vertiginosas emoções nos mais desvairados brinquedos de um parque de diversões.
No domingo de primavera, o sol e o mar acumpliciaram-se tão torpemente que o suicida, contemplando-os da sacada do décimo andar, resolveu deixar para a segunda-feira seu projeto e seu salto.
Segundo os detratores de um poeta parnasiano famoso por ter publicado quatrocentos e cinquenta sonetos, os primeiros quatrocentos e trinta e oito constituíam o que, no conjunto de sua obra, era conhecido como fase de aprendizado.
Afetado por uma série de súbitos desastres financeiros que o obrigaram a vender pela metade do valor todos os seus imóveis, o concretista lamentou não ter nascido na época em que os poetas perdiam no máximo o bonde e a esperança.